Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA P. E P. PELO ARTIGO 152º Nº 1 ALÍNEA B) DO CP. VIOLÊNCIA EMOCIONAL VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA INTIMIDAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 09/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 152.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO PENAL | ||
Sumário: | 1. Comete um crime de violência doméstica o agente que pratica actos que, embora situados em curto espaço de tempo, foram perpetrados num contexto muito particular, na medida em que foram levados a cabo pouco tempo depois de uma condenação judicial por igual delito cometido sobre a mãe de seus filhos, e depois de ter sido sujeito a outro julgamento por factos de semelhante natureza. 2. Não estão em discussão simples mensagens isoladas, mas antes, e ao invés, uma conduta similar a outras anteriores por parte do arguido e que em muito condicionaram a assistente, enquanto mulher, mãe e enquanto pessoa, obrigando-a, além do mais, a ter que mudar as suas rotinas diárias, vivendo amedrontada. 3. No fundo, estamos confrontados com uma conduta plural, composta por factos que, globalmente considerados, permitem concluir pela posição especial e particularmente desprotegida ou indefesa da assistente, afectando-a na sua dignidade humana, enquanto ser individual que é. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Juízo Local Criminal de Castelo Branco (Juiz ...), foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA …, tendo, por sentença datada de 16 de Maio de 2024, sido decidido o seguinte (transcrição):
2. Desta sentença recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): «… 2 - Entende o arguido, ora recorrente, com o devido respeito, que a pena aplicada se revela excessiva e desproporcionada, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável. 3 - Ficou provado, no que o arguido: … 4 - A pena a que foi condenado, parece-nos, com o devido respeito, desajustada face à conduta e personalidade do recorrente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior e factos puníveis; 5- O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 71º, por incorrecta e imprecisa aplicação. 6- Considerando os factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática do crime verifica-se que o arguido e a assistente à data da prática dos fatos, já se encontravam separados de fato há mais de 3 anos. 7 - O arguido negou peremptoriamente os fatos que lhe eram imputados pela Assistente, no ponto 9 a fls. 4 da Douta Sentença. 8 - O desentendimento entre assistente e arguido teve como fundamento a discussão referente à divisão do bem, casa de morada de família, conforme se constata nos fatos dados como provados nos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 conforme fls. 4, 5 e 6 da Douta Sentença. … 10 – Entendendo-se com o devido respeito, que não se encontram preenchidos os pressupostos formais e materiais para a condenação do arguido na prática de um crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do disposto no art. 152º do C. Penal. 11 – Porquanto os fatos dados como provados, não se demonstrarem particularmente graves, surgirem num decurso de tempo curto (entre os dias 15-08-2023 e 21-08-2023) e nem particularmente intensos, capazes de demonstrar qualquer domínio do arguido sobre a assistente e/ ou subjugação desta perante o arguido. …» 3. Respondeu o Ministério Público e a assistente …
4. A Exmª Procuradora- da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer …
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso … Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas, as questões a decidir consistem em saber se:
2. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA (em transcrição) 2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte:
2.2. A matéria de facto NÃO PROVADA é a seguinte (transcrição):
2.3. Motivou-se assim esta decisão de FACTO (transcrição): …
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. O recurso do arguido não mexe eficazmente com a matéria de facto dada como provada. … Se assim é, então os factos mantêm-se intactos (os provados e os não provados). 3.2. E sobre o DIREITO? É ESTE o âmago do recurso. O tribunal entendeu condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) do CP. E explicou porquê. «Ora, no caso dos autos, resultou provado, desde logo, que o arguido e a assistente viveram como se de marido e mulher se tratassem e que dessa relação nasceram dois filhos, ainda menores de idade. Mais se mostra provado que o casal se separou em Setembro de 2019, por iniciativa da ofendida. O arguido sofreu uma condenação pela prática do mesmo crime de que vem agora acusado e contra a mesma vítima, …. No seguimento de tal condenação, transitada em julgado em 12.05.2021, o arguido foi sujeito a proibição de contactos com a vítima, com vigilância electrónica, pena que teve o seu termo em 12.05.2023 e foi declarada extinta, por despacho de 06.09.2023. Resulta ainda provado que, a partir do dia 18.06.2023, o arguido enviou várias mensagens à vítima, conforme melhor descrito na facticidade provada supra descrita. Calcorreando a factualidade provada não deixa de ressaltar as inúmeras mensagens enviadas à vítima, algumas com intervalos de 1 minuto, todas elas durante a madrugada. Ressalta ainda, do conteúdo das mensagens, uma tentativa de menosprezar a vítima, fazendo referência, a título de exemplo, “a um cérebro pequeno”, “cérebro não dá para mais”, “Se não sabes matemática.. Estudasses… Ou então vai Googalar…”, “oh estupida…”etc. Mais ressalta uma constante insistência e insinuação de que se vai mudar para a casa onde a assistente vive. Se os conteúdos das mensagens, do ponto de vista individual, já demostram gravidade, intensifica-se a gravidade das condutas do arguido quando consideradas no seu todo. Ora vejamos. Estamos perante um arguido que já sofreu uma condenação pela prática do mesmo crime e em relação à mesma vítima, mãe dos seu filhos e ex-companheira. Em tal condenação o arguido foi sujeito à proibição de contactos com a vítima, com fiscalização electrónica, pena cujo o termo ocorreu em 12.05.2023 e o seu cumprimento foi declarado extinto, por despacho de 06.09.2023. Ora, apesar da solene advertência a que o arguido foi sujeito, mal se extinguiu a pena de proibição de contactos, o arguido optou por voltar a importunar a vítima, ofendendo-a e persistindo em criar-lhe medo. Estão em causa várias mensagens, com poucos intervalos entre si (várias delas com um intervalo de 1 min), o que revela uma clara intenção em importunar a vítima. Apesar de não obter resposta, o arguido insiste no envio de mais mensagens. Globalmente considerados, todos estes factos permitem concluir, pois, pela posição especial e particularmente desprotegida ou indefesa da ofendida, afectando-a na sua dignidade humana, enquanto ser individual que, em concreto, se trata da mãe dos filhos do arguido e da sua ex-companheira. O arguido não se limitou a afectar a liberdade de decisão da ofendida, isoladamente considerados, afectou, ainda, a dignidade e a integridade daquela enquanto ex-membro de uma relação conjugal e enquanto mãe dos filhos do arguido. Apesar de tal qualidade da vítima, o que era exigido um especial respeito, o arguido optou por atingir a sua dignidade enquanto pessoa, enquanto mulher, enquanto ex-companheira, enquanto mãe. Por seu turno, sabendo o arguido que o seu comportamento era proibido por lei e tendo agido livre e conscientemente, com intenção de assustar, intimidar, atemorizar, insultar a ofendida, bem sabendo que aquela era sua ex-companheira e mãe dos seus filhos, não poderá deixar de se concluir pelo preenchimento do tipo subjectivo na forma de dolo directo, pois está ínsita na factualidade assente a intencionalidade e voluntariedade do seu comportamento (elemento volitivo), bem como o conhecimento da sua ilicitude (elemento intelectual). Nestes termos, não emergindo da factualidade considerada provada qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, mostra-se preenchido quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo de ilícito do tipo legal de crime previsto no artigo 152.º, n.º 1, al. b) do CP». Já a defesa entende que os factos não preenchem os pressupostos formais e materiais do crime de violência doméstica já que não são particularmente graves, surgiram num decurso de tempo curto (entre os dias 15-08-2023 e 21-08-2023), não sendo particularmente intensos, capazes de demonstrar qualquer domínio do arguido sobre a assistente e/ ou subjugação desta perante o arguido. Vejamos. No que tange ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos: Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência: As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro. Aludamos ainda ao seguinte: Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal, estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, e daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica. Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5/7/2016, Processo nº 662/13.9GDMFR). Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo. Aqui chegados, diremos que o crime de violência doméstica, pelo menos de forma residual, constitui também um crime específico próprio, justificando a subsunção de algumas condutas que não encontrariam tutela em sede dos demais tipos de crime previstos no nosso Ordenamento. Neste aspecto, Taipa de Carvalho destaca, “situações de maus tratos psíquicos (como, p. ex., humilhações, ameaças não abrangidas pelo art. 153º, ou o chamado “assédio moral”) que, embora possam in se não configurar uma autónoma infracção”, podem configurar, “quando reiteradas, um mau trato psíquico abrangido pela ratio e pela letra do art. 152º”. Nestes casos, é, portanto, “a especial relação – que, no presente ou no passado, existe ou existiu entre o agente a vítima – que fundamenta a ilicitude e a punição do agente”. Também Nuno Brandão fala de microviolência continuada, onde «a opressão de um dos (ex-) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação» (cfr. Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno - Manual pluridisciplinar CEJ/CIG, 2ª edição, 2020, Coordenação de Paulo Guerra e Lucília Gago). * No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada consumava o crime de violência doméstica. E explicou-se. Este homem, já condenado por igual delito no passado, veio a reiterar esse comportamento ameaçador para com a sua ex-companheira, enviando várias perturbadoras, ameaçadoras, achincalhantes, provocadoras mensagens à BB …, fazendo-o ainda durante a execução de uma pena de prisão suspensa na sua execução (a pena só foi considerada extinta em Setembro de 2023 e os factos aconteceram em 18/6, 15/8 e 21/8 desse ano). Damos o nosso pleno assentimento, assim, à tese do tribunal quando, atendendo à valoração global dos factos, entendeu que o arguido incorreu na prática do crime pelo qual veio a ser condenado, porquanto se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime em causa. Embora estejam em causa actos situados em curto espaço de tempo, a realidade é que os mesmos foram perpetrados num contexto muito particular, na medida em que foram levados a cabo pouco tempo depois de uma condenação judicial por igual delito cometido sobre a mãe de seus filhos, e depois de ter sido sujeito a outro julgamento por factos de semelhante natureza. Não estão aqui em discussão simples mensagens isoladas, mas antes, e ao invés, uma conduta similar a outras anteriores por parte do arguido e que em muito condicionaram a assistente, enquanto mulher, mãe e enquanto pessoa, obrigando-a, além do mais, a ter que mudar as suas rotinas diárias, vivendo amedrontada. No caso concreto em apreço, estamos confrontados com uma conduta plural, composta por factos que, globalmente considerados, permitem concluir pela posição especial e particularmente desprotegida ou indefesa da assistente, afectando-a na sua dignidade humana, enquanto ser individual que é. Há muito que está ultrapassada a tese de que o conceito de maus-tratos, essencial no crime de violência doméstica, tem na sua base lesões, intoleráveis, brutais e pesadas. O crime de Violência Doméstica pode, desde logo, entrar em concurso aparente com diversos crimes base, atenta a multiplicidade de bens jurídicos susceptíveis de ser afectados como instrumento da afetação do bem jurídico tutelado (a saúde no contexto relacional pressuposto). Recorde-se, a propósito, que o crime em causa reconduz-se a um crime de execução livre susceptível de abarcar condutas dirigidas, prima facie, a bens tão diversos como a integridade física, a liberdade, a autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada. Em situações em que se encontre afastada a cláusula de subsidiariedade expressa (porque a punição do crime convocado se revela inferior ao da violência doméstica) ou em que entre o crime de violência doméstica e o crime convocado intercede uma relação de especialidade), prevalece a punição do crime de violência doméstica. São estes os casos dos crimes de: A relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e estes outros tipos de crime menos graves redunda numa situação de concurso aparente com a prevalência da norma do artigo 152.º do CP, seja mercê de uma relação de consunção (realização de um juízo valorativo material que conclua pela maior abrangência do conteúdo de ilicitude do tipo do artigo 152.º), seja por via de uma relação de especialidade (realização de juízo lógico-formal que conclua pela maior amplitude do tipo do artigo 152.º pela verificação de elementos não contemplados pelo tipo preterido)[5]. No caso em causa, o dolo directo do AA foi provado. O lastro de ilicitude deixado pelo seu comportamento passado e que o fez autor de um crime de violência doméstica no Pº 509/19.... estende-se aos eventos dos nossos autos, reacendendo uma chama que, no fundo, nunca esteve, real e definitivamente, apagada. Damos, pois, o nosso acordo à subsunção jurídica feita pelo tribunal recorrido, assente que estamos muito longe de considerar, como o faz a defesa, que estes comportamentos têm apenas abrigo penal em crimes menos graves, antes a tendo, a nosso ver, à luz da análise global da atmosfera que se foi vivendo entre este homem e esta mulher, tóxica q.b., na categoria mais ampla da «violência doméstica», devido a comportamentos atribuídos ao elemento masculino do casal já unido de facto (pelos quais já foi julgado em tribunal no passado). Aqui podemos afirmar que a conduta do arguido representa – continua a representar - um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima (cfr. factos provados nºs 25-31). Logo, segundo os critérios acima expostos, estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP, tendo como vítima a sua ex-companheira. Ao contrário do que se sustenta em recurso, os factos provados e as circunstâncias em que foram praticados (face à natural ligação entre estes factos e os julgados no anterior processo, em que figura o AA igualmente como arguido, tendo como vítima a mesma sua ex-companheira), são reveladores de uma especial gravidade ou crueldade por parte deste agente, existindo um específico desvalor da sua acção. Crime há, portanto, SÓ se justificando a condenação do arguido (e nunca a sua absolvição como, infundamentadamente, pede a defesa). Como tal, e sem necessidade de mais argumentos, aderimos com facilidade à subsunção jurídico-penal feita pelo tribunal recorrido, entendendo que, no caso concreto, com base no quadro global apurado, só poderia este homem ser de novo condenado pela prática de um crime de violência doméstica, praticado na sequência de ilicitude passada e de condenação passada. Como decidimos no recente acórdão datado de 24/4/2024 desta Relação (Pº 229/22.0GCTND.C2): «5. O lastro de ilicitude deixado pelo comportamento passado de um arguido e que o fez autor de um crime de violência doméstica estende-se ao evento futuro discutido em novo processo, sendo esta nova conduta um prolongamento do clima de aviltamento anterior, reacendendo uma chama que, no fundo, nunca esteve, real e definitivamente, apagada. 6. Pode existir controlo e dominação mesmo entre casais separados de facto ou divorciados, mesmo após alguns anos passados sobre a ruptura. 7. A violência doméstica tem de continuar a ser tipificada em casos em que, embora inexistindo agressões físicas, convivem comportamentos ilícitos degradantes por parte de homens que tudo fazem para continuar diminuir as suas parceiras ou ex-parceiras ao nível do «objecto», vilipendiando-as no seu ânimo e na sua auto-estima». Improcede, assim, o recurso nesta parte.
3.4. E quanto à pena? Foi exagerada? O tribunal condenou o arguido em nova pena DE PRISÃO – agora situada nos 3 anos e 6 meses - suspensa na sua execução, com regime de prova. E defendeu-se assim: «No que à prevenção geral diz respeito, as exigências revelam-se elevadas, atenta a necessidade de restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal do bem jurídico envolvido e a frequência com que têm lugar este tipo de condutas. Quanto às exigências especiais-preventivas, as mesmas revelam-se muito elevadas. Apesar do arguido ter CRC pela prática do mesmo crime, praticado contra a mesma vítima, resulta dos factos provados que aquele se encontra socialmente inserido. Da análise efectuada pela DGRS ao percurso normativo do arguido, espelhado no relatório social junto aos autos, encontra-se empregado e encontra-se inserido do ponto de vista social e familiar. Assim, à luz das circunstâncias acima identificadas, cremos ser possível, ainda, no caso em concreto, efectuar um juízo de prognose favorável ao arguido, de molde a suspender-lhe a pena aplicada. Permitindo ao tribunal acreditar que existe ainda a possibilidade de o arguido se reintegrar de modo progressivo e de forma positiva na sociedade. Aqui chegados, e tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial, é possível fazer um juízo de prognose favorável de que o arguido irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão, pelo que se mostra viável a sua socialização em liberdade». A defesa entende que foi uma pena severa, embora nada fundamenta a sua posição nesse jaez – apenas enuncia, sem qualquer esforço de argumentação, que a pena é excessiva e desproporcionada, pugnando pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Só podemos discordar desse juízo de pretensa severidade da pena aplicada. Já há um precedente cadastral muito recente – foi-lhe aplicada uma pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução, com regime de prova, suspensão essa que ainda perdurava quando ocorrem os presentes factos aqui julgados (estes ocorrerem cerca de um mês após ter terminado a vigilância electrónica no âmbito do Pº 509/19....). Entender que os três anos e seis meses de prisão agora aplicados são excessivos torna-se indefensável. Conhecemos as normas que tutelam a determinação da medida da pena. O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações». Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações: Ora, no caso vertente aplicou-se uma pena de 3 anos e seis meses de prisão (numa moldura penal abstracta de 1 a 5 anos), ainda assim suspensa na sua execução e com um reiterado regime de prova (não podendo este tribunal mexer nessa parte do sentenciado por não ter havido recurso do MP ou da assistente), o que não deixa de ser uma solução benevolente (ainda para mais para um arguido que tudo nega – ao contrário do que aduz o recurso, tal facto só pode agravar a sua culpa e nunca poderá servir para a atenuar). Portanto, e sem necessidade de mais considerações, a pena não é excessiva, sendo antes a minimamente exigível para quem prevarica continuadamente, vilipendiando a pessoa sua ex-companheira e mãe de seus filhos. Esperemos que o arguido aproveite esta nova oportunidade que o Estado lhe dá, o mesmo Estado que, tantas vezes, se apercebe da pouca severidade das penas aplicadas em sede de violência doméstica, assistindo, angustiado, a mortes de mulheres indefesas às mãos de seus ex-companheiros ou companheiros, após tantos sinais de alarme, não raras vezes ignorados ou erroneamente avaliados…
3.5. A conclusão é, pois, só uma: manteremos a condenação criminal e civil[6] nos seus exactos termos, improcedendo o recurso na sua totalidade.
III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em:
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa]. Coimbra, ___________________________ (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)
Relator: Paulo Guerra Adjunto: José Eduardo Martins Adjunto: Cristina Pêgo Branco
[2] Escreveu a sentença recorrida: «Com efeito, não obstante, na jurisprudência maioritária, se continuar a entender que, para que se verifique a previsão legal do artigo 152.º do Código Penal, a conduta do agente deve evidenciar um tratamento cruel, degradante ou desumano pela pessoa da vítima ou um desejo de prevalência de dominação sobre a mesma – o que, demonstra a realidade social, efetivamente sucede muitas das vezes –, a realidade é que o legislador bastou-se na consagração legal do tipo objetivo com a existência de maus tratos/privações/ofensas e o elemento relacional típico». [4] No âmbito do crime de violência doméstica, cabem, de facto, também as condutas e comportamentos que causam, inclusivé através do envio de sms, maus tratos psíquicos configurados como stalking (com punição autónoma agora pelo artigo 154º-A do CP, desde 2015, caso não sejam englobadas num contexto mais global de aviltamento da condição da ex-mulher, vítima em causa). |