Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
759/11.0TBELV-A.E1
Relator: MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS
Descritores: SANEADOR-SENTENÇA
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Data do Acordão: 12/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: COMARCA DE ELVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
- A prolação da sentença em sede de despacho saneador sem que tenha sido dado conhecimento da intenção dessa prolação às partes, e o conhecimento nessa sede de uma questão de direito em que o tribunal vem a concluir por uma solução jurídica não alegada nos autos e que assim as partes não tinham obrigação de prever, e sem lhes dar oportunidade de sobre ela se pronunciarem, constitui decisão-surpresa que gera nulidade processual nos termos do artº 201º nº 1 do CPC.
- Estando a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório coberta por uma decisão judicial, é atempada a sua arguição no recurso interposto da mesma sentença.

Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
J… veio por apenso à execução que S… S.A., lhe moveu e bem assim a F…, LDª e a R…, deduzir oposição à execução (e à penhora) alegando, em resumo que em 13/11/2009 procedeu à cessão das quotas de que era titular na sociedade também executada, tendo nessa data o actual e único sócio da empresa, o também executado R…, assumido a responsabilidade por todas as dívidas da referida sociedade, incluindo o contrato de leasing celebrado com a exequente.
Conclui peticionando a sua absolvição do pedido.
Regularmente citada veio a exequente contestar, alegando em síntese, que no título executivo dado à execução – a livrança junta a fls. 88 – o oponente figura como legal representante a sociedade executada e avalista pelo que a sua responsabilidade é pessoal, solidária e cumulativa.
Alega ainda que a cessão de quotas nunca lhe foi comunicada, pelo que deve a oposição ser julgada totalmente improcedente.
Foi realizada uma tentativa de conciliação que se frustrou.
Em sede de despacho saneador, a Exmª Juíza, considerando que o estado dos autos permitia conhecer imediatamente do mérito da causa, proferiu a sentença de fls. 96 e segs., julgando a oposição à execução totalmente procedente e, consequentemente, determinou a extinção da execução relativamente ao executado J… e declarou extinta a oposição à penhora, por inutilidade superveniente da lide.
Inconformada apelou a exequente, alegando e formulando as seguintes conclusões:
a) O Mmº Juiz a quo julgou totalmente procedente a oposição à execução, porquanto entendeu ser nulo o aval prestado pelo executado/recorrido.
b) Todavia a nulidade do aval nunca foi alegada pelas partes, nunca foi dada a conhecer às partes para pronúncia, e nem estava incluído na matéria a decidir pelo douto Tribunal a quo.
c) Considera assim a recorrente que foi violado o princípio do dispositivo, na vertente que determina que sejam as partes a definir os contornos fácticos do litígio, ou seja, devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o Tribunal se pode basear para decidir, sem olvidar dos poderes conferidos ao tribunal (artº 264º/2 do CPC)
d) Ademais, dispõe o artº 660º nº 2 do CPC que “O juiz (…) Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
e) Pelo que, salvo douto entendimento, considera a recorrente que extravasa a competência do Tribunal a quo o conhecimento da nulidade do aval, ao não ter sido dado cumprimento ao princípio/direito ao contraditório.
f) Pelo que a sentença recorrida é nula por violação do disposto nos artº 264º nº 2, 660º nº 2 e 3º nº 3 do CPC.
g) Pois que a ser carreado pelo Tribunal novo fundamento, sempre teria de ser respeitado o princípio do contraditório, que numa das suas vertentes, determina que não pode o tribunal decidir qualquer questão de facto ou de direito, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem (artº 3º nº 3 do CPC)
h) Ora, no caso dos autos nenhuma das partes foi convidada a pronunciar-se acerca da questão da validade do aval, que conduziu à decisão de nulidade do aval e, nessa medida, procedência total da oposição à execução.
i) Tanto mais que, foram as partes convidadas a procurar a transacção por meio de tentativa de conciliação.
j) Ora, o conhecimento de tal questão pelo Tribunal, apenas em sede de sentença, constituiu uma decisão surpresa, na medida em que não foi dada a oportunidade a qualquer das partes de se pronunciar sobre tal matéria, decisiva para a sorte do pleito, e até então perfeitamente omitida nos autos.
k) Existe assim, na sentença recorrida, uma indiscutível violação do princípio consignado no artº 3º nº 3 do CPC.
l) A decisão recorrida viola assim o disposto nos artºs 264º nº 2, 660º nº 2 e 3º nº 3 do CPC.
m) À cautela, e sem conceder, sempre pugna a exequente/recorrente pela validade do aval, não apenas no plano estritamente formal, como no plano material e do mais elementar princípio de justiça e do correcto exercício do direito.
n) Na livrança dada à execução, o executado/recorrido surge, não só como legal representante da empresa subscritora, mas também como avalista (artº 30º da LULL)
o) O executado/recorrido não impugnou qualquer das assinaturas apostas na livrança dada à execução, tendo-se limitado a alegar a cessão de quotas operada.
p) Mas a verdade é que a cessão da participação social do executado/recorrido na empresa subscritora da livrança em nada afecta a sua responsabilidade passiva, atento o preceituado no artº 47º da LULL, porquanto se obrigou também como responsável pessoal e solidário da firma subscritora.
q) Assim o Ac. do STJ, proc. nº 06ª2770 de 21/11/2006.
r) Porque outrora sócio-gerente de uma empresa, terá o executado/recorrido pleno conhecimento dos usos do tráfego negocial-societário e dos modus da vinculação contratual (artº 514º do C.P.C.)
s) O executado/recorrido não só assinou a livrança como avalista, como subscreveu a declaração de avalista constante do contrato de locação financeira nº 643034 que constitui a relação material subjacente à livrança dada à execução.
t) No mesmo e referido contrato, logo após a declaração de avalista, novamente apôs o executado/recorrido a sua assinatura, desta vez com o carimbo da locatária e da qual era legal representante, e já com referência à declaração de bom conhecimento do clausulado contratual.
u) Em sede de negociações preliminares, o executado/recorrido instruiu a proposta nº 924085118, que resultou no contrato de locação financeira nº 643034, com uma declaração de avalista, tendo junto documentos do foro patrimonial-pessoal, designadamente declaração de rendimentos fiscal enquanto contribuinte pessoa singular.
v) Um declaratário normal colocado na mesma posição do executado/recorrido, dúvidas não poderia ter quanto à sua vinculação enquanto avalista e, nessa medida, a título pessoal e solidário.
w) Principalmente quando o executado/recorrido apresenta experiência contratual-societária.
x) O executado/recorrido foi ainda interpelado admonitoriamente pela exequente/recorrente, mediante carta registada com A/R, datada de 09/04/2010, por meio da qual é ressalvada a sua responsabilidade como avalista da livrança dada em garantia do bom cumprimento do contrato de locação financeira nº 643034.
y) O executado/recorrido é também interpelado para o preenchimento da livrança que avalizou, dando conta da sua responsabilidade pessoal, mediante missiva datada de 29/07/2010.
z) E, da mesma forma, previamente à instauração da acção executiva para pagamento de quantia certa, nova carta é enviada ao executado/recorrido a advertir para a sua responsabilidade pessoal e solidária enquanto avalista da empresa F…, Ldª.
aa) O executado/recorrido não impugnou a sua assinatura.
bb) A doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais têm considerado que a validade do aval não depende da aposição das menções “bom para aval” ou fórmula equivalente.
cc) O que no caso dos autos sempre revistiria um manifesto abuso de direito na modalidade de inalegabilidade formal, considerar nulo o aval prestado.
dd) Pelo que também nesta parte, sempre seria, salvo melhor opinião e o devido respeito, nula a sentença recorrida por violação dos artºs 31º e 75º da LULL, bem como o artº 334º do CC.
ee) Destarte, a procedência do recurso é manifesta.
Não foram apresentadas contra-alegações
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Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente abrangendo apenas as questões aí contidas (artºs 684º nº 3 e 685-A nº 1 do CPC), verifica-se que são as seguintes as questões suscitadas:
- A configuração da sentença recorrida, face à violação do princípio do contraditório (artº 3º nº 3 do CPC), como uma decisão surpresa.
- A questão da declarada nulidade do aval constante do título executivo em apreço.
- O abuso de direito
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Na sua alegação de recurso começa a apelante por invocar a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório (artº 3º nº 3 do CPC) pois o Exmº Juiz conheceu da nulidade do aval que conduziu à procedência da oposição, sem que tal questão tenha sido suscitada nos autos e sem possibilitar às partes a pronúncia e discussão sobre a mesma, tendo a decisão recorrida constituído, assim, uma decisão surpresa.

Vejamos.
Estabelece o artº 3º nº 3 do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Consagra tal norma o princípio do contraditório, designadamente, através da proibição da decisão-surpresa, isto é, da decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Jorge Miranda e Rui Medeiros resumem o alcance do princípio do contraditório nos seguintes termos: “Segundo o Tribunal Constitucional, do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de uma e de outras (Acórdãos nºs 1185/96 e 1193/96)” (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo I, p. 194).
Também Lebre de Freitas traça a evolução do princípio do contraditório, na vertente do direito de influenciar a decisão, do seguinte modo: “Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão, tal como, oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar, assim se garantindo o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes.
A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”. (Introdução ao Proc. Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, ps. 96/97)
Ora, mesmo admitindo que, in casu, o Tribunal a quo ao exarar a sentença, cingiu a sua actividade ao disposto no artº 664º do CPC (sujeição quanto à matéria factual, à alegação das partes, mas liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito), ao invocar fundamento não alegado pelas partes, veio a concluir por uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.
Tanto mais que tendo considerado oportuna a realização de uma tentativa de conciliação nos termos do artº 509º do CPC, a designação desta, não deixou transparecer a sua intenção de conhecimento imediato do pedido, caso em que poderia realizá-la no âmbito da uma audiência preliminar e nessa sede facultar às partes também a discussão de facto e de direito sobre o mérito da causa (artº 508-A nº 1 als. a) e b) do CPC)
E realizando tal tentativa de conciliação, a Exmª Juíza proferiu decisão sem anunciar a sua intenção de conhecer imediatamente do mérito da causa.
A sentença assim proferida constituiu, sem dúvida, uma decisão surpresa.
A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 201º nº 1 do CPC (a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa). E dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa.
Porque a omissão da audição das partes (salvo no caso de falta de citação), não constitui nulidade de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, a eventual nulidade daí decorrente, deve ser invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo (artºs 203º nº 1 e 205º nº 1 o CPC), sendo que, porém, estando a mesma coberta por decisão judicial nada obsta a que este Tribunal conheça da referida nulidade quando invocada em sede recurso nas respectivas alegações (cfr., entre outros, Ac. da R.L. de 11/01/2011, proc. 286/09.5T2AMD-B.L1-1; Ac do STJ de 13/01/2005, proc. 04B4031, da RP de 18/06/2007, proc. 0732861)
Tendo a sentença recorrida sido proferida em sede despacho saneador sem do facto ter sido dado conhecimento prévio às partes e ao invocar nela fundamento não alegado pelas partes, concluindo por uma solução jurídica que não tinham obrigação de prever, violou o disposto no artº 3º nº 3 do CPC, constituindo a sentença recorrida uma decisão-surpresa.
Impõe-se, pois a sua anulação para que o Tribunal recorrido dê cumprimento ao contraditório e subsequente tramitação conforme for entendido de direito.
DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em anular a sentença recorrida e, em consequência, determinar a baixa do processo à 1ª instância para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine o prosseguimento dos autos, conforme for entendido de direito.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 20.12.12
Maria Alexandra A. Moura Santos
Eduardo José Caetano Tenazinha
António Manuel Ribeiro Cardoso