Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MOREIRA DO CARMO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES BEM COMUM DO CASAL AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE ATRAVÉS DA USUCAPIÃO OU ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA | ||
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Data do Acordão: | 05/21/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA, COM VOTO DE VENCIDO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 122.º, 1 E 2 E 130.º, 1, DA LOSJ ARTIGOS 206.º, 2; 947.º E 1014.º, 4, DO CPC | ||
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Sumário: | i) Os juízos de família e menores não são competentes em razão da matéria para tramitar acção declarativa instaurada na sequência de controvérsia ocorrida em inventário requerido após divórcio para apurar se um imóvel é bem comum do casal ou não, quando está em jogo questão de direito de propriedade sobre esse imóvel, com origem em usucapião ou acessão industrial imobiliária. | ||
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Decisão Texto Integral: |
I – Relatório
1. AA, residente em ... propôs acção declarativa contra BB, residente em ..., pedindo a condenação da ré: a) A aceitar e reconhecer o estatuto de bem comum do casal, por usucapião (artºs 1287 e 1294 a) CC), ao edifício e prédio, com as especificações registrais, inscrito em nome de A. e R, ex-cônjuges, referidas no ponto 7 desta p.i, construção erguida e incorporada em pré-existente fração predial desanexada de prédio de outrem, que lhe foi doada a ela R. (e, por isso, retirada do mercado; ou fonte de dívida matrimonial, para com ela mulher e por um valor a estimar no devir do Inventário para a partilha divorcista), tal como são, casa de morada de família, prédio urbano correspondente e de implantação do edifício, em si e por si mesmos - bens comuns do casal dissolvido por divórcio - provindo-lhe, no limite, ao ex-casal, a parcela de terreno - solo, por acessão imobiliária, nos termos dos artºs 1316, 1317 d); 1340/1343 CC. b) Seja declarado que o Autor é legítimo proprietário de ½ desse prédio urbano, casa de morada de família, incluindo a parcela de terreno em que assenta, direito que adquiriu por usucapião e, quanto a esta última parcela de terreno de implantação do edifício, no limite, por força de aceção imobiliária industrial, condenando o tribunal a R. a reconhecer-lho. c) Ou seja: que, em alternativa, pelo tribunal seja declarado que o Requerente é legítimo proprietário de ½ indivisa da parcela de terreno em que assenta o prédio urbano, casa de morada de família, cuja construção executou e pagou em conjunto com a Ré, e que, por acessão industrial imobiliária, adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio erguido e terreno em que tal edifício assenta. d) No limite, constitutiva e retroativamente, assim como o A. peticiona, contra o pagamento à R. de metade do respetivo preço ao tempo da incorporação, € 500,00, ou de outro montante fixado por debate inventarial, condenando-se a R. a reconhecer-lho. e) E sobretudo a co-entregar, o edifício, por metade, ao Autor, ou a consentir-lhe, nele, uma co-habitação e presença de dono de metade indivisa, como até aqui. Alegou, em suma, a título principal, o reconhecimento de que o bem que identificou sob a verba 12 da relação de bens que apresentou no inventário para separação de meações que corre termos no Juízo de Família e Menores ... sob o nº 3439/17.... é bem comum do casal. Mais alegou que a ré reclamou dessa relação de bens, considerando que a verba em causa deveria ser eliminada, pelo facto de lhe ter sido doado por seus pais o terreno no qual foi implantado o edifício. Na contestação apresentada, a ré invocou a excepção da litispendência alegando que tal questão foi suscitada no aludido inventário, que se encontra pendente, não tendo ainda havido decisão sobre a mesma. * Foi proferido despacho que julgou o Juízo Central Cível ... incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção por ser competente o Juízo de Família e Menores .... * 2. O A. recorreu, concluindo que: A/Como pode ver-se da circunstância jurisprudente de, no limite, ocorrer pura e simplesmente uma coincidência entre o julgamento da propriedade por acessão, e o julgamento da propriedade por usucapião. B/ O recorrente instaurou o presente processo onde alega usucapião em favor do casal, por força do prazo da posse, cumprido, pública e pacificamente, desde o registo predial em nome dos cônjuges. c/ O juiz do inventário não fixou a ordem de apreciação do incidente e a competência jurisdicional para si próprio, no processo, sob o aqui thema decidendum que é o direito de propriedade do casal sobre a verba 12. D/ Não há, pois, repetição de causas, para os efeitos do artº 580 CPC. D/ Nos termos do artº 117º da Lei nº 62/2013, na redação que lhe foi dada pela Lei 40- A/2016 de 22 de Setembro, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ): (… transcrição do texto legal) D/ Errou, pois, a sentença ao não a aceitar, como não aceitou, e com base no hiato, ao decidir que o Tribunal Central Cível ... é incompetente em razão da matéria, uma vez que o que está em causa é um direito de propriedade da verba nº 12 da Relação de bens do imóvel da casa de morada de família, no limite, ocorrer pura e simplesmente uma coincidência entre o julgamento da propriedade por acessão, e o julgamento da propriedade por usucapião. E/ Deverá, s. m. o., ser reformada, a decisão recorrida, no sentido de prosseguir o feito para julgamento e declarado competente o Tribunal Juízo Central Cível ... - Juiz ..., nos termos do artº 117º da Lei nº 62/2013, na redação que lhe foi dada pela Lei 40-A/2016 de 22 de setembro, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e o Recorrente não ser condenado em custas judiciais. (…) Vossas Excelências farão, enfim, a melhor JUSTIÇA do caso. 3. Inexistem contra-alegações.
II – Factos Provados
A factualidade a considerar é a que emerge do Relatório supra.
III – Do Direito
1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas. Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte. - Competência material do Juízo Central Cível ....
2. Na decisão recorrida escreveu-se que: “Dispõe o artº 117º da Lei nº 62/2013, na redacção que lhe foi dada pela Lei 40-A/2016 de 22 de Setembro, que aprovou a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ): 1 – Compete aos juízos centrais cíveis: a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000; b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei. 2 - Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções. (…) Por sua vez determina o artº 122º, que: Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Acções de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Acções de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Acções intentadas com base no artigo 1647º e no nº 2 do artigo 1648º do Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei 47344 de 25 de Novembro de 1966; f) Acções e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família. l) Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade e preparar e julgar as acções de impugnação e de investigação da maternidade e da paternidade. 2- Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência e anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.1Realce nosso Como resulta do pedido formulado, nos autos discute-se a partilha dos bens que foram do extinto casal composto pelo autor e pela ré, discutindo-se pois os efeitos patrimoniais do divórcio, afigurando-se serem pertinentes as observações tecidas pelo Exmº Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo 3654/20...., em que afirma: A solução adoptada (a atribuição de competência ao Juízo de Família e Menores) representa um desvio a um princípio de especialização. Mas esse mesmo desvio acontece sempre que haja questões distintas a decidir na órbita da competência por conexão de jurisdições especializadas. No caso, a proposição em separado de uma determinada acção decorrente do inventário para separação de meações e dos resultados patrimoniais a que o mesmo conduziu não determina automaticamente uma separação de competência jurisdicional na apreciação das questões que o divórcio e os seus efeitos venham a suscitar. Tal como naquele processo, nos presentes autos estão em jogo questões decididas e não decididas em inventário, discutindo-se, volte-se a sublinhar, os efeitos patrimoniais do divórcio, pelo que a competência para a sua apreciação cabe ao Juízo de família e Menores, nos termos do disposto no artº 122º nº 2 da LOSJ. Assim, está-se perante uma situação de incompetência absoluta, em razão da matéria (cf. artº 96º do CPC), a qual é de conhecimento oficioso (artºs 97º, 577º al. a) e 578º, todos do CPC), sendo este o momento próprio para dela conhecer (artºs 98º e 99º do CPC), o que implica a absolvição da ré da instância (artºs 99º nº 1, 278º nº 1 al. a), 576º, 577º al. a) e 578º, todos no CPC).”. O A. discorda (cfr. as respectivas conclusões de recurso). E com razão. Vejamos brevitatis causa. O que está controvertido é a competência material do tribunal. Dada a decisão tomada é esse o objecto do recurso. Portanto, as conclusões A/ a D/ do recurso, respeitantes a litispendência, são irrelevantes. Quanto à competência material (conclusões 2º e 3ª D/ e E/) os textos legais pertinentes são os acima transcritos. A interpretação sobre normas de competência material é quase inteiramente formal ou literal, só em situações absolutamente desviantes se buscando outra solução. O preceito estatuído no referido art. 122º, nº 2, já é um desvio à regra natural prevista no nº 1, que atribui competência especializada aos tribunais de família e menores nas matérias aí previstas. Mas é desvio por vontade expressa do legislador. Tudo o que aí não caiba é da esfera de competência, no âmbito cível, da competência dos juízos centrais cíveis (ou juízos locais cíveis – art. 130º, nº 1, da indicada Lei), que não sejam atribuídas a outros tribunais/jurisdições. Seguindo, por conseguinte, a regra, a competência para dirimir o presente processo será do tribunal central cível, porque a apontada excepção só se dá em relação aos inventários especificados no aludido art. 122º, nº 2. Alude-se na fundamentação jurídica a uma passagem de despacho do Sr. Presidente da Relação de Coimbra, que, contudo, não tem, só por si, valor argumentativo convincente e vinculativo. No nosso caso, não vislumbramos que haja questão a decidir na órbita da competência por conexão de jurisdição especializada. Que os inventários especificados no indicado art. 122º, nº 2, são da competência do tribunal de família e menores é líquido face à referida norma que assim o expressa. A questão está, agora, em saber, se corre nesse mesmo tribunal outro tipo de processos não conexionados com o inventário, fora de previsão especial da lei, como acontece nas situações previstas nos arts. 947º e 1014º, nº4, do NCPC. Dupla justificação esta que não conseguimos acompanhar. Primeiro e começando por este último argumento. O mesmo é falível, porque se pode reverter contra ele.
IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, se declarando que o Juízo Central Cível ... – Juiz ..., é o materialmente competente, mais se ordenando que os autos prossigam. * Sem custas. * Coimbra, 21.5.2024
Moreira do Carmo
Fonte Ramos Rui Moura
Voto de vencido: Confirmaria a decisão recorrida, porquanto mantenho o entendimento expresso no acórdão de 16.5.2023-apelação 612/22.1T8CTB.C1 (publicado no "site" da dgsi), de que fui relator, assim sumariado: «1. Destinando-se o processo de inventário, nomeadamente, à partilha dos bens comuns do casal [art.º 1082º, alínea d), do CPC] e sendo da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial [art.º 1083º, n.º 1, alínea b), do CPC], à remessa para os meios comuns prevista no art.º 1092º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do CPC, determinada, por exemplo, por juízo de família e menores no âmbito de processo de inventário subsequente a divórcio, que nele tramita, subjaz a necessidade de uma mais larga indagação e discussão da matéria de facto. 2. Exercendo os juízos de família e menores as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos (art.º 122º, n.º 2, da LOSJ), a remessa para os meios comuns (ou ação comum) significa, tão só, lançar mão de forma ou meio que permita uma mais larga e avisada indagação e discussão de uma mesma matéria que se considerou não poder/dever ser incidentalmente apreciada e decidida no próprio processo de inventário apenso. 3. O Juízo de Família e Menores é materialmente competente para a tramitação e o conhecimento da questão a dilucidar - além das inerentes (e comuns) garantias processuais e probatórias, intervém o Juízo especialmente vocacionado para apreciar, entre outras, matérias que contendam com “as tradicionais e marcantes particularidades do estado de casado”, as especificidades da “comunhão conjugal” e os “três patrimónios” convocados na ponderação dessa realidade.»
J. Fonte Ramos
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