Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE DIAS | ||
Descritores: | CRIME DE TRÁFICO DE ARMAS SOQUEIRA/BOXER EXPOSTA PARA VENDA CRIME CONSUMADO ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS | ||
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Data do Acordão: | 10/17/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ALCOBAÇA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | ANULADO O JULGAMENTO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 86º E 87º DA LEI Nº 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO E 358º Nº 1E 3 CPP | ||
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Sumário: | 1.- O crime de tráfico de armas é um crime formal de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção da arma destinada ao tráfico (intenção de a transmitir –transferir para a posse de outrem)), por qualquer forma. 2.- O arguido ao expor para venda uma soqueira/boxer já constitui crime consumado de tráfico de armas. 3.- Vindo o arguido acusado de um crime na forma tentada e, entendendo-se que o crime foi cometido na forma consumada, verifica-se uma alteração não substancial, por força do disposto no nº 3 do artº 358º do CPP – alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal. No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Magistrado do Mº Pº contra o arguido: A..., residente na Rua … Coimbra. Sendo decidido: a) Absolver o arguido da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2, nº 1, al. ap) e 86, nº 1, al. d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na forma consumada. b) Condenar o arguido como autor material, da prática em 19.02.2012, de um crime de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelos artigos 2, nº 1, al. ap) e 87, nº 1, al. d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na forma tentada, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa à razão diária de € 9,00 (nove euros), no montante global de € 1.620,00 (mil e seiscentos e vinte euros). *** Inconformado, da sentença interpôs recurso o Magistrado do Mº Pº formulando as seguintes conclusões na motivação do mesmo e, que delimitam o objeto: 1- Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da douta Sentença de fls. 21 a 33 que condenou o arguido A... pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de tráfico e mediação de armas, na forma tentada, p. e p. pelas disposições legais conjugadas dos artigos 2, nº 1, al. ap) e 87, nº 1, ambos da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 9,00 €. 2- A factualidade dada como provada na douta Sentença a quo não merece qualquer reparo. 3- O crime de tráfico e mediação de armas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 2, nº 1, al. ap), 3, nº 1 e 2, al. e), 4, nº 1, 86, nº 1, al. d) e 87, nº 1, todos da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro está construído como crime de perigo abstrato, em que a lei previne o risco de uma lesão que coincide com a própria atividade proibida. 4- Nos crimes de perigo, a realização do tipo basta-se com a mera colocação em perigo de bens jurídicos e pode consistir simplesmente no motivo da proibição. Os comportamentos são tipificados em vista da perigosidade típica para um bem jurídico, sem que se mostre comprovada no caso concreto; há como que uma presunção inilidível de perigo, e por isso dispensa-se a criação de perigo efetivo. 5- No crime tráfico e mediação de armas, a justificação da tutela penal e a carência de pena estão, assim, ligadas à perigosidade típica para bens jurídico-penalmente tutelados que podem, autonomamente e ex ante, ser afetados pela simples "intenção de transmitir a sua detenção" - os valores da ordem, segurança e tranquilidade públicas. 6- O ilícito criminal em apreço insere-se na categoria dos chamados "crimes exauridos" ou, conforme se designa na terminologia alemã "delitos de empreendimento", isto é crimes que, como o tráfico de estupefacientes, a falsificação e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só ato gerador do resultado típico. 7- A designação de crimes exauridos significa, precisamente, ilícitos criminais que ficam consumados através da comissão de um só ato de execução, ainda que sem chegar à realização completa e integral do tipo legal preenchido pelo agente". 8- A factualidade dada como provada integra a prática, pelo arguido, de 1 (um) crime de tráfico e mediação de armas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 2, nº 1, al. ap), 3, nº 1 e 2, al. e), 4, nº 1, 86, nº 1, al. d) e 87, nº 1, todos da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, na sua forma consumada, pelo que a moldura penal abstratamente aplicável ao caso concreto é de "2 a 10 anos de prisão. " 9- Assim, ao ter-se decidido como se decidiu, violou a douta Sentença a quo o disposto nos artigos 2, nº 1, al. ap), 3, nº 1 e 2, al. e), 4, nº 1, 86, nº 1, al. d) e 87, nº 1, todos da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro e o disposto nos artigos 22, 23, 41, nº 1, 72 e 73, todos do Código Penal. 10- Existe uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e, por conseguinte, a imputação ao arguido de um crime diverso quando: a)- Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo; b) - Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objeto de um diferente e distinto juízo de valoração social; c)- Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da "imagem social" do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade. 11- Uma "alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia" constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforme o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação". 12- Quando os factos que resultam provados na douta Sentença são os mesmos pelos quais o arguido se achava acusado, não existe uma alteração substancial dos factos (artigo 359, do C.P.P.), mas sim uma alteração não substancial dos factos e, consequentemente, uma alteração não substancial da respetiva qualificação jurídica (artigo 358, nº 3, do C.P.P.). 13- Ocorrendo uma alteração não substancial da respetiva qualificação jurídica (artigo 358, nº 3, do C.P.P.) e quando, por via dela, surge a possibilidade de o arguido ser surpreendido, prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica a operar, “a comunicação prevista no art. 358 CPP deveria ter tido lugar por se tratar de uma alteração não substancial, "com relevo para a decisão da causa". 14- Ao ter sido omitida tal comunicação, deverá a douta Sentença a quo ser dada sem efeito por ter violado o disposto no artigo 358, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal e o disposto no artigo 32, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa; 15- Por via dessa omissão, deverá ser ordenada a remessa dos Autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça para que seja determinada a reabertura da audiência, assim se suprindo tal omissão, dando-se então cumprimento ao disposto no artigo 358, nºs. 1 e 3, daquele Compêndio processual, lavrando-se nova Sentença em conformidade. Não foi apresentada resposta. Nesta Relação, a Ex.mª PGA emitiu parecer concordante com a motivação e conclusões do recurso. Foi cumprido o art. 417 do CPP. Não foi apresentada resposta. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir: *** São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido deu como provados:MATÉRIA DE FACTO: FACTOS PROVADOS: 1– No dia … de 2012, cerca das 17h30, o arguido A..., no cruzamento entre a Rua D. Pedro V e Rua Silvério Raposo, junto ao Mosteiro de … , onde decorria uma feira de antiguidades e velharias, encontrava-se aí com uma bancada que geria com vários artigos expostos para venda ao público. 2– Entre os objetos expostos na bancada referida em 1, o arguido tinha dentro de um mostruário de cor vermelha e tampa em vidro, junto a outros objetos, exposta para venda uma soqueira/boxer em liga metálica, constituída por quatro anéis e base interligados entre si. 3– O arguido expunha a referida soqueira/boxer a fim de a vender pelo preço de € 15,00, tendo-a adquirido a individuo não concretamente identificado num lote de tecidos que comprara há cerca de 5 meses, e que na altura desconhecia que nesse lote vinha também tal objeto pois que apenas comprara os tecidos. 4– O arguido agiu deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não podia deter e vender ao público a arma em questão, por ser considerada como arma proibida e não ter qualquer autorização para o efeito. 5– Sabia igualmente o arguido que tal conduta é proibida por lei. MAIS SE PROVOU: 6 – O arguido é serralheiro civil por conta de outrem auferindo o vencimento mensal de € 600,00. 7 – O arguido dedica-se exerce ainda aos fins de semana à atividade de venda em feiras de antiguidades, com artigos essencialmente compostos por tecidos, com o que aufere uma média mensal de € 400,00. 8 – O arguido vive com os pais, em casa própria destes, e a quem entrega cerca de € 75,00 mensais para ajuda das despesas da casa. 9 – O arguido suporta mensalmente um empréstimo bancário de aquisição de uma loja cifrando-se a prestação mensal em € 300,00, faltando cerca de 3 anos para acabar. 10 – O arguido tem o 9.º ano de escolaridade. 11 – O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos. FACTOS NÃO PROVADOS: Inexistem com relevo para a decisão a proferir. *** Conhecendo:Analisemos a questão suscitada: - Errada subsunção dos factos ao direito e, consequente erro na determinação da medida abstrata da pena. -Não comunicação da alteração jurídica dos factos +++ Qualificação jurídica dos factos provados:Nos termos do art. 87 nº 1 da Lei das armas, Lei nº 5/2006 de 23-02, com última alteração pela lei nº 12/2011 (que a republica), “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, vender, ceder a qualquer título ou por qualquer meio distribuir, mediar uma transação ou, com intenção de transmitir a sua detenção, posse ou propriedade, adotar algum dos comportamentos previstos no artigo anterior, envolvendo quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos aí referidos, é punido com uma pena de 2 a 10 anos de prisão” (sublinhado nosso). Segundo a técnica legislativa usada, para que os comportamentos descritos integrem o tipo-de-ilícito terão de envolver “quaisquer equipamentos, meios militares e material de guerra, armas, engenhos, instrumentos, mecanismos, munições, substâncias ou produtos» referidos no artigo 86 [“aí referidos”] – Ac. da Rel. do Porto de 25-02-2009, proferido no processo nº 35/08.5GAVNH do Tribunal Judicial de Vinhais. O artigo 87 procede à tipificação do crime de tráfico de armas, mas não indica, expressamente, as armas, equipamentos, produtos ou substâncias cujo tráfico é proibido. Tal indicação é feita por remissão para as armas, equipamentos, produtos ou substâncias expressa e taxativamente indicados no artigo 86, onde se encontram previstos, al. d) do nº 1, os “boxers”. E resulta da matéria de facto provada, nomeadamente no ponto 3 que, “O arguido expunha a referida soqueira/boxer a fim de a vender pelo preço de € 15,00”. Do preceito resulta que a exposição com a intenção de vender já constitui crime de tráfico de armas e, crime consumado. A sentença refere, ao fazer o enquadramento jurídico dos factos que, o arguido “tinha exposta para venda a referida soqueira/boxer pelo alor de 15,00€, sem que possuísse licença ou autorização para o efeito” e que o arguido, “ ao ter exposto o referido boxer pretendia vender a arma mencionada”. Só que conclui pela prática do crime de que se “encontra acusado” ou seja, na forma tentada. No entanto, como já se referiu, a lei basta-se com a intenção de vender (intenção de transmitir). O crime de tráfico de armas é um crime formal de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção da arma destinada ao tráfico (intenção de a transmitir –transferir para a posse de outrem)), por qualquer forma. Estamos aqui no âmbito dos crimes de perigo comum em que a censurabilidade jurídico‑criminal se situa a montante de um possível resultado desvalioso que se pretende prevenir e evitar. No caso da Lei das Armas, trata-se de crimes de perigo abstrato, pois que, basta que a conduta do autor se enquadre numa das previsões normativas. O perigo foi considerado antes (pelo próprio legislador) para a tipificação criminal da conduta, mas não é elemento do tipo. Assim, que o arguido cometeu o crime de tráfico de arma, na forma consumada. Crime que consome o da mera detenção de arma proibida, já que o tráfico implica a intenção de transmitir a detenção. E, nesta parte temos que o recurso não a abrange. No entanto, vindo o arguido acusado de um crime na forma tentada e, entendendo-se que o crime foi cometido na forma consumada, verifica-se uma alteração não substancial, por força do disposto no nº 3 do art. 358 do CPP – alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. Sendo necessário dar cumprimento ao disposto em tal preceito. Como refere o recorrente Mº Pº na conclusão 15, “Por via dessa omissão, deverá ser ordenada a remessa dos Autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça para que seja determinada a reabertura da audiência, assim se suprindo tal omissão, dando-se então cumprimento ao disposto no artigo 358, nºs. 1 e 3, daquele Compêndio processual, lavrando-se nova Sentença em conformidade”. Esta circunstancia implica a anulação do julgamento e a nulidade da sentença – art. 379 nº 1 al, b) do CPP, apenas no respeitante à qualificação jurídica dos factos apurados que, constituem o crime de tráfico de arma na forma consumada. E, assim se julga procedente o recurso. *** Decisão:Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação e Secção Criminal em, conceder provimento ao recurso interposto pelo Magistrado do Mº Pº e, em consequência: a)-Anula-se o julgamento e declara-se nula a sentença, devendo ser dado cumprimento ao disposto no art. 358 do CPP e após, decidir em conformidade. Sem custas. Coimbra, |