Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/22.7JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: CRIME DE DEVASSA POR MEIO DE INFORMÁTICA
ELEMENTOS DO TIPO
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA
Data do Acordão: 03/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 193.º DO CÓDIGO PENAL.
Sumário: 1. As estratégias de sobrevivência da vítima não podem servir para a desqualificar e deslegitimar, nem para desvalorizar as declarações por aquela prestadas.

2. O artigo 193.º do Código Penal:

- que previa o crime de devassa por meio de informática, foi redenominado;
- prevê agora o crime de devassa através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada;
- não exige para o seu preenchimento, como anteriormente, a criação, manutenção, ou utilização de ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis;
- nem a difusão das imagens recolhidas por um número alargado de destinatários;
- prevê, agora, uma punição com pena de prisão até 5 anos, quando anteriormente o crime do art.º 193.º era punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de processo comum coletivo correr os seus termos sob o nº 69/22.7JAGRD, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda (Juízo Central Cível e Criminal da Guarda – J2), foi mediante Acórdão (designadamente) decidido:

- Absolver o arguido AA da acusação da prática de 1 crime de coação sexual, previsto e punido pelo artigo 163º/2 do Código Penal, ex vi dos artigos 113º/6 e 115º/2, todos do Código Penal, na pessoa da vítima BB;

- Absolver o arguido da acusação da prática de 1 crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170º, ex vi dos artigos 113º/6 e 115º/2, todos do Código Penal, na pessoa da vítima BB;

- Absolver o arguido da acusação da prática de 1 crime de violação agravada, previsto e punido pelo artigo 164º/1-a) e 177º/5, ex vi do artigo 144º/al. c), 69º-B e 69º-C, todos do Código Penal, na pessoa da vítima CC;

- Absolver o arguido da acusação da prática de 1 crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal, e de 1 crime de gravação e fotografias ilícitas, previsto e punido pelo artigo 199º do Código Penal, na pessoa da vítima CC;

- Absolver o arguido da acusação da prática de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º/1-c) e 2, ex vi do art.º 132º/2-d) e e), todos do Código Penal, na pessoa da vítima CC;

- Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º/2-a) do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de devassa da vida privada através da internet, previsto e punido pelo artigo 193º do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Operando o cúmulo jurídico entre tais penas, condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Condenar o arguido a pagar à vítima CC, nos termos do artigo 16º/1 e 2 do Estatuto da Vítima e do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, uma compensação, como reparação pelos prejuízos sofridos, no montante de 15.000,00€ (quinze mil euros);

-Declarar perdido a favor do Estado o telemóvel apreendido ao arguido, determinando que, oportunamente, se proceda à sua destruição;

- Determinar que, oportunamente, logo que reclamados e sem prejuízo do prazo de perdimento a favor do Estado (cfr. artigo 186º/2 e 3 do Código de Processo Penal12), se restituam os demais objetos apreendidos aos respetivos proprietários.

2.  Inconformado, recorreu o arguido extraindo da motivação do recurso as seguintes CONCLUSÕES:

« I. O presente recurso tem como objecto tanto a matéria de facto como a de Direito no Acórdão em crise, que condenou o recorrente pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, de um crime de devassa da vida privada através da internet, previsto e punido pelo artigo 193.º, do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; operando o cúmulo jurídico entre tais penas, foi condenado o recorrente AA na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. Mais foi condenado a pagar à vítima CC, nos termos do artigo 16.º, n.º 1 e 2 do Estatuto da Vítima, e do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, uma compensação, como reparação pelos prejuízos sofridos, no montante de 15.000,00€ (quinze mil euros); e ainda viu declarado perdido a favor do Estado o telemóvel apreendido, determinando-se que, oportunamente, se proceda à sua destruição.

II. O Tribunal a quo condenou o ora recorrente considerando provados factos de que não foi feita prova, ou pelos menos suficiente, ou com a segurança que é exigida pelo nosso Direito.

III. As declarações para memória futura, prestadas pela vítima CC, no dia 27/04/2022, foram valoradas positivamente pelo Tribunal a quo, assim fundamentando a sua convicção. Todavia, o conteúdo destas declarações, quando confrontados com o depoimento prestado pela testemunha DD, permitem, contudo, concluir diversamente dos pontos da matéria de facto dados como provados com os números 26., 27. e 31..

IV. Fica, assim, sem a necessária razão probatória a fundamentação dos factos provados no ponto 26. e 27., nomeadamente no que concerne à actuação do recorrente, dando como provado que, cerca da meia-noite, este bateu à porta do apartamento da vítima, de forma insistente; e facto provado 31., no sentido em que se deu como provado que a vítima ter sempre dito ao recorrente, em voz alta, para parar, antes se devendo ter considerados como factos não provados.

VI. No que concerne à introdução do recorrente em casa da vítima, contra a sua vontade, e tendo esta conhecimento prévio, ou suspeitando que aquele teria, em tempos, violado alguém, acreditando em tal versão, não é credível que face a esta convicção, mantivesse uma conversa com o recorrente, por mensagens, àquela hora da noite, com o intuito de este receber um simples abraço e, pior, acedesse a tal, única e exclusivamente por causa da insistência do recorrente. Menos credível é que, conhecendo os “antecedentes” do recorrente, lhe abrisse a porta de sua casa após este bater insistentemente à mesma! Caso tal sucedesse, o que qualquer pessoa faria seria pedir auxílio às autoridades competentes. Foram, assim, valoradas positivamente as declarações da vítima quando se impunha decisão inversa, porquanto, pelo menos com base em regras de experiência comum, as mesmas se demonstram, neste âmbito, incoerentes.

VII. As lesões verificadas no pescoço da vítima, dada a sua extensão e gravidade reduzidas, não são compatíveis com a violência exercida pelo recorrente conforme descrito pela vítima para efeito de a ameaçar e forçar à prática de conforme dado como provado no ponto de facto 31., como igualmente o não são com a pressão fortemente exercida na zona anterior do pescoço, durante o acto sexual, conforme facto dado como provado com o número 35. Assim, estes concretos pontos de facto deveriam ter sido dados como não provados.

VIII. Da análise das gravações vídeo e áudio realizadas pelo recorrente, constantes do CD-R de fls. 326 e 327, não se verifica a existência de qualquer pressão fortemente exercida na zona posterior do pescoço da vítima, ou subjugação da mesma, pelo que o Tribunal a quo deu incorrectamente como provados os factos constantes dos pontos 35. e 40., antes devendo os mesmos ser considerados como não provados.

IX. Quanto à ameaça de morte realizada pelo recorrente, e à consequente incapacidade de oposição da vítima aos seus intentos sexuais, esta declarou que: “Eu tentei chegar a uma faca, porque se (…), foi como eu disse no hospital, eu não vou mentir, se eu tivesse chegado à faca, eu tinha-o matado, portanto.”. Faca esta que se encontrava na cómoda ao fundo da cama do quarto da vítima, conforme consta da Foto 31, do Relatório do Exame N.º 042/2022, a fls. 270, o qual foi valorado positivamente pelo Tribunal a quo. Conclui-se, pois, não só que nunca a vítima temeu fundada e razoavelmente pela sua integridade, como nunca se viu impossibilitada de se defender.

X. O Tribunal a quo julgou incorrectamente os pontos 28., 31., 35., 36. e 40. da matéria de facto constante do Acórdão em crise, dando-os como provados, antes devendo ter concluído, a partir dos mesmos meios de prova acima referidos, pela absoluta insuficiência probatória que permitisse sustentar a sua verificação, determinando os mesmos como não provados.

XI. Não é, pois, completamente inadmissível que, conforme sustenta o recorrente, naquela noite ele e a vítima tenham praticado relações sexuais consentidas. Das quais, resultaram, efectivamente, as lesões verificadas na vítima, as quais foram explicadas pelo recorrente. Mais se diga, e pese vítima tenha sido próximo das duas horas, em momento algum das gravações juntas aos autos, e devidamente valoradas para efeitos probatórios, se verifica a vítima a falar mais alto, a dizer para o recorrente parar de fazer o que estivesse a fazer, a pedir ajuda, a ser ameaçada ou a ser fisicamente constrangida para realização de acto sexual, nem tal resulta corroborado pela prova testemunhal.

XII. Consequentemente, considerados tais precisos meios de prova, levar-se-á necessariamente à alteração da matéria de facto provada, não considerando provados os factos considerados assentes nos pontos 27. a 33., inclusive, 35. a 37., inclusive, 39., 45., 46., 47., 49., e 50., dos Factos Provados –, impondo-se, assim, uma decisão diversa da recorrida – arts. 412.º, n.º 3, als. a) e b), do Código de Processo Penal.

XIII. O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 164.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, porquanto verificada a insuficiência probatória presentemente arguida para o preenchimento daquela tipificação. Deveria, com o devido respeito, considerando a existência de relações sexuais consentidas, bem como as lesões daí resultantes, ter sido aplicado, ao invés, o estatuído no art. 148.º, n.º 1, do C. Penal ou, e caso assim não se entenda, mas verificada a inexistência de violência ou ameaça grave, o estatuído no art. 164.º, n.º 1, al. a), do C. Penal – art. 412.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.

XIV. O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 193.º, do C. Penal, porquanto não se encontra preenchido o elemento objectivo da norma – disseminar, através da internet –, uma vez verificar-se um número muito limitado de pessoas que tiveram acesso único aos conteúdos partilhados. Deveria, ao invés, ter sido aplicado o estatuído no art. 192.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, porquanto, em concreto, o recorrente, sem consentimento e com a intenção de devassar a vida privada da vítima, nomeadamente a vida sexual, filmou e divulgou imagens daquela naquele contexto – art. 412.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.

XVI. O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 110.º, do C. Penal, porquanto inexistem quaisquer produtos ou vantagens no caso sub judice, antes se aplicando o art. 109.º, do C. Penal, que estatui a perda de instrumentos, conforme determinado. Todavia, e assim decidindo, violou o Tribunal a quo a norma em referência, uma vez não se encontrarem preenchidos os elementos objectivos da mesma, porquanto inexistem quaisquer riscos específicos ou perigosidade associadas a um simples telemóvel, comumente utilizado pela quase totalidade da população portuguesa – art. 412.º, n.º 2, al. a) e c), do Código de Processo Penal.

XVII. Procedendo o supra expendido nos artigos 18. e 20. do presente recurso, e considerando que a pena aplicada ao recorrente não pode ultrapassar a medida da culpa, atendendo à factualidade dada como provada relativamente ao seu carácter, enquadramento social e profissional, nomeadamente, nos pontos 56., 59., 73., 79., 80. e 82., bem como, e no que concerne ao crime de devassa da vida privada – considerando sempre a gravidade e censurabilidade do comportamento –, a atenuante (mesmo que mínima) de, aquando das gravações, ter sempre salvaguardado a identidade da vítima, tapando-lhe o rosto e, assim, impedindo a sua identificação por terceiros, mostrar-se-á adequada e justa a aplicação de penas de prisão a cada um dos crimes, determinadas próximo do seu limite mínimo, permitindo que, operando cúmulo jurídico entre tais penas, se condene o recorrente numa pena única não superior a cinco anos, mostrando-se adequada e suficiente a censura dos factos e a ameaça de prisão, permitindo a suspensão da sua execução, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do Código Penal.

XVIII. Caso tal não proceda e, em consequência, se conclua que a factualidade dada como provada, e ora contestada, o foi correctamente, sempre se dirá que as penas aplicadas ao recorrente, porquanto não podem ultrapassar a medida da culpa e, consequentemente, a pena determinada em cúmulo jurídico, pecam por excessivas. Pelas razões supra aduzidas no ponto 24., as penas o meio da moldura penal aplicável a cada uma delas, mostram-se desproporcionais e desajustadas à culpa revelada pelo recorrente, impondo-se a redução das mesmas para próximo dos limites mínimos, permitindo que, operando cúmulo jurídico entre tais penas, se condene o recorrente numa pena única não superior a cinco anos, mostrando-se adequada e suficiente a censura dos factos e a ameaça de prisão, permitindo a suspensão da sua execução, nos termos do art. 50.º, n.º 1, do Código Penal.

XIX. Considerado o supra exposto, também se dirá desajustada, por excessiva, a compensação de 15.000,00€ (quinze mil euros) determinada à vítima e que o recorrente foi condenado a pagar, nos termos do artigo 16.º, n.º 1 e 2 do Estatuto da Vítima, e do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, devendo a mesma ser reduzida para montantes muito inferiores, compatíveis com o supra expendido nos artigos 18., 19. e 23.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com todas as consequências legais e, em consequência, substituindo-a por decisão nos termos ora propugnados, fará este Venerando Tribunal, Justiça».

3. Notificado, em Resposta o Ministério Público concluiu nos seguintes termos:

«1º. O recurso interposto pelo arguido/recorrente AA assenta, em suma, numa incorreta apreciação da matéria de facto dada como não provada e ainda numa errada subsunção dos factos ao direito, porquanto as provas apresentadas não são suficientes para sustentar a condenação, destacando inconsistências e falta de credibilidade nas declarações da vítima e testemunhas, pugnando o arguido pela revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por uma decisão mais favorável ao arguido.

2º. Contudo, não assiste qualquer razão ao arguido/recorrente AA porquanto o Douto Acórdão recorrido encontra-se suficiente e devidamente fundamentado, na medida em que o mesmo analisa a factualidade considerada como provada e não provada, bem como a subsume aos normativos legais aplicáveis e toma posição sobre todas as questões controvertidas suscitadas.

3º. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu procedeu a uma correta apreciação e valoração dos elementos probatórios de acordo com as regras da experiência comum e de critérios lógicos e racionais, fazendo assim o correto uso do princípio da livre apreciação da prova.

4º. De resto, o Douto Acórdão recorrido para além de conter o elenco dos factos considerados como provados e não provados, contém ainda na exposição dos elementos probatórios, em que se fundamentou, a indicação e exame crítico pormenorizado dos elementos de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal a quo, encontrando-se assim claro e conformemente fundamentado.

5º. Pelo exposto, entende-se que nada mais poderia ou deveria ter sido aduzido pelo Tribunal a quo porquanto a decisão prolatada se encontra devidamente fundamentada e motivada.

6º. Na realidade, o Tribunal a quo considerou como provada a factualidade imputada ao arguido/recorrente designadamente quanto à prática de um crime de violação, em concurso efetivo com um crime de devassa da vida privada pela internet, todos na pessoa de CC, depois de uma correta apreciação e valoração de toda a prova produzida, de acordo com as regras da experiência e de critérios lógicos e racionais.

7º. Por outro lado, no que respeita à escolha da medida da pena e ao seu quantum, importa atentar que o crime de violação, p.p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, é punível com pena de prisão de 3 (três) a 10 (dez)anos de prisão.

8º. O crime de devassa da vida privada através da internet, p.p. pelo artigo 193.º do Código Penal, o mesmo é punível com pena de prisão até 5 (cinco) anos.

9º. Considerando que as penas devem ter “um sentimento eminentemente pedagógico e ressocializador e são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada abalada pela prática do crime e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico penal”. (in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 18-03-1998. Relator Leonardo Dias, processo 98P194, in www.dgsi.pt) e Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2009, 2.º reimpressão, página 227).

10º. O Tribunal a quo aplicou ao arguido/recorrente AA as seguintes penas parcelares: 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de violação, que se situa nos dois terços da medida da pena, e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelo crime de devassa da vida privada através da internet, que se situa próxima do meio da moldura penal do referido ilícito.

11º. Deste modo, no que tange à medida da pena e ao quantum da mesma alicerçou o Tribunal a quo a sua decisão no grau de ilicitude que se revelou elevado, a intensidade da culpa do arguido, que atuou com dolo direto, as lesões graves causadas na pessoa da mesma vítima, e ainda nas condições socioeconómicas do arguido resultantes do relatório social junto aos autos.

12º. Tendo ainda relevado o facto de o Tribunal a quo ter entendido que existem, no caso concreto, fortes necessidades de prevenção geral, atenta a enorme frequência com que ocorrem crimes de idêntica natureza e o generalizado sentimento de grande alarme e perturbação na comunidade envolvente.

13º. Assim, considerando as penas parcelares aplicadas ao arguido – 6 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de violação, e 2 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de devassa da vida privada através da internet – e o teor do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, a moldura do concurso das penas de prisão aplicadas ao arguido deverá situar-se entre os seis anos e seis meses (a maior das penas parcelares) e os nove anos (a soma das penas parcelares) de prisão.

14º. No caso em apreço, o Tribunal a quo, relevou o modo de execução do crime – de forma fria e premeditada, em desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, - as lesões causadas à vítima – que teve de ser submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência e com recurso a anestesia geral - , e a personalidade mal formada evidenciada pelo arguido no cometimento dos factos - revelando o arguido, com tais comportamentos, uma personalidade completamente desfasada da realidade e que não interiorizou minimamente o desvalor das suas condutas, agindo de modo a satisfazer a sua líbido e a sua vaidade, vangloriando-se e exibindo-se perante os seus pares.

15º. Ora de acordo com tudo o supra exposto, o Tribunal a quo decidiu condenar o arguido/recorrente AA na pena única de sete anos e seis meses de prisão, sendo que esta se situa um pouco acima dos dois terços da moldura global, o que é justo e adequado ao caso em apreço, atentas as necessidades de prevenção geral e especial.

Dado o exposto e o douto suprimento de V. Exªs., que sempre se espera, deve ser negado provimento ao recurso e confirmado na íntegra o Douto Acórdão recorrido.

ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!».

4. A Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, podendo ler-se designadamente o seguinte:

«Com os pressupostos acima enunciados acerca dos fundamentos dos recursos e dos vícios que podem afectar as decisões, designadamente os previstos no artigo 410º do código de processo penal, lido o acórdão e vista a prova, não encontramos contradição, insuficiência ou erro de apreciação que permitam considerar verificados quaisquer dos aludidos vícios, de conhecimento oficioso, como acima se referiu.

O tribunal procedeu à apreciação da globalidade da prova do processo e da que foi produzida em audiência de julgamento, explicando o raciocínio que levou à condenação do arguido por aqueles crimes, e fundamentou a sua decisão.

A motivação de facto, considerando a prova produzida, bem como a subsunção dos factos ao Direito não merecem censura, sem prejuízo do que adiante se escreverá.

Uma palavra quanto ao princípio da livre apreciação da prova, ainda que por todos conhecido em que consiste:

É unânime na doutrina e na jurisprudência que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido; tendencialmente, todas as provas valem o mesmo e o tribunal apreciá-las-á segundo a sua livre convicção, ou seja, com a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional.

O que se exige é a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, no sentido da indicação das razões que levaram o tribunal a credibilizar determinados meios de prova, designadamente, com referência à razão de ciência das testemunhas - trata-se de um livre conhecimento, vinculado a estritos critérios de objectividade, lógica e motivação.

É, portanto, irrelevante argumentar sobre um qualquer desmesurado peso que determinado depoimento mereceu face a outro, pois que, não estando consagrado o regime da prova vinculada, o específico peso que um ou outro depoimento tem no processo de formação da convicção depende única e exclusivamente do julgador.

Nada impede que, face à oposição de versões, como ocorre na esmagadora maioria dos julgamentos, a convicção do juiz se forme com base num único meio de prova - v.g. as declarações do arguido ou do assistente ou, ainda, o depoimento de uma única testemunha -, ainda que em sentido contrário sejam as declarações ou os depoimentos de outros e, porventura, maioritários meios de prova.

A “garantia de legalidade da «livre convicção» a que alude o artigo 127.º do CPP, terá de bastar-se com a necessária explicitação objetiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório (…), como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efetuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meios de prova.” – cf. o já antigo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/11/2004 (processo n.º 04P3182) -, não podendo esquecer-se que a valoração das provas cabe, em primeira linha, ao tribunal perante o qual foram produzidas, sendo que não lhe está vedado o recurso à prova indirecta, baseada em indícios constituídos por todas as provas conhecidas e apuradas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém conclusão firme, segura e sólida, posto que os mesmos resultem comprovados por prova directa, de natureza acusatória, plural, contemporâneos do facto punível e relacionados entre si.

Voltando ao caso:

Apresentando-se a fundamentação esclarecedora sobre as provas de que o tribunal se socorreu para chegar à responsabilidade do arguido e, bem assim, como as conjugou entre si, seguindo um processo lógico e racional, e revelando-se o juízo de inferência razoável, respeitando a lógica da experiência da vida, e não já arbitrário, absurdo ou infundado, não ocorre violação do princípio da livre apreciação da prova.

A condenação está assente em prova diversa, máxime testemunhal e documental/pericial, que o tribunal aceitou como credível - cf. a motivação da decisão de facto.

Não ficando o tribunal em dúvida sobre a responsabilidade criminal, é destituída de fundamento qualquer alegação de violação do in dubio pro reo.

Acresce que, considerados os princípios da oralidade e da imediação, inerentes a qualquer julgamento, ao tribunal de recurso não cabe fazer uma reavaliação da percepção que o tribunal de julgamento retirou da prova que foi produzida. Essa apreciação circunscrever-se-á aos erros de julgamento que, de modo inequívoco, forem identificados na decisão da matéria de facto perante a prova identificada.

E nada do que vem alegado quanto à pretensa má apreciação da prova está reflectido na decisão.

O depoimento da testemunha DD não põe evidentemente em causa a verificação do crime de violação, nem a convicção do tribunal quanto à sua prática pelo arguido.

No que concerne à alegada incompatibilidade das lesões causadas no pescoço da vítima com a violência exercida sobre ela, de acordo com as declarações da própria, constata-se que o tribunal, referindo-as na fundamentação da decisão - “(…) No teor do doc. de fls. 16 e 69, que documenta as lesões visualizadas no pescoço da vítima CC, em fotografias tiradas nesse mesmo dia – sustentando a violência exercida pelo arguido durante o ato sexual;(…)” -, não as enuncia no capítulo dos factos provados, e conviria tê-las enunciado como facto apurado, porque relevantes na avaliação de toda a conduta criminosa do arguido.

Contudo, na decisão, e nesse capítulo, estão descritas as lesões vaginais, que evidenciam manifesta violência exercida sobre a vítima.

Neste seguimento, também não seria mal, até para um ainda maior reforço da consistência probatória, que na decisão constasse o teor das mensagens trocadas pela vítima com a amiga, após a saída do arguido de sua casa, amiga que aquela referiu no seu depoimento, mas que não consta como inquirida em julgamento - cf. declarações para memória futura: “(…) depois de ir embora, ele lhe mandou uma mensagem a perguntar se estava bem, mas que ela já estava a trocar mensagens com uma amiga, estando a chamar a GNR (…)” -; no entanto, na motivação, no resumo das declarações para memória futura, é feita referência a esse contacto telefónico - “(…) também, que depois do encontro com o arguido a vítima contactou, de imediato (pela 01h52m), uma sua amiga pelo whatsapp, tendo-lhe relatado o sucedido, evidenciando que o contacto sexual tido como arguido não foi consentido e a violência da agressão

Sem prejuízo, a factualidade apurada está suportada em prova diversa e consistente, designadamente em prova pericial e testemunhal, que, na sua global conjugação, só poderia levar àquela conclusão do tribunal.

Relativamente à ameaça de morte, improcede o argumento do arguido de que “nunca a vítima temeu fundada e razoavelmente pela sua integridade, como nunca se viu impossibilitada de se defender”, porque contrariada pela demais prova, máxime pelas declarações desta, quando, entre o mais, disse que sentiu medo.

A matéria provada arreda, indubitavelmente, o aventado consentimento da vítima.

Foi bem decidida a perda do telemóvel utilizado pelo arguido a favor do Estado.

E foi acertada a fixação de compensação à vítima, cujo valor atribuído é claramente simbólico, consideradas as graves sequelas que os crimes sexuais sempre produzem para toda a vida das vítimas.

As penas - parciais e única - aplicadas

Consideradas as molduras penais abstractas correspondentes e as condições pessoais do arguido, as penas não são desadequadas à extrema gravidade dos crimes cometidos e às sentidas e muito elevadas exigências de prevenção geral e especial.

Perante tão elevada gravidade criminosa, se alguma censura se pode assacar à decisão será a da benevolência na determinação das penas.

Os crimes sexuais não têm atenuantes.

Foram consideradas todas as coordenadas legais previstas para a determinação das penas.

No mais, adere-se à fundamentada resposta do Ministério Público.

O acórdão está fundamentado, isento de vícios e não viola normas legais ou princípios de Direito.

Em conclusão, aderindo à fundamentada resposta do Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente».

5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal,

6. Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são as seguintes as QUESTÕES a que cabe dar resposta:

1- Sindicância da matéria de facto;

2- Enquadramento Jurídico;

3- Excesso das penas:

3.1- Medidas das penas principais;

3.2- Não suspensão da execução da pena de prisão;

4- Excesso do montante indemnizatório arbitrado;

5- Perda a favor do Estado do telemóvel.

2. É o seguinte o Acórdão recorrido (transcrito no que ora releva):

«III - Fundamentação.

A) Factos provados.

O tribunal, discutida a causa e com relevo para a decisão, julga provados os seguintes factos:

1. O arguido, em meados do ano de 2020, na localidade de ..., conheceu BB, nascida no dia ../../2004;

2. Altura em que o arguido começou a enviar mensagens por telemóvel à BB, tendo iniciado uma amizade;

3. Por via dessa troca de mensagens, o arguido combinou encontros com a BB, ao que a menor, então com 16 anos, por vezes, acedeu;

4. Desde essa altura, o arguido tentava ter contactos de índole sexual com a menor, o que era recusado pela mesma, a qual, por vezes, acedeu, somente, a beijar o arguido na boca;

5. Nessa sequência, no verão de 2020, quando a BB tinha 16 anos de idade, ao final da tarde de um dia não concretamente apurado, o arguido combinou um encontro com a BB junto à Casa da Cultura na ...;

6. A BB, acedendo ao convite do arguido, foi ao seu encontro, tendo o arguido, a determinada altura, abraçado e colocado as suas mãos por dentro da camisola da menor, tendo-lhe acariciado as costas, não o tendo conseguido plenamente porque a BB reagiu e afastou-se do arguido;

7. Em face de tal reação da BB, o arguido agarrou-lhe as duas bochechas e disse-lhe: “És uma Puta (…) Gajas como tu, tenho muitas…”.

8. Episódio que causou medo à BB, a qual deixou de se relacionar da mesma forma com o arguido, passando, apenas, a falar-lhe socialmente;

9. Posteriormente, em data não concretamente apurada, mas situada no verão de 2021, no período da noite, o arguido telefonou à BB, tendo dito que estava à porta de sua casa, sita em Avenida ..., ..., ..., e perguntou-lhe se lhe dava um copo de água;

10. A BB abriu a porta de casa e deu um copo de água ao arguido;

11. Este perguntou à BB se podia entrar em casa, tendo obtido resposta negativa;

12. Então, o arguido continuou a insistir para entrar em casa da BB, tendo esta respondido várias vezes que não;

13. Até que o arguido, nessa sequência, disse para a BB que se não o deixasse entrar em sua casa rebentava a porta de casa e partia tudo lá dentro;

14. Com receio do arguido, a BB acabou por o deixar entrar em casa, onde se encontrava o seu irmão EE e o seu namorado FF;

15. Nessas circunstâncias, após o arguido ter bebido o copo de água e uma cerveja, a BB e o namorado dirigiram-se para o respetivo quarto, deixando o arguido na sala;

16. Mas o arguido foi no encalço do casal e deitou-se na cama deles, dizendo-lhes que dali não saia nem que chamassem a GNR;

17. Então, a BB e o FF explicaram ao arguido que para não arranjar problemas seria melhor sair daquele quarto e residência;

18. O arguido, percebendo que o casal já estava a ficar nervoso com a situação, ausentou-se;

19. O arguido, quando começou a relacionar-se com a BB, sabia que esta tinha nascido no dia ../../2004 e que tinha 16 anos de idade.

20. O arguido e a vítima CC conheceram-se no mês de novembro de 2021, quando ambos trabalhavam na exploração agrícola da D. GG e Sr. HH, na área do concelho ...;

21. A partir dessa altura, o arguido começou a trocar mensagens com a vítima através da rede social Instagram;

22. Arguido e vítima também se viam em cafés da localidade da ..., mas sem que tivessem qualquer relação amorosa ou sequer de amizade;

23. Soube, entretanto, o arguido que a vítima residia sozinha em Rua ..., ...;

24. No dia 11 de março de 2022, após o jantar, o arguido enviou diversas mensagens à CC, através da rede social Instagram, pedindo-lhe para ir a sua casa porque queria receber um abraço;

25. A CC ia negando, mas face à insistência do arguido, aceitou dar-lhe o abraço, mas junto à porta do prédio;

26. Então, cerca da meia-noite da noite do dia 11 para o dia 12 de março de 2022, o arguido dirigiu-se ao prédio onde reside a CC e, visto que a porta da rua do mesmo se encontrava aberta por avaria, o arguido subiu a escadaria e bateu à porta do apartamento onde residia a CC, onde entrou por volta das 00h09 minutos;

27. Esta, face à insistência do arguido, acabou por abrir a porta, altura em que o arguido entrou, tendo-se dirigido de imediato ao quarto, tendo a CC dito: “Para o meu quarto não vais. Vais para a sala”, ordem que o arguido ignorou;

28. Já no quarto da CC, o arguido agarrou-a pelo pescoço e disse, entre outras expressões de teor semelhante a seguinte: “Se não fizeres o que eu quero mato-te e violo-te depois de morta”, tendo a vítima, ingloriamente, tentado libertar-se;

29. Enquanto isso, o arguido atirou a CC para cima da cama e, contra a vontade desta, despiu as suas leggings (calças) pretas, camisola amarela e toda a roupa interior, tendo-se despido, também, a si próprio e colocado um preservativo no pénis;

30. Após, com a vítima, completamente desnudada, deitada decúbito dorsal na cama, o arguido, colocando-se sobre ela, fez introduzir o seu pénis ereto no interior da vagina da CC, praticando o ato sexual de cópula completa com extrema violência;

31. A CC ia sempre dizendo, em voz alta, para o arguido parar, ao que este lhe apertava o pescoço com as mãos e a intimidava com expressões semelhantes àquelas que já tinha proferido, entre as quais: “Se não fizeres o que eu quero mato-te e violo-te depois de morta”;

32. Face à violência com que o arguido praticava o ato sexual, a CC teve uma hemorragia no interior da vagina, começando a sangrar;

33. Quando o arguido deu contada do referido sangramento, foi limpar-se à casa de banho que se situa ao lado do quarto da CC, tendo regressado já sem preservativo que ali deixou completamente ensanguentado, retomando a prática do ato sexual de cópula, contra a vontade da CC, em tudo idêntica à anterior, mas sem preservativo;

34. Dando conta que o sangramento vaginal continuava, o arguido voltou a limpar-se na mesma casa de banho, tendo regressado, logo após, para junto da CC;

35. Desta feita, o arguido deitou-se decúbito dorsal na cama, tendo obrigado a CC, mediante pressão fortemente exercida na zona posterior do pescoço, e com encaminhamento da boca para junto do pénis, a praticar coito oral;

36. Enquanto a CC, obrigada pelo arguido, praticava sexo oral, este fumava um cigarro;

37. Após, o arguido, sempre conta a vontade da CC e continuando a ameaça-la de morte, fez introduzir o seu pénis ainda ereto no ânus da CC, praticando coito anal até ejacular;

38. Findo o ato sexual, o arguido voltou a limpar-se na referida casa de banho e, pela 01h52m, foi-se embora;

39. O arguido praticou as descritas agressões sexuais na pessoa da vítima ao longo de mais de uma hora e meia, ou seja, entre 00h09 e as 01h52 do dia 12 de março de 2022;

40. Enquanto praticava os referidos atos sexuais na pessoa da CC, o arguido, com o respetivo telemóvel, com intenção a intenção de posteriormente os partilhar junto de amigos seus através da rede social whatsapp, ia procedendo à gravação de vídeos, nos quais era visível a CC a ser, daquela forma, subjugada;

41. Após, o arguido, para seu gáudio, remeteu esses vídeos a terceiras pessoas, através da rede social whatsapp;

42. Em face da atuação do arguido, a CC, para além de ter sentido medo, raiva e odio, sofreu fortes dores na vagina e no ânus, tendo, por isso, sido conduzida ao Hospital ..., na cidade ...;

43. Em observação médica, verificou-se que a CC apresentava duas lacerações vaginais com perda abundante de sangue, apresentava-se em estado de choque e, após ter sido encaminhada para a especialidade de ginecologia/obstetrícia, foi submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, com anestesia geral, nomeadamente para estancar a hemorragia, ali tendo ficado internada por três dias;

44. As lesões causadas pelo arguido à CC, foram causa direta e necessária de 30 dias de doença, com 15 dias de afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional;

45. O arguido, através do uso de força física e de ameaças de morte contra da vítima CC, obrigou-a a praticar consigo cópula, coito oral e anal, enquanto que, com o respetivo telemóvel, filmava partes de tais atos sexuais, filmes esses que enviou a terceiras pessoas;

46. Quis o arguido limitar, como limitou, a liberdade sexual da vítima e subjugá-la à sua vontade, colocando-a na impossibilidade de resistir e fugir, com recurso à  força física e a ameaças contra a vida, usando de tais formas de violência física e psíquica para quebrar a resistência daquela e assim conseguir, contra a vontade daquela, concretizar, como concretizou, os atos sexuais de cópula, coito oral e anal;

47. Ao agir da forma descrita, o arguido atuou com a intenção concretizada de dar satisfação aos instintos sexuais, mostrando-se indiferente às consequências de tais atuações sobre a pessoa da vítima;

48. O arguido, sem consentimento da vítima, procedeu à gravação de videogramas, onde a mesma, contra a respetiva vontade, se encontrava desnudada e na prática de atos sexuais, videogramas esses que, à revelia daquela e para seu regozijo, remeteu a terceiras pessoas;

49. Atou, o arguido, com a intenção concretizada de molestar fisicamente a CC, de modo particularmente doloroso e cruel, para excitação e satisfação do seu instinto sexual;

50. O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, com conhecimento de que as condutas que assumiu eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou que:

51. A vítima CC nasceu no dia ../../1996 e tinha 25 anos de idade no momento da prática dos factos pelo arguido;

52. Em meados de 2020 o arguido residia com os pais, as três irmãs e uma sobrinha (na atualidade com 8 anos), em casa destes, sita na ...;

53. Em setembro de 2020 o arguido ingressou na recruta em ... por opção, a fim de obter estabilidade laboral e financeira;

54. A par da atividade militar, nos tempos livres (fins de semanas e férias) exercia atividades agrícolas na exploração D. GG, no concelho ... (local onde conheceu a vitima CC), estando inserido no agregado de origem;

55. Após as 5 semanas de recruta em regime de internato, passou a cabo no comando da logística (CmdLog), no ..., situação que se mantém;

56. Na atualidade AA é 1º cabo, tem contrato de trabalho pelo período de 6 anos, e pretende candidatar-se aos quadros permanentes;

57. Aufere 900 euros mensais acrescidos de alojamento e alimentação;

58. Os gastos que tem são referentes ao vestuário, deslocações e um empréstimo de um veiculo automóvel, no valor de 120 euros por mês;

59. Segundo o HH, o arguido é considerado um elemento responsável, cumpridor, sendo-lhe reconhecidas qualidades humanas e profissionais, mantendo ao nível das relações com colegas de ambos os sexos e graduados relações de cooperação e de respeito;

60. A instauração do presente processo causou-lhe elevada surpresa, mas não teve impacto a nível profissional nem ao nível das relações interpessoais;

61. Durante a semana permanece na unidade militar e em alguns fins de semanas e em período de férias desloca-se à ... e pernoita em casa dos pais, junto de duas das irmãs e a sobrinha de 8 anos;

62. Trata-se de uma habitação própria, que reúne condições de habitabilidade e conforto;

63. O pai trabalha numa empresa de máquinas agrícolas; a mãe é assistente operacional numa escola; as irmãs são empregadas na área da restauração; a mais nova reside e trabalha no ... (foi mãe há cerca 1 mês);

64. O arguido teve um período da sua vida ligado a consumos de produtos estupefacientes (haxixe e cocaína), iniciado na adolescência, que manteve alguns anos, tendo deixado de consumir de forma definitiva e por sua iniciativa após ingressar na carreira militar, tendo recorrido a ajuda clinica junto do médico de família;

65. Nesta fase compareceu a uma consulta no CRI ..., mas não prosseguiu o acompanhamento por opção;

66. Nesta fase, apesar dos consumos serem conhecidos pela população, beneficiava de uma imagem positiva, sendo descrito com bem-educado e pacato, imagem que mantém;

67. Em termos afetivos, há cerca de 5 meses assumiu uma relação de compromisso, considerando beneficiar na atualidade de enquadramento afetivo, caraterizado como harmonioso e gratificante;

68. A sua primeira experiência sexual, segundo o mesmo, foi com recurso à prestação de serviços sexuais pagos, tendo por hábito, por vezes, visualizar filmes pornográficos;

69. Relativamente a relacionamentos afetivos e sexuais, o verbaliza uma opinião, em abstrato, de compromisso e de respeito;

70. A nível formativo encontra-se a concluir o 12º ano dentro do sistema militar;

71. O arguido abandonou os estudos com 18 anos, sem concluir o 10º ano de um curso profissional, registando um percurso escolar pautado por desinteresse e desmotivação;

72. Em termos pessoais, o presente processo tem-lhe causado apreensão e nervosismo, face ao seu envolvimento com o sistema judicial;

73. A nível profissional, manifesta elevada preocupação e receio por eventuais consequências jurídicas;

74. À data dos factos, o relacionamento no agregado de origem era caraterizado como harmonioso e pautado por fortes laços afetivos, situação que não se alterou - estes mostram-se apoiantes;

75. Apesar do impacto causado pelo presente processo, a família mostra-se consciente e revela elevada preocupação face à presente reação penal;

76. À data dos factos o presente processo constituiu-se uma surpresa e causou indignação no meio residencial (...), tendo em conta a boa imagem que tinha;

77. Nesta fase a sua imagem aparenta ter ficado prejudicada, em especial pela gravidade dos crimes, não se identificando, no entanto, atitudes extremadas de rejeição ao arguido;

78. Com o decorrer do tempo e na atualidade o impacto parece estar mais diluído;

79. Não se encontra referenciado pelas autoridades;

80. Perante o presente processo, o arguido denota apreensão e verbaliza ter noção da gravidade da acusação;

81. No entanto, não denota avaliação crítica relativamente ao seu envolvimento, nem apresenta consciência das consequências para as vítimas;

82. O arguido não tem antecedentes criminais.


*

B) Factos não provados.

O tribunal, com relevo para a decisão da causa e com exclusão da factualidade conclusiva ou de direito, julga não provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

1. (4.) Contudo, quando o arguido tentava encontrar-se com a BB em locais isolados ou escondidos, a menor recusava-se a ir;

2. (5.) (…) o arguido tentava obrigar a BB a manter contactos de índole sexual contra a sua vontade;

3. (7.) (…) e, quando o estava a cumprimentar e a abraçar, o arguido, contra a vontade da BB, (…) tendo tocado e procurado acariciar-lhe os seios, não o tendo conseguido plenamente porque a BB reagiu e afastou-se do arguido;

4. (8. ) (…) com muita força;

5. (11.) Pretendia, então, o arguido, praticar atos de natureza sexual com a BB;

6. (17.) Quando o arguido encarou com o FF perguntou à BB: “Então este é que é o teu namorado?”, dando-lhe a BB resposta afirmativa;

7. (18.) Nessas circunstâncias, após o arguido ter bebido o copo de água e uma cerveja, foi convidado a sair pelos ali presentes;

8. (48.) Provocou, o arguido, à CC, doença particularmente dolorosa;

9. (49.) O arguido praticou com a menor e contra a vontade da vítima BB atos de natureza sexual, nomeadamente toques nos seios por dentro da roupa;

10. (50.) Noutra circunstância, o arguido foi ao encontro da BB, quando esta se encontrava na respetiva residência, com o fim de praticar, na pessoa da mesma, atos de natureza sexual;

11. (51.) Quis o arguido limitar, como limitou, a liberdade sexual da vítima BB e subjugá-la à sua vontade, com a intenção concretizada de dar satisfação aos instintos sexuais, mostrando-se indiferente às consequências de tais atuações sobre a pessoa da vítima.


*

C) Convicção do Tribunal.

O tribunal fundamentou a sua convicção na prova produzida em audiência de julgamento, ponderada na sua globalidade, de acordo com as regras da experiência comum, nomeadamente:

- No teor do expediente de fls. 3 a 9 e 33 e 34, apenas e exclusivamente para registar que os autos se iniciaram no dia 12/03/2022, na sequência de comunicação efetuada (pelas 02h54m) da GNR ... (que teve conhecimento dos factos às 02h30m) para a PJ, na sequência de denúncia de um alegado crime de violação de que seria vítima II – o que documenta que a denúncia e conhecimento dos factos pelas autoridades ocorreu imediatamente após o arguido abandonar o local da prática dos factos, conferindo credibilidade ao relato da vítima;

- No teor dos docs. de fls. 10 e 37, que documentam o episódio de urgência registado no Hospital ... no 12/03/2022, pelas 04h16m, da vítima CC, nascida no dia ../../1996, com 25 anos de idade;

- No teor do doc. de fls. 16 e 69, que documenta as lesões visualizadas no pescoço da vítima CC, em fotografias tiradas nesse mesmo dia – sustentando a violência exercida pelo arguido durante o ato sexual;

- No teor do doc. de fls. 17 a 30 e 70 a 91, que documenta o teor das mensagens que se encontravam registadas no telemóvel da vítima CC no dia 12/03/2022, pelas 15h00m, no seu perfil do Instagram, documentando as mensagens trocadas entre ela e o arguido no dia anterior (após as 20h14m, mas sobretudo a partir das 22h14m) e no dia dos factos (até à 01h52m), que evidenciam que o arguido procurou a vítima na sua residência, tendo esta se recusado a abrir-lhe a porta, até que decorridas várias horas de insistências acabou por lhe abrir a porta da residência; evidenciando as mensagens trocadas a vontade de o arguido em estar com a vítima e a vontade de esta de não estar com o arguido, acabando por lhe franquear a entrada em casa depois de mais de uma hora de contactos telefónicos e de mensagens trocadas, estas evidenciando sempre a vontade de não estar com o arguido, tendo a vítima lhe aberto a porta apenas para trocarem um abraço; registam as mensagens que pela 01h52m o arguido e a vítima trocaram mensagens, já depois do ato sexual consumado, durante o qual a vítima terá tido uma hemorragia vaginal, tentando o arguido tranquilizar a vítima relativamente ao sucedido; documentam, também, que depois do encontro com o arguido a vítima contactou, de imediato (pela 01h52m), uma sua amiga pelo whatsapp, tendo-lhe relatado o sucedido, evidenciando que o contacto sexual tido como arguido não foi consentido e a violência da agressão;

- No teor dos autos de apreensão de fls. 109 a 111 e 277 a 280, que documentam a apreensão do telemóvel do arguido e a pesquisa informática efetuada ao equipamento, com os ficheiros extraídos; bem como a apreensão das peças de vestuário e calçado em poder do arguido, para sujeição a exame pericial;

- No teor do auto de apreensão de fls. 112, que documenta a apreensão das peças de vestuário e calçado da vítima e demais vestígios, que foram sujeitos a exame pericial;

- No teor dos docs. de fls. 55 e 56, que documentam a identificação da vítima CC, nascida no dia ../../1996;

- No teor do doc. de fls. 97, que documenta as lesões sofridas pela vítima, observadas pelo médico ginecologista no dia 12/03/2022, pelas 05h49m – sustentando a factualidade provada a este respeito;

- No teor do doc. de fls. 148 a 156, que documenta o teor dos resultados analíticos feitos à vítima e o teor do relatório de enfermagem relativamente às lesões sofridas pela vítima e sua evolução;

- No teor do doc. de fls. 155, que documenta o episódio de urgência na UCSP de ... e a entrada da vítima com “grande hemorragia incontrolável”;

- No teor do auto de declarações para memória futura, de fls. 164 e 165, prestadas pela vítima CC, no dia 27/04/2022, perante a Juiz do Tribunal ..., na presença de defensor do arguido, declarações estas em que a vítima, em discurso espontâneo, coerente e credível, sustentado na prova documental referida e nos ficheiros áudio e vídeo constantes dos autos, descreveu tudo quanto se passou naquela noite, desde a abordagem e insistências do arguido para estar com ela e entrar em casa, até ao ato sexual por si não consentido; assim, descreveu como conheceu o arguido, que era conhecido e amigo dos seus patrões e da sua irmã e que conheceu quando foi trabalhar para os seus patrões, tendo trocado algumas conversas com ele no Instagram; que um amigo EE (que trabalhava para os mesmos patrões e fazia na quinta o mesmo que ela fazia) já lhe tinha dito que ele tinha violado uma rapariga; descreveu o que sucedeu no dia dos factos (morava num piso de um prédio que era dos patrões), desde as insistências telefónicas e por mensagem do arguido, até que ela lhe permitiu a abertura da porta do apartamento (a porta do prédio estava sempre aberta, tendo-lhe aberto a porta do apartamento) apenas para ele lhe dar um abraço e ele ir-se embora; referiu que o arguido entrou logo em casa e que lhe disse que tinha que ficar na sala, que não podia ir para o seu quarto, mas que ele foi logo para o seu quarto e colocando-lhe as mãos na garganta lhe disse que tinha que fazer o que ele queria, que se não que a matava e a violava na mesma; que tentou tirá-lo dali e até chegar a uma faca que tinha lá, mas que ele (deitou-a na cama) lhe tirou a sua roupa (toda as peças de roupa) e a dele (ele também tirou a roupa toda); descreveu o ato sexual, tendo-a violado, tendo introduzido o pénis na vagina (quando lhe dizia para parar ele metia-lhe as mãos na garganta e ameaçava-a), utilizando preservativo; que ela começou a sangrar, que ele foi à casa de banho lavar-se e limpar-se (utilizou a toalha que estava lá), mas voltou outra vez, dizendo-lhe para lhe fazer sexo oral, que ela fez sob ameaças dele, após o que também lhe introduziu o pénis no ânus (já sem preservativo); esclareceu depois que quando o arguido foi à casa de banho, ela também foi para a casa de banho para limpar o sangue, que estava a sangrar muito e estava com medo; declarou depois do sexo anal continuava a sangrar e que ele parou, foi-se lavar (deixou o preservativo na casa de banho) e foi-se embora; questionada se tinha gritado ou não, referiu ele dizia que não adiantava ela gritar, que a matava e a violava depois; que ficou a sangrar; que aquilo demorou mais do que uma hora; que depois de ir embora, ele lhe mandou uma mensagem a perguntar se estava bem, mas que ela já estava a trocar mensagens com uma amiga, estando a chamar a GNR; que foi ela quem chamou a GNR e que quando chegou a GNR foi ter com eles à entrada do prédio, tendo chamado o INEM e ido para o Hospital; que no hospital, como não conseguiram estancar a hemorragia, foi sujeita a cirurgia e esteve internada 3 dias; que fez o percurso para o hospital a perder sangue; que ficou com raiva dele e com vontade de o matar; testemunhou o acompanhamento pela equipa de psicologia do hospital; esclareceu que o arguido só tinha estado antes à porta da sua casa uma vez e que tinha medo dele (depois do que o EE lhe tinha dito), tendo acabado de lhe abrir a porta desta vez apenas para lhe dar o abraço e ir-se embora; testemunhou que ela morava sozinha, mas que no piso de cima vivia um outro casal; que o arguido não lhe pediu para tirar a roupa, começou logo a tirar-lhe a roupa; que ele viu que ela estava a sangrar e supôs que era o rompimento do íman que as mulheres virgens têm, mas que ela já não era virgem e que ele sabia que já tinha tido relacionamentos sexuais; que o arguido não ejaculou durante o sexo vaginal e oral, tendo ejaculado durante o sexo anal; que o relacionamento vaginal e anal foi doloroso; que não gritou, mas que falou alto, tentando-o afastar, para que parasse o ato sexual e que não procurou mais a faca porque estava a sangrar muito; esclareceu que todos os contactos que tinha tido com o arguido foram feitos através do Instagram, que ela não tinha o número de telefone dele, que só lho deixou nesse dia, depois do ato sexual (o que se encontra sustentado nos registos das mensagens trocadas); que enquanto estava a fazer-lhe sexo oral, ele estava a fumar; esclareceu que as conversas que tinha tido antes com ele eram apenas de “olá” e “tudo bem”, não tendo estabelecido proximidade;

- No teor dos docs. de fls. 167 a 175, que documentam o teor dos ficheiros extraídos do telemóvel do arguido e a troca de conversações efetuada pelo arguido no grupo social “...” do whatsapp (grupo composto por 6 indivíduos), documentando que o arguido filmou a relação sexual que teve com a vítima e partilhou-a no grupo de amigos; regista-se também que, visualizados os vídeos, não se percecionando atos de agressão física (para além do relacionamento sexual), estão em causa vídeos cuja duração total perfaz apenas alguns minutos, quando o contacto sexual durou cerca de uma hora e meia (não sendo tais filmagens reveladoras de tudo quanto o arguido fez à vítima), tudo isto para dizer que os vídeos permitem concluir pela presença de uma vítima totalmente aterrorizada e instrumentalizada nas mãos do arguido para satisfação dos seus instintos sexuais (seguramente depois de o arguido a ter agredido no pescoço e à depois das lacerações vaginais), o qual mantém uma postura de domínio, reveladora de uma personalidade mal formada, capaz de filmar o ato sexual contra a vontade da vítima, de fumar enquanto mantinha contactos sexuais com a vítima e inclusive de sujeitar a vítima à humilhação de ter que dizer siglas que o arguido impôs que ela dissesse, expressões essas que revelam a intencionalidade subjacente a todo o comportamento do arguido - todo ele tendo em vista a filmagem de um ato sexual para partilha com os camaradas de tropa (evidenciando a preocupação do arguido em obter da vítima as siglas do curso de cabos para que os colegas e camaradas pudesse visualizar);

- No teor do doc. de fls. 184 e v.º, que documenta o teor da informação da Técnica Superior de Serviço Social do Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco, com o percurso pessoal da vítima, que havia sido institucionalizada, até à sua autonomização e ao momento e contexto dos factos;

- No teor do auto de diligência de fls. 204 a 209, que documenta o teor das mensagens trocadas entre o arguido e JJ, através do Instagram, documentando, além do mais, que no dia dos factos, 12/013/2022, pela 01h54m, ou seja, imediatamente após o ato sexual, o arguido partilhou um vídeo e uma mensagem de voz captados durante o ato sexual;

- No teor do relatório pericial de fls. 227 a 230, efetuado ao telemóvel apreendido ao arguido, que sustenta a partilha do vídeo do ato sexual pelo arguido na referida rede social através do grupo ...;

- No teor dos docs. de fls. 244 a 253, que documenta a recolha pericial efetuado ao vestuário, calçado e demais vestígios apreendidos à vítima CC;

- No teor dos docs. de fls. 254 a 276, que documentam os vestígios recolhidos na residência da vítima, permitindo visualizar o local onde os factos ocorreram;

- No teor dos ficheiros de áudio e vídeo constantes do CD-R de fls. 326 e 327, que documentam as filmagens feitas pelo arguido durante a prática do ato sexual – vídeos cujo teor e alcance reportámos acima;

- No teor dos autos de apreensão e docs. de fls. 328 a 348, 427 a 431, 435 a 441, 446 a 450 e 455 a 458, que documenta o teor das conversações trocadas entre o arguido e os colegas do grupo do whatsapp depois da divulgação da filmagem do ato sexual;

- No teor do relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 400 a 402 e de fls. 470 e 471, efetuado no seguimento do exame realizado no dia 11/04/2022, que sustenta as lesões sofridas pela vítima, as suas sequelas e consequências;

- No teor do relatório do exame pericial de fls. 504 e 505, que sustenta a existência de relacionamento sexual entre o arguido e a vítima CC;

- No teor dos docs. de fls. 523 e 524 e 213, que documenta o pedido de amizade feito pelo arguido à vítima BB na rede social Instagram e o teor da mensagem enviada pelo arguido à vítima BB, no dia 25/02/2022, pelas 14h20m, tentando a marcação de um encontro;

- No teor do depoimento prestado pelo arguido, que declarou que teve um relação com a BB (beijos, abraços, carinhos, festas e palavras bonitas), mas nunca teve nenhum contacto sexual com ela, nunca a apalpou, nem procurou os seios ou contactos mais íntimos; neste sentido, confessou os factos 1 a 3, negando que se tivesse encontrado em locais isolados ou escondidos (só parques e cafés) ou marcado encontros em tais locais e que a BB se tivesse recusado a ir para esses locais (factos 4 e 5); admitiu que a beijava na boca, mas que nunca procurou qualquer contacto de natureza sexual com ela, que nunca a obrigou a nada e que ela nunca recusou nada; relativamente aos pontos 6 a 9, confessou que se encontrou com ela, que se abraçaram, que tiraram fotos (ela tirou), mas negou os demais factos, não tendo feito nada contra a vontade dela, nem ela o tendo afastado; relativamente aos pontos 10 a 20, admitiu ter procurado a BB em sua casa; que quando lhe pediu o copo de água já estava dentro de casa (em casa estava o namorado e um irmão, o EE); estavam na cozinha; que a sua intenção, tinha bebido umas cervejas e não estava bem desposto, era estar um bocado com eles e beber água; que esteve um pouco com eles dentro de casa, bebeu água e foi-se embora; que esteve também com eles, todos (os 4), no quarto deles (não sabe de quem era o quarto), deitou-se na cama, esteve lá um bocado a descansar e passado um bocado foi-se embora; que lhes pediu se podia ir para o quarto para descansar um pouco, que não estava bem e eles deixaram; que no quarto sentou-se, deitou-se um bocado e conversaram; referiu que sempre teve problemas com o irmão da BB e que não se davam bem, tendo eles dito o que disseram para o tramarem (mas dava-se bem com o namorado, tinha trabalhado com ela e conhecia-o da ..., também se dava bem com a BB); referiu quando teve relacionamento com a BB (durante 1 ou 2 meses) ela ainda não namorava com o FF; esclareceu que a sua casa fica a cerca de 1 km da casa da BB; que procurou a casa da BB apesar de não namorar com ela e de ela ter um namorado e de se dar mal com o irmão; que estava mal, mas bebeu água e uma cerveja; procurou-os porque “estava lá”, tinha acabado de sair do café que fica em frente (não tendo explicado porque razão não pediu a água no café ou bebeu mais cerveja no café?); que estava-se a sentir mal, mas estranhamente não pediu ajuda no café e decidiu pedir ajuda em casa da BB; que conversaram sobre o seu mal estar; que se sentiu melhor passados 20/30 minutos e que se foi embora; que depois desse episódio não voltou a ter mais contactos com a BB, só alguma troca de mensagens; relativamente aos factos referentes à vítima CC (pontos 23 a 48) e em concreto relativamente ao que aconteceu na noite do dia 11 para o dia 12 de março, referiu que estava apaixonado por ela (o que não se encontra em consonância com o seu comportamento naquela noite: filmar o ato sexual e partilhá-lo com os colegas de tropa), que trocava mensagens com ela e que pensa que ela também estava apaixonada por ela; referiu que antes do episódio já tinha estado uma vez dentro da casa dela, tendo conversado; que naquele dia tinha estado no café e perguntou-lhe se podia estar com ela (só falaram pelo Instagram); ela deixou de responder, foi à porta, bateu à porta, não atendeu, enviou-lhe novas mensagens, ela abriu-lhe a porta; esclareceu que saiu do café por volta das 23h00m, tinha-lhe enviado muitas mensagens do café; que saiu do café para ir ter com ela, porque ela lhe disse que podia ir ter com ele; que era só para estar com ela à porta da casa, mas depois foi ter com ela, ela abriu-lhe a porta, entrou, começaram a conversar, foram falando, desabafou com ela, não estava bem na vida (no exército), que precisava de estar com ela para desabafar, para lhe expor os sentimentos por ela (estava apaixonado por ela); que antes não tinha tido contactos íntimos com ela (nunca lhe tinha dado beijos na boca); neste contexto, confirmou os pontos 23 a 29 da acusação; em casa, foram andando, foram falando e foram para o quarto dela (entre as 23h30m e as 00h00m); foi para onde ela o levou; não estiveram tempo nenhum noutras divisões da casa; sabia que vivia sozinha; sabia que o apartamento estava arrendado a ela através do patrão onde eles trabalhavam; vivia num prédio, com dois pisos e quatro apartamentos (2 por piso); tinha um apartamento em frente e dois apartamentos no piso de baixo; sentaram-se na cama, falaram, foi-lhe dando uns toques e uma troca de beijos e relacionaram-se sexualmente; no início ela estava um pouco nervosa, que há muito tempo que não tinha relações sexuais; confrontado com as fotos de fls. 69 (marcas no pescoço), declarou que foi ele durante o ato sexual, mas que não foi de maneira a agredir, que “são coisas normais”, “o entusiasmo”, sem intenção de ofender; que foram-se despindo, despiu-se a e ajudou-a a despir-se; tiveram sexo oral, vaginal e anal; durante o ato sexual ela começou a perder sangue, que foi ele que reparou, que pararam um momento, para ela ir à wc para se limpar, onde ele também foi; que conversaram se era menstruação, se já lhe tinha acontecido, perguntou-se se queria continuar e ela quis continuar e continuaram, tendo ela voltado a perder sangue; não achou normal ela estar a perder sangue, despediram-se e foi-se embora (por volta da uma e tal ou duas horas); foi para casa, enviou-lhe mensagens na hora, não falou com ela no dia seguinte, tendo no final do dia aparecido lá a polícia para falar com ele; depois disso não voltou a falar com ela (soube que ela estava no hospital, mas não a procurou); questionado porquê que ela o havia de acusar de violações, referiu que não sabe, que pode ser por ter ficado ferida, por vergonha de ter sido assistida; confessou que filmou os atos sexuais, que não lhe perguntou se podia filmar e que não sabe se ela o viu filmar, mas que se viu não o mandou parar; filmou por cobardia e exibição para os amigos (o amigo de infância JJ e os militares camaradas do exército, testemunhas n.ºs 12 a 17 da acusação), num ato impensado; declarou que ela podia ter gritado, fugido (esteve sozinha várias vezes), que podia ter utilizado uma faca/navalha (que ela tinha lá – não a viu no momento, só no processo); reafirmou que só lhe disse que estava apaixonado por ela na noite do relacionamento sexual, que antes não lhe tinha dito nada nesse sentido; que insistiu em estar com ela só para receber um abraço; que ela recebeu-o, cumprimentaram-se e foi atrás/ao lado dela para o quarto; que conversaram sentados na beira da cama, tendo começado a acariciá-la e a beijá-la na boca, dizendo-lhe que gostava dela e estava apaixonado por ela; que ela se limitou a ouvi-lo, mas que não lhe manifestou os mesmos sentimentos; que os preservativos eram seus (que costuma andar com eles na carteira), que tinha pelo menos dois; que fumou durante o sexo oral como forma de exibição para os vídeos; que lhe pediu, durante o ato sexual, para dizer “CCS” que era a sigla da sua companhia no exercito e que ela disse; esclareceu que, na altura, trabalhava no exército, mas que aos fins de semana trabalhava nas vinhas e na agricultura, tendo trabalhado também com a CC; reafirmou que todos os atos sexuais foram consentidos, que não a obrigou a nada (que se ela lhe tivesse dito para parar, que teria parado), que sabia que ela já não era virgem; que quando foi para casa dela queria ter relações sexuais com ela; que ela não se queixou de dores durante o relacionamento sexual; que foi ele que reparou que ela estava a perder sangue (o que se revela incompatível com os ferimentos causados e a hemorragia);

- No teor do depoimento prestado pela vítima BB, com 20 anos de idade, que trabalha no campo e reside em ..., ..., a qual declarou que conheceu o arguido quando mudou para a ..., tendo conversado com ele por Instagram; testemunhou que a primeira vez viu foi no café, mas que não falou com ele, tendo-lhe enviado uma mensagem pelo Instagram, procurando-o para serem amigos; que conhecia amigos dele, começou a mandar-lhe mensagens, ele começou a responder e começaram a sair com os amigos, todos juntos; que não namorou com ele, mas que tinham “uma curte”, que ele só queria estar com ela em sítios fechados, mas que ela foi de livre vontade para esses espaços (uma vez, na casa da cultura, depois atrás de uma casa velha e na outra vez no castelo, numa casa abandonada); que não ia com maldade nenhuma, era para estarem como amigos, que falaram como amigos; relativamente ao episódio descrito nos autos, testemunhou que ele queria ter contactos consigo em espaços fechados, que se encontraram perto do da casa da cultura, que tinha uma t-shirt, que ele lhe passou a mão por dentro das costas e apalpou-lhe as costas na parte do soutien (que não chegou a apalpar-lhe as mamas), tendo ela ficado sem reação e ido embora; que esta foi a última vez antes do episódio da ida a casa e não falou mais com ele; no dia que ele foi lá a casa, ele tinha-lhe ligado, que queria um copo de água, que lhe abriu a porta e o deixou entrar em baixo, que ele viu que não estava sozinha, que entrou na cozinha e falou com o ex-companheiro dela (que estava a lavar a louça); esclareceu que lhe levou a água à porta da entrada, mas que ele subiu as escadas dizendo para o deixar entrar senão rebentava com tudo (que estava bêbado); o companheiro estava na cozinha e o irmão no quarto, ela e o companheiro foram para o quarto e ele foi atrás deles; tirou uma foto dela da parede do quarto e deitou-se na cama com eles, que se ia deitar no meio deles e queria lá dormir; que o irmão estava a mandá-lo embora, que ia chamar as autoridades, até que acabou por sair; não tentou nada com ela, não lhe tocou no corpo; que não sabe qual era a intenção dele, que poderia pensar que ela estava sozinha; testemunhou que no encontros que tinha tido com ele chegou a beijá-lo na boca por várias vezes, mas que foi feito de comum acordo entre ambos; que já tinha 17 anos; cfr. os pontos 7 e 8; que teria sido no verão de 2021 (agosto); esclareceu que o arguido só deu conta que havia mais gente em casa quando subiu ao andar de cima e viu o seu ex-companheiro na cozinha; pensa que o arguido se dava melhor com o seu irmão do que com o seu namorado;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha EE, solteiro, empregado de mesa, residente na ..., irmão da BB, que conhece também o arguido já desde os tempos em que estudaram juntos em ... (em 2016) e com quem se dá bem; testemunhou que não sabe nada do que se passou com a irmã, que ela estava a morar com ele (connosco), mas que não lhes contou nada; que eles se davam bem; testemunhou o episódio da ida do arguido a casa, onde pediu o copo de água, mas que não viu nada de anormal;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha KK, solteiro, desempregado, residente em ..., irmão da vítima BB, que conhece o arguido, por ter trabalhado com ele uma vez na vindima, o qual testemunhou que, diretamente, nada sabe dos factos em causa nos autos;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha FF, solteiro, trabalha num lar de idosos, residente em ..., o qual testemunhou que conhece o arguido desde 2020, altura em que namorava com a vítima BB; testemunhou que não presenciou nada relativamente ao arguido, em termos de abusos sexuais; testemunhou, ainda assim, que num determinado dia que o arguido foi lá a casa (da BB – na altura ele vivia com a BB), ele estava presente, estava a lavar a louça, tendo a BB dito que ia chegar um rapaz, que queria um copo de água, e para não arranjar confusão com ele; que foi o depoente que lhe deu o copo de água; que depois foram para o quarto, o arguido tirou uma foto da parede, pediram ao arguido para se ir embora, tendo este recusado, dizendo que ia ficar lá deitado na cama; que entretanto chegou o EE, o irmão da BB, contou-lhe o que se estava a passar; a BB queria chamar a GNR, começaram a dizer que não valeria a pena e passado pouco tempo ele saiu e foi-se embora; testemunhou que a BB lhe disse que nunca tinha tido qualquer relacionamento com ela; assegurou que não houve qualquer conversa de teor sexual;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha DD, divorciado, agricultor aposentado, residente na ..., o qual testemunhou que não conhece o arguido; testemunhou que num determinado dia vinha a sair do seu apartamento (do 2º para o 1º piso), num dia de manhã, e deparou-se com dois sujeitos, que eram senhores da judiciária; testemunhou que nessa noite não se apercebeu de nada no apartamento, que ouviu barulho um bocadinho estranho (estando já na cama, apercebeu-se que haveria alguém no apartamento do 1º esquerdo, por baixo do dele, que haveria ali qualquer coisa como de um casal, tipo a “choramingar”, a “gemer”); testemunhou que não se apercebeu da entrada ou saída do arguido no apartamento; testemunhou que aquilo é um apartamento que está “subalugado” a gente que trabalha na agricultura e que já lá morou muita gente, que aquilo é um alojamento transitório; que na altura pensou que era um casal que estava no bem bom um com o outro; mas que não se apercebeu de choros ou que alguém estivesse a sofrer; relativamente à vítima CC, testemunhou que não a conhece, que não sabe de quem se trata, que não fala nem com os saíram nem os que entram naquele apartamento; que os factos terão acontecido no piso por baixo do seu (que ainda tem uma escadaria para a rua);

- No teor do depoimento prestado pela testemunha LL, solteira, presta serviços domésticos e na agricultura, residente em ..., a qual testemunhou que conhece o arguido da ..., há cerca de 10/15 anos, e que conhece a CC, que é sua irmã; testemunhou que tudo o que sabe é o que a irmã lhe disse, que não testemunhou nada; testemunhou que foi buscar a irmã ao hospital, que nesse dia tinha telefonado para ela e que ela não tinha atendido, nem tinha ido trabalhar, tendo ela lhe ligado mais tarde depois de ser internada no hospital; testemunhou que nunca teve conhecimento de problemas de saúde da irmã que lhe determinassem hemorragias;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha JJ, solteiro, operador de máquinas agrícolas, residente em ..., o qual testemunhou conhecer o arguido desde criança e que se dá bem com ele; conhece a BB, porque conhece a família dela; o qual testemunhou que não presenciou qualquer facto, tendo visto apenas o vídeo que o arguido partilhou consigo, através da rede social Instagram; testemunhou que não era um vídeo em direto, mas sim filmado e partilhado; testemunhou que não se conseguia ver a cara da rapariga; que pensa que o vídeo tinha áudio e que “lhe pareceu que a rapariga estava a ter prazer”; testemunhou que nunca tinham partilhado outros vídeos desta natureza e que não sabia que relacionamento tinha com a vítima, desconhecia se ele estava apaixonado ou não por ela;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha MM, casado, funcionário do canil, residente em ..., o qual testemunhou que conhece o arguido, que era bastante amigo dele, mas afastou-se dele, não se fala com ele; testemunhou que não sabe nada do que se passou entre o arguido e o MM e que relativamente ao que se passou com a CC só sabe de ouvir dizer;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha HH, solteiro, estudante, residente em ..., amigo do arguido, que foi militar e camarada do arguido no mesmo quartel (...), entre 2020 e 2022, não o vendo desde essa altura; relativamente aos factos, testemunhou que não conhece as vítimas, mas que recebeu um vídeo de cariz sexual enviado pelo arguido; que esse vídeo foi partilhado no grupo (...), composto por cerca de 6/7 camaradas, e que todos viram o vídeo partilhado; que não foi partilhado individualmente (mas em grupo) e que foi a primeira vez que isto aconteceu, tendo tal vídeo sido apagado mais tarde, por acharem que não era adequado; testemunhou relativamente às condições pessoais e de vida do arguido;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha NN, militar da GNR, residente em ..., foi colega de tropa (exercito) do arguido cerca de um ano e meio, no ...; testemunhou que não fazia parte do grupo dos ...; que partilhava conversas individualmente com o arguido, mas não em grupo; testemunhou que o arguido lhe partilhou um vídeo de caráter sexual; testemunhou que foi a única vez que lhe partilhou vídeos desta natureza, que o eliminou; testemunhou que era superior dele, mas que nada fez nessa qualidade; testemunhou relativamente às condições pessoais do arguido;

- No teor do depoimento prestado pela testemunha OO, solteira, militar do exército, colega/camarada do arguido, no ..., residente em Lisboa, a qual testemunhou o total desconhecimento direito dos factos; testemunhou relativamente às condições pessoais do arguido.

Sendo estes os meios de prova produzidos, a factualidade provada e não provada ficou a dever-se à conjugação de todos eles, na conjugação dos depoimentos do arguido e das vítimas, entre si e com os demais meios de prova, de onde resultou, no que concerne à vítima BB, sobretudo com base nas declarações prestadas por esta, que foi a BB quem procurou o arguido, numa altura em que já tinha mais de 16 anos de idade, tendo-o contactado pelo Instagram e alimentado conversas com o arguido, que deram origem a encontros de natureza sexual, em que ambos, de comum acordo, nas palavras desta testemunha, tiveram “uma curte» tendo-se beijado na boca e trocado outras carícias. Assim, foi a própria vítima que colocou em causa tudo quanto a acusação refere, por ter sido ela a tomar a iniciativa de procurar o arguido e para algo que, de comum acordo, viria a dar origem a mais que uma mera amizade, tendo-se relacionado e estado um com o outro sem que nada de anormal tivesse acontecido, por ter sido tudo com o seu acordo. Neste contexto, relativamente ao episódio supostamente mais grave, ocorrido em casa da vítima, toda a prova produzida e as declarações da própria vítima levam à ausência de prova de que arguido tivesse procurado a vítima com intenções de natureza sexual e que mesmo tivesse tido ou procurado algum contacto de natureza sexual com a vítima. Relativamente ao episódio anterior, é a própria vítima que testemunha que, de livre vontade e de comum acordo, se encontraram nesse local (onde não poderiam ser vistos) e que se beijaram e abraçaram, não tendo o arguido lhe apalpado ou tentado apalpar os seios, tendo o relacionamento se interrompido bruscamente quando o arguido, que a abraçava e beijava, lhe colocou as mãos por dentro da camisola e na zona das costas, sem que o arguido tivesse forçado ou procurado contactos de natureza sexual com a vítima, tendo antes a vítima se afastado e ido embora, sem qualquer violência por parte do arguido que não a descrita nos factos provados. É esta a razão da factualidade provada e não provada a este respeito.

No que concerne à vítima CC, a factualidade provada e não provada assentou na conjugação de todos aqueles meios de prova, salientando-se que a confissão parcial feita pelo arguido, com a amplitude em que o foi, perante as evidências dos demais meios de prova e o não reconhecimento da factualidade referente à relação sexual não consentida, não mereceu grande relevância probatória (o arguido não assumiu os factos relativos ao sexo não consentido e violento e as evidências dos vídeos apreendidos e divulgados pelos amigos tornavam inaceitável qualquer outra posição processual do arguido). Na verdade, toda a prova produzida permite sustentar que o arguido e a vítima não tinham uma relação muito próxima, ao ponto de não poderem ser considerados amigos, mas apenas conhecidos, tendo-se conhecido naquelas circunstâncias (em algum fim-de-semana em que o arguido, ausente da tropa, trabalhou nas vinhas com a vítima), com o interesse manifestado pelo arguido (através dos contactos pelo Instagram) de privar com a vítima e da não correspondência da vítima a esses desejos, ao ponto de, antes do episódio descrito, terem sido muito poucos os contactos presenciais entre ambos. Tudo isto, evidenciando o desejo manifesto do arguido de se envolver sexualmente com a vítima, desembocou no episódio descrito, cujos antecedentes, naquela noite, evidenciam o despropósito de o arguido em procurar a vítima na sua residência (com a própria manifesta nas suas mensagens), com a recusa em abrir-lhe a porta, mas também a persistência do arguido, que ficou à porta da casa da vítima várias horas insistindo para que esta lhe abrisse a porta e estivesse consigo, até ao momento, de fraqueza, em que a vítima cedeu aos instintos predadores do arguido, franqueando-lhe a entrada na sua casa, para apenas um abraço, a que se seguiu toda a violência que autos evidenciam, desde as lesões no pescoço da vítima (compatíveis com as alegadas ameaças de morte), até às lacerações vaginais (evidenciadora de um contacto sexual não consentido), mas também o relacionamento sexual durante cerca de uma hora e meia, com os traços de personalidade mal formada do arguido que teve o desplante de filmar a vítima em posturas de total coisificação, limitando-se a fazer aquilo que o arguido lhe ordenava, sob pena de a matar e violar de seguida, filmagens que evidenciam a pré-intencionalidade do arguido de partilhar as mesmas com os seus amigos, em posturas exibicionistas, mas humilhantes para a vítima. Para além das declarações do arguido, podemos dizer que toda a factualidade fica provada, nos “antecedentes”, com base nas mensagens que o arguido e a vítima trocaram naquela noite antes da entrada em casa; relativamente ao “durante”, com base nas declarações prestadas pela vítima, as filmagens feitas pelo arguido, o teor das filmagens e a postura do arguido, as lesões corporais sofridas pela vítima e as mensagens trocadas pelo arguido e pela vítima imediatamente após os factos descritos, que evidencia, do lado da vítima, um desabafo em sofrimento para uma amiga de que tinha acabado de ser “violada” e, do lado do arguido, a postura mal formada de quem deixa uma vítima a esvair-se em sangue em casa, para se vangloriar daquilo que tinha acabado de fazer com os seus amigos (partilhando, de imediato, os vídeos que tinha filmado).

A factualidade não provada ficou, assim, a dever-se à ausência de elementos probatórios e/ou à prova de outra realidade, já devidamente sustentada.

A factualidade referente às condições pessoais e de vida e antecedentes criminais do arguido ficaram a dever-se ao teor do relatório social e do CRC juntos aos autos.


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D) Do direito.

1. Subsunção dos factos ao direito e responsabilidade criminal.

1.1. Dos crimes de que alegadamente foi vítima BB.

O arguido vem acusado da prática de 1 crime de coação sexual (previsto e punido pelo artigo 163º/2 do Código Penal, ex vi dos artigos 113º/6 e 115º/2, todos do Código Penal) e de 1 crime de importunação sexual (previsto e punido pelo artigo 170º, ex vi dos artigos 113º/6 e 115º/2, todos do Código Penal), tendo por vítima a menor BB.

Os denominados «crimes sexuais» encontram-se tipificados nos artigos 163º a 176º do Código Penal, tipificando os artigos 163º a 170º «os crimes contra a liberdade sexual», entre os quais consta o crime de coação sexual (artigo 163º), o crime de violação (artigo 164º) e o crime de importunação sexual (artigo 170º), e os artigos 171º a 176º «os crimes contra a autodeterminação sexual», entre os quais consta o crime de abuso sexual de crianças (artigo 171º).

O nosso legislador configura os crimes sexuais como «crimes contra as pessoas» (inseridos no Capítulo V do Título I da parte especial do Código Penal), protegendo bens jurídicos estritamente individuais: a liberdade de sexual e a liberdade de autodeterminação sexual de cada pessoa. Enquanto com a tipificação dos crimes contra a liberdade sexual o legislador protege a liberdade (e/ou a autodeterminação sexual) de todas as pessoas, sem fazer aceção de idade, tendo sempre subjacente a proposição político-criminal de que não constitui crime a atividade sexual levada a cabo em privado por adultos que nela consentem, com a tipificação dos crimes contra a autodeterminação sexual o legislador estende essa proteção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam em todo o caso uma menor gravidade, estendendo-a porque a vítima é uma criança ou, em todo o caso, um menor de certa idade - cfr. Figueiredo Dias (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pgs. 441 e ss.).

Deste modo, se nos crimes contra a autodeterminação sexual está em causa ainda a liberdade sexual (dos menores de certa idade), ao tipificá-los o legislador visou proteger também o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual. Tratando-se de crimes sexuais, destinam-se a proteger as crianças e jovens até certos limites de idade, tratando-se, na designação de Figueiredo Dias (idem), de crimes com um bem jurídico complexivo, que visam proteger o desenvolvimento da vida sexual do menor.

O tipo legal de crime base ou fundamental dos crimes contra a liberdade sexual é o crime de coação sexual, tipificado no artigo 163º do Código Penal, constituindo o crime de violação, tipificado no artigo 164º, um tipo legal de crime especializado relativamente àquele, por configurar uma forma particularmente grave de coação sexual (também já denominado de «coação sexual especial»), destinando-se qualquer um deles a proteger a autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa.

Tal como anota Figueiredo Dias (idem, ibidem), cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m). A intervenção mínima ou subsidiária do direito penal só se justificará se e quando essa liberdade sexual individual for violada.

Assim, nos termos do artigo 163º do Código Penal, comete o crime de coação sexual: «1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo (é punido com pena de prisão até cinco anos). 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo (é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos). 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima».

Nos termos do artigo 164º do Código Penal, comete o crime de violação: «1 - Quem constranger outra pessoa a: a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; (é punido com pena de prisão de um a seis anos). 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; (é punido com pena de prisão de três a dez anos). 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima».

O agente dos crimes de coação sexual ou de violação pode ser qualquer pessoa (está em causa um crime comum: “quem”). A vítima, por seu turno, também pode ser qualquer pessoa: homem ou mulher (“outra pessoa”).

O tipo objetivo de ilícito de coação sexual pressupõe “um ato sexual de relevo”. Por seu turno, o tipo objetivo de ilícito do crime de violação especializa o “ato sexual de relevo”.

Deve considerar-se «cópula» a penetração da vagina pelo pénis: a denominada "cópula vestibular" ou "vulvar", constituindo um ato sexual de relevo, para este efeito não é ainda cópula. O «coito anal» consiste na penetração do ânus. O «coito oral» consiste na penetração da boca pelo pénis (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pg. 472)2.

De acordo como entendimento dominante (cfr. autor, ob. e loc. cit.), o “ato sexual” deve ser analisado de um ponto de vista predominante objetivo e deve assumir uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica. Deste modo, torna-se irrelevante em termos de tipicidade o motivo da atuação do agente (não integrando o tipo de ilícito, nomeadamente, a chamada intenção libidinosa do agente.

O ato sexual pressuposto nos crimes sexuais, e em particular no crime de coação sexual, tem que ser um “ato sexual de relevo”3. Este conceito compreende, desde logo, uma função negativa, no sentido de excluir do tipo legal de crime todos os atos, ainda que de cariz sexual, considerados insignificantes ou bagatelares (ainda que “pesados” ou “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto, despudorados, mas que, todavia, pela pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima). Mas comporta também uma função positiva, impondo ao intérprete o dever de apurar a relevância do ato em função do bem jurídico protegido, isto é, se o ato representa um entrave com importância, de um ponto de vista objetivo, para a liberdade de determinação sexual da vítima.

A ação, em qualquer dos tipos legais de crime supra referidos, deve destinar-se a constranger a vítima a sofrer ou a praticar atos sexuais de relevo, tendo em vista o comportamento da vítima, de um ponto de vista sexual, como puramente passivo (levando-a a sofrer o ato sexual no seu corpo) ou antes ativo (levando-a a praticar o ato sexual, com o agente ou um terceiro). Em qualquer das modalidades de ação, pressupõe-se sempre a ação de tocar no corpo da vítima, ainda que por intermédio de objetos (mesmo sem natureza sexual).

Os crimes de coação sexual e de violação consumam-se através da prática de um ato de coação imediatamente dirigido à prática, ativa ou passiva, de um ato sexual de relevo. A coação, no dizer de Figueiredo Dias (ob. e loc. cit.), é aqui especializada em função da sua finalidade, tendo de existir entre o ato de coação e o ato sexual uma relação de meio-fim. A coação sexual típica é, assim, aquela que pressupõe a prática de um ato sexual, reclamando o dolo do agente, ou seja, a intenção coatora para a prática de um ato sexual de relevo.

Os crimes de coação sexual e de violação tipificados no n.º 1 dos artigos 163º e 164º do Código Penal, por outro lado, encontram-se configurados como crimes de execução vinculada, pressupondo um meio típico de coação. Não basta que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar um ato sexual de relevo, isto é, que o ato sexual tenha ocorrido sem ou contra a vontade da vítima. A coação ou constrangimento tem que ocorrer através de um meio típico de coação: ou da violência, ou da ameaça grave ou de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou a ter posto na impossibilidade de resistir.

Os atos sexuais súbitos e inesperados praticados, sem ou contra a vontade da vítima, mas aos quais não preexistiu a utilização de um daqueles meios de coação não integram o tipo objetivo de ilícito previsto no n.º 1 dos artigos 163º e 164º do Código Penal. Não estando em causa estes meios típicos de ação, mas antes “outros meios” (não compreendidos no número anterior), a conduta do agente do crime poderá cair na alçada do n.º 2 dos crimes de coação sexual ou de violação previstos nos artigos 163º e 164º do Código Penal.

Meio típico de coação sexual (em qualquer das modalidades) é a “violência”, considerando-se como tal, para efeitos dos crimes sexuais, apenas a força física (como a vis absoluta ou a vis compulsiva) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada, pressupondo esta sempre uma qualquer corporalidade, isto é, não se torna necessário que a força usada seja qualificada como pesada ou grave, mas impõe-se que a mesma seja idónea, segundo as circunstâncias do caso (de acordo com a doutrina da adequação, mas tendo em consideração as circunstâncias concretas relativas, nomeadamente, ao estado de saúde ou à idade da vítima), a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima – cfr. Figueiredo Dias (idem)4.

Outro meio típico é a “ameaça”, traduzida na manifestação do propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa ameaçada não consentir no ato sexual. A ameaça, ainda assim, para ter relevância típica, tem que ser “grave”, não bastando que seja com “um mal importante” (cfr. artigo 154º). Exige-se, mais que o conteúdo da ameaça, a medida ou intensidade da ameaça, a sua gravidade.

O outro meio típico de constrangimento à prática do ato sexual de relevo pressupõe a “colocação de vítima num estado de inconsciência” ou “num estado de impossibilidade de resistir”. Decisivo, como já referimos, é que o meio típico tenha em vista a prática do ato sexual de relevo – se não tiver faltará o dolo do agente.

Em função dos elementos típicos dos crimes de coação sexual e de violação, sendo este um crime de coação sexual especializado, relativamente às condutas de coação sexual que devam considerar-se integrantes do processo que conduziu à violação devem as mesmas ter-se por consumidas neste, sendo o agente punido unicamente pela lex especialis (cfr. autor, ob. cit.).

O crime de coação sexual e/ou de violação serão agravados, nos termos do artigo 177º/6 e 7 do Código Penal, «se a vítima for menor de 16 anos» ou «menor de 14 anos». Com a introdução desta agravação, como anotam Figueiredo Dias (ob. cit., pgs. 551 a 553) e Maria João Antunes (in ob. cit., pg. 591), afastou-se a possibilidade de condenar o agente em concurso efetivo pelo crime de coação sexual e de abuso sexual de crianças (artigos 163º e 171º), bem como de violação e de abuso sexual de crianças (artigos 164º e 171º), devendo o agente, nestes casos, ser punido no quadro do crime agravado, por ter uma moldura penal mais abrangente, consumindo o crime punido com pena menos gravosa5.

O artigo 170º do Código Penal consagra, ainda, o tipo legal de crime de importunação sexual, cometendo tal crime: «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual» (sendo punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal).

«Importuna» (sexualmente) outra pessoa quem pratica um ato de natureza sexual (que não tenha a gravidade de ato sexual de relevo) contra a vontade da vítima e na presença da mesma ou sobre esta (que seja constrangida a presenciar ou suportar) – cfr. AcRE de 15-05-2012 (rel. Des. Carlos Berguete Coelho).

A importunação «tem que consistir numa perturbação negativa da vítima na esfera da sua sexualidade, aqui em função do que lhe é proposto» – cfr. Pedro Caeiro e José Miguel Figueiredo (in Ainda dizem que as leis não andam: reflexões sobre o crime de importunação sexual em Portugal e em Macau).

O crime consuma-se com a importunação (sexual) de outra pessoa. Estamos perante um crime de execução vinculada: a importunação criminalmente punível pressupõe: a) a prática de atos de carácter exibicionista6 perante essa pessoa; b) a formulação de propostas de teor sexual; ou c) o constrangimento dessa pessoa a contacto de natureza sexual.

O «ato exibicionista» não pode traduzir-se em meras palavras proferidas perante outra pessoa, ainda que estas a atemorizem, levando-a a recear que se lhe siga a prática de qualquer ato sexual contra a sua vontade. Tal comportamento poderá integrar eventualmente a prática de outro crime, nomeadamente o crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal7. O ato exibicionista pressupõe uma ação ou um gesto de natureza sexual, praticados na presença da vítima, contra a sua vontade e que a importune, constrangendo-a a observar/presenciar o ato que não quer observar/presenciar8.

A formulação de propostas de teor sexual pressupõe a manifestação oral, escrita gestual ou gráfica de propostas de cariz sexual, que causem “importunação” na vítima, colocando em causa a sua liberdade sexual negativa, de não ter esse tipo de conversas com o arguido, criminalizando, no fundo, certas formas larvares de assédio sexual não contempladas em outras disposições – cfr. Pedro Caeiro e José Miguel Figueiredo (ibidem).

O «constrangimento», por seu turno, tal como se decidiu no AcRE de 15-05-2012 (rel. Des. Carlos Berguete Coelho – in www.dgsi.pt), diz respeito ao meio utilizado pelo agente. Traduz a ação de compelir, de fazer suportar, de obrigar, que seja adequada a importunar, incomodar, a vítima, vencendo a possibilidade de reação desta ao contacto de natureza sexual, sem que, contudo, se confunda com a surpresa da conduta ou a sua falta de consentimento.

Estamos perante um crime material e de dano. Na verdade, como anotam Pedro Caeiro e José Miguel Figueiredo (ob. cit.), a lei exige que a conduta do agente efetivamente importune a vítima (“quem importunar outra pessoa…”), que cause uma perturbação do estado psíquico da vítima por ela sentida como negativa e indesejada. Isto significa que a importunação não é uma re-descrição complexiva das ações típicas, ou seja, um elemento “vazio” (e, nessa medida, redundante), pressuposta e necessariamente preenchido pela prática de qualquer uma das três condutas descritas, nem sequer um resultado apenas potencial (como decorreria de outra redação: “quem praticar atos exibicionistas, formular propostas, etc., de forma a importunar outra pessoa”), mas sim um verdadeiro resultado típico.

A importunação deve esgotar-se em si mesmo. Se ao ato exibicionista, à proposta ou ao constrangimento se segue um ato sexual de relevo, então poderemos estar perante outro crime sexual (mais grave) que consumirá o crime de importunação sexual9.

Entre os crimes contra a autodeterminação sexual, consta, como já referimos, o crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171º/1 do Código Penal, cometendo tal crime «quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa». Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, «se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».

Nos crimes contra a autodeterminação sexual, mais que a liberdade pessoal (que constitui o bem jurídico protegido nos crimes contra a liberdade pessoal), o legislador protege a autodeterminação sexual da vítima em função da sua idade, “não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coativa ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade” – cfr. Figueiredo Dias (ob. cit., pgs. 441 e ss. e 541 e ss.).

O bem jurídico protegido é, assim, a liberdade de autodeterminação sexual dos menores (de 14 anos), ou seja, o “livre desenvolvimento da personalidade do menor (de 14 anos) na esfera sexual”. O nosso legislador presume iuris et de iuris “que a prática de atos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor” (idem).

Estamos perante um crime de perigo abstrato, “na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objetivo de ilícito fique afastada” (idem).

Nos seus elementos típicos estamos perante um crime comum, que pode ter por agente qualquer pessoa, mas que tem que ser executado através da prática de um «ato sexual de relevo». Já quanto à vítima do crime, o tipo legal reclama a intervenção de um menor (criança ou jovem) de 14 anos, independentemente do sexo.

Por outro lado, enquanto o n.º 1 do artigo 171º do Código Penal tipifica o crime em função «do ato sexual de relevo» (praticado com ou em menor de 14 anos), o n.º 2 agrava a incriminação em função de determinados atos sexuais (de relevo) considerados mais graves - «cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos» - valendo a este respeito as mesmas considerações que acima fizemos relativamente a idênticos conceitos nos crimes de coação sexual e de violação10.

Os crimes supra referidos têm como elemento subjetivo comum o dolo do agente, dolo que, relativamente ao crime de abuso sexual de criança, deve abarcar o conhecimento da idade da vítima, preenchendo-se tal elemento com o conhecimento/representação do caráter proibido da conduta e com a vontade/querer, ainda assim, de praticar os factos integradores dos elementos típicos (ainda que em dolo eventual), estando ciente de que tais factos são proibidos e punidos criminalmente.

Fizemos esta exposição relativa à tipificação dos crimes sexuais uma vez que está em causa nos autos a prática pelo arguido de diversos crimes de natureza sexual (tendo como vítima não só a menor BB, mas também a vítima CC), tendo em vista o respetivo enquadramento legal.

Assim, no que concerne à vítima BB, importando referir que está em causa uma menor de idade, mas com mais de 14 anos de idade no momento da prática dos factos, podendo os factos subsumir-se aos tipos legais de crime contra a autodeterminação sexual, analisando a factualidade provada verifica-se que não se mostram preenchidos os elementos dos tipos legais de crime (imputados) de coação sexual e de importunação sexual.

Relativamente ao primeiro, analisando a factualidade provada verifica-se que, no episódio em causa (ocorrido no verão de 2021), numa altura em que a vítima já teria 17 anos de idade, não se provou que o arguido tivesse constrangido a vítima a praticar qualquer ato sexual de relevo.

Relativamente ao segundo, analisando a factualidade provada verifica-se que, no episódio em causa (alegadamente ocorridos até ao verão de 2020), numa altura em que a vítima teria 16 anos de idade, também não se provou a prática de qualquer facto pelo arguido que constitua importunação sexual, em qualquer das modalidades de ação vinculada acima descritas.

Assim, nesta parte, não se mostrando preenchidos os elementos típicos dos tipos legais de crime imputados, deve o arguido ser absolvido da acusação contra ele deduzida.


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1.2. Dos crimes de que foi vítima CC.

O arguido vem, ainda, acusado da prática de 1 crime de violação agravada (previsto e punido pelo artigo 164º/1-a) e 177º/5, ex vi do artigo 144º/al. c), 69º-B e 69º-C, todos do Código Penal), de 1 crime de devassa da vida privada (previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal), de 1 crime de gravação e fotografias ilícitas (previsto e punido pelo artigo 199º do Código Penal) e de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada (previsto e punido pelo artigo 145º/1-c) e 2, ex vi do art.º 132º/2-d) e e), todos do Código Penal), tendo por vítima CC.

Feito o enquadramento dos crimes sexuais no ponto antecedente, importa agora, antes de mais, apurar se o arguido praticou um crime de violação agravado, na pessoa da vítima CC, tipo legal de crime este que, como vimos, encontrando-se tipificado no artigo 164º do Código Penal, constituindo uma forma especial do cometimento do crime de coação sexual, pressupõe que o arguido tenha constrangido a vítima a praticar (consigo ou com outrem) cópula, coito anal ou coito oral ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos.

Na eventualidade de se provar o constrangimento da vítima (pelo arguido) à prática de tais atos sexuais especialmente relevantes (cópula, coito anal ou coito oral ou atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos), se tal constrangimento tiver sido exercido por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, ter colocado a vítima em estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir, estaremos perante um crime de violação agravado, punido com pena de prisão de três a dez anos.

Registe-se que, resultando o constrangimento tipificado no crime de violação previsto no n.º 2 da utilização de violência, ameaça grave ou depois da colocação da vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir, o «constrangimento» previsto no n.º 1 tipo legal de crime de violação (na sua forma mais simples), nos termos do artigo 164º/3 do Código Penal, é o constrangimento resultante da utilização de qualquer meio (que não seja a violência, ameaça grave ou colação prévia da vítima em estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir) empregue para a prática dos atos sexuais especialmente relevantes (cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos) contra a vontade cognoscível da vítima.

O crime de violação, na sua forma mais simples ou na agravada, é, ainda, agravado, nos termos do artigo 177º/5 do Código Penal (as penas previstas no artigo 164º/1 e 2 são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo), «se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima» - não tendo resultado dos factos praticados pelo arguido gravidez da vítima, transmissão de agente patogénico, perigo para a vida da vítima, suicídio ou morte da vítima, resta ponderar se desses factos resultou ofensa à integridade física grave (diz a acusação que o arguido provocou à CC doença particularmente dolorosa).

Trata-se de agravação que deve ser ponderada, ainda, na conjugação com o preceituado no artigo 145º/1-c) e 2, ex vi do artigo 132º/2-d) e e), todos do Código Penal), que tipifica o crime de ofensa à integridade física qualificada, porquanto o Ministério Público, na acusação deduzida, acusa o arguido da prática dos dois crimes.

A este respeito, dispõe o artigo 144º do Código Penal que comete o crime de ofensa à integridade física grave «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) Tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) Provocar-lhe perigo para a vida» (sendo o agente punido com pena de prisão de dois a dez anos).

Prevendo o artigo 143º/1 do Código Penal o tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples (que se basta, no seu elemento objetivo, com a ofensa ao corpo ou a saúde de outra pessoa), dispõe o artigo 145º do Código Penal, que tipifica o crime de ofensa à integridade física qualificada, que: «1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144.º-A; c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144.º e do n.º 1 do artigo 144.º-A» - sendo suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, nos termos do n.º 2, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º e aí, em face da imputação feita pelo Ministério Público, o facto de (d) o agente empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima ou de (o) agente ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.

Não podemos descurar, no entanto, que o tipo legal de crime de violação na sua modalidade agravada (tipificada no n.º 2 do artigo 164) pressupõe que o constrangimento da vítima tenha resultado da utilização (também) de violência pelo agente e, por outro lado, que, analisando a factualidade imputada na acusação, o Ministério Público nem sequer alega factos na acusação que permitam a sua subsunção aos elementos normativos tipificados nos artigo 144º e 145º do Código Penal (imputados pelo Ministério Público na incriminação).

Assim, não é alegado qualquer facto na acusação que permita concluir, em tese, que o arguido tenha privado a vítima de importante órgão ou membro; que a tenha desfigurado grave e permanentemente; que tenha tirado ou afetado, de maneira grave, a capacidade de trabalho da vítima, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; que tenha provocado à vítima anomalia psíquica grave ou incurável; que lhe tenha provocado perigo para a vida.

Por outro lado, alegando o Ministério Público na acusação deduzida que o arguido provocou à vítima doença particularmente dolorosa, não alega qualquer facto que permita concluir que doença, que doença dolorosa e que seja particularmente dolorosa – limitando-se a utilizar os conceitos utilizados pelo legislador, sem qualquer concretização factual.

Finalmente, tendo a imputação do crime de ofensa à integridade física qualificada (artigo 145º/1-c)) a remissão para as circunstâncias agravantes tipificadas no artigo 144º, como vimos, a acusação não contem qualquer facto que permita a subsunção da conduta do arguido ao artigo 144º do Código Penal, pelo que nunca poderia ser a sua conduta ser subsumida, por remissão, à tipificação do artigo 145º/1-c) do Código Penal – ficando prejudicada qualquer remissão para as diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, cujas circunstâncias também não foram refletidas factualmente na acusação deduzida [(d) o agente empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima ou de (o) agente ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil].

Em todo o caso, deixando-nos da análise factual imputada na acusação e centrando-nos na factualidade provada, a conclusão que se impõe é a de que se provou que o arguido constrangeu a vítima, por meio de violência (agressões no pescoço e na vagina, estas causadoras de lacerações vaginais) e ameaça grave (que a matava se não consentisse na prática dos atos sexuais e a violava de seguida), a praticar consigo atos sexuais de cópula, coito anal e coito oral, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que atuando como atuou, sem consentimento e contra a vontade da vítima, constrangendo-a à pratica de atos sexuais especialmente relevantes penalmente, praticava factos proibidos e punidos penalmente – tendo, assim, cometido um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º/2-a) do Código Penal11.

No entanto, por não se ter provado que o arguido tivesse praticado factos suscetíveis do preenchimento das circunstâncias qualificativas agravantes previstas no artigo 177º/5, em particular que do comportamento do arguido tivesse resultado «ofensa à integridade física grave», impõe-se a absolvição do arguido da referida circunstância agravante. E, consequentemente, não provado que o arguido tivesse causado à vítima ofensa à integridade física grave, não pode o arguido ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, por remissão para o crime de ofensa à integridade física grave, impondo-se a absolvição do cometimento deste tipo legal de crime.

Uma nota final para consignar que numa possível situação de concurso de crimes, como nos dá conta o Comentário Conimbricence do Código Penal (Tomo I,1999, pgs. 589 e ss.), só haveria concurso real de infrações caso fosse possível imputar o resultado (ofensa à integridade física grave) ao arguido a título de dolo (e, não tendo sido imputados, não se provaram factos que sustentem essa conclusão). Caso contrário a conduta do arguido ficaria subsumida unicamente ao crime de violação, ainda que com a possível agravação em função do resultado ocorrido (ofensa à integridade física grave), caso fosse possível imputar tal resultado ao arguido a título de negligência, nos termos previstos no artigo 18º do Código Penal (e, não tendo sido imputados, também não se provaram factos que sustentem essa conclusão) - donde se conclui que, quer em face dos factos imputados, quer em face dos factos provados, sempre se afastaria o concurso real entre o crime de violação e o crime de ofensa à integridade física grave, subsistindo unicamente o crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º/2-a) do Código Penal.


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Resta apurar se o arguido praticou 1 crime de devassa da vida privada (previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal) e de 1 crime de gravação e fotografias ilícitas (previsto e punido pelo artigo 199º do Código Penal).

Comete o crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal: «1 - Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual: a) Intercetar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio eletrónico ou faturação detalhada; b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos; c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa» - sendo o agente punido, no caso das alíneas a) e c), com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias e, no caso das alíneas b) e d), com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

O artigo 193º do Código Penal tipifica, no entanto, o crime de «devassa através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada», dispondo que: «Quem, sem consentimento, disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de imagens, fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, é punido com pena de prisão até 5 anos».

Nos termos previstos no artigo 197º do Código Penal:

«1 - As penas previstas nos artigos 190.º, 191.º, 192.º, 194.º e 195.º são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o facto for praticado para obter recompensa ou enriquecimento, para o agente ou para outra pessoa, ou para causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado.

2 - As penas previstas nos artigos 190.º, 191.º, 194.º e 195.º são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o facto for praticado através de meio de comunicação social, ou da difusão através da Internet, ou de outros meios de difusão pública generalizada».

O artigo 199º do Código Penal tipifica o crime de «gravações e fotografias ilícitas», cometendo tal crime: «1 - Quem sem consentimento: a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º».

Deste modo, constituem elementos típicos do crime de devassa da vida privada: a) a ausência de consentimento da vítima; b) a conduta objetiva do agente: i. Intercetar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio eletrónico ou faturação detalhada; ii. Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos; iii. Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou iv. Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa; c) o dolo específico do agente, corporizado na intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual; d) o dolo genérico do agente, em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual).

Constituem elementos típicos do crime de gravações e fotografias ilícitas: a) a ausência de consentimento da vítima; b) a conduta objetiva do agente: i. Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou ii. Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior (palavras), mesmo que licitamente produzidas; iii. Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou iv. Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.

Protegendo ambos os tipos legais de crime a reserva da vida privada em sentido amplo, o crime de devassa da vida privada, previsto no artigo 192º do Código Penal, tutela especificamente o bem jurídico privacidade em sentido material, enquanto o crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto no artigo 199º do mesmo código, tutela os bens jurídicos direito à palavra e direito à imagem.

Em função do bem jurídico protegido, a relação existente entre estes tipos legais de crime, em regra, é de subsidiariedade, existindo uma relação de concurso aparente entre ambos os tipos legais de crime, devendo a conduta do agente ser subsumida ao crime de devassa da vida privada quando as gravações e filmagens contra a vontade da vítima já são feitas com a especial intenção de devassar a vida privada da vítima, crime este cuja tutela acaba por proteger também, no contexto da atuação do agente e perante o sentido de ilicitude global, o direito à palavra e à imagem da vítima – cfr. Costa Andrade (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 1066) e Paulo Pinto de Albuquerque (cfr. Comentário do Código Penal, 3ª edição atualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 757).

Neste sentido decidiu o AcRC de 13-12-2017 (rel. Des. Vasques Osório): «(…) VIII - Na sentença em crise entendeu-se existir um concurso aparente entre o crime de gravações e fotografias ilícitas e o crime de devassa da vida privada agravado, e um concurso efectivo entre o crime de extorsão na forma tentada e o crime de devassa da vida privada agravado. IX - Se em regra, deve ser considerada a existência de um concurso de normas, quando a filmagem ilícita é feita para permitir a devassa da intimidade, os crimes estão numa relação de concurso aparente. X - Quando, como acontece nos autos, a filmagem ilícita é efectuada, não para devassar a intimidade da ofendida, mas para lhe extorquir dinheiro, e só porque esta não fez o pagamento pretendido, frustrando a extorsão, é que o filme é, posteriormente, publicitado numa rede social, devassando a sua intimidade, deve entender-se, a existência de um concurso real entre o crime de gravações e fotografias ilícitas e o crime de devassa da vida privada. XI - Porque o enriquecimento [ilegítimo] integra o tipo do crime de extorsão, usar o mesmo enriquecimento para preencher a agravação do crime de devassa da vida privada significaria uma dupla valoração da mesma circunstância».

No mesmo sentido decidiu o AcRL de 31-01-2007 (rel. Des. Rui Gonçalves): «(…) XIII – São elementos objectivos do crime de devassa da vida privada a falta de consentimento e a exposição da intimidade familiar ou sexual de outrem, preenchendo tais elementos a conduta do arguido que, não tendo conseguido obter a entrega da quantia que pedira à assistente, espalhou inúmeras fotografias desta pela rua, junto à residência da mesma, de forma a que qualquer pessoa que passasse as pudesse ver e apanhar, sendo que tais fotografias registavam o momento em que a assistente tinha praticado sexo oral ao arguido e nas quais era perfeitamente identificável o seu rosto. XIV – O crime de devassa da vida privada não consome o de gravação ilícita de imagens, na medida em que este foi praticado num momento muito anterior, com vista à extorsão, sendo que a divulgação surgiu apenas na sequência do malogro da extorsão, ou seja, o registo das imagens não foi efectuado visando a devassa».

No caso em apreço, provou-se que o arguido, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido criminalmente, filmou e gravou a relação sexual que manteve com a vítima, sem autorização e contra a vontade da vítima, e que o fez com a intenção de devassar a sua vida privada, nomeadamente através da partilha de ficheiros pela internet, na rede social whatsapp, tendo, assim, cometido um crime de devassa da vida privada, que consome o crime de gravação e fotografias ilícitas.

No entanto, não podemos descurar que o arguido, para além de ter filmado o ato sexual que manteve com a vítima, sem autorização e contra a vontade desta, com intenção de devassar a sua vida privada (a reserva da sua intimidade sexual – mais ainda no contexto de uma relação sexual não consentida), o fez com a especial intenção de devassar a vida privada da vítima através da internet, ou seja, de divulgar/partilhar os ficheiros gravados pelo seu circulo de amigos, com efetivamente veio fazer, o que nos reconduz para a previsão do tipo legal de crime de «devassa através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada» previsto no artigo 193º do Código Penal.

Constituem elementos típicos deste tipo legal de crime: a) a ausência de consentimento da vítima; b) a conduta objetiva do agente: disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de imagens, fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual; c) o dolo do agente, em qualquer das suas modalidades.

Constata-se, assim, que a conduta do agente preenche o tipo legal de crime de devassa através da internet. Estamos sempre perante crimes de dano, protegendo o tipo legal de crime de devassa da vida privada a reserva da vida privada das pessoas (designadamente a vida familiar ou sexual) independentemente da divulgação da palavra ou imagem, ao passo que o tipo legal de crime de devassa através da comunicação social ou internet já protege a especial danosidade, em consequência do maior desvalor de ação e do maior desvalor de resultado da conduta do agente, traduzido no facto de o agente ter divulgado através da internet os ficheiros que devassavam a vida privada da vítima e que, no caso, tinha acabado de gravar contra a vontade da vítima.

Neste sentido, somos levados a concluir que existe um concurso aparente de infrações entre o tipo legal de crime de devassa da vida privada previsto no artigo 192º do Código Penal e o crime de devassa através da comunicação social ou internet previsto no artigo 193º do mesmo código, por este tipo legal de crime proteger de forma mais especial o mesmo bem jurídico (punindo a conduta do agente com pena mais gravosa), no quadro de uma relação de subsidiariedade entre ambos, mormente nos casos, como o em apreço, em que o sentido de ilicitude global da conduta do agente acaba por ser consumido por este último tipo legal de crime.

Na verdade, como resulta dos factos provados (assentes no teor das próprias gravações e divulgações), o arguido filmou e gravou o ato sexual com a vítima, contra a vontade desta, para o partilhar pelos seus amigos através da rede social whatsapp, o que fez imediatamente após a ocorrência do ato sexual.

Assim, deve o arguido ser condenado pelo crime de devassa através da comunicação social ou internet previsto no artigo 193º do Código Penal, que consome, dada a relação de especialidade ou subsidiariedade, os demais tipos legais de crime imputados.


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2. Determinação da(s) pena(s) principais.

O crime de violação, previsto no artigo 164º/2-a) do Código Penal, é punível, em abstrato, com pena de prisão de 3 a 10 anos.

O crime de devassa através da comunicação social ou internet, previsto no artigo 193º do Código Penal, é punível, em abstrato, com pena de prisão até 5 anos.

É em função desta moldura penal abstrata que se determinará a pena concreta aplicável ao arguido.

A aplicação de uma pena, nos termos do artigo 40º/1 e 2 do Código Penal, visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Também o artigo 71º do mesmo Código nos confirma esta ratio ao preceituar que a determinação da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

O Código Penal consagrou a moldura da prevenção, impondo que a medida da pena seja dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Assim, a moldura da pena há de ser idêntica à moldura da prevenção, onde o limite máximo coincide com o limite máximo de pena adequada à culpa e o limite mínimo coincide com o limite imposto pela prevenção geral de integração, sob as exigências de defesa do ordenamento jurídico. É dentro destes limites que atuará a prevenção geral de integração e especial de socialização ou de reintegração do agente (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Noticias, pgs. 227 e ss.).

Na determinação concreta da pena, nos termos do artigo 71º/2 do Código Penal, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depõem a favor ou contra o agente, devendo considerar, nomeadamente: «a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

Deste modo, definida a moldura penal abstrata e atendendo a tais circunstâncias (que não façam parte do tipo legal de crime), nomeadamente:

• o grau de ilicitude dos factos, que é muito elevado, quer no que concerne ao crime de violação, atentas as lesões causadas à vítima, quer no que concerne ao crime de devassa através da internet, atento o teor das gravações divulgadas, de teor sexual, e o número de pessoas que receberam os ficheiros, potenciando a sua divulgação por terceiros;

• O modo de execução dos crimes, que evidenciam um modo de execução elaborado, premeditado, quer no que concerne aos momentos que antecederam o crime de violação, que demoveram a vítima das sua intenções e levaram-na a flanquear a porta da sua residência, ficando à mercê dos instintos libidinosos do arguido, quer ao teor das gravações, que evidenciam uma personalidade mal formada, com total desrespeito para com a dignidade da vítima e para seu gaudio;

• A gravidade das suas consequências dos crimes, que são elevadas, quer no que concerne às lesões causadas à vítima, que teve necessidade de internamento hospitalar e foi sujeita a cirurgia de urgência, com anestesia geral, quer no que concerne ao modo como o arguido divulgou as gravações, que potenciaram a danosidade;

• A intensidade do dolo – dolo direto, intenso e persistente;

• A personalidade desvaliosa e mal formada evidenciada pelo arguido no cometimento dos crimes, tendo em vista ainda os motivos e os fins que o levaram a realizar as gravações – partilha com o grupo de amigos;

• A ausência de antecedentes criminais;

• A sua integração familiar, social e profissional;

Tudo isto ponderado, sendo elevada a culpa do arguido, ponderando também as fortes necessidades de prevenção geral que este tipo de condutas reclama na comunidade (pelo elevado número de crimes sexuais que se tem verificado, geradores de grande alarme e perturbação na comunidade envolvente), a que não podem ser alheias as necessidades de prevenção especial (pela personalidade evidenciada pelos arguidos no cometimento dos respetivos crimes e pela incapacidade em assumir os factos praticados, no que concerne ao crime de violação), ponderando ainda o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e de se encontrar integrados familiar, social e profissionalmente, o tribunal julga necessária, mas também adequada, para a reintegração das normas jurídicas violadas e para a própria reinserção social do delinquente na comunidade, a aplicação de penas de prisão que se situem próximas da média entre os limite máximo e mínimo das molduras penais dos tipos legais de crime em apreço, condenando, assim, o arguido:

• Pela prática do crime de violação: na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;

• Pela prática do crime de devassa privada: na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.

Efetuando o cúmulo jurídico entre tais penas, nos termos previstos no artigo 77º do Código Penal, ponderando a imagem global dos factos e a personalidade mal formada evidenciada pelo arguido no cometimento dos factos, o tribunal condena o arguido na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.

(…)

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4. Do arbitramento de indemnização civil.

Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil pela vítima do crime de violação, no seguimento do requerido pelo Ministério Público no final do despacho de acusação [“Atenta a factualidade supra exposta cometida pelo arguido e as respetivas consequências, por demais nefastas, nas pessoas das vítimas, requer-se, nos termos do art.º 21º n. os 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, sem prejuízo de eventuais pedidos de indemnização civil, sejam atribuídas indemnizações às vítimas CC e BB”] e não tendo havido oposição expressa das vítimas ao arbitramento de qualquer indemnização, importa analisar se deve ser arbitrada à vítima CC uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, já que relativamente à vítima BB tal questão se mostra prejudicada em face da absolvição do arguido – cfr. artigo 16º/2 do Estatuto da Vítima (aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4/9) e artigo 82º-A do Código de Processo Penal.

A este respeito, dispõe o artigo 82º-A/1 do Código de Processo Penal que «não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham».

Considera-se «vítima», nos termos e para os efeitos previstos no artigo 67º-A/1-a) do Código de Processo Penal, «a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime».

O artigo 67º-A/1-b) do Código de Processo Penal considera “vítima especialmente vulnerável” «a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social», considerando o n.º 3 do mesmo artigo como “vitimas especialmente vulneráveis” «as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta».

O artigo 1º/1-j) do Código de Processo Penal considera “criminalidade violenta” «as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos». E a al. l) do mesmo artigo considera “criminalidade especialmente violenta” «as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos» - aqui se enquadrando o crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º/2-a) do Código Penal, pelo qual o arguido vai condenado.

Vale tudo isto para dizer que, tendo o arguido praticado um crime contra a liberdade sexual, punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos (10 anos), o arguido praticou um crime integrado no conceito de “criminalidade violenta” e mesmo de “criminalidade especialmente violenta”, conferindo à vítima em causa nos autos o estatuto de “vítima especialmente vulnerável”.

Beneficiando do “estatuto de vítima”, nos termos do artigo 67º-A/3 do Código de Processo Penal, beneficia dos direitos previstos no “Estatuto da Vítima” – diploma este que foi aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4/9.

De acordo com o preceituado no artigo 16º/1 do Estatuto da Vítima, «à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável». Nos termos do n.º 2, «há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

De tudo o exposto resulta que, por estar em causa uma vítima especialmente vulnerável, não se tendo oposto a vítima, de forma expressa, à sua fixação, cumprido o contraditório com o arguido relativamente a tal possibilidade, o tribunal deve arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos com as condutas praticadas pelo arguido.

Ponderando os factos praticados pelo arguido, estando em causa factos ilícitos (inclusive na vertente criminal), culposos (porque o arguido atuou dolosamente, estando ciente da ilicitude das suas condutas) e danosos (causadores de danos à liberdade sexual da vitima, determinantes, além do mais, danos de natureza não patrimonial), ponderando a gravidade dos danos causados (que determinaram internamento hospitalar, cirurgia, anestesia geral, períodos de doença e de incapacidade), ponderando a situação económico-financeira do arguidos, o tribunal arbitra para reparação dos danos sofridos pela vítima uma compensação no valor de 15.000,00€ (quinze mil euros).


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5. Dos objetos.

Permanecem apreendidos à ordem dos presentes autos diversos objetos apreendidos ao arguido e às vítimas (peças de vestuário e calçado e 1 telemóvel).

Dispõe o artigo 109º do Código Penal, relativo à «perda de instrumentos»: «1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática. 2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio».

O artigo 110º, relativo à «perda de produtos e vantagens», dispõe: «1 - São declarados perdidos a favor do Estado: a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem. 2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem. 3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado. 4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. 6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido».

E o artigo 111º, relativo aos «instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro», dispõe: «1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. 2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida. 3 - Se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A. 4 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens consistirem em inscrições, representações ou registos lavrados em papel, noutro suporte ou meio de expressão audiovisual, pertencentes a terceiro de boa-fé, não tem lugar a perda, procedendo-se à restituição depois de apagadas as inscrições, representações ou registos que integrarem o facto ilícito típico. Não sendo isso possível, o tribunal ordena a destruição, havendo lugar à indemnização nos termos da lei civil».

Dito isto, se relativamente às peças de vestuário e calçado não se encontra reunidos os pressupostos do seu perdimento (devendo ser restituídos ao seu proprietário), relativamente ao telemóvel apreendido ao arguido, porque foi com o mesmo que o arguido filmou, gravou e partilhou o ato sexual, contendo no seu interior vestígios do cometimento dos crimes, nos termos do artigo 110º do Código Penal, deve o mesmo ser declarado perdido a favor do Estado».


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3. Apreciando e decidindo


Insurgindo-se contra o Acórdão condenatório, o arguido recorrente (1.) sindica a matéria de facto, bem como o seu (2.) enquadramento jurídico, alega (3.) o excesso das penas principais fixadas, pretendendo que sejam reduzidas e que a pena única de prisão seja suspensa na sua execução, defende (4.) a diminuição do montante indemnizatório arbitrado e que seja revogada (5.) a perda a favor do Estado do telemóvel apreendido.

Apreciemos as questões a resolver.

1. Sindicância da matéria de facto

1.1 No caso, a sindicância do recorrente excede o texto da decisão recorrida, apelando ao conteúdo da prova pessoal, documental e pericial produzida, mas que não teria sido devidamente ponderado, remetendo, portanto, para o regime previsto no art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a que se convencionou chamar de impugnação ampla da matéria de facto.

Ora, a intromissão da Relação no domínio factual, nos termos do art.º 412.º, cinge-se a uma intervenção cirúrgica, ( pontual, porque visa apenas o exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe sido referidos em recurso), não sendo um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse.

Efetivamente, não sofre qualquer dúvida jurisprudencial ou doutrinal, que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos, destinados a colmatar erros de julgamento na forma como o Tribunal recorrido apreciou a prova indicada pelo recorrente, por referência aos concretos pontos de facto por este identificados.

Por isso mesmo, impõe-se o cumprimento do ónus, estabelecido no artigo 412º, n.º 3 do CPP, de proceder a uma tripla especificação.

A especificação dos «concretos pontos de facto», a que se refere a alínea a) do referido n.º 3, traduz-se na indicação necessária dos factos individualizados, que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas», nos termos da al. b) do mesmo n.º 3, satisfaz-se com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provaimpõem decisão diversa da recorrida.
Para o efeito, o recorrente deve explicar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida, relacionando o específico meio de prova com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
A especificação das provas que devem ser renovadas, nos termos da al. c) do mesmo n.º 3, implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em primeira instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no art.º 410º n.º 2 do CPP que inquinam a decisão recorrida, e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo, em conformidade com o disposto no art.º 430º do mesmo Código)[1].
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens[2] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras que forem consideradas relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412º do CPP)[3].
As exigências previstas no preceito que se analisa – art.º 412º n.º 3 e 4 do CPP – configuram um dever de primordial importância conexionado com a própria inteligibilidade e concludência do recurso sobre a matéria de facto, e não apenas um ónus meramente formal, de relevo meramente secundário.
É que «o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afeta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law»[4].
Por seu lado, as conclusões servem, entre outras finalidades, para a delimitação do objeto do recurso, operando a vinculação temática do tribunal superior, e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se lhe impõe.
Ora, nos termos da primeira parte do n.º 3, do art.º 417º, do CPP: «Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada».
Acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que «O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação».
E como assim é, o incumprimento do triplo ónus da especificação seja na motivação, seja nas conclusões implica a rejeição do recurso em matéria de facto sem convite ao aperfeiçoamento (art.º 417.º n.º 4 do CPP).
Por outro lado, sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (de impugnação ampla), o Tribunal da Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal a quo[5].

Acontece, ainda que, sob pena de inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que acusam ou dos que esperam a decisão, a crítica à convicção do Tribunal a quo, assente na imediação e oralidade e sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência (art.º 127.º do CPP) não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

«Acreditar ou não num depoente ou acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica.

E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova»[6].

Sem olvidar, ainda, que a convicção do tribunal é formada não só através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, não menos importante, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, ansiedade, serenidade, olhares, postura corporal, tom de voz, coerência de raciocínio e de atitude, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.

O juízo de credibilidade (das provas oralmente produzidas) depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta e não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, nem o sendo do mesmo modo, pela audição de prova oral que se encontre gravada, mas sim através do contacto com as pessoas, é notório e evidente que o tribunal superior, salvo algumas exceções, adotará o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo; esta linha orientadora de pensamento encontra eco e está hoje traduzida de forma duradoura na jurisprudência dos tribunais superiores.

Por essa razão se diz que, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Assim, para que obtenha sucesso, não basta, ao recorrente que pretenda fazer uma «revisão» da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção «era possível».

Exige-se-lhe que «imponha» uma outra convicção.

É, assim, imperativo que o recorrente demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido decorre de uma impossibilidade lógica, de uma impossibilidade probatória, de uma manifesta violação de regras de experiência comum, de uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
E por isso se diz que o erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º n.º 3, do CPP, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- O Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que sobre o mesmo nada declarou;
- Ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- Prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência que o permita;
- Prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- Todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso, seja possível concluir, por tal resultar da audição do registo áudio, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
Daí que seja considerar que o erro de julgamento, reconduz-se, afinal, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374.º, n.º 2 do CPP[7].

Dito isto.

Compulsadas as alegações do recorrente constatamos que põe em causa os factos provados sob os pontos 28, 29, 30, 32, 33, 37, 39, 45, 46, 47, 49, 50 em bloco e sem concretizar as provas que impõem decisão diversa da proferida.

Como tais incumprimentos do ónus da impugnação especificada se encontram presentes seja na motivação, seja nas conclusões, rejeita-se, nesta parte, o recurso em matéria de facto, sem haver lugar a convite prévio ao aperfeiçoamento (art.º 417º n.º 4 do CPP).

Relativamente aos factos  provados sob os pontos 26, 27, 31, 35, 36, 40, com um esforço acrescido, é certo, conseguimos entender que se mostra minimamente cumprido o ónus da impugnação especificada, pelo que, nesta parte, importa apreciar da procedência do recurso em matéria de facto.

Assim.

Impugna o recorrente os factos provados sob os pontos 26, 27, e 31, cujo teor é, respetivamente, o seguinte:

- «26. Então, cerca da meia-noite da noite do dia 11 para o dia 12 de março de 2022, o arguido dirigiu-se ao prédio onde reside a CC e, visto que a porta da rua do mesmo se encontrava aberta por avaria, o arguido subiu a escadaria e bateu à porta do apartamento onde residia a CC, onde entrou por volta das 00h09 minutos»;

- «27. Esta, face à insistência do arguido, acabou por abrir a porta, altura em que o arguido entrou, tendo-se dirigido de imediato ao quarto, tendo a CC dito: “Para o meu quarto não vais. Vais para a sala”, ordem que o arguido ignorou»;

- «31. A CC ia sempre dizendo, em voz alta, para o arguido parar, ao que este lhe apertava o pescoço com as mãos e a intimidava com expressões semelhantes àquelas que já tinha proferido, entre as quais: “Se não fizeres o que eu quero mato-te e violo-te depois de morta”».

Em abono da sua pretensão, especifica o recorrente:

- O depoimento de DD, vizinho da vítima, que referiu não ter dado conta do bater insistente do arguido à porta da vítima, nem de alguém a proferir palavras em voz alta;

- As declarações da vítima, apreciadas, estas, de acordo com um juízo de experiência, uma vez que tendo aquela conhecimento prévio, ou suspeitando que o arguido, em tempos, teria violado alguém, por certo não se comportaria como relatou, ou seja, não manteria uma conversa com o recorrente, por mensagens, àquela hora da noite, com o intuito de este receber um simples abraço, não acederia, a tal, única e exclusivamente por causa da insistência do recorrente, nem lhe abriria a porta, pois o qualquer pessoa faria seria pedir auxílio às autoridades competentes.

Manifestamente, não é por o vizinho DD ter referido que não se  apercebeu do bater à porta, ou de alguém a falar alto, que se impõe, face às declarações, de sentido inverso prestadas pela vítima, a alteração da decisão respeitante à matéria de facto.

Por outro lado, o que resulta das declarações da vítima é que acedeu a trocar mensagens, abraçar o arguido (à porta do prédio), e após, insistência deste, a abrir-lhe a porta (do apartamento onde residia sozinha), sem contar com o que veio a ocorrer posteriormente.

Por certo que não cumpria à vítima «previdentemente» antecipar os comportamentos agressivos do arguido, e muito menos, pode ser responsabilizada pelos mesmos.

O que nos diz a vítima é que conversavam «olá», «tudo bem» pelo instagram e «pouco mais do que isso», e que veio a saber que o arguido terá tido «uma situação» com outra rapariga, mas que, ainda assim, face às insistências deste, na noite dos autos, lhe deu um abraço, depois, abriu a porta, e depois, embora com medo, o seguiu para o quarto, onde já o tinha proibido de entrar, para o expulsar de tal divisão.

Diz-nos a vítima que foi ao quarto porque «supostamente, sempre me soube defender sozinha» e «pensei que também me soubesse defender nesse dia, mas não soube».

Confirmou que trocou mensagens com o arguido posteriormente ao evento, esclarecendo que visava distraí-lo, pois não sabia se se encontrava no apartamento.

Temos por certo que as estratégias de sobrevivência da vítima não podem servir para a desqualificar e deslegitimar nem para desvalorizar as declarações por aquela prestadas.

E como assim é, não detetamos a violação de juízos de experiência na apreciação da prova.

Alega, ainda o recorrente que o resultado do Exame n.º 040/2022, a fls. 69, não é compatível com a vítima ter sido ameaçada e forçada conforme dado como provado no ponto de facto 31[8]; nem com a pressão fortemente exercida na zona anterior do pescoço, durante o ato sexual, conforme facto dado como provado com o número 35[9].

A fls. 69 encontramos uma fotografia do pescoço da vítima, «onde a mesma afirma ter sido agarrada pelo  arguido» (cfr. fls. 60).

Lê-se no relatório da perícia de natureza sexual em direito penal de 11.04.2022, designadamente o seguinte quanto:

- À história do evento – (…) «Refere que foi vítima de agressão sexual em sua casa por um conhecido. Refere que tais atos foram feitos sob ameaça e contra a sua vontade. Consistiram em práticas de sexo com penetração vaginal, anal, e sexo oral. Foram usados preservativos. Refere ainda que foi agarrada pelos cabelos e pescoço durante estas práticas»;

- Ao exame objetivo - «Relativamente às Lesões e/ou sequelas relacionáveis (…) com o evento», «O(A) examinando(a) não apresenta lesões ou sequelas»;

- Às conclusões - «Analisando a informação relativa ao suspeito evento e a totalidade dos exames efectuados e acima descritos, pode considerar-se que a compatibilidade entre essa informação e os exames efetuados é demonstrável».

Entendemos, serem, ainda, relevantes para suportar a factualidade, as declarações da vítima, e que não resulta informado pela visualização da gravação efetuada pelo arguido, posto que, manifestamente foram efetuadas em momentos/poucos segundos (e não no seu todo) de atos sexuais que foram praticados.

Tudo considerado, não assiste qualquer razão ao recorrente, improcedendo, nesta parte o recurso.

Impugna o recorrente os factos provados sob os pontos 35, 36, 40, cujos teores são os seguintes:

- «35. Desta feita, o arguido deitou-se decúbito dorsal na cama, tendo obrigado a CC, mediante pressão fortemente exercida na zona posterior do pescoço, e com encaminhamento da boca para junto do pénis, a praticar coito oral»;

- «36. Enquanto a CC, obrigada pelo arguido, e praticava sexo oral, este fumava um cigarro»,

- 40. «Enquanto praticava os referidos atos sexuais na pessoa da CC, o arguido, com o respetivo telemóvel, com intenção a intenção de posteriormente os partilhar junto de amigos seus através da rede social whatsapp, ia procedendo à gravação de vídeos, nos quais era visível a CC a ser, daquela forma, subjugada».

Especifica o recorrente:

- os ficheiros de áudio e vídeo constantes do CD-R de fls. 326 e 327, nos quais se encontra documentado em vídeo o momento em que a vítima praticava coito oral enquanto o recorrente fumava um cigarro, resultando a seu ver da visualização da gravação – identificada com o n.º 20220312_012304 –, a inexistência de qualquer pressão fortemente exercida na zona posterior do pescoço[10] e a inexistência de subjugação da vítima;

- As declarações da vítima que referiu « Eu tentei chegar a uma faca, porque se (…), foi como eu disse no hospital, eu não vou mentir, se eu tivesse chegado à faca, eu tinha-o matado, portanto.”, em conjugação com a foto 31, do relatório do exame n.º 042/2022, a fls. 270, (respeitante à cómoda sobre a qual se encontrava a faca).

Mais alega o recorrente que ficou demonstrado que durante aquela noite, momentos houve em que a vítima se encontrava completamente sozinha, nomeadamente quando o recorrente se dirigiu à casa-de-banho para se limpar, pelo que poderia a vítima ter optado por outra solução que não a de permanecer no quarto, saindo de casa, ligando a alguém, ou mesmo fazendo uso da referida faca.

Visualizamos as gravações realizadas pelo arguido, e afastamo-nos da interpretação que delas faz o recorrente.

O que se pode perceber da visualização e audição das gravações efetuadas pelo arguido, e que, reitere-se, não se reportam às condutas, por inteiro, no seu todo, mas a alguns momentos destas,  é a vítima:

- Encontrar-se em enorme esforço físico face aos atos infligidos;

- Sem adotar quaisquer comportamentos que minimamente indiciem iniciativa própria;

- Sem emitir quaisquer sons ou outras manifestações que sugiram qualquer colaboração/agrado/excitação;

- A obedecer/sujeitar-se às ordens que em tom autoritário são dadas pelo arguido.

O que decorre das declarações da vítima é a elevada consciência dos riscos de uma tentativa de fuga, de pedido de ajuda, ou de resistência pela força, tal como, aliás se nos afigura perfeitamente razoável dada a profunda desigualdade de «armas» (força física) e às ameaças que relatou.

O que nos diz a vítima é que «estava mais preocupada com o sangue todo que estava a ver», e «o medo que sentia por estar a sangrar muito» e pelas ameaças proferidas (e não em retaliar e fugir).

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 07.06.2023, no processo 793/21.1JALRA.C1 (rel. Des. Paulo Guerra):

«Na agressão, a vontade do autor impõe-se pela força, seja através de violência ou de intimidação, não se podendo pedir à vítima uma constante atitude perigosamente heroica».

Novamente, não detetamos qualquer prova que imponha decisão diversa da recorrida.

Aqui chegados.

Consideramos que o Tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo a este Tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.

A factualidade provada que se encontra impugnada assenta em termos firmes nas declarações da vítima, mas também no relatório de exame pericial, e nas gravações efetuadas pelo próprio arguido.

As declarações do arguido - também as ouvimos - afirmando, designadamente, que a relação sexual foi consentida, não é suficiente para contrariar o manancial de prova carreado, suscitando qualquer dúvida razoável na mente do julgador.

Nem é por o Tribunal não ter acolhido a versão do arguido, não conferindo credibilidade na sua totalidade às declarações que prestou que se pode concluir pela violação do disposto no art.º 127.º do CPP.

O Tribunal a quo não baseou a sua convicção em raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios da prova.

Tudo considerado, improcede nesta parte o recurso em matéria de facto.

Concluímos, assim, que a factualidade provada se encontra consolidada nos termos decididos em primeira instância.

2. Enquadramento Jurídico

2.1 Alega o arguido recorrente que o Acórdão em crise «determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 164.º, n.º 2, al. a), do C. Penal, porquanto verificada a insuficiência probatória presentemente arguida para o preenchimento daquela tipificação. Deveria, com o devido respeito, considerando a existência de relações sexuais consentidas, bem como as lesões daí resultantes, ter sido aplicado, ao invés, o estatuído no art. 148.º, n.º 1, do C. Penal ou, e caso assim não se entenda, mas verificada a inexistência de violência ou ameaça grave, o estatuído no art. 164.º, n.º 1, al. a), do C. Penal – art. 412.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal».

Como se vê, a alegação recursiva pressupõe a alteração da decisão da matéria de facto.

No entanto, a consolidação da factualidade provada nos termos decididos em primeira instância implica o falecimento, nesta parte, da defesa.

2.2 Ainda no entender do recorrente, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 193º do Código Penal (doravante CP), porquanto não se encontra preenchido o elemento objetivo da norma – disseminar, através da internet –, dado o número muito limitado de pessoas que tiveram acesso aos conteúdos partilhados.

Defende o recorrente que, ao invés, devia ter sido aplicado o estatuído no art.º 192º, n.º 1, al. b), do CP, uma vez que sem consentimento e com a intenção de devassar a vida privada da vítima, nomeadamente a vida sexual, filmou e divulgou imagens daquela em tal contexto.

Vejamos.

À data dos factos, dispunha o art.º 192º do CP, na redação que lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 59/2007, de 04.09, sob a epígrafe «Devassa da vida privada»:

«1 - Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:

a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio electrónico ou facturação detalhada;

b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;

c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou

d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;

é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

2 - O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante».

Se cometido através de difusão por internet, as penas são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo (art.º 197.º al. b) do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08).

Da leitura da norma legal decorre que não se exige, a prova da efetiva difusão por um número alargado de destinatários, tal como, aliás, bem se compreende dado o perigo do meio (à distância de poucos cliques) utilizado para o bem jurídico tutelado (privacidade/intimidade, com fundamento no art.º 26º n.º 1 da CRP).

Na redação vigente à data dos factos[11], o art.º 193.º do CP sob a epígrafe «Devassa por meio informático» dispunha no seu n.º 1 o seguinte:

«Quem criar, mantiver, ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou à origem étnica, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».

Como se vê, um dos elementos do tipo objetivo era a criação, manutenção, ou utilização de «ficheiro automatizado», ou seja, de um conjunto de informações objeto de tratamento automatizado, i.e, com a ajuda de processos automatizados.

Posteriormente, a Lei n.º 26/2023, de 30 de maio, reforçando a proteção das vítimas de crimes de disseminação não consensual de conteúdos íntimos, procedeu, designadamente, à alteração dos art.ºs 192.º e 193.º do Código Penal.

Assim, o artigo 192.º tem atualmente a seguinte redação:


«Devassa da vida privada

Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual:

a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio electrónico ou facturação detalhada;

b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos;

c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou

d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa;

é punido, no caso das alíneas a) e c), com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias e, no caso das alíneas b) e d), com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante».

Portanto, com esta alteração, quem cometer o crime de devassa da vida privada é agora punido, no caso das alíneas b) e d), com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa entre 10 e 360 dias, mantendo-se a anterior punição para as outras duas alíneas.

Significa isto um reforço – pelo agravamento da moldura penal - na proteção das vítimas que tenham visto os seus conteúdos íntimos disseminados sem o seu consentimento, como por exemplo, a divulgação de fotografias ou vídeos de teor sexual sem o consentimento daquele que é fotografado ou gravado.

Em conformidade com disposto art.º 197.º al. b) do Código Penal, na redação que foi dada pela Lei 44/2018, de 09.08:

«As penas previstas nos art.ºs 190.º a 195.º do Código Penal são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o facto for praticado:

b) Através de meio de comunicação social ou da difusão através da Internet, ou de outros meios de difusão pública generalizada».

Por seu turno, o artigo 193.º do CP tem sob a epígrafe:

«Devassa através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada»

a seguinte redação:

«Quem, sem consentimento, disseminar ou contribuir para a disseminação, através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, de imagens, fotografias ou gravações que devassem a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual, é punido com pena de prisão até 5 anos».

Ou seja, o artigo 193.º:

- que previa o crime de devassa por meio de informática, foi redenominado;

- prevê agora o crime de devassa através de meio de comunicação social, da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada;

- não exige para o seu preenchimento, como anteriormente, a criação, manutenção, ou utilização de ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis;

- nem, contrariamente ao entendimento do recorrente, a difusão das imagens recolhidas por um número alargado de destinatários;

- prevê, agora, uma punição com pena de prisão até 5 anos, quando anteriormente o crime do art.º 193.º era punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Aqui chegados e revertendo ao caso dos autos:

1. Entendemos que a gravação «pontual» efetuada pelo arguido não constitui um «Ficheiro automatizado», entendido este como conjunto de informações objeto de tratamento automatizado, ou seja, com a ajuda de processos automatizados, pelo que não se encontra preenchido o art.º 193.º do Código Penal, na sua anterior redação;

2. O crime cometido pelo arguido encontra à data da sua prática previsão no disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 192.º do CP, que não exige a criação e/ou divulgação de ficheiros automatizados.

Uma vez que foi cometido através de difusão por internet, as penas são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo (art.º 197.º al. b) do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08).

Efetivamente, é sabido que WhatsApp – meio através do qual os vídeos realizados pelo arguido foram enviados, é uma aplicação que, sendo instalada num dispositivo eletrónico móvel, permite, gratuitamente, o envio de mensagens instantâneas escritas, imagens, vídeos e documentos e chamadas de voz, sendo utilizada, muitas vezes, para a partilha de conversas ("chat") em grupo.

Nessa medida, pode considerar-se uma rede social, pois permite a ligação em rede de um conjunto de pessoas ou organizações que partilham interesses, conhecimentos e valores comuns por meio da internet.

Com poucos cliques, os vídeos à data recebidos pelo WhatsApp podiam ser baixados e depois (re)enviados para terceiros, e por certo que as circunstâncias dos autos não permitem seriamente sustentar que o arguido tivesse qualquer expetativa, legítima, ou não, de tal não vir a suceder.

Resulta, assim, preenchida a agravante prevista art.º 197.º al. b) do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08).

3. Aplicando o novo regime, verificar-se-ia, tal como se escreve no Acórdão recorrido, «um concurso aparente de infrações entre o tipo legal de crime de devassa da vida privada previsto no artigo 192º do Código Penal e o crime de devassa através da comunicação social ou internet previsto no artigo 193º do mesmo código, por este tipo legal de crime proteger de forma mais especial o mesmo bem jurídico (punindo a conduta do agente com pena mais gravosa), no quadro de uma relação de subsidiariedade entre ambos, mormente nos casos, como o em apreço, em que o sentido de ilicitude global da conduta do agente acaba por ser consumido por este último tipo legal de crime.

Na verdade, como resulta dos factos provados (assentes no teor das próprias gravações e divulgações), o arguido filmou e gravou o ato sexual com a vítima, contra a vontade desta, para o partilhar pelos seus amigos através da rede social whatsapp, o que fez imediatamente após a ocorrência do ato sexual».

Assim, nos termos do regime atual, a conduta do arguido seria subsumível ao crime de devassa através da comunicação social ou internet previsto no artigo 193º do CP, que consumiria, dada a relação de especialidade ou subsidiariedade, os demais tipos legais de crime imputados.

Face ao exposto, no que respeita ao enquadramento jurídico procede parcialmente a defesa recursiva.

3. Excesso das penas

No entender do recorrente são excessivas as medidas das penas principais em que foi condenado, tendo em consideração:

- A alteração factual propugnada;

- O enquadramento jurídico das condutas praticadas pelo arguido;

- O seu carácter, contexto social e profissional, nomeadamente, o que decorre dos pontos 56, 59, 73, 79, 80 e 82 dos factos provados;

- No que concerne ao crime de devassa da vida privada –aquando das gravações - ter sempre salvaguardado a identidade da vítima, tapando-lhe o rosto, impedindo a sua identificação por terceiros.

Conclui o recorrente que deveria ter sido condenado em pena única de prisão não superior a 5 anos que haveria de ter sido suspensa na sua execução[12].

Vejamos.

3.1 medidas das penas principais

Em primeiro lugar, importa considerar relativamente à sucessão de leis penais no tempo, que já assinalamos o disposto no art.º 29º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer que:

«Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido».

Concretizando tal princípio, dispõe o art.º 2.º n.º 4 do CP que:

«Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».

Como, aliás, bem se compreende, posto que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, para a proteção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados.

Depois, na operação de determinação concreta das penas importa considerar que dispõe o art.º 40º do CP que a aplicação de penas «visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente» (n.º 1), não podendo a pena em caso algum «ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

Ora, estabelece o artigo 71º n.º 1 do CP, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º n.º1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Doutrinalmente vem-se entendendo que as finalidades da aplicação de uma pena «residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena»[13].

Daí que se venha defendendo que o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica:

«a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer»[14].

Prescreve o n.º 2 do art.º 71.º do CP que, na determinação concreta da pena «o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

As circunstâncias e critérios do artigo 71º do CP «devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente»[15].

Decorre, ainda, da lição da melhor doutrina[16], e constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça[17], perfilhada em segunda instância[18]  que a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na atuação dos fins das penas no quadro da prevenção; mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

Revertendo ao caso dos autos.

A factualidade provada encontra-se consolidada nos termos decididos em primeira instância, falecendo a defesa recursiva que pressupõe a sua alteração.

O crime de violação cometido pelo arguido encontra-se previsto no artigo 164º n.º 2 al. a) do CP, sendo punível, em abstrato, com pena de prisão de 3 a 10 anos.

O crime de devassa da vida privada, nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 192º do CP, na redação que lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 59/2007, de 04.09, era punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

Uma vez que este crime foi praticado pelo arguido através de difusão por internet, as penas são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, em conformidade com o disposto na al. b) do art.º 197.º do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08.

Temos, portanto, face ao anterior regime, uma moldura penal de 1 mês e 10 dias de prisão a 1 ano e 4 meses de prisão e de 13 dias de multa a 320 dias de multa. 

Tendo presentes as alegações recursivas, verificamos que, mesmo pugnando pela subsunção da conduta ao crime de devassa da vida privada, p.p. nos termos do art.º 192.º do CP, o arguido não questiona a aplicação da pena de prisão, pelo que mesmo relativamente a este crime, o que importa é determinar a medida da pena de prisão (e não equacionar uma eventual escolha da pena de multa).

O crime de Devassa através de meio de comunicação social, da internet, ou de outros meios de difusão pública generalizada – a que atualmente corresponde a conduta do arguido - é punível, nos termos do art.º 193º do CP,  com pena de prisão de 1 mês a 5 anos.

No que respeita à concreta ponderação das circunstâncias do caso, revemo-nos no que se lê no Acórdão recorrido[19]:

• o grau de ilicitude dos factos, «é muito elevado, quer no que concerne ao crime de violação, atentas as lesões causadas à vítima», quer no que concerne ao crime de devassa da vida privada «atento o teor das gravações divulgadas, de teor sexual, e o número de pessoas que receberam os ficheiros, potenciando a sua divulgação por terceiros»;

• Os crimes «evidenciam um modo de execução elaborado, premeditado, quer no que concerne aos momentos que antecederam o crime de violação, que demoveram a vítima das sua intenções e levaram-na a flanquear a porta da sua residência, ficando à mercê dos instintos libidinosos do arguido, quer ao teor das gravações, que evidenciam uma personalidade mal formada, com total desrespeito para com a dignidade da vítima e para seu gaudio»;

• As gravidades das consequências dos crimes «são elevadas, quer no que concerne às lesões causadas à vítima, que teve necessidade de internamento hospitalar e foi sujeita a cirurgia de urgência, com anestesia geral, quer no que concerne ao modo como o arguido divulgou as gravações, que potenciaram a danosidade»;

• O dolo é «direto, intenso e persistente»;

• O arguido evidencia uma «personalidade desvaliosa e mal formada» «tendo em vista ainda os motivos e os fins que o levaram a realizar as gravações – partilha com o grupo de amigos»;

• o arguido não tem «antecedentes criminais» e encontra-se «integrado familiar, social e profissionalmente».

Alega o recorrente a seu favor - no que concerne ao crime de devassa da vida privada – que aquando das gravações «salvaguardou a identidade da vítima, tapando-lhe o rosto e, assim, impedindo a sua identificação por terceiros», circunstância, esta, que não resulta da factualidade provada.

Sempre diremos, no entanto, que tal circunstância – face às demais –-  não é de molde a atenuar nem a elevada gravidade do facto nem a culpa acentuada do agente.  

O arguido sem consentimento, gravou imagens da vítima quando esta estava a ser violada e difundiu-as para seu próprio gaudio.

Entendemos que o  dolo direto, intenso e persistente, e as motivações do arguido elevam a culpa.

São fortes as necessidades de prevenção geral que este tipo de condutas reclama na comunidade (pelo elevado número de crimes sexuais que se tem verificado, geradores de grande alarme e perturbação na comunidade envolvente).

Favorecem o arguido a ausência de antecedentes criminais e encontrar-se integrado familiar, social e profissionalmente.

Ainda, assim, são elevadas as necessidades de prevenção especial (pela personalidade evidenciada pelo arguido no cometimento dos crimes e pela incapacidade em assumir os factos praticados, no que concerne ao crime de violação).

Tudo visto e ponderado, a pena pela prática do crime de violação, fixada pelo Tribunal recorrido em 6 anos e 6 meses, é perfeitamente suportada pela medida da culpa e não excede as exigências de prevenção reclamadas pelo caso.

No que concerne ao crime de devassa da vida privada, aplicando o anterior regime, tendo em consideração as exigências preventivas e a culpa elevadas e sopesando as circunstâncias do caso, entendemos por adequada a pena concreta de prisão de 1 ano.

Face ao regime atual, à conduta do arguido corresponderia a pena de 2 anos e 6 meses de prisão (tal como foi fixado pelo Tribunal recorrido, sem que se denote que tenham sido violadas as regras de experiência ou que a quantificação se revele de todo desproporcionada).

Constata-se que o regime vigente à data dos factos é mais favorável ao  arguido, sendo por isso de aplicar nos termos do n.º 4 do art.º 2º do CP, pelo que a pena parcelar fixada ao arguido pelo crime de devassa da vida privada é de 1 ano de prisão.

Ora, quando, como é o caso, «alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única» (art.º 77.º n.º 1, 1.ª parte, do CP).

«A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes» (art.º 77º nº 2 do CP).

A pena única é determinada, tal como na concretização da medida das penas parcelares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente (art.º 77.º n.º 1, 2.ª parte do CP).

Tal como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.2024, no processo 37/18.3GGSTB.S1 (rel. Cons. Vasques Osório):

«(…) podemos dizer que o conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante para a sua valoração a conexão que possa existir entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade do agente permitirá saber se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante, sendo igualmente importante a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 290 e seguintes). No mesmo sentido pode ver-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2013, processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt, no qual se escreveu, além do mais, «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade».

Dito isto.

No caso, a censurabilidade ético-jurídica é elevada: o arguido agiu sempre com dolo direto, intenso, persistente.

É elevada a gravidade do ilícito global e são elevadas as exigências de prevenção geral.

As circunstâncias pessoais favorecem o arguido, atenuando as exigências de ressocialização.

O comportamento global consubstanciado no concurso de crimes e a personalidade neles revelada, demanda uma medida da pena única que, respeitando os limites traçados pela prevenção geral de integração e pela culpa, seja suficiente e adequada a advertir, séria e fortemente o arguido, instando-o a refletir sobre o seu comportamento futuro e, ao mesmo tempo, dando-lhe a oportunidade de se reintegrar na comunidade dos homens fieis ao direito.

Tudo considerado, entendemos que se mostra justa, necessária, proporcional e adequada a pena única de 7 anos de prisão, o que significa, nesta parte a procedência parcial do recurso.

3.2- Não suspensão da execução da pena de prisão

Como se vê, a pena aplicada não permite a suspensão, nos termos do art.º 50.º do Código Penal, improcedendo, nesta parte o recurso.

4. Excesso do montante indemnizatório arbitrado

Insurge-se o arguido contra o montante indemnizatório de 15 000,00 , arbitrado à vítima, que reputa excessivo.

Vejamos.

De acordo com o artigo 16º n.º 1 e n.º 2 da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro (ESTATUTO DA VÍTIMA):

«1- À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2- Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

Por sua vez, o artigo 67º-A n.º 1 alínea b) do CPP sobre o conceito de vítima, dispõe que:

«Vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social».

Por sua vez, determina o referido artigo 82º- A do CPP que:

«1- Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

1- No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

2- A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

Ao determinar a aplicação deste regime em qualquer caso, apenas se ressalvando os casos de oposição expressa por parte da vítima, o legislador afastou o pressuposto previsto na parte final do nº 1 do artigo 82º-A do Código de Processo Penal.

Assim, o Tribunal, salvo oposição expressa da vítima, deverá sempre arbitrar uma quantia a título de reparação, ainda que não se verifiquem no caso particulares exigências de proteção.

Uma vez que nestes autos a ofendida não deduziu pedido de indemnização civil e não deduziu oposição à aplicação do regime previsto no artigo 82º-A do Código De Processo Penal, haveria que fixar a quantia indemnizatória.

Estão em causa danos não patrimoniais.

Os danos não patrimoniais compreendem os prejuízos (tais como as dores físicas, a perda de prestígio e reputação, os vexames, os desgostos morais, etc.) que sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, por derivarem de lesão de bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra ou o bem nome) que não integram o património do lesado[20].

Dispõe o art.º 496º do Código Civil que:

«1.Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. (...)

3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (…)».

Encontramo-nos perante prejuízos sem equivalente monetário, e que apenas podem ser «compensados», pela atribuição de uma justa reparação comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias referidas no art.º 494.º do Código Civil.

No tocante à determinação do quantum indemnizatório, a lei aponta, nitidamente para a ponderação das especificidades e particularidades do caso concreto, orientada por critérios de equidade (art.º 494.º, ex vi art.º 493.º, 1ª parte, do Código Civil)[21].

São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que «pela sua gravidade mereçam a tutela do direito» (nºs 1 e 3 do art.º 496º do Código Civil), devendo atender-se, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesante e do lesado, e às demais circunstâncias do caso (cf. art.º 494.º do Código Civil).

Naturalmente que o primeiro dos fatores a ponderar será o dano que fundamenta a compensação, limita o montante a compensar, e cuja gravidade constitui um dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

Na aferição da gravidade do dano relevam a natureza da lesão sofrida, a intensidade das suas consequências, e os bens jurídicos ou interesses atingidos.

A culpabilidade do agente afere-se na apreciação da intensidade da violação dos deveres jurídicos ou da omissão dos deveres de diligência, e da intervenção da vontade do agente em tal atuação e causação.

Não deixa, por um lado, de estar aqui presente uma certa função punitiva ou sancionatória da indemnização, podendo, por outro lado, a culpa pouco intensa do agente face à extensão dos danos causados, justificar a redução do montante indemnizatório a atribuir.

O critério da situação económica do lesante e do lesado releva essencialmente para correção de resultados injustos em casos de significativa desproporção entre as condições económicas de ambos. Mostrando-se o lesado detentor de condições económicas muito superiores às do lesante, poderá justificar-se a redução do montante fixado.

«Em qualquer caso, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio regulativo da proporcionalidade – de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa – e numa perspetiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adotados para casos análogos (art.º 8 nº 3 do Código Civil)»[22].

Lê-se no Acórdão recorrido:

«Ponderando os factos praticados pelo arguido, estando em causa factos ilícitos (inclusive na vertente criminal), culposos (porque o arguido atuou dolosamente, estando ciente da ilicitude das suas condutas) e danosos (causadores de danos à liberdade sexual da vitima, determinantes, além do mais, danos de natureza não patrimonial), ponderando a gravidade dos danos causados (que determinaram internamento hospitalar, cirurgia, anestesia geral, períodos de doença e de incapacidade), ponderando a situação económico-financeira do arguidos, o tribunal arbitra para reparação dos danos sofridos pela vítima uma compensação no valor de 15.000,00€ (quinze mil euros)».

Efetivamente, os danos são muito graves, as culpas são intensas e as condutas foram cometidas dolosamente, e nada indicia que a situação económica da lesada seja de tal forma mais abonada do que a do lesante, que uma ideia de proporcionalidade deva intervir como fator de correção da extensão indemnizatória.

A indemnização por danos não patrimoniais visa contrabalançar o mal sofrido, e sendo caso disso, servir acessoriamente, uma função sancionatória, e terá que ser verdadeiramente significativa, devendo o seu quantitativo traduzir a justiça no caso concreto, cabendo, pois, ao julgador ter em conta as regras da prudência, o bom senso e a justa medida das coisas.

A jurisprudência vem-se afastando decisivamente de indemnizações simbólicas.

Tudo considerado, nada temos a censurar ao arbitramento de 15 000,00 €, que temos por ajustada, improcedendo, nesta parte, o recurso.


*

6. Perda a favor do Estado do telemóvel

No entender do recorrente, o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo determinou equivocadamente a aplicação do disposto no artigo 110.º, do C. Penal, relativamente à perda do telemóvel a favor do Estado, porquanto inexistem quaisquer produtos ou vantagens no caso sub judice, antes se aplicando o art.º 109.º, do CP, que estatui a perda de instrumentos, inexistindo quaisquer riscos específicos ou perigosidade associadas a um «simples telemóvel, comumente utilizado pela quase totalidade da população portuguesa».

Efetivamente, como é de conhecimento geral o telemóvel é um instrumento de uso generalizado e habitual, para qualquer cidadão.

Mas também temos por evidente o nexo de causalidade do telemóvel apreendido com o crime de devassa da vida privada.

Lê-se no Acórdão recorrido que foi com o telemóvel apreendido «que o arguido filmou, gravou e partilhou o ato sexual, contendo no seu interior vestígios do cometimento dos crimes».

Trata-se, portanto, de objeto que serviu para a prática de crime e que, pela sua natureza e pelas circunstâncias do caso põe em risco a segurança das pessoas (desde logo da vítima) e a moral públicas (art.º 109º, n.º 1 do CP).

Ou, ainda que assim não se entendesse, os vestígios no interior do telemóvel sempre permitiriam a conclusão do Tribunal recorrido de que se trata de objeto produzido pela prática do crime (art.º 110º, n.º1, al. a) do CP). 


III. Dispositivo

                        Em face do exposto, acordam as Juízas que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, e assim:

      1- Revogar o Acórdão na parte em que:

1.1- Condenou o arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de devassa da vida privada através da internet, previsto e punido pelo artigo 193º do Código Penal, na pessoa da vítima CC, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

1.2 - Operou o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas ao arguido AA, condenando-o na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;

2. - Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de devassa da vida privada, p.p. nos termos do art.º 192.º n.º 1 al. b) do lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 59/2007, de 04.09, e al. b) do art.º 197.º do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08, atualmente subsumível ao disposto no art.º 193.º do Código Penal, aplicando por mais favorável aquele regime, nos termos do art.º 2. n.4 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;

3- Operar o cúmulo jurídico entre as penas parcelares de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164º/2-a) do Código Penal, na pessoa da vítima CC, e de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de devassa da vida privada, p.p. nos termos do art.º 192.º n.º 1 al. b) do lhe foi dada pelo Decreto Lei n.º 59/2007, de 04.09, e al. b) do art.º 197.º do CP, na versão dada pela Lei 44/2018, de 09.08, atualmente subsumível ao disposto no art.º 193.º do Código Penal, condenando o arguido AA, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

- Manter no remanescente o Acórdão recorrido.

            (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pela terceiro signatários  – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)

Coimbra, 12.03.2025

Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)

Sara Reis Marques (Juíza Desembargadora 1.ª adjunta)

Sandra Ferreira (Juiz Desembargador 2.º adjunto)


[1] Cf. Ac. TRL datado de 06.06.2017, proc. n.º 224/13.0PTFUN.L1-5 (rel. Des. Jorge Gonçalves)
[2] das gravações
[3]  Ac. TRL datado de 08.10.2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9 (rel. Des. Filipa Costa Lourenço).
[4] Cf. Acórdão do TRG, datado de 19.06.2017, proc. 644/15.6PBBRG.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).

[5]  Cf. Ac. TRG, datado de 06.11.2017, proc. 3671/13.4 TDLSB.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).

[6] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 27.06.2006, processo 2849/05-1 (Martinho Cardoso).

[7] - Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 03.10.2006, processo 1103/06-1 (rel. Des. Alberto Borges)
[8] «A CC ia sempre dizendo, em voz alta, para o arguido parar, ao que este lhe apertava o pescoço com as mãos e a intimidava com expressões semelhantes àquelas que já tinha proferido, entre as quais: “Se não fizeres o que eu quero mato-te e violo-te depois de morta”»

[9] «Desta feita, o arguido deitou-se decúbito dorsal na cama, tendo obrigado a CC, mediante pressão fortemente exercida na zona posterior do pescoço, e com encaminhamento da boca para junto do pénis, a praticar coito oral»

[10] pois o recorrente estaria a agarrar, sem violência visível, o cabelo da vítima
[11] Dada pelo DECRETO-LEI N.º 48/95, DE 15 DE MARÇO
[12] Como se vê o recorrente, mesmo que sustente que o crime que cometeu e pelo qual haveria de ter sido cometido é o de devassa da vida privada, e não de devassa através da internet não põe em causa, nem pretende a escolha da pena de multa, pelo que entendemos que é no interior das penas de prisão aplicáveis que apreciaremos a pretensão do recorrente.

[13] Figueiredo Dias, Direito, Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Noticias Editorial, pág. 227.

[14] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15.02.2024, processo 234/10.1T9VLG.P1.S1 (rel. Cons. Jorge Gonçalves)

[15] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25.05.2016, processo 101/14.8GBALD.C1.S1 (rel. Cons. Pires da Graça)
[16] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 196-197, §255)
[17] v.g. o Acórdão do STJ de de 27.5.2009, proc.º n.º 09P0484 (rel. Cons.º Raul Borges)
[18] v.g. o Ac. da Rel. de Lisboa de 31.10.2019, proc.º n.º 989/17.0PZLSB.L1-9 (rel. Des. Abrunhosa de Carvalho), os Acs da Rel. do Porto de 6.01.2013, proc.º n.º 201/10.3GAMCD.P1 (rel. Des. Ernesto Nascimento) e de 2-10-2013, proc. n.º 180/11.0GAVLP.P ( rel. Des, Joaquim Gomes), e o Ac. da Rel. de Guimarães de 13-5-2019, proc.º n.º 348/18.7GAVLP.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves)

[19] Naturalmente tendo presente que entendemos que o arguido cometeu um crime de devassa da vida privada e não um crime de devassa através da internet

[20] cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., reimp., Almedina, Coimbra, 2011, p. 601.

[21] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21.03.2013, no processo n.º 703/07.4TBAND.C1 (rel. Des. Henrique Antunes).

[22] - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21.03.2013, processo 793/07TBAND.C1 (rel. Des. Henriques Antunes).