Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2379/21.1T8SNT.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CADUCIDADE
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º E 573.º, DO CPC
ARTIGOS 303.º;328.º; 333.º; 342.º, 1; 610.º; 612.º; 616.º, 4 E 618.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Quando reportada a matéria que está na disponibilidade da parte, a caducidade não pode ser conhecida oficiosamente, devendo, para tal conhecimento, ser atempadamente invocada – artºs 303.º e 333.º, n.º 2, do CCivil.

II - O interesse em agir é um pressuposto processual inominado, que cabe na previsão não taxativa do artº 577º do CPC, autónomo da legitimidade, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário, tendo por objeto a providência solicitada ao tribunal, através da qual se procura ver satisfeito este interesse primário.

III - O não cumprimento dos ónus formais do artº 640º do CPC, vg. a não indicação dos específicos meios probatórios a cada um dos factos impugnados, e a não indicação, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, das exatas passagens da gravação dos depoimentos, implica a liminar e imediata rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

IV - Esta decisão, máxime quando determinantemente alicerçada em prova pessoal, e considerando os benefícios da imediação e da oralidade, apenas pode ser censurada, quando manifestamente se mostre desadequada a esta prova e/ou às regras da experiência comum; assim não pode ser dado como provado um empréstimo de dezenas de milhares de euros apenas com base em depoimentos de familiares e sem documentação cabal, e que para solver o mesmo foram vendidos bens à mutuante.

V - São requisitos da impugnação pauliana: i) que o ato praticado pelo devedor envolva impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da satisfação, total ou parcial, do crédito, o que tanto se pode traduzir numa perda de ativo como num aumento do passivo; ii) Que o crédito seja anterior ao ato impugnado; iii) que, sendo o crédito posterior o ato tenha sido realizado dolosamente para prejudicar a satisfação do crédito; iv) se o ato lesivo assumir o cariz de oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé.

VI - A má fé não exige o animus nocendi, bastando a negligência consciente do prejuízo causado.

Decisão Texto Integral: Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Alberto Ruço
Fernando Monteiro

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

MASSA INSOLVENTE DE A..., LDA., devidamente representada pela Administradora da Insolvência, AA, nomeada nos autos de processo de insolvência n.º 2855/10...., que correm termos no Juiz 2 do Juízo do Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., instaurou contra BB, CC E CC na qualidade de herdeiros habilitados da entretanto falecida DD, e CC, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

Seja declarada a ineficácia, em relação à aqui autora, das compras e vendas tituladas pelo: 

- título de compra e venda celebrado no dia 16 de Agosto de 2017 na Casa Pronta da ... Conservatória do Registo Predial ... – tendo por objeto o imóvel urbano, composto fração autónoma designada pela letra “G” correspondente ao terceiro andar nascente, destinada a habitação, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal sito na Urbanização ..., Rua ...., em ..., ..., na cidade ... e respetivo contrato promessa de alienação; 

- contrato de compra e venda de bens móveis celebrado entre os Réus no dia 16 de Agosto de 2017, e, em consequência, ser reconhecido à Autora o direito de executar tais bens (imóvel e móveis) no património dos 2.º e 3.º Réus, adquirentes, para pagamento do crédito que detém sobre a 1.ª Ré. 

 

Alegou:

As vendas que vêm impugnadas foram celebradas entre os RR. com o propósito de se subtraírem ao cumprimento das suas obrigações, designadamente o de não  liquidarem o seu crédito e ainda que inexistindo outros bens de relevo a autora viu comprometida a possibilidade de obter a satisfação integral dos seus créditos que lhe foram reconhecidos no processo que com o nº 2206/07.... correu termos neste tribunal.

 

A ré BB contestou.

Invocou a incompetência territorial do JCC de Sintra, aduziu a exceção de ilegitimidade da autora e, para o caso de assim não se entender, concluiu pela improcedência da ação 

 

A autora pronunciou-se pugnando pela improcedência das exceções.

 

Na procedência da exceção de incompetência veio o processo a ser remetido ao tribunal recorrido.

Foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade da autora, decisão que veio a ser revogada por este Tribunal da Relação.

 

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, decide-se julgar a ação totalmente procedente e em conformidade, declarar a ineficácia, em relação à aqui Autora, das compras e vendas tituladas pelo: 

título de compra e venda celebrado no dia 16 de Agosto de 2017 na Casa Pronta da ... Conservatória do Registo Predial ... – tendo por objeto o imóvel urbano, composto fração autónoma designada pela letra “G” correspondente ao terceiro andar nascente, destinada a habitação, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal sito na Urbanização ..., Rua ...., em ..., ..., na cidade ... e respetivo contrato promessa de alienação; e pelo  

contrato de compra e venda de bens móveis celebrado entre os Réus no dia 16 de agosto de  2017, e, em consequência, ser reconhecer à Autora o direito de executar tais bens (imóvel e  móveis) no património dos 2.º e 3.º Réus, adquirentes, para pagamento do crédito que detém sobre a 1.ª Ré.

 

Custas a cargo da ré BB sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido»

3.

Inconformada recorreu a ré BB.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I – DA NÃO VERIFICAÇÃO DA EXCEÇÃO DA CADUCIDADE

I A caducidade da Ação Pauliana é uma exceção que deve ser de conhecimento oficioso e está prevista nos artigos 333.º e 618.º do Código Civil e 608.º/2 do Código de Processo Civil. Os atos que a Recorrida pretende ver verificada a ineficácia relativamente a si tiveram o seu registo em 01 de fevereiro de 2008 aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda entre a Recorrente e os outros réus.

II O contrato-promessa de compra e venda do imóvel foi registado pela apresentação 31 de 2008/02/01, pelo que o bem estava onerado com a promessa de venda que se veio a concretizar em 16 de agosto de 2017. Com efeito, o artigo 618.º do Código Civil estabelece que o direito de impugnação pauliana caduca ao fim de cinco (5) anos, contados da data do ato impugnável.

III O contrato promessa de compra e venda é celebrado em 01 de Fevereiro de 2008, e, foi, por vontade das partes, um ato sujeito a registo, onerando o imóvel com a eficácia real perante terceiros, e, que assim se manteve até 16 de Agosto de 2017 aquando da realização do contrato de compra e venda definitivo, e, a ação é interposta em 12 de fevereiro de 2021, ou seja depois de decorridos os cinco (5) anos previstos na lei sobre a realização do contrato promessa de compra e venda.

IV O prazo de caducidade de cinco anos para o exercício do direito de impugnação pauliana conta-se, como expressamente refere o artigo 618.º do Código Civil, a partir da data do ato impugnável, não consentindo essa norma interpretação extensiva, no sentido de tal prazo só correr a partir da data do conhecimento do ato pelo credor. Neste sentido, terá o Sr. Dr. Juiz a quo violado, por não aplicação, o disposto nos artigos 618.º e 333.º do Código Civil e 608.º/2 – 2ª parte do Código de Processo Civil.

V O Juiz a quo deveria ter decido pela improcedência da Ação Pauliana por estar verificada a exceção da caducidade e absolver a Recorrente e demais Réus do pedido. Ao não proceder conforme determina a lei, requer-se a V/Venerandas Exas. que revoguem a Sentença, ora em crise, decidindo pela verificação da exceção da caducidade da Ação Pauliana.

II – DA NÃO VERIFICAÇÃO DA EXCEÇÃO DO INTERESSE PROCESSUAL OU INTERESSE EM AGIR

VI O interesse processual ou interesse em agir, embora não autonomizado em geral, constitui um pressuposto processual relativo às partes, e a sua falta integra exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, a conduzir à absolvição da instância (cfr. al. e), do nº 1, do artigo 278º, nº2, do artigo 576º, artigo 577º e artigo 578º, todos do C.P.C.), exprimindo a objetiva necessidade do processo (a concreta situação realmente carecida de tutela), pela essencialidade da tutela judicial, a adequação entre o direito que se pretende exercer e o caminho (via judicial) escolhido pela Autora ora Recorrida.

 VII A Ação de Condenação foi intentada em 29 de Setembro de 2007 e a sentença transitada em julgado ocorre em Setembro de 2018, no entanto a Recorrida não acautelou atempadamente o seu direito, não registando qualquer ónus sobre o imóvel objeto da Ação Pauliana que viesse a impedir a celebração da escritura definitiva de compra e venda que se veio a realizar somente em 16 de Agosto de 2017. A Autora, ora Recorrida, convicta que estava dos seus direitos e do ganho de causa na Ação de Condenação interposta em 29 de Setembro de 2007, não veio acautelar o seu futuro direito de crédito sobre os bens pertencentes à Recorrente, nomeadamente com o registo da Ação Condenatória nos bens pertencentes à Recorrente.

VIII O registo provisório por natureza das ações corresponde a um registo essencialmente cautelar, mais não sendo que a antecipação do registo da própria sentença transitada, sendo através da conversão que o registo da ação conserva a prioridade que tinha como provisório; através do registo da ação, o Autor, neste caso a Recorrida, garante antecipadamente a oponibilidade a terceiros das providências que venham a ser decretadas pelo Tribunal impedindo que esses terceiros se possam prevalecer de direitos que sobre o prédio venham a adquirir do Réu, ora Recorrente.

IX Após a confirmação da sentença de condenação a Recorrida deu preferência a intentar a Ação de Execução ao invés de lançar mão da impugnação pauliana, sendo certo que nos autos de Execução a Autora já beneficia da penhora da pensão da 1ª Ré que em certa medida é uma garantia de satisfação do seu crédito.

X O interesse em agir constitui pressuposto processual autónomo e consiste na necessidade ou utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, tal como a ação é configurada pelo Autor. Visando impedir a prossecução de ações inúteis, o interesse em agir obsta ao conhecimento de mérito e impõe a absolvição do demandado da instância, constituindo exceção dilatória inominada. Entre os pressupostos processuais referentes às partes, deve incluir-se o interesse processual ou o interesse em agir. Embora a lei não lhe faça referência expressa, ele encontra-se perfeitamente identificado como tal na doutrina e na jurisprudência, que o consideram admissível no elenco não taxativo do artigo 577º do CPC.

XI Pelo exposto, deveria o juiz a quo ter decido pela improcedência da Ação Pauliana, absolvendo  logo ab initio a aqui Recorrente e os Réus da instância por verificação dos pressupostos da falta de interesse em agir, pois que a Recorrida baseia a sua Ação Pauliana somente como forma de garantir património que não conseguiu encontrar na Ação Executiva que interpôs em 2019 e veja-se que somente em 2021 é que decide dar entrada com a Ação Pauliana. Sendo certo que, na Ação Executiva, já existia bem penhorado à Recorrente, nomeadamente os rendimentos desta.

XII Não tendo o juiz a quo declarado a exceção inominada de falta de interesse em agir deverão V/Venerandas Exas. revogar a sentença recorrida e decidir pela improcedência da Ação Pauliana por verificado o pressuposto processual de falta de interesse em agir e consequentemente absolver a Recorrente e demais réus da Instância.

III – DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA

XIII Da análise ponderada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como de toda a prova documental junta aos autos, torna-se incompreensível como é que o Senhor Juiz a quo concluiu pela verificação dos pressupostos da Ação Pauliana e neste sentido pela procedência do pedido da Recorrida pela declaração de ineficácia das compras e vendas dos bens imóvel e móveis realizadas 16 de agosto de 2017.

XIV Com efeito bastará uma atenta e crítica análise aos documentos juntos na contestação conjugados pelo depoimento de parte do segundo réu e aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelas partes, para se demonstrar como provados os factos alegados na contestação, sobre os quais o Juiz a quo não se pronunciou ou deu como não provados. O Juiz a quo não pode deixar de valorar os documentos juntos pela Recorrente em sede de contestação, quando os admite e, apesar de impugnados, não fundamenta a razão da sua não comprovação. Apesar do julgador não se encontrar sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o certo é que, a valoração da prova não poderá ser arbitrária, mas antes vinculada a uma descoberta da verdade.

XV A Recorrente faz prova da sua saúde débil sendo ajudada economicamente pela família, nomeadamente pelos outros réus, no entanto esta prova não foi valorada e não foi dada como provada pelo Juiz a quo, basta fazer uma atenta análise às transcrições da prova gravada e indicada nas Alegações para se verificar que o juiz a quo não fez um uso normal do processo, e teve uma atitude deveras parcial na decisão tomada, pois que a mesma somente foi alicerçada e fundamentada através do alegado na Petição Inicial apresentada pela Recorrida.

XVI Sobre os factos alegados nos artigo 49.º, 54.º, 56.º e 63.º da contestação referentes ao estado de saúde da Recorrente, o juiz a quo simplesmente os deu como não provados, não fundamentando a sua decisão. A Recorrente considera que o juiz a quo deveria ter dado como provados os factos alegados na Contestação, nomeadamente o facto de a Recorrente ser uma pessoa bastante doente, que, desde, pelo menos, 2008 tem vindo a receber ajudas económicas, monetárias por parte dos segundos réus, sua irmã já falecida e seu cunhado, e, que por conta dos dinheiros entregues à Recorrente foram os bens transferidos para a esfera patrimonial dos segundos réus, por conta das ajudas monetárias concedidas à Recorrente e por forma a garantir esses pagamentos / entregas em dinheiro foi realizado o contrato promessa de compra e venda que podia, quando quisessem, ser convertido em definitivo.

XVII Também andou mal o juiz a quo quando perante elementos probatórios não considerou existir uma grande dívida monetária da Recorrente para com os segundos réus e que fora apoiada por estes conforme alegado em 48.º a 53.º e 57.º da Contestação. Bastava uma atenta análise aos documentos n.º 12 a 30 juntos com a contestação e a confrontação com a prova testemunhal produzida em julgamento para se dar como provado o que o Sr. Juiz a quo, inexplicavelmente, sem qualquer fundamentação, deu como não provado.

XVIII Consequentemente não existe fundamentação suficiente para o Sr. Juiz a quo dar como preenchidos os requisitos da Ação Pauliana e assim considerar a Ação totalmente procedente. Tem que ser a Recorrida a fazer a produção de prova para considerar verificados os requisitos da Ação Pauliana. Não cabe à recorrente fazer prova da não verificação dos requisitos. No entanto,

XIX Foi a Recorrente que produziu prova suficiente para que se verificasse o não preenchimento dos requisitos da Ação Pauliana, mas que não foi atendido pelo Juiz a quo que foi o juiz da causa condenatória que fixou a indemnização a pagar à Recorrida, o que leva a Recorrente a concluir que o Sr. Juiz a quo terá deixado levar-se por convicções já pré-formadas e tomado uma posição já pré-definida relativamente ao processo e consequentemente uma decisão favorável à Recorrida sem analisar proficuamente os factos alegados pela Recorrente em sede de contestação e os elementos probatórios por esta apresentados. Considera a Recorrente que o Juiz a quo não teve um juízo decisório imparcial violando assim o princípio da imparcialidade, pois que alicerçou a sua decisão condenatória somente nos factos alegados pela Recorrida, dando como provado somente um facto alegado pela Recorrente, o envio de uma carta registada com aviso de receção. Não existe uma justificação decisória por parte do juiz a quo para não dar como provados os factos que considera não terem sido provados, pois que os depoimentos de parte e testemunhais contrariam a decisão do juiz a quo, e neste sentido, considera a Recorrente ter sido violado o princípio da imparcialidade e da valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e a violação do previsto no artigo 376.º/1 do Código Civil.

XX Não existia fundamento para a procedência da Ação Pauliana que vem regulada nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil que nos dizem que o credor pode impugnar, ou seja interpor uma ação judicial contra os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e para que este tipo de Ação tenha provimento, obtenha sucesso, é necessário que se verifiquem três requisitos: • O crédito, ou seja a dívida, tem de ser anterior ao ato, ou se o crédito for posterior ao ato, este tem de ter sido realizado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; • É ainda necessário que com o tal ato praticado pelo devedor para retirar por exemplo a casa do seu património, tenha ficado sem outros bens para garantir a dívida; • Por fim é preciso provar a má-fé do devedor e do terceiro que adquiriu o bem ou os bens, é preciso provar que a compra e venda é «falsa» (simulada) e que só serviu para impedir qualquer penhora.

XXI Andou mal o juiz a quo ao conceder procedência à Ação Pauliana, pois que não justifica de que forma é que a Recorrida consegue provar a existência de má-fé do devedor e dos terceiros adquirentes, ambos réus na Ação Pauliana, nem tão pouco que a Recorrida tenha ficado desprovida de bens sujeitos a penhora que garantam o pagamento da dívida. A Recorrente é titular de uma pensão de velhice no montante de € 288,79 e uma pensão de sobrevivência no montante de € 426,37 o que totaliza o valor mensal de € 715,16 que é alvo de penhora no processo de execução movido previamente à Ação Pauliana contra a Recorrente. Logo andou mal o juiz a quo ao considerar preenchido o requisito da falta de bens, sem fundamentação plausível, para garantir a dívida da Recorrida, pois existe um rendimento da Recorrida que estava e está a ser penhorado.

XXII Também em momento algum foi realizada a venda do bem imóvel por parte da Recorrente em conluio com os outros réus para diminuição do património com o propósito de prejudicar a Recorrida. Houve prova feita por parte da Recorrente sobre o seu estado de saúde débil, preocupante e que se vem a agravar com o passar dos anos que teve de ter acompanhamento médico e cirúrgico. Como também foi feita prova que a Recorrente ficou viúva em Novembro de 2007 e somente a sua família mais chegada, os segundos réus, é que lhe podiam valer com as despesas médicas e cirúrgicas, bem como tratamentos médicos complementares. Foram feitos vários envios de dinheiro para a Recorrente que foram comprovados em sede de audiência de discussão e julgamento e que “estranhamente” sem razão aparente não foram valorados pelo juiz a quo nem tão pouco foram mencionados na sua fundamentação decisória. Foi feita prova de que o dinheiro foi enviado para a Recorrente para fazer face a várias despesas, dinheiro que teria de ter uma garantia patrimonial que foi solicitada aquando da feitura do contrato promessa de compra e venda em fevereiro de 2008.

XXIII Aliás, poderia o contrato promessa de compra e venda não ter sido sujeito a registo, até porque se tratava de família, mas o certo é que foi sujeito a registo por forma a garantir a compensação do dinheiro que já havia sido entregue à Recorrente como o que ainda seria necessário para as despesas e os tratamentos médicos que a Recorrente iria necessitar e, refira-se, que ainda estava longe de se verificar uma decisão condenatória da Recorrente na Ação interposta pela Recorrida em setembro de 2007 e que somente veio a terminar em fevereiro de 2017 com a decisão da primeira instância e com o transito em julgado da sentença em setembro de 2018. Também neste conspecto consideramos que andou mal o juiz a quo ao determinar a procedência de Ação Pauliana, pois que muito cedo que a Ré, sendo uma pessoa doente conforme prova realizada e não valorada, teve que se desfazer do que tinha para poder custear tratamentos e cirurgias com a ajuda financeira de terceiros, nomeadamente da sua irmã e cunhado, que também são réus na Ação Pauliana, bem como fazer face às limitações diárias que enfrenta com a sua doença.

XXIV Neste pressuposto também não se verifica o requisito da má-fé do devedor e terceiro adquirente com o propósito de impedir a penhora dos bens vendidos, aliás o bem tinha registado uma promessa de compra e venda desde fevereiro de 2008 até julho de 2017, pelo que falece a pretensão da Autora em pretender ter provimento à Ação de Impugnação Pauliana. O objetivo da venda do património que pertencia à Recorrente não teve o propósito de impedir que a Recorrida satisfizesse o seu crédito, mas sim satisfazer necessidades pessoais e de saúde conforme foi feita prova que não foi atendível pelo juiz a quo.

XXV Não se verificando os requisitos da Ação Pauliana cumulativamente outro resultado não se poderia verificar que não fosse a improcedência da Ação Pauliana apresentada pela Recorrida. O Juiz a quo ao considerar procedente a referida Ação Pauliana violou o previsto no artigo 610.º e seguintes do Código Civil por não verificação cumulativa dos requisitos para que a Ação Pauliana tenha provimento. Andou mal o Tribunal a quo na interpretação e aplicação do Direito.

XXVI Deveria ter sido dados como provados os factos alegados pela recorrente em sede de contestação, nomeadamente os factos que o juiz a quo deu como não provados, ou seja, os artigos 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 54.º, 56.º, 57.º e 63.º da Contestação com a consequente improcedência da Ação Pauliana por não verificados os requisitos que legalmente lhe são exigidos de forma cumulativa.

XXVII Neste sentido, deverão V/Venerandas Exas. revogar a decisão do Tribunal a quo substituindo-a por outra na qual esteja espelhada a não verificação dos requisitos da Ação Pauliana devido à falta de prova realizada pela Recorrida em sentido contrário e à prova produzida pela Recorrente dada como provada nos artigos 48.º a 54.º e 56.º, 57.º e 63.º da Contestação que demonstram a não existência de má-fé entre Recorrente e outros Réus em prejuízo da Recorrida com a venda do património da Recorrente, bem como o não preenchimento do requisito da falta de bens para garantir a dívida da Recorrida, na medida em que existe a penhora dos rendimentos da Recorrente, com a consequente absolvição da Recorrente e demais Réus.

XXVIII Há por isso Erro de Julgamento quanto à matéria de facto e na apreciação da prova produzida, e erro na Interpretação e aplicação do Direito.

XIX Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 333.º, 376.º/1 e 2, 610.º e seguintes e 618.º todos do Código Civil, 278.º/2, 576.º a 578.º e 608.º/2 todos do Código de Processo Civil, bem como o princípio da imparcialidade e valoração da prova.

Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso apreciando as invocadas exceções de conhecimento oficioso e que não foram conhecidas pelo Sr. Juiz a quo, proferindo Douto Acórdão que absolva a Recorrente quer do pedido quer da instância revogando a decisão recorrida, mais deverá ser reapreciada a matéria de facto alterando-a conforme requerido, nomeadamente dando como provados os factos alegados nos artigos 48.º a 54.º e 56.º, 57.º e 63.º na Contestação concluindo pelo não preenchimento dos pressupostos legalmente exigidos para procedência da Ação Pauliana, revogando a decisão recorrida e proferindo Douto Acórdão que Absolva a Recorrente do pedido por não verificação dos requisitos da Ação Pauliana, assim se fazendo Justiça!!!

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1.ª – O Tribunal a quo julgou corretamente a matéria de facto e fez a correta aplicação do direito ao caso em apreço, pelo que a sentença condenatória proferida – que declara a ineficácia, em relação à Autora / Recorrida, das compras e vendas celebradas entre os Réus no dia 16 de agosto de 2017, reconhecendo à Autora / Recorrida o direito de executar tais bens (imóvel e móveis que compõem o recheio da habitação) no património dos 2.º e 3.º Réus, para pagamento do crédito que detém sobre a 1.ª Ré / Recorrente.

2.ª – Bem andou o Tribunal a quo ao não ter verificado a excepção perentória de caducidade porquanto os atos impugnados (sim, não é apenas o título de compra e venda do imóvel…) – que implicam a transmissão do direito de propriedade sobre o bem imóvel e sobre os bens móveis e que, por conseguinte, envolvem diminuição da garantia patrimonial do crédito da Autora / Recorrida – são o título de compra e venda e o contrato de compra e venda outorgados no dia 16 de agosto de 2017, pelo que, proposta a ação no prazo de 5 anos, após tal data, não estava caduco o direito de impugnação da Autora;

3.ª – Bem andou ainda o Tribunal a quo ao não ter verificado a exceção dilatória de falta de interesse em agir da Autora / Recorrida pois que os atos de compra e venda celebrados pelos Réus no dia 16 de agosto de 2017, que envolvem diminuição da garantia patrimonial da Autora / Recorrida e que foram celebrados com o único e exclusivo objetivo de impedir a Autora / Recorrida de ver pago o seu crédito sobre a 1.ª Ré / Recorrente, pelo que tinha interesse em agir, impugnando os referidos atos, como fez.

4.ª – O Tribunal a quo julgou corretamente a matéria de facto, designadamente os factos vertidos nos artigos 48.º a 54, 56.º e 63.º da contestação, com base na análise crítica e concatenada da prova produzida em julgamento e carreada para os autos, e segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

5.ª – E, aplicando o direito à factualidade provada, sempre se imporia ao Tribunal a quo o preenchimento de todos os requisitos da impugnação pauliana, tendo o Tribunal a quo feito correta aplicação do direito que ao caso cabia, não merecendo, por isso, a decisão condenatória proferida qualquer censura e, por conseguinte, não assistindo razão à 1.ª Ré / Recorrente.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Caducidade da ação.

2ª – Falta de interesse em agir.

3ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

4ª – Improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

As razões justificativas dos institutos da prescrição e da caducidade, radicam na proteção da certeza e segurança do tráfico jurídico, da estabilidade das relações entre os membros da comunidade, por razões de garantia e de confiança necessárias ao desenvolvimento, progresso económico e paz social, na conveniência de se evitarem os riscos e inconvenientes de uma apreciação judicial a longa distância - principalmente quando se requeira a prova testemunhal dos factos -  e, ainda, no fito da proteção do devedor evitando-se a onerosidade excessiva decorrente da exigência do pagamento a longo prazo, procurando-se assim obstar a situações de ruína económica – Baptista Machado, RLJ, 117º, 205, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 452, e Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ, 107º, pág. 285.

Numa outra perspetiva, pode dizer-se que o decurso dos prazos da prescrição ou da caducidade apresenta-se como uma reação ou sanção da ordem jurídica contra a inércia e o desinteresse do titular do direito, entendendo-se que ele já não pretende a sua tutela, considerando-se assim a ordem jurídica desobrigada de a prestar – cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1979, p.814 e sgs.

É assim comummente entendido que, por via de regra, em caso de conflito entre a proteção dos objetivos e valores pretendidos com tais institutos, e a concretização de outro fito da aplicação do direito, qual seja, a realização da justiça material do caso, impõe-se o sacrifício da justiça perante a segurança, exceto nos casos em que a injustiça do direito positivo atinja um tão alto grau que a segurança deixe de representar algo de positivo em confronto com esse grau de violação da justiça – cfr. Batista Machado in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, p.55 e sgs. (neste último trecho citando Radbruch) e Oliveira Ascensão, in O Direito, ed, Gulbenkian, 2ª ed., p.165 e sgs e  Ac. da Relação do Porto de 12.02.2008, p.0726212, in  dgsi.pt,.

Por outro lado, o quid essencial diferenciador das figuras da prescrição e da caducidade é o seguinte:

A prescrição tem mais a ver com os direito subjetivos disponíveis propriamente ditos, pois que, e p. ex. não pode ser conhecida ex officio, é suscetível de renúncia e está sujeita a causas interruptivas e suspensivas.

A caducidade reporta-se mais a razões objetivas ditadas pela tutela do interesse social de definição das situações a que respeita, pelo que, por via de regra, o seu prazo não se suspende nem se interrompe – artº 328º do CC.

5.1.2.

Clama a recorrente que o direito da autora de instaurar a ação caducou.

Pois que, nos termos do artº 618º do CC, o direito de impugnação caduca ao fim de cinco anos, contados da data do ato impugnável.

E que no caso  vertente o ato impugnável foi praticado em fevereiro de 2008 e a ação só foi interposta em 2021.

Esta exceção é de conhecimento oficioso e devia ser conhecida pelo julgador, julgando-se verificada, com as legais consequências.

Atentemos.

Esta tese não procede, quer por razões substanciais, quer por motivos formais.

Naquela vertente, e como bem alega, a recorrida, o ato impugnável não pode ser o contrato promessa celebrado em 2008.

Este contrato não transmitiu a propriedade da primeira ré para os segundos réus: nele apenas se prometeu a realização da venda, a qual, por qualquer motivo, poderia não ocorrer.

Logo, ele não consubstanciou uma diminuição da garantia patrimonial, como exigido pelo artº 610º do CC.

O ato que efetivou tal diminuição foi a venda realizada em 2017.

Tanto assim que, como dimana do pedido, foi este ato que efetivamente foi impugnado pela autora.

Logo, tendo a ação sido instaurada em 2021, ela respeitou o prazo de cinco anos previsto no artº 618º do CC.

Na ótica formal.

Estatui o artº 333º do CC

(Apreciação oficiosa da caducidade)

1. A caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes.

2. Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável à caducidade o disposto no artigo 303.º

Vemos assim que  a lei distingue os casos em que a caducidade é reportada a matéria excluída, ou a matéria não excluída, da disponibilidade das partes.

Naquele caso deve ser apreciada e decidida em qualquer fase do processo,  oficiosamente ou por alegação da parte.

Neste caso aplica-se o artº 303º.

Reza  este normativo:

 (Invocação da prescrição)

O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público.

Destarte, nos casos em que está em causa matéria sobre as quais as partes têm disponibilidade, que verse sobre direitos disponíveis, a caducidade tem de ser invocada pela parte que dela queira aproveitar-se, não podendo ser oficiosamente conhecida.

No caso sub judice assim é.

Os direitos em disputa, são de cariz meramente patrimonial e económico, podendo as partes deles, tendencialmente, dispor livre e absolutamente.

Neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 17.11.2016, p. 861/13.3TTVIS.C1.S2,  in dgsi.pt, referente a matéria – contrato de trabalho - , com caraterística e jaez mais social  e protecionista do que o presente caso:

«Nos termos dos artigos 303.º e 333.º, n.º 2, ambos do Código Civil, a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador não pode ser oficiosamente conhecida, necessitando de ser invocada por aquele a quem aproveita e no momento oportuno.».

Ora vista a contestação da ré, articulado e momento em que tal exceção deveria ter sido arguida, nela não se enxerga esta arguição.

Nem posteriormente, na tramitação da primeira instância.

Por conseguinte, obviamente se conclui que esta pretensão, quer por inexigência de conhecimento oficioso, quer por extemporânea,  tem de soçobrar.

5.2.

Segunda questão.

O interesse em agir, cuja caracterização jurídica e autonomização face aos restantes pressupostos processuais não é pacífica, tem sido definido como a necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação - cf. Antunes Varela, citado por Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., pag. 262).

Consiste, assim, no direito do demandante em carecer de tutela jurisdicional para uma questão em concreto.

 Sendo corrente o entendimento de que o interesse processual não se confunde com a legitimidade, pois, o autor pode ser titular da relação material litigada e não ter, todavia, face às circunstâncias concretas que rodeiam a sua situação, necessidade de recorrer à ação.

Havendo quem lhe negue autonomia e relevância, e havendo quem a inclua na legitimidade da parte - cfr.  Castro Mendes in Direito Processual Civil, I , 320 e sgs.

Mas a maioria da doutrina e da jurisprudência entende que esta irrelevância ou confusão não se apresenta a mais curial, podendo e devendo fazer-se a destrinça com a figura da legitimidade, pois que a sua natureza e campo de aplicação se alcançam distintos e não coincidentes.

Quanto à sua não autonomização nada obsta a que se considere como exceção dilatória inominada atento o cariz meramente exemplificativo do artº 577º do CPC.

Quanto a esta autonomização há que atentar que o interesse em agir se distingue da legitimidade porque:

- O interesse do artº 30º do CPC  é de cariz substancial, reporta-se à titularidade do direito ou da obrigação e respeitando tanto  ao autor como ao réu.

 Já o interesse em agir  é um interesse de índole processual e concerne, pelo menos determinantemente, ao autor.

Nos casos de ilegitimidade de uma das partes, não pode a contraparte legítima exigir do tribunal decisão de mérito, pois que tal decisão não produziria o seu efeito útil normal uma vez que não vincularia a parte legítima o que conduziria à ineficácia da decisão.

Já se uma decisão é proferida em ação em que falte o interesse em agir, ela, embora desnecessária, é eficaz, pelo que, mesmo que o autor careça de interesse em agir, o réu pode pedir que o tribunal se pronuncie quanto ao mérito quando nisso tenha interesse – cfr. Anselmo Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, p.255.

A legitimidade está conexionada com o interesse material, entendido este, lato sensu, como a relação entre a necessidade humana e o bem capaz de a satisfazer, uma relação que reside na norma substancial e cuja proteção ou reparação é o escopo da demanda.

Já o interesse em agir relaciona-se com o interesse processual,  ou seja, aquele interesse que se encontra ligado à providência requerida ao juiz para satisfação do interesse material.

Neste sentido o interesse em agir é comummente descrito como um “interesse de segundo grau”, um interesse “instrumental” em função do interesse primário de proteção do direito material.

  Ademais este requisito, pressuposto ou condição da ação, constitui uma forma de racionalização do uso do processo evitando encher as estantes dos tribunais de processos que poderiam ser resolvidos, se não espontaneamente, pelo menos com menor empenho e custo.

Destarte, o interesse em agir deve apresenta-se perante o processo quer numa relação de necessidade: interesse-necessidade,  quer  numa relação de utilidade: interesse- utilidade  para o autor, seja com meio, seja como resultado (interesse-adequação e interesse-utilidade). - Ac. do STJ de 06.09.2011, p. 660/07.1YXLSB.L1.S1

Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação.

Assim se obstando a que um qualquer titular de um direito subjetivo material possa sem mais, solicitar para ele uma qualquer das formas de tutela judiciária legalmente autorizadas, impondo assim à contraparte a perturbação e gravame inerente à posição de demandado,  perturbação e gravame que se traduz principalmente em ter ela de deduzir a respectiva defesa sob pena de a ver precludida.-  cfr. Manuel de Andrade,  Noções Elementares, 1979, p. 82.

Pode assim definir-se o interesse em agir ou interesse processual, ou causa legítima da ação ou motivo justificativo dela, como uma  situação objetiva de carência judiciária, um  interesse  ou  necessidade da parte  em  usar o processo  ie., em obter tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual, e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa tutela.

Tal carência, interesse ou necessidade, não têm que ser estritos, mas também não podem ser por vagos e remotos, antes devendo corresponder a um estado de coisas grave ou relevante e assumir-se como objetivos, reais, justificados, razoáveis e, por via de regra, atuais (ainda que, vg. nas providencias cautelares, se admita o interesse numa situação de mera iminência de violação do direito).

Efetivamente o interesse em agir processualmente  não pode ser negado ou afirmado em abstrato, antes  é aferido pela posição de ambas as partes perante a necessidade de tutela jurisdicional e a adequação do meio processual escolhido. A necessidade de tutela jurisdicional é aferida objetivamente perante a situação subjetiva alegada. A parte, máxime o  autor, tem interesse processual se, da situação descrita, resulta uma necessidade de tutela judicial para realizar ou impor o seu direito. – cfr. Manuel de Andrade,  Noções p.79,  Remédio Marques, A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, pág 249,  Ac. da RC de 14.05.2007, dgsi.pt, p. 196/07.0YRCBR,  Ac. da RL de 14.07.2011, p. 686/10.8TVLSB.L1-2 e Ac. do STJ  sup. cit.

Na verdade, sendo o interesse em agir um «interesse processual, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário, ele tem por objecto a providência solicitada ao tribunal, através da qual se procura ver satisfeito aquela interesse primário, lesado pelo comportamento da outra parte, ou mais genericamente, pela situação de facto objectivamente existente.

 O interesse em agir, surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração, ou tanto quanto possível integral satisfação.

               Temos portanto que este pressuposto não se destina a assegurar  eficácia à sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade: não fora exigido o interesse, e a actividade jurisdicional exercer-se-ía em vão» - Anselmo Castro, DPC Declaratório, 1982, p.252/3.

(sublinhado nosso)

No caso sub judice é óbvio que, perante o teor da pi, a autora tem interesse em agir.

Pois que o  módulo jurídico e o meio processual utilizados – impugnação  pauliana nesta ação comum – se ela for procedente, claramente constituem para si uma mais valia e utilidade económico financeira.

Esta interpretação ganha ainda mais valor quanto é certo que a legitimidade da autora foi concedida por esta Relação.

Acresce que esta pretensão também feneceria por motivos formais.

Primeiro porque a ré não invocou esta exceção, no momento e em sede própria, como devia.

Efetivamente, prescreve o artº Artigo 573.º do CPC:

Oportunidade de dedução da defesa

1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.

2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.

Mais uma vez perscrutada a contestação, nela não se alcança esta invocação.

Depois porque ela nem sequer foi alegada em sede de primeira instância.

Pelo que quanto a tal matéria inexistiu decisão no primeiro grau.

Ora como é consabido, os recursos apenas se destinam à reapreciação de questões decididas na instância anterior, não podendo servir para que, em sede de tribunal ad quem, sejam introduzidas questões novas para este decidir.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  p.09P0114  in dgsi.pt.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

Acresce que o recorrente não pode limitar-se a invocar, mais ou menos abstrata, genérica e indiferenciadamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

Antes ele devendo efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

Se assim não for, e:

«Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC.

 Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.» - Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.(sic).

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– Cfr. Ac, do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz e não a parte, e atento o supra aludido, a lei  apenas permite a censura da convicção do julgador  se os meios probatórios invocados impuserem (não basta  apenas que sugiram) decisão diversa da recorrida.

5.3.2.

Acresce que, e como dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15.02 (…), «a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Assim e como corolário deste princípio e desiderato legal:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

Dimana daqui que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção.

Mas tal não implica um novo e global  julgamento, quer quanto à matéria factual decidida, quer quanto aos meios probatórios produzidos.

O recurso sobre os factos assume-se antes e apenas com o jaez da natureza ou idiossincrasia desta figura, ou seja, trata-se  somente de reponderar ou reapreciar o julgamento que deles foi feito na 1ª instância e, portanto de aferir se a 1ª  instância  cometeu, ou não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. – cfr. Des. Henrique Antunes, in RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO, https://www.stj.pt › wp-content › uploads › 2015/07 e  Ac. do STJ de 30.05.2019, p. 156/16.0T8BCL.G1.S1 in dgsi.pt. como os infra citados.

Efetivamente:

«…importa ter presente que, no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da ação, mas julgar a própria decisão recorrida.» - Acs. do STJ de  09.07.2015, p. 405/09.1TMCBR.C1.S1.Ac.; de  01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1.;  e de 17.03.2016, p. 124/12.1TBMTJ.L1.S1.

5.3.3.

Por outro lado, estatui o artº 640º do CPC:

«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

Nesta vertente urge ter presente que não basta a indicação do inicio e fim do depoimento no respetivo suporte magnético.

É que:

«…A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”.» - Acs. do STJ de 26.1.2017, p. 599/15.7T8CLD.C1.S1, apud, Ac. do STJ de 18.09.2018, p. 108/13.2TBPNH.C1.S1;  de 27.10.2016, p. 3176/11.8TBBCL.G1.S1; de 05.08.2018, p. 15787/15.8T8PRT.P1.S2. e de 14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.

A transcrição  dos depoimentos não exime ao cumprimento daquele dever – Cons. Henrique Antunes, in RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO, https://www.stj.pt › wp-content › uploads › 2015/07 e Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.

Certo é que o cumprimento destes requisitos formais  deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ -  que o não cumprimento,  nas conclusões, do requisito da al. a) do nº2 – indicação com exatidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório.

Mas se nem no corpo alegatório tal ónus não é cumprido, este motivo já se verifica.

De notar que a falta  de cumprimento dos aludidos ónus não admite convite ao seu aperfeiçoamento- cfr. vg., Ac. do STJ S 27.10.2016, p. 110/08.6TTGDM.P2.S1 e Henrique Antunes, ob. e loc. cits.

5.3.4.

O caso vertente.

Liminarmente.

A recorrente assacam à decisão sobre a matéria de facto o vício formal da sua nulidade, por errada interpretação e valoração da prova produzida.

Ora perante tal fundamentação o vício não é o da nulidade, por falta, ou intolerável deficiência, de fundamentação, pois que esta está aduzida e plasmada na sentença.

Mas antes o vício substancial da sua ilegalidade, por indevido chamamento e/ou errada apreciação/interpretação dos elementos probatórios atendidos e considerados pelo julgador, nos termos manifestados pelo inconformismo da recorrente.

Por outro lado.

Pretende a recorrente a  prova dos seguintes factos dados como não  provados:

48.º …e também tinha uma grande dívida monetária para com eles que ascendia a mais de € 90.000,00, sendo certo que atualmente ainda está em dívida em cerca de € 15.000,00.

49.º A Ré BB sempre foi apoiada pela sua irmã EE e o seu cunhado CC a nível monetário.

50.º Foram feitos vários empréstimos de dinheiro por parte da Ré DD e do réu CC à Ré BB, bem como feitos pagamentos diretos de obras.

51.º Foram os Réus EE e CC que custearam o jazigo de família da Ré BB que custou perto de € 56.000,00 e que foi feito antes de 2007. 

52.º …por imposição dos Réus DD e CC por forma a garantir e salvaguardar a dívida que a Ré BB já tinha para com eles.

53.º Desde 2008 até à presente data que os Réus têm emprestado dinheiro à Ré BB, nomeadamente para pagar dívidas do seu filho FF, relacionadas com o jogo e o carro.

54.º O dinheiro emprestado tem servido também para pagar despesas com a saúde da Ré BB nas especialidades da oftalmologia, urologia e neurologia. 

56.º todos estes problemas de saúde e dificuldades financeiras da Ré BB foram economicamente suportados pelos Réus DD e CC ao longo de vários anos.

57.º Atentos os elevadíssimos empréstimos efetuados pelos Réus DD e CC … a solicitar a realização da escritura pública de compra e venda da casa.

63.º os Réus DD juntamente com o seu marido CC continuaram e continuam a ajudar financeiramente a Ré BB devido aos seus complicados problemas de saúde.

Esta pretensão não pode proceder por motivos formais e substantivos.

Naquela vertente a recorrente não cumpre todos os ónus do artº 640º.

Ela impugna genéricamente toda a matéria dada como não provada.

E, outrossim, para tal pretensão, invoca, em bloco, na sua globalidade e indiferenciadamente, toda, ou quase toda, a prova produzida, documental e pessoal.

Ora já se viu supra que neste campo recursivo, o insurgente tem de limitar-se a certos factos dados como não provados. 

E, bem assim, e principalmente, deve  reportar  a cada um dos concretos factos impugnados o ou os singulares e concretos meios probatórios em que se alcandora.

Se assim não fosse, e a lei permitisse impugnar todos os factos provados e/ou não provados, com chamamento global e indiferenciado de toda a prova produzida, a Relação teria de efetuar um novo, global e latitudinário, julgamento, o que, como supra se aludiu, queda vedado, pois que não foi essa a intenção do legislador.

Acresce que invocando a prova pessoal, a recorrente não indicou, nem no corpo das alegações nem nas suas conclusões, as concretas passagens da gravação das declarações e dos depoimentos que esgrime em abono do seu entendimento exegético do teor de tais declarações e depoimentos.

E, como se viu, a transcrição dos depoimentos, podendo ser efetivada, não invalida nem supre tal exigência legal.

Por conseguinte, esta pretensão tem de ser  imediata e liminarmente rejeitada.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, também esta pretensão feneceria por motivos substantivos.

O Sr. Juiz fundamentou a decisão factual nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«A convicção do tribunal no que concerne à factualidade que foi dada como provada e não provada, alicerçou-se na análise da globalidade da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, quer de acordo com a prova produzida na sua conjugação com as regras da normalidade das coisas e da experiência da vida comum na inferência que se extrai dos factos objetivos para chegar à conclusão quanto aos factos probandos.

…designadamente no que respeita a consciência da alienante e dos adquirentes quanto ao prejuízo que os atos causaram ao credor, alcançou-se mediante a consideração, além daqueles documentos, do conjunto dos depoimentos prestados em audiência analisados à luz das regras da normalidade e da experiência comum.

O réu CC, disse que a BB era irmã da sua falecida esposa, que esta foi emprestando dinheiro à irmã, que “havia uma certa quantia em dívida” …

Não sabe precisar a quantia em dívida em 2008. A promessa de compra e venda era para garantir o dinheiro que a BB já devia. Não sabe concretamente o que fazia a BB. Sabe que era muito doente e “gastava muito dinheiro com doenças”. Tinha três filhos, uma faleceu entretanto. A relação com os filhos “não era a mais perfeita”. Antes da escritura em 2017 a BB já devia cerca de 90.000€.

Na altura foi feita a escritura por 77000 e qualquer coisa. Era o valor que “estava nas finanças na altura”. Não sabe se valia menos se valia mais. A BB fez um jazigo no qual gastou mais de 50000€. Esse dinheiro foi emprestado. Algum dinheiro foi para pagar dívidas de um filho.  A BB não tinha casa e manteve-se a residir no imóvel por acordo com a DD. …não sabia que a BB tinha dívidas. 

GG, agente de execução, exerce funções de agente de execução no processo instaurado pela massa insolvente contra a ré BB, fez pesquisas e não encontrou bens imóveis titulados pela executada. Foi penhorada pensão de sobrevivência e velhice. Até à data foi penhorada a quantia de 4477,02€ dos quais já foram feitos pagamentos. Neste momento está em dívida à exequente a quantia de 105.110,95€. 

HH, filha da ré BB, 54 anos, empregada doméstica, …afirmando que ao longo dos anos a sua mãe foi pedindo dinheiro emprestado à sua tia DD. O que lhe foi dito pela própria. Acrescentou que o irmão tinha dívidas de jogo e que por isso a mãe também pediu dinheiro emprestado à tia. Também disse que a mãe é uma pessoa muito doente e gasta muito em saúde. Sugeriu à sua mãe entregar o apartamento ao tio para saldar a dívida. “Duma vez foram 50000€ (para fazer um jazigo) outra vez foram 20000€” (em 2010 para saldar a dívida do irmão). A sua mãe continua a residir no apartamento. Que a tia começou a ajudar a mãe em 2007 quando começou a ter problemas de saúde. Disse que o imóvel valia na altura da venda cerca de 90.000€. Que toda a gente soube da ruína do prédio.   

As duas vendas (dos bens móveis e do imóvel, tituladas pelos contratos de compra e venda juntos sob os documentos n.ºs 8 e 9) foram celebradas no dia 16 de agosto de 2017. Naquela data de 16 de Agosto de 2017, a ora 1.ª Ré já conhecia a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância em 27 de Fevereiro de 2017, que a condenara … a pagar à aqui Autora a quantia líquida de € 61.132,86€ (sessenta e um mil, cento e trinta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos…a ora 1.ª Ré sabia …não efetuando o pagamento voluntário da quantia a que fora condenada, não restaria outra alternativa à Autora do que executar o seu património (constituído pelos referidos bens móveis e pelo imóvel). Também quando os Réus registaram o contrato promessa de alienação do imóvel, em 1 de fevereiro de 2008, já a 1.ª Ré tinha sido citada para a ação declarativa que correu termos sob o n.º 2206/07.... em 3 de outubro de 2007 (cfr. documento n.º 1, acima referido). Daqui poder inferir-se que a 1.ª Ré tinha, pois, consciência que, ao dispor do seu património, causava prejuízo à aqui Autora, por impossibilitar a satisfação do seu … direito de crédito.

Com efeito, as ora 1.ª e 2.ª Rés são irmãs e o 3.º Réu é casado com a 2.ª Ré, sendo, por conseguinte, cunhado da ora 1.ª Ré. Os Réus (designadamente as duas primeiras Rés) têm relações familiares muito próximas, conhecendo bem a situação patrimonial da ora 1.ª Ré e o direito de crédito da aqui Autora (ainda que, à época dos atos celebrados no dia 16 de Agosto de 2017, assumisse ainda carácter potencial, por a decisão condenatória não ter ainda transitado em julgado, fruto dos vários recursos interpostos pela 1.ª Ré). E tanto assim é que, mesmo após a data de 16 de agosto de 2017, isto é, mesmo após a celebração do contrato de compra e venda, a ora 1.ª Ré permaneceu com a posse do imóvel, aí continuando a residir e bem assim a usar e a fruir de todos os bens móveis (recheio da habitação) objeto do contrato de compra e venda junto sob o documento n.º 7, como se tais atos nunca tivessem existido. Além do mais sem que se conheça o destino dado pela 1.ª Ré ao alegado preço pago pelos 2.º e 3.º Réus por ambos os atos (nos valores de 1.700,00€ e 77.300,00€). Não pode assim deixar de admitir-se, de acordo com a mais elementar experiência comum das coisas, que todos agiram em conluio com o propósito aliás conseguido, de impedir a autora de ver satisfeito o seu crédito.

É assim na conjugação e valoração de todos os elementos probatórios acima referidos, que firmada a convicção do tribunal, foram considerados como provados e não provados os factos acima elencados, sendo que quanto a estes últimos, a sua resposta assentou na ausência de prova suficiente ou consistente sobre a matéria atinente aos mesmos, bem como da prova feita em sentido inverso, nos termos acima analisados.»

 Já a ré pugna por esta sua pretensão com fundamento  na prova pessoal e documental nos termos expressos nas conclusões.

Analisando a prova conclui-se que os argumentos da recorrente não assumem dignidade e força bastantes para impor a censura da convicção do julgador.

Certo é que se prova  - por via pessoal e documental: docs. juntos com a contestação - que a recorrente tem alguns problemas de saúde.

Mas tal prova não convence sobre a natureza e gravidade dos mesmos.

Ademais, mesmo que tais problemas se provassem com maior impressividade e  acuidade, certo é que eles, só por si, seriam insuficientes para a ré obter ganho de causa.

Relevante seria a prova dos empréstimos monetários alegados e da magnitude dos mesmos.

E, bem assim, que o seu pagamento apenas poderia ser efetivado através da venda da casa.

Ora tal prova não foi consecutida.

O depoimento do cunhado e da filha de recorrente, dadas estas relações familiares, valem o que valem, ou seja, muito pouco.

Na verdade, e sem querer por em causa a sua honestidade, é certo, ou muito provável, que eles possam ter algo a ganhar, material ou moralmente que seja, com o desfecho favorável da causa para a insurgente.

Destarte, consciente ou até sub conscientemente, tendem, ou podem muito provavelmente tender, para relatar os factos de sorte a que aquele desfecho se verifique.

 Decorrentemente, as suas declarações e depoimentos apenas poderiam relevar decisivamente se fossem corroborados por outros meios de prova; o que não se verificou.

Na verdade, nos autos constam apenas fototópias, quase ilegíveis, algumas das quais parecendo demonstrar transferências da falecida DD para a  recorrente BB.

Porém, estas transferências alcandoram-se apenas a umas centenas, ou a alguns, escassos, milhares de euros.

Nada que seja suficiente para fazer face a despesas de muitas dezenas de milhares, como seja , p. ex., a do jazigo, que alega ter custado quase 60 mil euros.

Depois também não se compreende que, tendo a ré dificuldades financeiras, tenha construído um jazigo com aquele custo, pedindo, para o efeito, empréstimos.

Depois também não se compreende – mesmo estando nós no âmbito de relações familiares – que os empréstimos, alguns, segundo a tese da recorrente, seguramente de valor de largos milhares de euros, não tenham sido certificados por qualquer documento escrito entre as partes, mesmo que uma simples declaração de dívida, por ambas assinada.

Ou, ao menos, ao fim de muitos alegados anos de empréstimos, não tenha sido levado a escrito o valor acumulado, porque certamente já vultuoso.

É que, como é consabido, e como diz o povo, há viver e há morrer, e, neste caso, empréstimos sem suporte documental podem ser de difícil prova.

Finalmente, é também estranho que, vendida a casa, a vendedora a continue a habitar, pois que, assim, os compradores não a podem fruir e rentabilizar, e por tais vias, serem reembolsados ou indo vendo amortizado o mútuo.

Enfim, até pode conceder-se que a falecida ajudou a irmã nalguma fase economicamente menos favorável desta, principalmente para ela fazer face a despesas de saúde.

Mas concluir-se, como faz a recorrente, que tal ajuda teve a amplitude e magnitude que alega, ou seja, que os empréstimos ascenderam a muitos milhares de euros.

E que foi para pagar esta dívida que, de boa fé, alienou os bens moveis e o imóvel,  constituiria, perante a prova que apresenta  e pelas regras da lógica e da experiência comum, uma temeridade  e um salto lógico que não podem ser admissíveis.

Assim sendo, se reitera a final conclusão que a prova apresentada e a melhor  interpretação que dela pode ser feita, não permitem que se conclua que o julgador ajuizou mal tal acervo probatório, ao menos em termos de tal modo eminentes e  gravosos que  imponham que a sua convicção tenha, necessariamente, de ser censurada.

Antes, pelo contrário, se tem a exegese probatória por ele operada como adequada e sagaz.

5.3.5.

Por conseguinte e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na primeira instância, a saber (sic):

«1.º Em 29 de Setembro de 2007, a aqui Autora propôs contra a 1.ª Ré e o seu marido (II, falecido em ../../2007, no decurso da acção) acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, em que, a final, peticionou que, na total procedência da acção, fosse “reconhecida a responsabilidade dos RR. pelo ressarcimento dos danos causados à A., em virtude da derrocada do edifício identificado no art.º 4.º [prédio urbano sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...40 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...56] e serem os RR. condenados a pagar à A., de forma solidária, a quantia global de 59.203,81 euros (cinquenta e nove mil duzentos e três euros e oitenta e um cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescido dos juros de mora sobre aquele valor, calculados à taxa legal,  desde a data da citação da presente acção e até efectivo e integral pagamento; [e, bem assim,] […] a pagar à A. o valor correspondente às rendas, relativas ao 2.º andar, que se vencerem na pendência da[quela] acção até ser possível à A. utilizar aquele espaço com o fim a que o arrendamento se destina[va].”.

2.º Tal acção veio a ser autuada sob o n.º 2206/07.... e, após a reorganização do sistema judiciário que teve lugar em Setembro de 2014, correu seus termos no Juiz 3 do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca ....

3.º A final, em 27 de Fevereiro de 2017, veio a ser proferida sentença que decidiu julgar a acção “totalmente procedente por provada e, em conformidade, condeno[u] os RR. BB e JJ [este, apenas “na qualidade/veste de co-titular do património autónomo constituído pela herança do seu pai, II e pelas forças/bens da herança desta, e, caso a herança já tivesse sido partilhada, pela proporção/força da sua quota hereditária”] a pagar à Autora a quantia de € 61.132,86€ (sessenta e um mil, cento e trinta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a citação [que ocorreu em 03-10-2007.

4.º Não se conformando com o teor de tal decisão, a ora 1.ª Ré dela interpôs recurso de apelação, que correu termos na 2.ª Secção da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, sob o n.º 2206/07.... – Apelações em processo comum e especial (2013).

5.º Por acórdão proferido em 19 de Dezembro de 2017, regular e validamente notificado às partes, foi decidido “negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença” proferida pela primeira instância.

6.º De tal decisão veio, ainda, a ora 1.ª Ré interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (processo n.º 2206/07.... – Revista, distribuído na 6.ª Secção), que, em acórdão proferido em 19 de Junho de 2018, já transitado em julgado, decidiu “negar a revista, confirmando o acórdão recorrido”.

7.º O Réu JJ procedeu, na data de 9  Abril de 2019, ao pagamento, à Autora, da quantia de 1.287,85€ (mil, duzentos e oitenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos), correspondente ao valor que havia recebido na partilha da herança aberta por óbito de seu pai, II (cfr. acordo celebrado, que se junta sob o documento n.º 5 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), pelo que nada mais tem a pagar [art9pi].

8.º Aquela quantia (1.287,85€) foi imputada aos juros de mora vencidos que, desde a citação  e até à data em que tal pagamento ocorreu (9 de Abril de 2019), perfaziam o valor total de 28.178,06€ (vinte e oito mil, cento e setenta e oito euros e seis cêntimos) [art10pi]

9.º permanecendo, assim, em dívida, àquela data (9 de Abril de 2019), além do capital, a quantia de 26.890,21€ (vinte e seis mil, oitocentos e noventa euros e vinte e um cêntimos), a título de juros moratórios vencidos [art11pi].

10.º A ora 1.º Ré nada pagou à Autora [art12pi].

11.º Face ao incumprimento da ora 1.ª Ré, no dia 16 de Abril de 2019, a aqui Autora requereu acção executiva tendente à cobrança coerciva da quantia total em dívida, que, à data, perfazia o valor total de 88.074,07€ (oitenta e oito mil e setenta e quatro euros e sete cêntimos) [art13pi].

12.º A acção executiva foi autuada como execução de sentença nos próprios autos, com o n.º 9/19...., e corre seus termos no Juiz ... do Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca ... [art14pi].

13.º No âmbito das pesquisas efectuadas naqueles autos de processo às bases de dados da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA e das Conservatórias do Registo Predial e Automóvel não foi possível identificar quaisquer bens (móveis ou imóveis) susceptíveis de penhora [art15pi]

14.º nem foi possível efectuar a penhora de saldos bancários, quer à ordem, quer a prazo, por a aí Executada (ora 1.ª Ré) não deter saldos penhoráveis em quaisquer Instituições Bancárias a operar no país [art16pi].

15.º A aqui Autora requereu a penhora dos bens móveis existentes no interior da habitação da Executada (ora 1.ª Ré), na morada conhecida, sita na Rua ...., em ..., ..., na cidade ... [art18pi] 16.º tendo o Agente de Execução diligenciado pela sua realização, que, contudo, não se logrou possível [art19pi]

17.º uma vez que a ora 1.ª Ré informou os autos que os bens móveis existentes na sua residência não eram sua propriedade, conforme “contrato de compra e venda” celebrado no dia 16 de Agosto de 2017, cuja cópia entregou ao Agente de Execução e que aqui se junta sob o documento n.º 8 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais .

18.º Nos termos expressos no referido “contrato de compra e venda”, a ora 1.ª Ré vendeu aos ora 2.º e 3.º Réus os bens móveis “que compõem o recheio da habitação” da ora 1.ª Ré  [art21pi],

19.º os quais se encontram elencados na cláusula 2.ª do referido documento: “a) um frigorífico da marca Orima; b) uma máquina de lavar roupa da marca Hoover; c) um fogão da marca Orima; d) duas mesas de jantar com quatro cadeiras cada uma; e) dois conjuntos de sofás de três elementos cada conjunto; e) duas camas de casal com duas mesas-de-cabeceira cada uma; g) quatro cadeiras de apoio aos quartos; h) dois guarda-roupas; i) duas cómodas de apoio aos quartos; j) um relógio de sala; k) duas mesas de apoio aos corredores; l) três televisores, um deles LCD; m) duas aparelhagens (aparelhos electrónicos musicais); n) uma mesa autorrádio;

o) um gira-discos; p) loiças diversas; q) quadros diversos” .

20.º O preço da venda dos bens móveis em causa foi de 1.700,00€ (mil e setecentos euros) [art23pi].

21.º Para além dos referidos bens móveis, na mesma data (16 de Agosto de 2017), a ora 1.ª Ré também vendeu aos ora 2.º e 3.º Réus a fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao terceiro andar nascente, destinada a habitação, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal sito na Urbanização ..., Rua ...., em ..., ..., na cidade ..., de que a mesma era dona e legítima proprietária .

22.º Trata-se da mesma fracção onde a 1.ª Ré residia e reside ainda há presente data e onde se encontravam e encontram os bens móveis identificados no artigo 22.º .

23.º Pela venda referida no artigo 24.º, a 1.ª Ré recebeu o preço de 77.300,00€ (setenta e sete mil e trezentos euros) [art26pi].

24.º Em 1 de Fevereiro de 2008, os Réus registaram a promessa de alienação do imóvel (referida no título de compra e venda junto sob o documento n.º 9) [art27pi].

25.º Através das vendas dos referidos bens móveis e do imóvel casa de habitação, a ora 1.ª Ré pretendeu (e logrou conseguir) diminuir (ou mesmo anular) a garantia patrimonial da Autora [art34pi]

26.º A ora 1.ª Ré não detém qualquer outro património, mobiliário ou imobiliário [art35pi].

27.º Ambas as vendas tiveram como único objectivo impedir que a Autora satisfizesse o seu crédito [art36pi].

28.º Da mesma forma, os ora 2.º e 3.º Réus sabiam, sem poderem ignorar, que o acto de disposição dos bens móveis e imóvel em que intervinham como compradores tinha como fim único o prejuízo da aqui Autora [art43pi]

29.º Tinham conhecimento da situação da derrocada do prédio de que a ora 1.ª Ré era dona e legítima proprietária (que foi, aliás, amplamente noticiada nos meios de comunicação social), dos danos que a mesma causara e, bem assim, do teor da decisão condenatória entretanto (em Fevereiro de 2017) proferida pelo tribunal de primeira instância [art44pi].

30.º Com efeito, as ora 1.ª e 2.ª Rés são irmãs [art45pi].

31.º e o 3.º Réu é casado com a 2.ª Ré, sendo, por conseguinte, cunhado da ora 1.ª Ré [art46pi]

32.º Os Réus (designadamente as duas primeiras Rés) têm, assim e tal como resulta do exposto, relações familiares muito próximas

33.º Os actos translativos da propriedade dos bens móveis e do imóvel acima referidos foram celebrados pelos Réus com a consciência de que, por essa via, causavam prejuízo à aqui Autora [art49pi]

34.º E tiveram como objectivo evitar que a Autora cobrasse o seu crédito [art50pi].

35.º Mesmo após a data de 16 de Agosto de 2017, isto é, mesmo após a celebração do contrato de compra e venda, a ora 1.ª Ré permaneceu com a posse do imóvel, aí continuando a residir [art51pi]

36.º E, bem assim, a usar e a fruir de todos os bens móveis (recheio da habitação) objecto do contrato de compra e venda junto sob o documento n.º 7 [art52pi]

37.º O preço pago pelos 2.º e 3.º Réus por ambos os actos (nos valores de 1.700,00€ e 77.300,00€) não foi depositado em qualquer instituição bancária em Portugal, nem reinvestido na aquisição de qualquer imóvel [art54pi]

38º À Ré BB foi enviada uma carta registada com AR por parte dos Réus DD e CC [art57ºcontestação] ».

(sic)

 5.4.

Quarta questão.

O Sr. Juiz decidiu aduzindo o seguinte, resumido, acervo argumentativo:

«A impugnação pauliana…reveste carácter pessoal o que resulta desde logo do disposto no art.º 616.º, n.º 4 do Código Civil que estabelece que “os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”. Desta forma, assistem ao credor que a tenha requerido o direito à restituição na medida do seu interesse, o direito de praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição (vid. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4.ª edição, p. 633).

Assim, os bens não têm de sair do património do obrigado à restituição onde o credor poderá executá-los e praticar sobre eles os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª ed., p. 599) pelo que a atitude correta do credor que faz uso desta faculdade é deduzir o pedido de declaração de ineficácia do ato que impugna e não o pedido de anulação ou de declaração da sua nulidade.

Em conformidade com o disposto no art.º 610.º do Código Civil, são requisitos gerais a que deve obedecer a impugnação pauliana:

Ser o crédito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.

Exige ainda a supra citada disposição legal que o ato envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal, ou seja diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do art.º 601.º do Cód. Civil, respondem pelo cumprimento da obrigação, diminuição essa que tanto poderá resultar de uma diminuição do ativo como do aumento do passivo.

Acresce que, tratando-se de atos gratuitos, o que não se verifica no caso em análise, a impugnação pauliana procederá ainda que o devedor e o terceiro tenham agido de boa-fé, isto é, sem consciência do prejuízo que o ato causa ao credor (art.º 612.º do Cód. Civil).

Não se exige, assim, que haja com o ato a intenção de prejudicar o credor: normalmente, mesmo, há a intenção, ou pode haver a intenção, de realizar um ato vantajoso, ou a intenção de satisfazer uma necessidade do devedor, sem o intuito de causar um dano (Vaz Serra, cit. in Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit.). 

No caso vertente, resulta da factualidade provada que a autora, tendo um direito de crédito no montante total de 88.074,07€ sobre a 1ª Ré, que resulta de condenação da mesma por sentença de 27/2/2017, do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca ..., no processo nº 2206/07...., tal Ré, em 16 de Agosto de 2017, em conluio com os 2º e 3º Réus, e tendo como único objetivo impedir que a Autora satisfizesse o seu crédito, vendeu a estes o imóvel acima identificado e os bens móveis identificados no artº 22º da petição, impedimento esse concretizado, já que a Autora tendo instaurado contra a Ré, com base na referida sentença condenatória, ação executiva para cobrança do mencionado crédito, não conseguiu que nela se encontrassem bens penhoráveis à executada de modo a poder depois aí fazer-se pagar do crédito exequendo.»

Este discurso apresenta-se, desde logo em tese, curial; e, para o caso vertente, considerando os seus elementos fáctico circunstanciais, meridianamente se alcança adequado.

Pelo que urge corroborá-lo e chancelá-lo.

 Em seu abono, quiçá ad abundantiam, mais se diz o seguinte.

A ação de impugnação pauliana consiste na faculdade que a lei concede ao credor de atacar os atos do seu devedor que façam perigar a satisfação do seu  crédito. 

Ao contrário do regime legal que vigorava no Código de Seabra, em que tal ação era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o artigo 1404.º estipulava que “rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei atual estabelece, no artigo 616.º, nº1, do Código Civil que “ julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

Assim se conclui que os atos são intrinsecamente válidos, tendo  contudo o credor impugnante o direito à restituição dos bens que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo diretamente “agredir” o património de quem estiver obrigado à restituição.

São requisitos da impugnação pauliana:

i) Que o ato praticado pelo devedor de diminuição do seu património, que envolva impossibilidade  ou agravamento da impossibilidade da satisfação, total ou parcial, do crédito,  o que tanto se pode traduzir numa perda do ativo como num aumento do passivo - artº 610º, proémio, 1ª parte, e al. b) do CC;

ii) Que o crédito seja anterior ao ato impugnado  - artº 610º al. a) 1ª parte;

iii) Que, sendo o crédito  posterior o ato tenha sido realizado dolosamente para prejudicar a satisfação do crédito;

iv) Adicionalmente e se o ato lesivo assumir o cariz de oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé -  artº 612º do CC.

No que mais especificamente concerne ao requisito corporizado na alínea b) do artigo 610.º  - e acolhimento da proposta de Vaz Serra  in Responsabilidade Patrimonial, BMJ 75º-198/209 - aboliu-se a referência à insolvência do devedor a que aludia o Código de Seabra.

Cuidou-se de prevenir hipóteses menos gravosas em que, continuando, embora, o devedor solvente, os outros bens se mostram praticamente inexecutáveis.

 Por outro lado, e como se diz na sentença, a impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido: artigo 616.º nº4 do Código Civil.

 Também como mencionado na sentença, na formulação legal da má fé esta  não se reconduz, necessariamente,  à intenção deliberada  do devedor e do terceiro prejudicarem o credor - atuando em conluio com animus nocendi - ou, sequer, na exigência do conhecimento da insolvência do devedor.

 Podendo, pois, consistir apenas na  negligência consciente do prejuízo causado.

 Exige-se que os outorgantes do ato lesivo representem que esse ato afetará a satisfação do direito do credor, que tenham consciência dessa repercussão negativa.

Pode existir a consciência do prejuízo que o ato causa aos credores, sendo o mesmo realizado, todavia, sem o intuito de lhes produzir dano.

Assim, o devedor e o terceiro podem agir com outra intenção, em busca dum outro objetivo, mas com perfeita consciência do prejuízo que vão causar ao credor.

Basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente -cfr. Acs. do STJ de 23.01.03, de 14.10.2004,  de  18.06.2009 e de 29.09.2009, p.02B3683,  04B2989,  152/09.4YFLSB8  e 105-I/2001.C1.S1,  in dgsi.pt, e Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, 3ª ed. P.52/53.

E esta má fé tem de existir tanto na atuação dos vendedores como na dos compradores; ambas as atuações têm de preencher esse requisito subjetivo. O ato oneroso só está sujeito a impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé -  nº 1 do citado art. 612º.

Acresce que a prova do requisito da má fé incumbe ao credor segundo a regra geral do nº 1 do art. 342º C.C.

No caso vertente.

Todos estes requisitos estão verificados.

Efetivamente,  dos factos provados  dimanam todos os requisitos necessários para a consubstanciação e emergência da figura jurídica da impugnação pauliana, vg. o seu magno pressuposto, quando o ato é oneroso, qual seja, as partes terem atuado de má fé.

Tal dimana, vg. do teor dos pontos 25, 27 e 28  dos factos provados.

Ou seja, provou-se que os réus, quando alienaram os bens em agosto de 2017, já  conheciam a  existência da dívida para com a sociedade autora, que resultou da condenação prévia de fevereiro do mesmo ano – ainda que por sentença não transitada, mas que foi confirmada  nesta Relação e no STJ - , e firmaram a venda, senão exclusiva e unicamente, pelo menos também com o objetivo de escapulirem os bens à penhora.

E  sabendo que com tal  situação a credora não iria satisfazer - até porque os réus não provaram que a 1ª ré tivesse mais bens, livres, desembaraçados e com valor bastante para o total cumprimento perante a autora -, senão a totalidade, pelo menos parte do crédito deste.

Por conseguinte, a sentença não merece censura, antes pelo contrário,  nela o Sr. Juiz tendo  mais uma vez apreciado e decidido, de facto e de direito, sagaz e curialmente.

Improcede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2024.10.08.