Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
197/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. FERNANDES DA SILVA
Descritores: INFRACÇÃO - REPOUSO DURANTE A CONDUÇÃO
Data do Acordão: 03/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 8º, Nº 1, DO REG. CEE 3820/85, DE 2012; 7º, Nº 1, DO DL 272/89, DE 19/8; 4º E 9º, Nº 1, AL. D), DA LEI Nº 116/99, DE 4/8 . ARTº 614º DO ACTUAL CÓDIGO DE TRABALHO
Sumário:

: I – Conforme decorria da previsão constante do artº 4º, nº 1, al. a), da Lei nº 116/99, de 4/6 ( regime legal anterior ao actual Código de Trabalho, e que este expressamente revogou, conforme artº 21º, nº 1, al. aa), da Lei 99/2003 ) nas situações de facto como a decorrente dos autos, em que embora a materialidade dos elementos da tipificada infracção fosse praticada pelo condutor, trabalhador dependente, a punição da respectiva entidade patronal encontrava expresso suporte legal na disposição que integrava o falado normativo, em cujos termos se cominava que “ são / eram responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das coimas a entidade patronal ... “ .
II – Assim, para além da sanção que era possível aplicar ao motorista, que seria o imediato autor material do ilícito, o que derivava desde logo do disposto nos artºs 1º, nº 1, da Lei 116/99 e do artº 7º, nºs 1, 2 e 6 do DL 272/89, de 19/8, por força da lei a dita responsabilidade transmitia-se ao seu empregador, no interesse de quem o trabalhador actua, salvo ocorrência de qualquer causa de exclusão de culpa ou de ilicitude .
III – Porém, com a entrada em vigor do actual Cód. de Trabalho operou-se a revogação expressa de toda a referida Lei 116/99 ( artº 21º, nº 1, al. aa) da Lei que aprovou o dito código ), não havendo naquele diploma normativo idêntico ao aludido artº 4º, nº 1 da Lei 116/99, pelo que tem de se entender que o sujeito da referida contra-ordenação é quem a pratica ( o motorista ), apenas podendo também responder a sua entidade patronal desde que no auto de notícia conste materialidade fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade empregadora, quer seja a nível da sua exclusiva autoria, quer como co-autora, quer a título de cúmplice ( artºs 614º do C. de Trabalho e 26º e 27º do Código Penal ) .
IV- Não havendo no auto de notícia factos que permitam a imputação directa da prática do referido ilícito à empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em processo por contra-ordenação com base nos citados preceitos .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I –

1 – O IDICT, Delegação de Viseu, sob auto de notícia levantado pela BT da GNR, aplicou à arguida «AA», conforme decisão de fls. 45, a coima de 800 Euros, por infracção às normas aí identificadas, constantes do art. 7º/1 do DL. 272/89, de 19 de Agosto, na redacção da Lei 114/99, de 3/8 (infracção grave), com referência ao art. 7º do Regulamento CEE 3820/85 e a que corresponde, de acordo com os arts. 7º/3, c), e 9º, c), da Lei 116/99, a coima variável entre 648,44 Euros e 1.795,67 Euros.

2 – Inconformada, a arguida apresentou no Tribunal competente recurso de impugnação judicial, que, pela sentença constante de fls. 108 e seguintes, a julgou improcedente.

3 – Ainda irresignada, recorre agora para esta Instância, alegando e concluindo assim:
. A douta sentença sob recurso não se pronunciou sobre a irregularidade da decisão administrativa invocada pela recorrente, no que concerne à falta de fundamentação;
. Tratando-se de uma questão que devia conhecer, a sentença é nula nos termos do art. 379º/1 do C.P.P.;
. O processo administrativo está ferido de nulidade, porquanto as testemunhas arroladas pela recorrente não foram ouvidas, apesar de ter sido requerido o adiamento e justificada a falta;
. Foi, pois, violado o art. 50º do DL. 433/82;
. A recorrente vem acusada de o seu motorista não ter respeitado o período de interrupção da condução previsto no art. 7º/1 do Reg. Com, n.º 3820/85;
. Nenhum comportamento ilícito e censurável é imputado à recorrente;
. A recorrente apenas é condenada por ser a entidade patronal do motorista em causa;
. É verdade que a entidade patronal é um – e não único – sujeito responsável pelas contraordenações laborais, nos termos do art. 4º da Lei n.º 116/99;
. Porém, nos termos do art. 7º, n.º6, do DL. 272/89, os condutores também são sujeitos de sancionamento;
. As normas em causa, atenta a sua natureza específica e a actividade que lhes está subjacente, direcciona o cumprimento das mesmas para o próprio motorista;
. Para que a entidade patronal possa ser condenada pela prática da contraordenação prevista no art. 7º/1 do DL. 272/89, bem como de qualquer outra, algum comportamento tem de lhe ser imputado;
. Não pode ser condenada com base numa responsabilidade objectiva que não está prevista na lei;
. No entanto, a sentença sob recurso não lhe imputa nenhum comportamento que possa ser tipificado na contraordenação que lhe imputa;
. Apenas parte da presunção da sua responsabilidade;
. Aplicando-se subsidiariamente as normas reguladoras do processo penal, a condenação não pode assentar em presunções, mas sim em factos concretos;
. Não se verificam os pressupostos da tipicidade subjectiva para que possa ser imputada à recorrente a infracção de que vem acusada;
. A falta de descrição dos factos imputados à recorrente e de fundamentação da decisão, nos termos do art. 58º do DL. 433/82, torna a decisão irregular.

Deve a sentença ser alterada, determinando-se a absolvição da recorrente.

4 – Respondeu o Ministério Público, concluindo no sentido da confirmação do julgado.


Recebido o recurso e colhidos os vistos devidos, vamos decidir.

II –
- DOS FACTOS
Vem assente a seguinte factualidade:
. No dia 28.11.2002, pelas 10:40 horas, ao Km. 91 do IP5, área de Viseu, o condutor AB tripulava o veículo pesado de mercadorias (tractor) de matrícula AC, propriedade da recorrente, ao serviço desta;
. Objecto de acção de fiscalização por banda da GNR-BT, DT de Viseu, o Sr. Guarda autuante verificou então, pela análise do ‘disco-diagrama’ de tacógrafo de fls. 4, que o referido condutor, no dia 27.11.2002 tripulara o dito veículo ao serviço da recorrente, nomeadamente durante os seguintes períodos: das 16:30 às 18:40 horas e das 18:45 às 22:15 horas;
. Aqueles períodos de condução verificaram-se em Portugal e em Espanha e foram realizados pelo aludido motorista ao serviço da recorrente;
. A recorrente dedica-se à indústria e prestação de serviços no âmbito do transporte rodoviário de mercadorias;
. Na última semana de Outubro de 2001 o Quadro de Pessoal da empresa integrava 123 trabalhadores;
. No exercício de 2000 a recorrente declarou um volume de negócios de 381.026 contos – cfr. fls. 96 e seguintes;
. O referido AB realizou os mencionados tempos de condução ao serviço da empresa recorrente e segundo as instruções/orientações que esta lhe dirigiu.

2 – O DIREITO
Sabido que, por via de regra, esta Instância conhece apenas da matéria de direito nos recursos, como este, interpostos das sentenças ou despachos proferidos na impugnação judicial sobre decisão das autoridades administrativas, podendo, além do mais, alterar ou anular a decisão recorrida sem qualquer vinculação aos termos e/ou sentido da decisão – art. 75º do DL. 433/82, de 27 de Outubro – avancemos para a apreciação do caso que ora nos vem proposto.

Compulsado o acervo conclusivo constata-se que a Recorrente, para além da suscitação de algumas (pretensas) irregularidades de natureza formal, assenta o motivo essencial da sua reacção na questão da sua irresponsabilidade pela prática da imputada contra-ordenação, com o argumento maior de que nenhum comportamento ilícito e censurável lhe vem imputado, acabando apenas por ser condenada pelo facto de ser a entidade patronal do identificado motorista.

Mesmo que assim não fôra, a circunstância de entretanto ter entrado em vigor o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, com um regime sancionatório globalmente considerado mais favorável, sempre nos colocaria a questão prévia da ponderação da sua aplicabilidade à arguida, apesar da imputada infracção ter sido cometida em data anterior ao início da vigência da nova Codificação – art. 3º, n.º2, do DL. 433/82.

Conforme decorria da previsão constante do art. 4º, n.º1, a), da Lei 116/99, de 4 de Junho, (que o Código do Trabalho expressamente revogou, 'ut' art.21º, n.º1, aa) da Lei 99/2003), nas situações de facto, como a decorrente dos Autos, em que embora a materialidade dos elementos da tipificada infracção fosse praticada pelo condutor, trabalhador dependente, a punição da respectiva entidade patronal encontrava expresso suporte legal na disposição que integrava o falado normativo, em cujos termos (e sob a epígrafe ‘Sujeitos responsáveis pela infracção’) se cominava que ‘são/eram responsáveis pelas contra-ordenações laborais e pelo pagamento das coimas a entidade patronal’...

Em tal prescrição normativa se apoiou e estruturou entendimento jurisprudencial sustentado nesta Relação e Secção nas diversas intervenções afins dos últimos tempos, segundo o qual – e independentemente da possibilidade de aplicação da sanção directamente ao condutor do veículo, em casos contados, 'ex vi' dos arts. 7º, n.ºs 1, 2 e 6 do DL. 272/89, de 19/8, na redacção do art. 7º/2, da Lei 114/99, de 3/8 e 1º/1 da Lei 116/99) – a responsabilidade contra-ordenacional se transmitia, nessas circunstâncias, de forma praticamente ‘objectivada’ ao empregador, (...ressalvados naturalmente os casos da verificação de qualquer causa excludente de culpa ou de ilicitude), no interesse de quem agia o motorista, necessariamente.

Mas, como já se disse, esta previsão normativa foi entretanto revogada, não se vendo no novo regime, institucionalizado pelo Código do Trabalho, disposição legal semelhante!

Como já se concluiu noutro Aresto desta Secção (o tirado no Rec. 3658/03, que seguimos de perto, por absoluta coincidência de perspectiva e fundamentação jurídica), a norma ‘homóloga’ do Código do Trabalho, (que apenas se aproxima da previsão revogada...), é a constante do art. 617º, que dispõe sobre os sujeitos das contra-ordenações laborais, mas em termos bem diversos, não resultando nenhum contributo relevante para o efeito da definição de ‘contra-ordenação’ estampada no art. 614º.

Isto não nos parece significar, todavia, que se possa excluir ou afastar, sem mais e por regra, a responsabilidade da entidade patronal, nas situações ou casos em que o sujeito directo da prática da infracção não seja o empregador, mas antes o seu trabalhador.
Sempre se imporá, porém, a nosso ver, que, para que possa equacionar-se a responsabilização da entidade patronal, se faça constar do respectivo Auto de Notícia ou Participação, a existência de factos constitutivos da materialidade da infracção directamente imputada ao empregador, em qualquer uma das formas de responsabilização penal/contra-ordenacional, seja a autoria, a co-autoria ou a cumplicidade – arts. 26º e 27º do Cód. Penal, aplicáveis 'ex vi' dos arts. 32º do DL. 433/82 e 615º do Código do Trabalho.

E, compulsados de novo os Autos, logo se verifica que em parte alguma das peças constituídas pelo Auto de Notícia, decisão sancionatória ou mesmo sentença ora impugnada, se imputa qualquer materialidade dos factos a prática do empregador, antes se retira que a mesma foi preenchida exclusivamente pela conduta do motorista/trabalhador.

Importará recordar que não está afastada – antes pelo contrário – a possibilidade de responsabilização directa do condutor em determinadas circunstâncias, maxime as concernentes a ilícitos relativos à circulação e exploração de viaturas de transportes rodoviários, nomeadamente quanto ao cumprimento de qualquer disposição relativa aos tempos de condução e repouso e interrupções de condução.
Já assim era nos regimes legais anteriormente vigentes.
(Veja-se, v.g., o DL. 491/85, de 26/11, revogado pelo regime anteriormente vigente).
E assim continua a ser, como resulta dos arts. 6º e 7º do Regulamento CEE n.º 3820/85 e dos arts. 7º, n.º6, 8º e 13º do DL. 272/89, de 19 de Agosto.

É certo que, nos termos do art. 15º desse Regulamento, compete à empresa a organização do serviço por forma a dar cumprimento à regulamentação social.
Mas ao condutor compete dar cumprimento à forma (legal) da organização desse serviço.
Infringindo-o, será responsabilizado.
Veja-se, neste sentido, por exemplo, J. Soares Ribeiro, reflectindo sobre a ‘Responsabilidade Contra-Ordenacional dos Trabalhadores por Conta de Outrem’, in Questões Laborais, Ano I, n.º1, 1994, pg. 37 e seguintes.

Ora, no caso, a noticiada infracção, para poder, de algum modo, implicar a responsabilidade do empregador, deveria conter, no momento da autuação, à luz do quadro legal ora vigente, indícios de facto de que o condutor actuou por determinação e em obediência ou cumprimento de ordens claras do empregador no sentido do comportamento desviante/infraccional constatado...
...E o presente procedimento é, sobre este aspecto, absolutamente omisso.

Em resumo, aproximando a conclusão, dir-se-á:
Ante a revogação do art. 4º, n.º1, a), da Lei 116/99 – ao abrigo do qual a responsabilização da entidade patronal era então possível, porque legal, e em cujos termos foi condenada – deixou de haver suporte normativo para, com base tão-só nos factos considerados no procedimento administrativo, (Auto de Notícia e decisão sancionatória), determinar, de algum modo ou por qualquer forma de actuação possível, a responsabilização/condenação da Entidade Patronal.
E, face a isto, não pode a mesma vir a sofrer qualquer punição pela prática de um facto que a nenhum título lhe foi/é imputado.

Acrescente-se, em remate, que a referência do art. 7º/2 do DL. 433/82 à responsabilização das pessoas colectivas ou equiparadas pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos, em exercício de funções, não pode contemplar como tal um seu trabalhador, sendo insustentável, como chegou a defender-se, que o trabalhador dependente possa, enquanto tal e para tal efeito, ser considerado ’representante’ do ente colectivo.
Como esse fundamento não colhe para daí alcançar a responsabilização da Entidade Patronal, igualmente não serve para o efeito o que se pretendesse retirar do art. 15º/1 do Regulamento CEE n.º 3820/85 ou do teor do Regulamento seguinte, o 3821/85, de 20/12, nada permitindo presumir – e menos no domínio do direito sancionatório, onde o recurso a presunções para efeitos subsuntivos se mostra vedado... – que a não observância das regras relativas ao repouso na condução seja devida à incorrecta organização do empregador ou a negligência sua no cumprimento do dever de fiscalização que a norma lhe impõe.

Não vemos, pois – sempre com ressalva do respeito devido por quem tenha mais esclarecido entendimento e possa achar o contrário – que, face ao actual quadro normativo e com base nos factos fixados, se possa, nos termos sobreditos, sustentar a responsabilização da Entidade Patronal.

III –
Em conformidade com o exposto – e porque se deve aplicar ora o regime mais favorável, apesar de a infracção ter sido praticada antes da entrada em vigor do Código do Trabalho, como se disse já – determina-se a absolvição da Recorrente.
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Sem tributação.
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COIMBRA,