Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2037/23.2T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: OBJECTO DE INSTRUÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º DA CRP
ARTIGOS 240.º; 241.º E 342.º, 1 E 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 411.º; 417.º; 429.º E 436.º, DO CPC
Sumário: I – Pode ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito
II – Do princípio do inquisitório consagrado no art. 411º do n.C.P.Civil, também decorre, a contrario, que ao juiz cabe rejeitar os meios de prova desnecessários, o que será aferido, em cada caso concreto, à luz das regras do ónus da prova aplicáveis às partes.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)

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         Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA, viúvo, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ..., ..., ... ..., titular do NIF ...07 instaurou ação de simples apreciação positiva “com vista à obtenção da declaração de NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO, sob a forma de processo comum, contra BB, viúva, natural da freguesia ..., residente na Estrada ..., ... ..., titular do NIF ...87, alegando, muito em síntese, o seguinte:

Que viveu mais de uma dezena de anos em união de facto com a Ré, sendo que no ano de 2012 passaram a viver numa casa acabada de construir num lote de terreno que era seu, construção que foi custeada com os proventos que havia recebido pela venda de um prédio que fazia parte do património do seu dissolvido casamento por óbito da sua mulher, estando esse novo prédio inscrito na matriz da freguesia ... sob o art.º ...95º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...57/..., mas porque tinha dívidas pessoais, perante as insistências dos Credores e fragilidade em que estava atenta a situação económica e financeira em que se encontrava, porque pretendeu assegurar que a sua casa não fosse penhorada para cumprimento das dívidas que possuía, e até face à sugestão da Ré, acabou por ser convencido a passar a casa para o nome da Ré, pelo que, na concretização de tal propósito, em 02 de Maio de 2013, no Cartório Notarial ..., ambos assinaram uma Escritura de Compra e Venda do imóvel identificado, pelo preço de € 102.790,00, mediante a qual declararam vender e comprar, respetivamente, mas sem que Ré lhe tivesse pago qualquer quantia a título de preço, nem antes nem depois, nem o A. tendo querido vender nem a Ré tendo querido comprar o prédio em causa, pois que o que ambos quiseram foi tirar o prédio do nome do A. por forma a salvaguardá-lo dos Credores, isto é, mais não foi do que um negócio simulado e que não corresponde à vontade real, “simulação” esta que a Ré agora não aceita, desfeita que foi em Setembro de 2022 a união de facto em que ambos viviam (com a saída dela), acrescendo que passou a Ré a exigir que ele A. desocupasse a casa, o que o mesmo não pode aceitar, donde, pretende a declaração de nulidade, por simulação, do dito contrato de compra e venda realizado em 02.05.2013.

Terminou no sentido de que devia ser julgada procedente por provada a ação e, por via disso:

«a) ser declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública em 02/05/2013 no Cartório Notarial ..., entre o Autor e a Ré, exarada a fls. 129 do livro de notas para escrituras diversas nº ...7..., pela qual se declara a venda do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., freguesia ..., concelho ..., composto de casa de rés do chão para habitação e dependência, com superfície coberta de duzentos e trinta metros quadrados e logradouro com a área de quatrocentos e setenta metros quadrados, inscrito na matriz da referida freguesia sob o art.º ...95º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...57 de ..., por se tratar de negócio simulado; e ainda:

b) ser ordenado o cancelamento do registo do respectivo prédio a favor da Ré.»

                                                           *

Citada, a Ré contestou e reconveio, alegando neste último particular e para o que aqui diretamente releva, resumidamente, que «(…) não assiste razão ao A. pois por detrás do negócio de compra e venda simulado do imóvel sito na Rua ..., ..., ..., descrito na escritura de compra e venda junta à P.I. sob Doc. nº 1 esteve um outro negócio que foi, de facto, o de doação à Ré do identificado bem imóvel e por esta aceite», negócio este que deve ser considerado válido, sendo certo que o A. ao tempo da construção da casa ajuizada se encontrava muito endividado e só tinha rendimentos mensais de € 226,00, tendo sido ela que suportou «(…) grande parte dos custos inerentes à construção do imóvel», mais concretamente que despendeu na obra cerca de € 74.400 [quantias pagas por cheques da sua conta no “Banco 1...”, que discrimina no art. 38º do seu articulado], ademais não tendo o A. recebido qualquer dinheiro da venda de imóvel da herança da mulher [nem recebeu sequer o A. qualquer herança!], e sendo efetiva a vontade do A. que a casa ficasse para a Ré, até «(…) porque considerava tal fato da mais elementar justiça, (…) Por ser a Ré quem tudo pagava, (dívidas, obras, despesas do quotidiano) e quem no fundo sustentava a casa e o casal», isto é, que «(…) sob a veste do negócio de compra e venda, celebrado mediante escritura pública em cartório notarial, simulado, existiu validamente um negócio de doação dissimulado, pelo que haverá que declarar válida esta doação».

A final, formulou pedido reconvencional no sentido de que deve

 «a) A presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, em consequência ser a R. absolvida dos pedidos formulados na presente acção;

b) Deve ser julgado procedente por provado o pedido reconvencional deduzido pela R. e consequentemente, ser reconhecida a validade do negócio dissimulado – a doação do bem imóvel, pelo A. à R. e por esta aceita, declarando-se esta como única e legitimidade proprietária do prédio em causa.

c) Ser o A. condenado nas custas e nos mais que for de lei »

                                                           *

O A. replicou, impugnando especificadamente o sustentado pela Ré na contestação, posição que reiterou também quanto à reconvenção, enfatizando que  nunca teve qualquer vontade ou intenção de “dar” à Ré o que quer que fosse, sendo que esclareceu que foi por não poder ter dinheiro nas contas bancárias que «(…)  entregou à Ré o produto da venda da sua casa de “... – ...” feita em 16 de Dezembro de 2010», pormenorizando que o primeiro valor entregue foi a quantia de € 27.500,00 que o A. recebeu de sinal em 20 de Novembro de 2010, sendo que a dita entrega à Ré ascendeu ao valor total de € 111.000,00, tudo acrescido da alegação de litigância de má fé por parte da Ré, termos em que concluiu no sentido de que devia a «(…) acção ser dada como provada e procedente e o pedido reconvencional dado como não provado e improcedente, tudo com as inerentes consequências legais; Mais deve a Ré ser condenada como litigante de má Fé (…)».

De referir que o A. formulou no final deste articulado, em Termos de “Prova”, para o que ora diretamente releva, o seguinte:

«A) Documental: 04 documentos juntos;

B) Requer ao abrigo do disposto nos arts.º 427º e 429º do C.P.C. sob pena da aplicação do disposto no art.º 417º por remissão do art.º 430º ambos do C.P.C. a notificação à Ré para juntar:

1. Os comprovativos de todas as contas bancárias que possuía à data de 31 de Outubro de 2010 e os respectivos saldos de depósitos à ordem, a prazo e investimentos em produtos financeiros e ou títulos de Tesouro nos CTT – IGFCP;

2. Os comprovativos de todas as contas bancárias que possuía à data de 31 de Dezembro de 2010 e os respectivos saldos de depósitos à ordem, a prazo e investimentos em produtos financeiros e ou títulos de Tesouro nos CTT – IGFCP;

3. Os comprovativos de todas as contas bancárias que possuía à data de 31 de Dezembro de 2011, 31 de Dezembro de 2012, 31 de Dezembro de 2013, 31 de Dezembro de 2014, 31 de Dezembro de 2015, 31 de Dezembro de 2016, 31 de Dezembro de 2017, 31 de Dezembro de 2018, 31 de Dezembro de 2019, 31 de Dezembro de 2020, 31 de Dezembro de 2021 e 31 de Dezembro de 2022, e os respectivos saldos de depósitos à ordem, a prazo e investimentos em produtos financeiros e ou títulos de Tesouro nos CTT – IGFCP;

C) Requisição ao Banco de Portugal da informação de todas as contas bancárias de que a Ré BB, viúva, NIF ...87, foi e é titular;

D) Requisição ao IGFCP de informação de todos os investimentos que a Ré BB, viúva, NIF ...87, efectuou em títulos e obrigações do Tesouro entre 31 de Outubro de 2010 e 31 de Dezembro de 2022;

E) Requisição à A.T. (Fazenda Pública) de todas as declarações de IRS que a Ré BB, viúva, NIF ...87, apresentou relativas a rendimentos do período entre 01 de Janeiro de 2010 e 31 de Dezembro de 2022;

(…)»

                                                           *

               Foi na sequência processual proferido despacho saneador[2], através do qual, de relevante, foi admitida a reconvenção, foi consignado o objeto do litígio [relativamente ao que se grafou «Decidir se se verificam os pressupostos da simulação relativa relativamente ao contrato de compra e venda realizado em 02.05.2013 pelo qual o autor declarou vender à ré, que declararam comprar, o prédio descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...57 , pelo preço de € 102.790,00. »], e foi especificado o que se considerava ser a “Matéria não controvertida, tendo em consideração o acordo das partes e os documentos juntos aos autos”, a saber:

«a) O teor da escritura de compra e venda de 02.05.2013;

b) A divergência entre a vontade e a declaração quer do autor, quer da ré;

c) O acordo do autor e da ré nessa divergência;

d) O intuito de enganar terceiros;

e) Vivência em união de facto do autor e da ré;»

Ademais, foram enunciados os temas da prova, a saber:

«1- Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração mencionada em b);

2- Período temporal em que perdurou a vivência referida em d);

3- Rendimentos do autor e da ré antes do período temporal referido em 2 e durante o mesmo;

4- Contributos do autor e da ré para as despesas correntes da economia doméstica;

5- Como e por quem foram custeadas as obras de construção do prédio referido no objecto do litígio.»

Por outro lado, em relação diretamente à “Prova” documental requerida pelo A. foi proferido o seguinte despacho:

«c) Fiquem nos autos os documentos apresentados com os articulados, nos termos do disposto no artº 423º nº 1 do CPC.

No que se refere aos documentos que o autor pretende sejam juntos, fica notificado para esclarecer que concretos factos pretende provar com a sua junção.»

                                                                       *

            Na sequência imediata, A./reconvindo apresentou requerimento em 3.11.2023, para o que ora releva, nos seguintes expressos termos:

             «(…)

Todos os documentos cuja requisição foi pedida têm em vista a prova dos factos 7º, 9º, 15º, 16º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 34º, 37º, 38º da Réplica e para contra prova dos arts.º 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 43º, 44º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 58º, 59º, 60º, 67º, 68º, 95º, 96º, 97º, 104º da Contestação Reconvenção.

Mais requer sejam requisitados ao Banco 1... cópias de todos os cheques elencados pela Ré no item 38º da Contestação.

Mais requer que o Banco em causa identifique a data em que foram requisitados os livros de cheques a que respeitam as séries em causa de 000826 a 000906, bem como requer igualmente cópias de todos os cheques dessas séries sacados pela titular da conta.

Requisição aos Serviços de Água e Saneamento da Câmara de ..., quando e em nome de quem foi contratada a baixada da água e saneamento, com cópia do contrato e do documento de cancelamento relativamente ao prédio urbano sito à Rua ..., ..., ..., ... e cópia do contrato actualmente em vigor, prédio urbano com o art.º ...95º.

Requisição à EDP Comercial S.A. ou ao Serviço Universal do Contrato de baixada de ligação de electricidade para o prédio sito à Rua ..., ..., ..., ..., art.º 5695, bem como do documento de cancelamento e do contrato actualmente em vigor.

(…)»    

                                                                       *

           Apreciando essa pretensão probatória do A./reconvindo, a Exma. Juiz de 1ª instância, proferiu o seguinte concreto despacho:

            «(…)

Quanto aos elementos bancários solicitados, veio o autor concretizar que os mesmos se destinam a provar os factos alegados em 7º, 9º, 15º, 16º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 34º, 37º, 38º da réplica e para contra prova dos arts.º 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 43º, 44º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 58º, 59º, 60º, 67º, 68º, 95º, 96º, 97º, 104º da contestação.

Ora, como se consignou em sede de despacho saneador, o objecto do litígio traduz-se na verificação dos pressupostos da simulação relativa relativamente ao contrato de compra e venda realizado em 02.05.2013, pelo qual o autor declarou vender à ré determinado prédio.

Na tese quer do autor, quer da ré, não houve qualquer dinheiro envolvido neste negócio, sendo que a matéria atinente aos temas da prova indicados em, 3, 4 e 5 é à ré, na parte a si respeitante, que incumbe a prova que suportou as despesas que invoca. Deste modo, não se vislumbra que interesse tenha para os autos oc comprovativos dos saldos das contas bancárias da ré, bem como os investimentos em produtos financeiros que nem se sabe se existem.

Deste forma se indefere a prova requerida sob as alíneas A) a E) da réplica, assim como, e pelas mesmas razões, da demais prova agora requerida.

(…)»

                                                           *

Inconformado com um tal despacho, apresentou o A./reconvindo recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

«A. O presente recurso tem por objecto o despacho proferido que indeferiu as diligências probatórias requeridas, com fundamento no facto de a prova dos factos indicados não ser do A. mas sim da Ré;

B. A decisão recorrida padece de nulidade por violar o disposto nos arts.º 410º, 411º, 417º, 423º, 427º, 429º, 430º e 452º do C.P.C. e o Princípio Legal do Inquisitório, uma vez que indeferiu a admissão e realização de diligências probatórias essenciais;

C. As diligências probatórias requeridas são essenciais e pertinentes para a descoberta da verdade material, como contraprova do que Ré/Recorrida alega que despendeu na construção do prédio do prédio sito na Rua ..., ..., , a quantia de 74.400,00 € através de 11 cheques;

D. As diligências probatórias requeridas são assim essenciais e imprescindíveis para se comprovar que o Recorrente entregou à Recorrida o produto da venda da sua casa de “... – ...” vendida através de escritura celebrada em 16/12/2010, no Notário Dr. CC, no valor de 127.500,00 €;

E. Prédio que o Recorrente e a sua falecida mulher haviam posto em nome do sobrinho, DD, devido às dívidas que o Recorrente possuía;

F. Bem como para se determinar os depósitos efectuados nas contas da Recorrida, montantes, datas e saldos existentes nos períodos indicados e respectivos movimentos financeiros;

G. E comprovar que a Recorrida não possuía dinheiro próprio suficiente para suportar os pagamentos, despesas, dívidas e custos que alega;

H. Bem como se destinam a demonstrar e comprovar que os respectivos contratos de água e de electricidade não se encontravam em nome da Ré/Recorrida e que a mesma não suportava os respectivos custos dos mesmos como alegou;

I. Assim, o Tribunal a quo ao indeferir as diligências probatórias requeridas violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, violando o Princípio do Inquisitório, pelo que desde já se argui a nulidade de que padece o despacho recorrido nas partes objecto de recurso;

J. Termos em que a decisão recorrida é nula, por indeferir meios de prova admissíveis, essenciais e pertinentes que se destinam à prova de factos essenciais e fundamentais e contraprova de outros.

                Nestes termos e nos mais de direito que mui doutamente serão supridos, deve o presente recurso

ser julgado totalmente procedente por provado e em consequência ser proferido douto Acórdão que revogue a decisão recorrida na parte em que indefere a prova requerida sob as alíneas A) a E) da Réplica e sob os arts.º 2º a 6º e 8º do Requerimento de 03/11/2023, Ref.ª 47017439, e que ordene a admissão e realização das respectivas diligências probatórias.

                Assim decidindo, farão V. Exas., Aliás como sempre,

                JUSTIÇA!»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

           Cumprida a formalidade dos vistos nesta instância de recurso e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

           2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

(des)acerto da decisão de indeferimento de meios de prova requeridos pelo A./reconvindo nos autos [quer no final do articulado de Réplica, quer em requerimento subsequente de 3.11.2023].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso aferir e decidir do (des)acerto da decisão de indeferimento de meios de prova requeridos pelo A./reconvindo nos autos [quer no final do articulado de Réplica, quer em requerimento subsequente de 3.11.2023].

Vejamos, antes de mais, algumas ideias base concernentes ao critério de apreciação e decisão da questão recursiva.

Consabidamente, a “instrução” do processo[3] tem por objecto factos controvertidos – através dela procede-se com vista à demonstração desses factos ou, pelo contrário, com vista a impedir essa demonstração (depende da perspetiva da parte), isto é, a atividade instrutória destina-se «à produção das provas destinadas à formação da convicção do tribunal quanto aos factos alegados que interessam à decisão e hajam sido impugnados».[4]

Igualmente importa não olvidar que pode ser objeto de “instrução” tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Por outro lado, importa ter presente que a presente ação foi configurada pelo A. como «ação de simples apreciação positiva “com vista à obtenção da declaração de NULIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO», isto é, meramente visando que o Tribunal declare a verificação da nulidade da Escritura de Compra e Venda do imóvel identificado, donde, ex vi do disposto no art. 342º, nº1 do C.Civil, compete ao A. a prova da verificação dos pressupostos correspondentes da invocada simulação (absoluta), a saber, da existência de divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, fruto do acordo de vontades entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros [cf. art. 240º do C.Civil].

Porém, na medida em que a Ré invocou a existência/verificação duma “simulação relativa” – que por detrás da compra e venda em causa esteve um outro negócio, a saber, o de doação à Ré do identificado bem imóvel [como tal por ela aceite], situação prevista e regulada no art. 241º do C.Civil – acrescendo que deduziu reconvenção em tal assente, importa concluir que a correspondente prova competirá à mesma [cf. art. 342º, nº2 do C.Civil].

Não obstante, o próprio A. também poderá ter interesse na contraprova[5] dos factos alegados pela parte contrária!

Consabidamente, os meios de prova documentais previstos nos artigos 429º e 436º do n.C.P.Civil, com referência ao princípio da cooperação também previsto no art. 417º do mesmo n.C.P.Civil, podem ser requeridos quer em relação a factos alegados pela parte requerente da sua junção e a quem cabe o respectivo ónus de prova, como pela parte contrária visando a contraprova desses factos.

Sucede que no caso vertente, como flui do antecedente “Relatório”, no despacho saneador foi considerado como “Matéria não controvertida” [tendo em consideração o acordo das partes e os documentos juntos aos autos], a existência de uma simulação entre as partes outorgantes na escritura de compra e venda de 02.05.2013 [por estar apurada a divergência entre a vontade e a declaração quer do autor quer da ré, o acordo do autor e da ré nessa divergência, e o intuito de enganar terceiros], só estando nessa parte controvertido se essa simulação teve por único objetivo “fugir” aos credores do A. [alegação/versão do A.], ou antes e em contraposição, a simulação ocultava uma doação, sendo este último o negócio efetivamente querido pelas partes [alegação/versão da Ré].

Na verdade, importa não olvidar que está pacificamente assente entre as partes que não houve qualquer dinheiro envolvido na escritura de compra e venda de 02.05.2013…

A esta luz, e com referência ao teor desta escritura de compra e venda de 02.05.2013, assente que também está entre as partes a “vivência em união de facto do autor e da ré” a esse tempo, ao A. competirá efetivamente a prova (e/ou contraprova) de que foi ele o único a custear as obras de construção e equipamento/decoração do prédio referido no objecto do litígio [sendo que a construção terá decorrido entre o ano de 2011 e 2012], tendo para tal sido canalizada o produto da venda dum imóvel sito em ... que ao mesmo pertencia [fruto da herança subsequente ao óbito da sua mulher, mais concretamente, o produto da venda que teve lugar através de escritura celebrada em 16/12/2010, no valor de € 127.500,00], sendo a explicação para a liquidação dos custos ter sido operada pela Ré, a circunstância de o produto da venda do imóvel vinda de referir ter sido entregue à Ré, por ele A. não poder ter dinheiro nas contas bancárias.

Isto tendo em vista a prova pelo A. de que esse imóvel era efetivamente (todo) seu, e daí a necessidade de salvaguardá-lo dos credores!

Será então que apurar os rendimentos e ativos da Ré (em contas bancárias e aplicações financeiras) durante todo o período de “vivência em união de facto do autor e da ré”, efetivamente releva como factualidade instrumental para aferir a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração operada na escritura de 02.05.2013?

Cremos bem que não, na medida em que se está em causa nos autos, em dimensão relevante, apurar se houve um (oculto) espírito de liberalidade do A. à Ré, para remuneração/compensação de eventuais contributos da Ré para as despesas correntes da economia doméstica, no contexto da vivência em união de facto de ambos [cf. “temas da prova” supra reproduzidos], tal apenas releva positivamente no período que vai até à celebração da escritura ajuizada nestes autos, isto é, até 02.05.2013.

O escrutínio/produção de prova sobre o restante período de vivência em união de facto de ambas as partes [que se terá prolongado até à separação no ano de 2022] constituirá uma “devassa” a que, s.m.j., não se reconhece qualquer sentido jurídico-processual útil, atento o objeto da ação e da reconvenção.

Atente-se que não está em causa nos autos operar um “acerto de contas” entre as partes relativamente ao período de vivência em comum...

Também não sendo caso de “prestação de contas”…

A esta luz, na perspetiva/versão do A. – em termos de prova e contraprova – , salvo o devido respeito, o único período temporal que efetivamente poderia relevar é o que decorre entre a venda do prédio sito em ... [alegadamente celebrada no final do ano de 2010] e a construção e bem assim equipamento/decoração da casa sita na ... e ora ajuizada [tendo a construção alegadamente tido lugar entre 2011 e 2012, é de admitir, embora não esclarecido, que o demais (equipamento/decoração) se tenha prolongado até à celebração da compra e venda ajuizada, isto é, até 02.05.2013].

Só que mesmo em relação a esse período temporal mais restrito, ainda assim se deteta uma outra objeção de base.

Sustentou concretamente a Ré na sua contestação que:

          «55.º

A R. sempre despendeu todas estas quantias pois nunca pôs em causa a sua relação amorosa com o A., que via como sendo eterna, ainda porque este sempre lhe disse que a casa era sua e que no fim de feita lhe faria a doação da mesma.

56.º

Sendo por isso a vontade do A. que a casa ficasse para a Ré.

57.º

Até porque considerava tal fato da mais elementar justiça.

58.º

Por ser a Ré quem tudo pagava, (dívidas, obras, despesas do quotidiano) e quem no fundo sustentava a casa e o casal.

59.º

Concretamente as despesas com a alimentação, a água, a luz, o telefone, os seguros, o IMI, os telemóveis, as despesas de saúde e medicamentosas, e o vestuário do A. cfr. doc. 13 a 26 que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.»

Naturalmente que é à Ré que compete a prova desta factualidade.

Donde, não se vislumbra qualquer interesse em serem juntos aos autos as cópias dos cheques elencados pela Ré no art. 38º da sua contestação, nem obter quaisquer informações bancárias atinentes a esse particular [como requerido complementarmente pelo A. em 3.11.2023].

E se o A. poderá ter interesse em fazer contraprova relativamente à dita factualidade, não se vislumbra como e porque é que terá de ser através dos meios de prova requeridos (e em apreciação neste recurso).

Se está em causa a prova indiciária/instrumental de que ela não tinha capitais nem rendimentos para tanto, não será necessária ou decisivamente através do que se apure em termos de “saldos” de contas bancárias e activos financeiros da mesma nas específicas e precisas datas de “31 de Outubro de 2010”, “31 de Dezembro de 2010”, “31 de Dezembro de 2011”, “31 de Dezembro de 2012”, e “31 de Dezembro de 2013”...

Nem através das declarações de IRS da mesma nesses anos…

É que, consabidamente, existem outras possibilidades e meios de haver disponibilidade e fluxo económico, como sejam valores monetários líquidos[6], o que constitui uma realidade quotidiana e frequente para qualquer pessoa.

Por outro lado, se visa o A. a prova de que o produto da venda do imóvel sito em ... foi entregue à Ré [quantia de € 127.500,00?], e mais concretamente, que foi depositado em contas bancárias da Ré, outros e mais diretos/incisivos meios de prova existem.

Atente-se que o A. nunca afirma expressa e literalmente que tal produto da venda foi transferido/depositado em conta(s) bancária(s) da Ré.

Assim, ir à “pesca” dessa situação, num exercício de tentativa/erro, parece-nos por demais desajustado e até desnecessário, quando poderá fazer a prova dessa alegada compra e venda através dos meios de pagamento do indicado comprador em tal circunstância!

Por último, quanto ao demais requerido pelo A. em 3.11.2023, a saber, que se oficiasse aos Serviços de Água e Saneamento da Câmara de ... e à EDP, para se obterem informações sobre baixadas de água e luz da casa ajuizada, falta em qualquer caso a prova pelo A. da impossibilidade ou excessiva onerosidade do mesmo em obter tais informações de per si.[7]

De facto, não é de antever que em função da matéria/natureza da informação pretendida poderiam surgir obstáculos à sua obtenção junto das entidades visadas (com base no princípio da confidencialidade e proteção de dados pessoais), isto é, não é de presumir a dificuldade séria pela parte em obter diretamente uma tal informação, donde não é de dispensar a alegação expressa de tal pela mesma[8] quando formula o requerimento ao Tribunal no sentido de ser este oficiosamente a proceder à correspondente requisição.

Nesta linha de entendimento entendemos que nada há a censurar à decisão recorrida, particularmente no segmento através do qual se aduziu que

«(…)

Na tese quer do autor, quer da ré, não houve qualquer dinheiro envolvido neste negócio, sendo que a matéria atinente aos temas da prova indicados em, 3, 4 e 5 é à ré, na parte a si respeitante, que incumbe a prova que suportou as despesas que invoca. Deste modo, não se vislumbra que interesse tenha para os autos oc comprovativos dos saldos das contas bancárias da ré, bem como os investimentos em produtos financeiros que nem se sabe se existem.

Deste forma se indefere a prova requerida sob as alíneas A) a E) da réplica, assim como, e pelas mesmas razões, da demais prova agora requerida.»

Dito de outra forma: entende-se que não é de dar acolhimento à pretensão formulada pelo A./recorrente de obtenção de todas as concretas informações ou elementos pelo Tribunal.

Temos presente já ter sido doutamente sublinhado que se pode legitimamente falar de uma «(…) evolução (talvez mesmo de uma mudança da paradigma) do regime legal relativo à requisição de informações e documentos que abandona a perspetiva restritiva – compreensível num processo puro ou acentuadamente de partes - de um mero poder subsidiário, residual, excecional e discricionário do julgador quanto a tal procedimento para o transformar num verdadeiro poder-dever (ou, pelo menos e segundo ABÍLIO NETO, num poder discricionário vinculado), a exercer na primeira linha de combate da ação, quando necessário para a boa e correta composição do litígio e que é judicialmente sindicável por via recursória, cenário esse a que não é estranho o reforço dos princípios do inquisitório e da gestão processual por parte do juiz que se mostram previstos, entre outros, nos artigos 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6 - que aprovou o novo Código de Processo Civil - e 2.º, 3.º, 5.º, n.º 2, 6.º, 7.º, 526.º, 547.º, 590.º e 602.º do NCPC.»[9]

Sucede que, in casu, tal como flui de tudo o supra exposto, entendemos que tal não se encontra tutelado, designadamente à luz do «direito à prova constitucionalmente reconhecido (art.º 20º da Constituição da República Portuguesa)» – como sustentado nas alegações recursivas.

É que, como já foi doutamente sublinhado a propósito do princípio do inquisitório consagrado no art. 411º do n.C.P.Civil – que é o critério matricial neste domínio! – «Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de propostos pelas partes, na medida em que necessários ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. Daqui se pode extrair, a contrario, que lhe cabe rejeitar os meios de prova desnecessários, dentro dos limites em que o direito fundamental do acesso à justiça o permita.»[10]  

Nestes termos e sem necessidade maiores considerações, improcedem as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

(…)

                                               *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Custas pelo A./recorrente.

                                         Coimbra, 23 de Abril de 2024

                                                         Luís Filipe Cravo

                                                           Vítor Amaral

                                                           Alberto Ruço


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Vitor Amaral
  2º Adjunto: Des. Alberto Ruço
[2] No qual preliminarmente se dispensou a realização da audiência prévia.
[3] Decorre do art. 410º do n.C.P.Civil que a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
[4] Citámos FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, in “Direito Processual Civil”, Livª Almedina, 2015, vol. II, a págs. 220.
[5] Ex vi do previsto no art. 346º do C.Civil.
[6] Atente-se que até no “Doc. 4” junto com a Réplica, com a designação de “DOCUMENTO PARTICULAR DE RECONHECIMENTO DE SINAL”, é o próprio A. a reconhecer/declarar que recebeu a quantia de € 27.500 em «dinheiro “vivo”»…
[7] Neste particular se perfilhando o entendimento de que a requisição pelo juiz por requerimento da parte é um “meio subsidiário” - vide, em geral, LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 255-256.
[8] Por referência ao constante do nº4 do art. 7º do n.C.P.Civil.
[9] Neste sentido a Decisão Individual de 03-05-2016 do TRL, proferida no proc. nº. 3149/15.1T8BRR-A.L1-4, acessível em www.dgsi.pt/jtrl
[10] Citámos LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 208.