Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
569/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DIREITO DE RESPOSTA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 3º, Nº 3, DO C.P.CIVIL E ARTº 20º DA C.R.P
Sumário: Requerendo a autora, na réplica, a condenação da ré como litigante de má fé, tem esta, face ao princípio do contraditório – consagrado no artº 3º, nº 3, do C.P.Civil e que a jurisprudência constitucional tem considerado ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais previsto no artº 20º da C.R.P. -, direito a pronunciar-se acerca de tal pedido.

Sendo admissível tréplica, poderá fazê-lo neste articulado.

Não sendo admissível tréplica, pode pronunciar-se em requerimento autónomo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., propôs, em 20/06/2002, pelo Tribunal da comarca de Anadia, acção com processo ordinário, contra B..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 16.456,19 euros, acrescida de 2.18,62 euros de juros vencidos, que lhe deve, em consequência do fornecimento de vinhos que são objecto do seu comércio, conforme facturas que junta, as quais, que são da responsabilidade da ré, foram lançadas na corrente, que também junta.
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A ré contestou, aceitando ter adquirido 22.034.000 litros de vinho referentes à factura nº 3762, emitida em 12/06/2002, no valor de 2.065.688$00/10.303,61 €, e igual quantidade e no mesmo valor referente à factura nº 3761, emitida em 11/06/2001, ficando devedora dos montantes referidos nessas duas facturas; A autora creditou a seu favor a diferença de grau verificada no vinho fornecido, efectuando um lançamento a crédito a favor da ré no montante de 132.203$00/659,43 €, através da nota de crédito nº 2917, emitida em 23/10/2001; Por outro lado, a ré pagou `a autora, por conta destes fornecimentos, a quantia de 700.000$00/3.491,59 €, que a autora também lançou a crédito da ré no fornecimento relativo a tais vinhos e contrato.
No entanto, apesar de reconhecer que existe um débito seu para com a autora – o relativo a tais fornecimentos -, termina, defendendo a improcedência da acção.
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A autora apresentou réplica, na qual, além do mais, alega quea ré contestou somente com intenções dilatórias, visto que reconhece o pedido formulado pela autora, terminando por requerer a condenação da ré como litigante de má-fé.
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A ré, por sua vez, apresentou resposta à réplica, no que ao pedido de condenação de litigância de má-fé diz respeito.
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No despacho saneador ordenou-se o desentranhamento da aludida resposta da ré, por se entender ser inadmissível tal articulado, o qual nem mesmo para responder à alegada má-fé poderia ser aceite.
Foi, depois, organizada a selecção dos factos considerados assentes e dos que constituem a base instrutória, sem reclamações.

A ré interpôs recurso do despacho saneador, admitido como agravo, e com subida diferida.

Teve, depois, lugar o julgamento, com gravação da prova, e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção totalmente procedente, condenando, ainda, a ré, como litigante de má fé, na multa de 50 UC.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
Factos Assentes:
A) - A autora dedica-se à transformação de uvas e comercialização do vinho.
B) - No exercício da sua actividade forneceu à ré vinhos a granel que são objecto do seu comércio, designadamente vinhos tintos.
C) - Em documento datado de 11/06/2001 a autora facturou a importância de 2.065.688$99/10.303,61 € à sociedade ré, correspondendo esse documento à refª 3761.
D) - Em documento datado de 12/06/2001, a autora facturou a importância de 2.065.688$00/10.303,61 € à sociedade ré, correspondendo esse documento à refª 3762.

E) - Por documento datado de 23/10/2001, a autora emitiu nota de crédito nº 2917 a favor da ré, no valor de 659,43 €, devido a diferença de grau nas duas facturas atrás descritas.
F) - Por conta dos fornecimentos titulados nas facturas atrás descritas a ré pagou à autora a quantia de 700.000$00 / 3491,59 €, pagamento que foi pela autora lançado a crédito.

Base Instrutória:
1º - As mercadorias correspondentes à factura descrita na al. C) foram entregues pela autora à ré com a identidade, quantidade e preço constantes da factura de fls. 29.
2º - As mercadorias correspondentes à factura descrita na al. D) foram entregues pela autora à ré, com a identidade, quantidade e preço constantes da factura de fls. 30.
3º - A autora creditou a favor da ré uma diferença de grau relativamente às facturas referidas em 1 e 2 e C) e D), no valor de 659,43€ (-132.204$00) em 23/10/2001.
4º - A ré não procedeu ao total pagamento dos montantes titulados nas facturas das als. C) e D).
5º - Nas datas de emissão dessa facturas.
7º - Os montantes titulados pelas facturas em apreço constam lançados num extracto de movimentos de conta corrente da autora em que é cliente a ré.
8º - A ré reconheceu alguma dívida relativamente à autora.
9º- A ré tem-se recusado a pagar à autora as quantias tituladas por aquelas facturas.
10º a 12º - Na sequência de um acordo entre as partes, a ré adquiriu à autora 22.034 litros de vinho x 2, referentes às facturas 3761 e 3762, emitidas em 11/06/2001 e 12/06/2001, respectivamente, no valor de 2.065.688$00 x 2.
13º - A autora forneceu à ré mercadorias no valor de 3.049.904$00, através da factura 3763 (referida no extracto de fls. 4), devolvidas pela ré e creditadas a seu favor através da nota 3045 (referida no extracto de fls. 5).
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A ré apelou da sentença, sendo do seguinte teor as conclusões das alegações dos recursos por ela interpostos (sintetizado, atenta a extensão das mesmas):
Recurso de agravo:
- Na p.i. a A. pede a condenação da ré no pagamento de quantia certa, sustentando esse pedido em saldo de conta corrente junta a esse articulado.
- A R. impugnou esse pedido e essa conta-corrente, contestou a existência de contrato de conta corrente e admitiu a existência de débito com base em factos diferentes daqueles alegados pela A.
- Certamente por deficiente interpretação dessa alegação contestatória, em articulado posterior a A. pediu a condenação da ré como litigante de má-fé.
- Notificada desse, novo, pedido da autora, a ré veio contestá-lo (esse e só esse) em articulado de resposta, por direito próprio e exercendo o simples contraditório processual – exercendo ainda o direito de se pronunciar antes de contra si ser proferida decisão que, directamente, a pode afectar/prejudicar (considerando que, em tese geral, ainda o pode ser).
- Tal articulado, de acordo com o disposto no artº 3º (disposição basilar do prisma processual) e 456º do CPCivil, para esse efeito, haverá sempre de considerar-se como largamente possível e concretamente admissível nos autos.
- Efectivamente, deve ser oferecida às “partes” em juízo a mais ampla possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões que as possam vir a afectar ou prejudicar.
- A recorrente apresentou ainda essa sua resposta de acordo com o disposto e em cumprimento dos artºs 266º e 266º-A do CPCivil.
- Assim também entendeu o T.C. que ao apreciar a conformidade constitucional do artº 456º do CPCivil decidiu interpretar os nºs 1 e 2 desse normativo em termos de que a parte processual só pode ser condenada como litigante de má-fé depois de previamente ouvida a fim de se poder defender da acusação de má-fé (cfr. Ac. nº 357/98, de 12/05/1998, DR, II, de 16/07/1998, pág. 9886 e ss.).
- A não admissão deste articulado da ré viola o citado princípio do contraditório e o artº 3º do CP Civil, na medida em que não permite defesa sobre a questão à parte visada.
-O despacho recorrido enferma de entendimento que, ao ignorar o disposto nos artºs 20º nºs 1 e 4 e 456º do CP Civil que também viola, inconstitucionalidade essa que assim vai expressamente arguida e se requer seja apreciada e declarada.


Recurso de apelação:
- A conduta da recorrente, apenas ao contestar e reconvir, não é passível de ser enquadrada no instituto do artº 456º do CP Civil.
- O seu comportamento, como parte no processo, pelas razões escritas nesta alegação não preenche a estatuição da al. a) do nº 2 desse preceito.
- A recorrente não contestou dever à autora, apenas disse não dever aquele montante.
As razões da inexistência da obrigação de pagamento do preço pedido pela A. são factos novos e configuram uma diferente relação controvertida.
- O ac. recorrido faz errada aplicação da lei de processo civil quando entende que o facto da recorrente não ter logrado provar esses factos alega de má-fé.
Tal entendimento é ilegal e inconstitucional pois, na prática, retira à parte, de forma arbitrária, a possibilidade (faculdade, direito, por vezes dever) de alegar e, pelo artº 712º do CPCivil, recorrer sobre matérias que afectam os seus interesses.
- Em termos de prática forense, o entendimento plasmado no ac. recorrido obriga e coage a um autêntico “terror” sobre a eventual não prova dos factos alegados pela parte.
- Por outro lado, esvaziaria de conteúdo os artºs 650º e 712º do CPCivil, que se veriam privados do seu campo de aplicação privilegiado.
- O entendimento plasmado no ac. recorrido é manifestamente ilegal e inconstitucional, por violação dos artºs 20º e 205º da Lei Fundamental, inconstitucionalidade que, expressamente, se requer seja apreciada e declarada.
- A decisão recorrida chegou a conclusões jurídicas erradas, interpretando e aplicando deficientemente o regime processual das normas processuais relativas à apreciação e julgamento da matéria de facto em 1ª instância dos artºs 508º e ss. do CPCivil, nomeadamente os artºs 456º, 646º, 650º, 655º, 659º, 660º, 668º nº 1 al. d) e 712º, normas que, por isso, se mostram assim violadas.
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A autora absteve-se de apresentar contra-alegações.
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Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias


nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Vamos apreciar os recursos pela ordem da sua interposição, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 710º.

Recurso de agravo.
Como se recorda, este recurso foi interposto pela ré do despacho que não admitiu a resposta ao pedido formulado pela autora, na réplica, de condenação da mesma ré como litigante de má fé.
O artº 3º estatui, no seu nº 3, que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
O princípio do contraditório – consagrado nesta norma e que a jurisprudência constitucional tem considerado ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais previsto no artº 20º da Constituição da República Portuguesa – envolve, desde logo, como vertente essencial, “a proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito” (Constituição da República Portuguesa Anotada, J. J. Canotilho e Vital Moreira, pág. 164, citado por Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2ª ed., pág. 16 e 17).
Segundo este último autor (Ob. e local cit.), a efectividade do direito de defesa pressupõe, nomeadamente e na parte que aqui interessa, o conhecimento, pelas partes, das decisões proferidas no processo e da conduta processual da parte contrária, com vista a permitir uma eventual impugnação daquelas e o exercício de um direito de resposta à contraparte.
No presente caso, a autora requereu, na réplica, a condenação da ré como litigante de má fé.


Face ao princípio do contraditório, tinha a ré direito, sem dúvida, a pronunciar-se acerca de tal pedido.
Se fosse admitida a tréplica, poderia fazê-lo neste articulado.
Como esse articulado não era admissível, por não se verificarem os requisitos previstos no nº 1 do artº 503º, podia a ré pronunciar-se em requerimento autónomo, como o fez.
Não podia, assim, o Sr. Juiz ordenar o desentranhamento do requerimento em questão, sendo, por isso, ilegal o despacho recorrido.
No entanto, o recurso não é provido, uma vez que a infracção não tem influência no exame nem na decisão da causa, nem o provimento tem interesse para a agravante (cfr. nº 2 do artº 710º), já que o requerimento em que responde ao pedido de condenação como litigante de má fé se limita a impugnar os argumentos aduzidos pela autora quanto a tal pedido, não trazendo nada de novo para o processo, nem tendo o seu desentranhamento quaisquer consequências para a mesma agravante.
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Recurso de apelação.
Este recurso tem como objecto apenas a condenação da ré como litigante de má fé.
A ré foi condenada como litigante de má fé, na multa de 50 UC, com os seguintes fundamentos:
“A ré estava a dever à autora o que ela lhe pedia e nos precisos termos pedidos por esta. Está a dever esse montante desde 12/6/2001. O processo está pendente no tribunal desde 20/6/2002, porque a ré contestou sem ter razões para o fazer e sabendo-o. Tal comportamento traduz-se numa evidente má fé processual, por preenchimento da previsão da norma do artº 456/2a) do CPC. Deve por isso ser condenada na multa pedida pela autora [artºs 456/1 do CPC e 102/a) do CCJ]. Multa que terá em conta o tempo de pendência do processo, a convocação de uma tentativa de conciliação em que os representantes da ré não se dignaram sequer comparecer (apesar de logo aí se fazer apelo à boa fé das partes), o grau elevado de má fé, já que era evidente, desde o início, que a ré sabia o que estava a dever, porquê e desde quando e a necessidade de realização do julgamento apesar disto tudo. Trata-se do uso da máquina judiciária de uma forma perfeitamente injustificada”.


A recorrente impugna a condenação, alegando, essencialmente, que o acórdão recorrido considerou que a ré agiu de má fé em virtude de não ter logrado provar os factos que alegou na contestação.
Não é, no entanto, isso que ressalta da sentença, pois, como se acabou de transcrever, o que se entendeu é que a ré contestou a acção, obrigando à realização do julgamento, não obstante saber, desde o início, o que estava a dever, porquê e desde quando, traduzindo tal comportamento uma manifesta má fé processual.
E, efectivamente, assim é.
A ré não foi condenada por não ter feito prova dos factos que alega na contestação, mas sim com base nos factos dados como provados na acção.
Que a ré agiu de má fé, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (integrando o comportamento especificado na al. a) do nº 2 do artº 456º), resulta, de forma manifesta, da contestação.
Com efeito, a ré aceitou, nesse articulado, ter adquirido à autora 22.034.000 litros de vinho referentes à factura nº 3762, emitida em 12/06/2002, no valor de 2.065.688$00/10.303,61 €, e igual quantidade e no mesmo valor referente à factura nº 3761, emitida em 11/06/2001, ficando devedora dos montantes referidos nessas duas facturas (v. artºs 4º, 5º e 8º da contestação). Mais alegou que a autora creditou a seu favor a diferença de grau verificada no vinho fornecido, efectuando um lançamento a crédito a favor dela (ré) no montante de 132.203$00/659,43 €, através da nota de crédito nº 2917 (v. artºs 9º a 12º). Alegou, também, que pagou à autora, por conta desses fornecimentos, a quantia de 700.000$00/3.491,59 €, que a autora também lançou a crédito da ré no fornecimento relativo a tais vinhos e contrato (v. artºs 13º e 14º).
Os montantes das aludidas facturas (20.607,22 €), deduzidos destes créditos (4.151,02 €), perfazem precisamente o valor do pedido formulado pela autora na presente acção (16.456,19 €).
Não obstante isso e apesar de reconhecer que existe um débito seu para com a autora – o relativo a tais fornecimentos (v. artº 15º) -, termina a contestação dizendo que “deverá a presente acção após discussão e julgamento, ser considerada improcedente, por não provada, com as legais consequências”.
Não há dúvida, assim, que a ré actuou, no mínimo, com negligência grave, ao contestar a presente acção, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não


devia ignorar, uma vez que reconhece o débito, agindo com o nítido propósito de protelar o pagamento
O comportamento da ré continua a ser censurável no presente recurso, uma vez que alega (v. fls. 151 dos autos) que no presente caso não existe qualquer gravação da prova produzida, quando não é isso que ressalta da acta da audiência de discussão e julgamento de fls. 127/129, onde consta ter sido efectuada tal gravação.
Conclui-se, assim, que não merece censura a sentença recorrida, já que, pelo que se expôs, não se mostram violados os preceitos referidos nas conclusões da alegação do recurso, sendo de realçar que, em relação ao artº 668º, nº 1, al. d), nada se diz, sequer, que permita concluir pela existência da nulidade aí prevista, pelo que é de manter a condenação da ré como litigante de má fé.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento aos recursos, mantendo o despacho e a sentença recorridos.
Custas pela recorrente.