Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CARLOS GIL | ||
Descritores: | ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CADUCIDADE INCONSTITUCIONALIDADE DESPACHO SANEADOR | ||
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Data do Acordão: | 09/21/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | BAIXO VOUGA / OLIVEIRA DO BAIRRO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTS.1816, 1817, 1871, 1873 CC, 510, 511 CPC, 18, 26, 36 CRP | ||
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Sumário: | 1. - Em acção sobre o estado das pessoas, na fase do despacho saneador, apenas podem considerar-se assentes factos provados por documento autêntico. 2. - A posse de estado ( arts. 1816º, nº 2, alínea a) e 1871º, nº 1, alínea a) do CC ), decompõe-se em três elementos distintos - o nome; o tratamento; e a fama. Existe nome quando o filho chama o pretenso pai como pai e este, por sua vez, chama ao investigante filho. O tratamento consiste no comportamento do pretenso pai para com o investigante que, visto exteriormente, cria uma aparência reveladora de laços de filiação biológica. A fama é a reputação de que goza o investigante, junto da generalidade das pessoas que o conhecem ou que sabem da sua existência, de que o seu pai é o investigado. 3. Não padece de inconstitucionalidade material o prazo de caducidade de investigação da paternidade que permite o exercício desse direito em tempo útil, como sucede com os prazos previstos no nº 1 e na alínea b), do nº 3, do artigo 1817º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril. 4. O conhecimento directo do pedido na fase do despacho saneador pressupõe que estejam assentes todos os factos necessários para o efeito de acordo com as diversas soluções plausíveis das questões de direito que importa resolver. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. Relatório A 09 de Junho de 2009, no Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro, da Comarca do Baixo Vouga, M C (…) instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra M L (…) e M H (…) pedindo que se declare que é filha de J D (…), com todas as consequências legais, requerendo ainda produção antecipada de prova pericial em ordem a determinar a sua filiação biológica. Em síntese, a autora alegou ter nascido a 18 de Março de 1949, sendo registada como filha de M R (…), então solteira, ficando a sua paternidade omissa. Porém, seu pai é J D (…), falecido a 23 de Dezembro de 2008, no estado de casado com M L (…), tendo deixado uma filha de nome M H (…), pois que namorou com a mãe da autora durante cerca de sete anos, com ela mantendo relações de cópula completa durante os primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, não tendo a mãe da autora mantido relações sexuais com qualquer outro homem nesse período. Alega ainda que o falecido J D (…) sempre afirmou e reconheceu ser o pai da autora e que era reputado pai da autora por todas as pessoas que o conheciam, tendo-a tratado por “filha linda”, justificando a não perfilhação da autora por pressões de sua mulher e filha. Efectuada a citação de ambas as rés para os termos da acção, apenas a ré M L (…) contestou invocando a caducidade do direito da autora, alegando que fundando a autora a sua pretensão em posse de estado, a acção teria que ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data da cessação do tratamento da autora como filha pelo pretenso pai, pelo que teria que alegar factos nesse sentido até nove meses antes da morte do indigitado pai, sendo certo que este adoeceu em Junho de 2007 e desde essa data até ao seu óbito a autora não o visitou, nem perguntou se precisava de alguma coisa, impugnou a generalidade da factualidade articulada pela autora, opôs-se à realização de prova pericial antecipada e concluiu pela total improcedência da acção. A autora replicou pronunciando-se pela improcedência da excepção peremptória arguida pela contestante. A 05 de Janeiro de 2010, foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência preliminar, proferiu-se despacho saneador tabelar e conhecendo-se especificamente da excepção peremptória de caducidade suscitada pela contestante escreveu-se: “Considerando: Que a Autora, M C (…), nasceu no dia 18/03/1949, com paternidade omissa (fls. 27); Que a mesma desde muito jovem tem conhecimento que o investigado J D (…)s era o seu pai, com o qual chegar a falar por várias vezes pedindo-lhe a perfilhação; e que a presente acção foi proposta no dia 09/06/2009 (fls. 18); Visto o disposto no artigo 1817º, nº 1 e 3, al. c) do C. Civil, na redacção atribuída pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, aplicável ex vi art.º 1873º, do mesmo compêndio legal, mostra-se caduco o prazo legal para a propositura da presente acção, o que consubstancia uma excepção peremptória de direito material, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição das Rés do pedido – artºs 279º, 296º, 298º, nº 2, 328º, 329º, 331º, nº 1 e 333º, nº 1, todos do C. Civil, e 493º, nºs 1 e 3 e 496º, ambos do C.P. Civil. Pelo exposto, pela verificação da excepção peremptória de caducidade, absolvo as Rés do pedido.” Inconformada com esta decisão, M C (…) interpôs recurso de apelação contra a mesma, oferecendo as seguintes conclusões: “1)- Este recurso visa evitar erro judiciário e encontrar a solução justa, que só pode ser a que não deixe esta filha, a Recorrente, sem poder demonstrar inequivocamente, que e para todos os efeitos legais, filha de J D (…) 2)- Como a sentença reconhece, a Recorrente nasceu em 18-03-1949, tem desde muito jovem conhecimento de que o investigado era seu pai, com o qual chegou a falar por várias vezes, pedindo-lhe a perfilhação – e que à acção de investigação foi proposta em 9-06-2009, menos de seis meses após o falecimento do investigado seu pai J D (…), em 23 de Dezembro de 2008. 3)- A sentença atribui a paternidade – era seu pai – e recusa à filha Recorrente, que documente essa realidade – que constitui oposição entre os fundamentos e a oposição – nulidade de sentença do arte 668, nº 1, al c) do C.P.C. 4)- E sem referência a quaisquer outros factos ou razões que não sejam as afirmações transcritas na conclusão 2ª, decide sem justificação, mostrar-se caduco o prazo legal para a propositura da acção, o que consubstancia excepção peremptória, na redacção atribuída pela Lei 14/2009 – disposto no arte 1817 nº 1 e 3 c) do Código Civil. 5)- Ignora ou omite os factos alegados designadamente os sumariados nestas alegações sob as alíneas “a a z”, e “A a D”. 6)- E até esqueceu a referência à conduta da Ré, impedindo a Autora de visitar o pai e que este lhe deu o dinheiro suficiente para a reparação do automóvel acidentado. Deste modo, 7)- O Juiz do Tribunal a quo desprezou toda a matéria de facto que, como consta da petição, provaria que a Autora foi, ao longo de toda a sua vida reputada e tratada como filha pelo investigado seu pai e reputada como filha pelo público. 8)- A Autora não duvidava, como ninguém nas suas condições duvidaria que existisse perfilhação ou, pelo menos, documento escrito em que o pai declarasse, sem margem para dúvidas, a sua paternidade – e mantém esse convencimento, com a fundada suspeita de que a Ré é que terá feito com que o documento mesmo que existisse não aparecesse. 9)- É efectivamente verdade que o investigado é pai da Autora, que requereu perícia pelo I.M.L. de Coimbra, ou pelo IPATIMUP, (Universidade do Porto) que demonstrasse a paternidade biológica (que o investigado é o pai da Autora). 10)- O Tribunal informou-se do que era necessário para poder realizar-se a Perícia Hematológica – e por não ser impossível fazê-la sem a colheita de órgãos no cadáver do investigado é que se manteve a admissão da Perícia, mas sem carácter de urgência. 11)- E o Exame ou Perícia admitidos foram dispensados – o que era necessário deixou de o ser – mas decidiu-se que essa paternidade existia, e considerou-se provada a caducidade. 12)- Esqueceu-se que a data do nascimento da Autora a acção podia ser proposta em vida do pretenso pai ou dentro do ano posterior à morte (arte 37 do Decº nº 2 de 24-12-1910). 13)- Sumariou-se e transcreveu-se a evolução dos textos constantes da Lei, do Código de 1967, do de 1977, da Lei nº 21/98, do Acórdão do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade do nº 1 do arte 1817 e a Lei 14/2009 de 1 de Abril) e em todos há possibilidade que se mostrou verificada segundo a matéria constante da petição que o juiz do Tribunal a quo não quis considerar e que determinariam que a acção fora atempadamente proposta por verificadas condições que previstas na Lei ampliavam o prazo da propositura da acção e destruíram o entendimento, sem base, da sentença recorrida. 14)- Mesmo segundo a lei 14/2009, a acção foi proposta no prazo permitido e a investigante só teve conhecimento de que não estaria perfilhada após a morte de seu pai, que prometera perfilhá-la e só após a morte deste é que também não foi encontrado o documento com a declaração da sua paternidade, sempre afirmada e que se pensa que existirá 15)- Sempre a Autora gozou de posse de estado – nome, tratamento e fama tal como se deixaram descritos e evidenciados. Assim. 16)- Até a mãe do investigado tratava a Autora por neta – e as sobrinhas deste por prima – e tanto ele se considerava pai que até dinheiro lhe deu para pagar reparação do automóvel e mesmo a seguir à sua morte as pessoas vieram apresentar pêsames a Autora pelo óbito do pai. 17)- O direito à identidade e a investigar a paternidade, com as possibilidades fornecidas pela evolução da ciência, cada vez mais justificam a recusa da limitação temporal do direito à propositura da acção de investigação. Assim, 18)- A sentença é nula até mesmo por o Juiz se não ter pronunciado sobre questões que devia apreciar.” A recorrente termina as suas alegações pedindo a revogação da sentença, com a declaração de inverificação da caducidade e o prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido formulado na petição inicial. A recorrida ofereceu contra-alegações em que concluiu que sendo a causa de pedir da acção a posse de estado, a mesma deveria ter sido proposta até um ano após a cessação da posse de estado, não tendo a autora alegado factos que integrem o tratamento da autora por parte do indigitado progenitor no lapso temporal ocorrido entre 18 de Março de 2007 e 23 de Dezembro de 2008, pugnando pela confirmação da decisão sob censura. Colhidos os vistos legais e inexistindo qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora apreciar e decidir. 2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigo 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil 2.1 A decisão recorrida enferma de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia? 2.2 Atenta a causa de pedir da acção e a fase processual em que se acham os autos, o tribunal a quo estava em condições de conhecer da caducidade da acção de investigação? 3. Fundamentos de facto resultantes da prova documental autêntica junta aos autos de folhas 22 a 30 verso e que este tribunal da Relação julga provados tendo em atenção que se trata de acção sobre o estado das pessoas (artigos 490º, nº 2 do Código de Processo Civil e 354º, alínea b), este do Código Civil)[1] 3.1 M R (…) nasceu a 17 de Fevereiro de 1925, é filha de (…) e de (…), sendo seus avós paternos (…) e (…) e avós maternos (…) e (…). 3.2 J D (…), filho de (…), faleceu a 23 de Dezembro de 2008, no estado de casado com M L (…). 3.3 M C (…) nasceu a 18 de Março de 1949, é filha de M R (…), sendo seus avós maternos (…) e (…), tendo casado catolicamente, a 28 de Janeiro de 1973, com (…). 3.4 M H (…) nasceu a 08 de Fevereiro de 1952, é filha de J D (…) e de M L (…), sendo sua avó paterna (…) e seus avós maternos (…) e (…), tendo contraído casamento com (…) a 05 de Janeiro de 1970, casamento que foi dissolvido por divórcio decretado em sentença de 10 de Julho de 1986, transitada em julgado a 23 de Julho de 1986. 4. Fundamentos de direito 4.1 Da nulidade da decisão recorrida por oposição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia A recorrente imputa à decisão recorrida a nulidade decorrente de oposição entre os fundamentos e a decisão em virtude de atribuir a paternidade da autora ao falecido marido da recorrida e por recusar que a autora documente essa realidade. A nulidade derivada da omissão de pronúncia resultaria da decisão sob censura não ter conhecido da questão da caducidade tendo em conta a posse de estado invocada pela recorrente. Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que os fundamentos estejam em oposição com a decisão e o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. A nulidade decorrente da oposição entre os fundamentos e a decisão verifica-se sempre que aqueles conduzam numa certa direcção e, inopinadamente, seja proferida decisão que não se coaduna com a direcção para que os fundamentos apontavam. A nulidade decorrente da falta de conhecimento de questões decorre da violação do preceituado no artigo 660º do Código de Processo Civil. Questões são para este efeito tudo aquilo que as partes submetem à apreciação do tribunal, reclamando dele um julgamento. Nas questões estão incluídas não só as questões principais que respeitam à existência ou inexistência da relação litigiosa, mas também as questões secundárias que constituem premissas indispensáveis para a solução da questão principal[2]. A decisão sob censura é um despacho que tem para todos os efeitos o valor de uma sentença (artigo 510º, nº 3, do Código de Processo Civil), sendo certo, em todo o caso, que o regime das nulidades da sentença se aplica também aos despachos por força do disposto no artigo 666º, nº 3, do Código de Processo Civil. A oposição entre os fundamentos e a decisão apontada pela recorrente resulta, em primeiro lugar, de uma ilegal especificação de factos[3] efectuada pelo tribunal a quo, na medida em que olvidou o conteúdo preceptivo do artigo 490º, nº 2, do Código de Processo Civil e, por outro lado, da incompreensão pela recorrente do significado jurídico da figura da caducidade. Na verdade, atenta a fase processual destes autos e a circunstância da acção respeitar ao estado das pessoas, apenas factos comprovados por documento autêntico poderiam ser relevados para conhecimento da excepção peremptória de caducidade arguida pela contestante, excepção que, em todo o caso, sempre seria de conhecimento oficioso do tribunal (artigo 333º, nº 1, do Código de Processo Civil). Além disso, mesmo que se pudesse ter como assente aquela factualidade na fase processual em que os autos se encontram, não haveria qualquer incompatibilidade entre tais fundamentos e a consequência jurídica da caducidade, pois esta constitui um facto extintivo de um direito subjectivo ou faculdade legal (artigo 298º, nº 2, do Código Civil), direito ou faculdade que poderiam reunir todas as condições legais para um exercício com sucesso, mas que por efeito da inércia do seu titular no prazo legalmente previsto se extinguem por caducidade. Pelo exposto, não ocorre no caso em análise qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão tomada a final pelo tribunal recorrido. Vejamos agora se se verifica a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia. A recorrente instaurou a presente acção declarativa peticionando que seja declarado que é filha de J D (…). A autora fundamentou essa sua pretensão na alegação de factos tendentes a permitir a conclusão de que nasceu em consequência de relações de cópula completa entre sua mãe e J D (…), nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, relações exclusivas com o indigitado progenitor e ainda factos tendentes a preencher a denominada posse de estado, que constitui uma presunção legal de paternidade (artigo 1871º, nº 1, alínea a), do Código Civil), ilidível quando existam sérias dúvidas sobre a paternidade do investigado (artigo 1871º, nº 2, do Código Civil)[4]. A decisão sob censura conheceu da caducidade do direito da autora de investigar a sua paternidade com base no disposto no artigo 1817º, nºs 1 e nº 3, alínea c), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, vigente desde 02 de Abril de 2009 (veja-se o artigo 2º da Lei nº 14/2009, de 01 de Abril), previsões aplicáveis ao reconhecimento da paternidade por força da remissão constante do artigo 1873º, do Código Civil. Nos termos do nº 1, do artigo 1817º do Código Civil, conjugado com o citado artigo 1873º, do Código Civil, a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. A autora nasceu a 18 de Março de 1949 e, atenta a legislação então vigente (por força do disposto no artigo 122º, do Código Civil de 1966, em vigor desde 01 de Junho de 1967), atingiu a maioridade a 18 de Março de 1970. Assim sendo, com fundamento no nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, o direito da autora investigar a sua paternidade está extinto por caducidade desde 18 de Março de 1980[5]. De acordo com o disposto na alínea c) do nº 3, do artigo 1817º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, conjugado com o citado artigo 1873º, do Código Civil, em caso de inexistência de paternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação, a acção de investigação de paternidade pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência desse conhecimento superveniente. É ininteligível a razão que levou o tribunal a quo a invocar o disposto na alínea c) do nº 3, do artigo 1817º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril para firmar a sua conclusão de que se “mostra caduco o prazo legal para a propositura da presente acção”[6], porquanto da matéria de facto alegada pela autora para substanciar a causa de pedir da acção não se divisa que a autora tenha alegado o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação de paternidade. Refira-se que o tribunal a quo nem sequer se deu ao trabalho de determinar de modo preciso e inequívoco quando se registou a alegada caducidade do direito de acção, o que impede os sujeitos processuais, bem como este tribunal de recurso de ter a percepção precisa do fundamento ou fundamentos da decisão do tribunal. No entanto, é patente que a decisão sob censura omitiu o conhecimento da excepção peremptória de caducidade à luz da alegada posse de estado, sendo notório que a autora alegou factos integradores, na sua perspectiva, da presunção legal de paternidade decorrente de posse de estado. Neste caso, conforme estabelece a alínea b), do nº 3, do artigo 1817º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, o prazo trienal de caducidade apenas se inicia com a cessação de tratamento como filho pelo pretenso pai. Impunha-se assim que o tribunal a quo apreciasse da verificação da caducidade do direito de investigar a paternidade à luz da figura da posse de estado ou, por falta de elementos, relegasse para final o conhecimento de tal excepção. Ao não proceder a esta necessária análise, é inquestionável que a decisão recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, cabendo a este tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 715º, nº 1, do Código de Processo Civil, conhecer da questão cuja cognição foi omitida pelo tribunal a quo. 4.2 Da caducidade da acção de investigação A relação de filiação biológica é um estado de facto duradouro e, por isso, no que respeita à aplicação das leis no tempo, cai na previsão da segunda parte do nº 2, do artigo 12º, do Código Civil[7]. Como é assinalado pelo autor que se citou na nota que antecede[8], o decurso do prazo fixado na lei para a investigação da maternidade ou da paternidade importa apenas a extinção de uma faculdade legal e não verdadeiramente a extinção de um direito subjectivo. O direito potestativo só se actualiza com a propositura da acção. Daí que relativamente a tais faculdades legais deva a lei nova que vem fixar um novo prazo aplicar-se mesmo relativamente a casos em que já expirara o prazo de caducidade previsto na lei anterior. Por isso, por estar em causa uma simples faculdade legal e não um verdadeiro direito subjectivo, pode a nova lei fixar um novo prazo ou abolir tal prazo, em termos de determinar o renascimento de uma faculdade legal extinta à sombra da lei anterior, isto apenas nos casos em que a faculdade legal não tenha sido exercida, pois que, nessa altura, converte-se em verdadeiro direito potestativo. A 02 de Abril de 2009, entrou em vigor a Lei nº 14/2009, de 01 de Abril, diploma legal que veio alterar o artigo 1817º, do Código Civil, prevendo no nº 1 um prazo de caducidade para a investigação de maternidade de dez anos após a maioridade ou emancipação do investigante e na alínea b) do nº 3, um prazo de três anos após a cessação do tratamento como filho pela pretensa mãe[9], disposições aplicáveis à investigação de paternidade, ex vi artigo 1873º, do Código Civil. A questão que ora se coloca é a de saber se o estabelecimento de um prazo de caducidade para a investigação da maternidade ou de paternidade constitui uma restrição ao direito fundamental à identidade pessoal e a constituir família (artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa), restrição vedada pelo artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e, consequentemente, materialmente inconstitucional. A resposta a esta questão obriga a distinguir a restrição de um direito fundamental de um mero limite a um tal direito. Alguma doutrina constitucional tem vindo a afirmar que a “restrição tem a ver com o direito em si, com a sua extensão material objectiva, ao passo que o limite ao exercício de direitos contende essencialmente com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular. A restrição afecta especificamente certo direito, em geral ou apenas quanto a determinada categoria de pessoas ou situações, envolvendo a sua compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam compreendidas no seu âmbito de protecção; o limite pode surgir a propósito de quaisquer direitos. A restrição funda-se em razões específicas; o limite decorre de razões ou condições de carácter geral, em princípio válidas para quaisquer direitos, como a moral, a ordem pública e o bem-estar numa sociedade democrática (artigo 29º da DUDH). O limite pode ser absoluto – vedando certo fim ou certo modo de exercício do direito – ou relativo. Neste caso, pode traduzir-se qualificadamente em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo para o seu exercício, ou de participação prévia (v.g., para realização de manifestações), ou de registo (v.g., para o reconhecimento da personalidade jurídica de associação), ou de conjugação com outros cidadãos num número mínimo (v. g., para a constituição de partidos), ou de posse de documentos (v.g., passaportes), ou de autorização vinculada (v.g., para a criação de escolas particulares e cooperativas). O condicionamento não reduz o âmbito do direito, implicando apenas, umas vezes, uma disciplina ou uma limitação da margem de liberdade do seu exercício, outras vezes um ónus ”[10]. No caso dos autos, está em causa o estabelecimento de prazos de caducidade de duração apreciável para o exercício de uma faculdade legal que se funda nos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família (artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa). O estabelecimento desses prazos, atenta a duração dos mesmos, não contende com a extensão objectiva desses direitos, razão pela qual se nos afigura que não integram uma restrição daqueles direitos fundamentais, não enfermando por isso de inconstitucionalidade material a previsão daqueles prazos de caducidade[11]. A prova da paternidade pode efectuar-se de modo indirecto, mediante a prova de factos integradores de presunções legais de paternidade. Ainda assim, mesmo nestes casos, o facto jurídico donde emerge o direito do investigante é a relação de procriação, só que, porque o investigante beneficia de uma presunção legal, apenas carece de demonstrar os factos integradores da presunção, estando dispensado de provar o facto a que ela conduz: a procriação[12]. No caso dos autos, concluiu-se já que a autora também firmou a sua pretensão de que seja reconhecida como filha de J D (…), na alegação de factos que, em seu entender, preenchem a presunção legal de paternidade denominada posse de estado. A posse de estado, como resulta das previsões dos artigos 1816º, nº 2, alínea a) e 1871º, nº 1, alínea a), ambos do Código Civil, decompõe-se em três elementos distintos[13]: - o nome; - o tratamento; - a fama. Existe nome quando o filho chama o pretenso pai como pai e este, por sua vez, chama ao investigante filho. O tratamento consiste no comportamento do pretenso pai para com o investigante que, visto exteriormente, cria uma aparência reveladora de laços de filiação biológica. A fama é a reputação de que goza o investigante, junto da generalidade das pessoas que o conhecem ou que sabem da sua existência, de que o seu pai é o investigado. No caso dos autos, são abundantes os factos alegados pela recorrente para integração do nome e da fama enquanto elementos constituintes da posse de estado. Já quanto ao elemento tratamento, os factos articulados são mais escassos, sendo certo que na réplica, a autora procedeu a uma ampliação da causa de pedir, alegando outros factos relevantes, alguns deles pertinentes para o preenchimento deste elemento. A concretização do conceito de posse de estado está sujeita a alguma flutuação doutrinária e jurisprudencial, surpreendendo-se desde posições de extremo rigorismo até posições dotadas de maior flexibilidade na caracterização dos elementos integradores da posse de estado[14]. É de admitir que os factos alegados para integrar o elemento tratamento, caso se provem, de acordo com um entendimento mais flexível do conceito de posse de estado, sejam bastantes para considerar preenchido este elemento. A decisão sob censura foi proferida na fase do despacho saneador, sem que se tenha iniciado a fase processual da instrução. O conhecimento directo do pedido em tal fase processual é viável sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (artigo 510º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil). Na nossa perspectiva, o normativo que se acaba de citar deve ser conjugado com o disposto no artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil e de acordo com o qual a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, deve ser efectuada tendo em atenção as várias soluções plausíveis da questão de direito. Nestes termos, afigura-se-nos que o conhecimento directo do pedido na fase da prolação do despacho saneador apenas é lícito se a factualidade assente for suficiente tendo em conta as diversas soluções plausíveis da questão de direito. Assim, nessa fase, ainda que a factualidade já assente seja suficiente para conhecer directamente do pedido, de acordo com a perspectiva jurídica do juiz do processo, deve este abster-se de tal conhecimento se acaso subsistir factualidade controvertida e outras soluções jurídicas forem plausíveis, não sendo os factos já assentes bastantes para decidir de acordo com tais outras perspectivas[15]. É que, a proceder de outro modo, podem os factos já assentes ser insuficientes para o julgamento do caso de acordo com outra perspectiva jurídica, em sede de recurso. Essa possibilidade ainda mais se exacerba face à corrente jurisprudencial que se vai firmando no sentido da inconstitucionalidade material dos prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade. Esta interpretação é a que mais se coaduna com o conteúdo do direito fundamental de acesso ao direito na vertente de processo equitativo e também é a que evita retrocessos processuais causados pela necessidade ulterior de ampliação da base de facto. Neste contexto, forçosa é a conclusão de que não existem elementos fácticos bastantes e assentes para conhecer da caducidade do direito da autora a investigar a sua paternidade com base em posse de estado, devendo os autos prosseguir os seus termos, com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, isto sem prejuízo de outro obstáculo a tal prosseguimento que venha a ser identificado e que exorbite do objecto desta decisão. Porém, a declaração de caducidade do direito de investigar a paternidade, na parte em que a autora firmou o seu pedido simplesmente na relação de procriação, deve manter-se, pois que desde 18 de Março de 1980 decorreram mais de dez anos sobre a sua maioridade (artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril e artigo 122º, do Código Civil de 1966, na redacção do decreto-lei nº 47334, de 26 de Novembro de 1966, em vigor desde 01 de Junho de 1967). 5. Dispositivo Pelo exposto, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto nestes autos pela recorrente, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra no seguinte: a) em julgar parcialmente procedente o incidente de nulidade da decisão sob censura, declarando-se a nulidade da mesma por omissão de pronúncia (artigo 668º, nº 1, primeira parte da alínea d), do Código de Processo Civil), pelos fundamentos supra expostos, conhecendo-se, não obstante isso, do recurso de apelação, ex vi artigo 715º, nº 1, do Código de Processo Civil; b) em revogar parcialmente a decisão proferida com data de 05 de Janeiro de 2010, determinando-se que os autos prossigam com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa com base na factualidade aduzida para integrar a posse de estado, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito, salvo se outro obstáculo a tal prosseguimento for identificado e que exorbite do objecto desta decisão e confirmando-se a decisão recorrida na parte em que declarou a caducidade do direito da autora investigar a sua paternidade com fundamento no nº 1, do artigo 1817º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 01 de Abril; c) as custas do recurso são a cargo da recorrente e da recorrida, em partes iguais. *** Fonte Ramos Carlos Querido
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