Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JAIME FERREIRA | ||
Descritores: | ESTILICÍDIO - SEU EXERCÍCIO COLOCAÇÃO DE CALEIRAS PRÉDIO DOMINANTE | ||
Data do Acordão: | 01/31/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE SÃO PEDRO DO SUL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 1365º DO C. CIV. . | ||
Sumário: | I – A figura jurídica do “estilicídio” visa atender às situações criadas pelos proprietários que deixam ficar os beirados dos telhados dos seus prédios urbanos a gotejar sobre prédios vizinhos . II – Uma vez constituída tal servidão- artº 1365º do C. Civ. – o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça esse escoamento das águas pluviais gota a gota, devendo realizar as obras necessárias para que o dito escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante . III – Porém , o dono do prédio beneficiado com a dita servidão não pode agravar essa forma de escoamento, designadamente reunindo essas diversas quedas numa caleira e daí encaminhar as águas para um ponto de queda único . | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra : I No Tribunal Judicial da Comarca de São Pedro do Sul, A... e mulher B..., residentes no lugar de Quinta Nova, Baiões, tendo aquele falecido entretanto e sido substituído na acção pelos seus herdeiros, a referida B... e C... e mulher D..., instauraram contra a autarquia Freguesia de Baiões, representada pela Junta de Freguesia de Baiões, com sede em Baiões, a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo a condenação da Ré a reconhecer que o prédio identificado no artigo 1º da petição é propriedade dos autores, sendo, em consequência, condenada a fechar as janelas que rasgou nas paredes sul e poente do prédio urbano da Ré, viradas para o dito prédio dos autores; a retirar o lixo e demais materiais de obra que deixou depositados no referido prédio dos autores; e a pagar aos autores a quantia de € 748,20, acrescida de juros de mora, contados desde a citação e até efectivo pagamento, bem como a quantia a liquidar em execução de sentença, referente a danos futuros .Para tanto e muito em resumo, alegaram os A.A. que são donos do prédio composto de terreno de cultura e pinhal denominado “Quinta Nova”, sito nos limites de Baiões, que se encontra inscrito na matriz predial rústica da dita freguesia sob o artigo nº 223 . Que a Ré é dona de um prédio urbano sito no mesmo local, composto por casa de um só piso, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo nº 33, prédio este que está implantado no topo norte do prédio dos autores . Que a Ré levou a cabo obras no seu referido prédio, em meados de 2001, com subida de um piso, tendo procedido à abertura de duas janelas nesse novo piso, viradas a sul e a poente, com 0,90 x 1,60 metros cada uma delas, e implantadas a 0,90 metros do pavimento desse 1º andar . Porque as paredes onde essas janelas foram abertas se encontram no limite do prédio da A., não existindo entre essas paredes e o terreno dos autores qualquer distância, importa que se proceda ao encerramento das ditas, para o que a Ré não necessita de mais do que 10 dias . Que com essa obra a Ré ocupou parte do prédio dos autores, que deixou sujo com cimento, resto de telhas e outros detritos, para além de lhes ter partido 12 pequenos pinheiros, o que carece de ser indemnizado, além de que foi causado dano moral aos autores, pessoas já de idade . II Contestou a Ré, alegando, muito em resumo, que não é verdade que tenha sujado o prédio dos autores ou que lhes tenha partido algum pinheiro, encontrando-se esse prédio limpo, pelo que nenhum incómodo foi causado aos autores .Que no prédio da Ré existem duas janelas ao nível do R/C, mas desde 1902, abertas em paredes de granito e a deitarem para o prédio dos autores, através das quais entra luz, sol e ar, o que tem acontecido diante de toda a gente, sem qualquer oposição e de forma contínua, como se se tratasse de um direito próprio da Ré, pelo que tem constituída a seu favor uma servidão de vistas por usucapião . Que a Ré abriu duas janelas no 1º andar dessa construção mesmo por cima daquelas já existentes e com as mesmas medidas destas, o que em nada vai afectar o direito de propriedade dos autores, uma vez que já existe a apontada servidão a favor do prédio da Ré . Pelo que estão os A.A. a agir com abuso de direito ao demandarem a Ré nos termos peticionados . Termina a Ré pedindo a improcedência da acção . III Pelos A.A. ainda foi apresentado um articulado superveniente no qual foram ampliadas a causa de pedir e o pedido inicial, tendo alegado que a Ré colocou caleiras no beirado do seu prédio, destinadas a apanhar as águas pluviais e encaminhando-as através de dois tubos de descarga, fixados na parede poente e na parede sul do seu prédio, pelo que todas as águas pluviais que caiem no telhado do prédio da Ré passaram a ser conduzidas para o prédio dos autores .Que o espaço aéreo ocupado por essas caleiras e pelos referidos tubos de descarga pertence ao prédio dos autores . Terminam pedindo que a Ré seja ainda condenada a retirar essas caleiras e tubos de descarga virados a sul, nascente e poente . IV Respondeu a Ré, defendendo que antes das obras de ampliação do seu edifício já este tinha um beiral nas quatro águas do telhado, o qual saía fora das paredes exteriores do prédio, numa largura de cerca de 0,30 cms, pelo qual eram lançadas as águas das chuvas, que caíam para o prédio dos A.A., o que se verifica há mais de 40 anos, razão pela qual se acha constituída a favor do seu prédio uma servidão de estilicídio sobre o prédio dos autores .Que através das caleiras agora colocadas por baixo desses beirais pretendeu causar menos danos ou prejuízos ao prédio dos autores, em nada ofendendo o direito de propriedade destes, pelo que não faz sentido que se obrigue a Ré a retirar essas caleiras ou os canos de descarga das águas . Terminou pedindo a improcedência do aditamento ao pedido . V Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da acção, com selecção da matéria de facto alegada .Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova testemunhal nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação . Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção parcialmente procedente, reconhecendo aos A.A. a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio que reivindicaram, com condenação da Ré a fechar as janelas que rasgou no seu prédio ao nível do 1º andar, nas paredes sul e poente, e bem assim a retirar os tubos de descarga das águas pluviais que colocou nessas mesmas paredes, além de dever retirar o lixo e demais restos de materiais de obra que deixou depositados no prédio dos autores . VI Dessa sentença recorreu a Ré, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo .Nas alegações que apresentou a Apelante restringiu o objecto do seu recurso à parte da sentença que a condenou a retirar os tubos de descarga das águas pluviais das paredes sul e poente do seu prédio . E para o efeito concluiu do seguinte modo : 1ª - A colocação de caleiras nos beirados do edifício da apelante, para transportar a água que cai no telhado, não extingue a servidão de estilicídio que se encontra constituída a favor daquele prédio e a onerar o prédio dos apelados . 2ª - A colocação de dois tubos para escoar a água recolhida nas caleiras para o prédio dos apelados não constitui nova servidão de escoamento . 3ª - Com a colocação das caleiras e dos dois tubos o escoamento da água que se fazia antes para o prédio dos apelados ao longo de toda a extensão do telhado passou a fazer-se em apenas dois pontos daquele telhado, o que se traduz num benefício e não num agravamento da servidão de estilicídio . 4ª - E, na prática, a remoção dos tubos, conforme ordenado na sentença, sem a remoção das caleiras, não evita que a água destas escoe no prédio dos apelados . 5ª - O Tribunal ao ordenar a retirada dos dois tubos fez incorrecta aplicação da lei e do direito, violando a norma do artº 1365º do C. Civ. . 6ª - Termos em que deve ser revogada a referida condenação agora objecto do presente recurso . VII Contra-alegaram os Apelados, defendendo a manutenção do decidido, já que as águas que antes caíam no seu prédio eram apenas as provenientes das “águas” do telhado da Recorrente viradas a sul, nascente e poente, sendo que presentemente também aí passaram a cair as águas provindas do telhado virado a norte, o que antes não sucedia, assim ficando agravado o prédio dos Apelados .Além de que no espaço aéreo do prédio dos Apelados não havia quaisquer tubos de queda provindos do telhado do prédio da Recorrente, o que passou a haver, com ocupação desse dito espaço pelos tubos agora colocados para o referido efeito . VIII Aceite o recurso nesta Relação, tal como foi admitido em 1ª instância, procedeu-se à recolha dos necessários “vistos” legais, pelo que nada obsta ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume à reapreciação da parte da sentença que condenou a Ré a retirar dois tubos de descarga de águas colocados nas paredes sul e poente do seu edifício e que encaminham as águas recolhidas nas caleiras do telhado desse prédio para o prédio dos Recorridos .Antes de apreciarmos tal questão, cumpre, nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC, dar aqui como reproduzida a matéria de facto dada como assente em 1ª instância, tal como está enunciada na sentença recorrida, já que essa matéria não foi objecto de impugnação nem se colhem razões para uma qualquer alteração oficiosa . Dessa matéria resulta, no que ao caso interessa, que a Ré é proprietária de um prédio urbano, em Baiões, onde tem a sua sede, o qual confronta do norte com caminho e dos demais lados com um prédio dos autores, ambos devidamente identificados matricialmente nos autos, não mediando qualquer espaço entre as paredes sul, nascente e poente daquele e o prédio dos Apelados . Que o prédio da Ré sempre esteve munido de um beirado em toda a extensão do seu telhado, o qual saía fora das paredes em pelo menos 0,15 cms, pelo que as águas que escorriam desse telhado, para os seus lados sul, nascente e poente, caíam no prédio dos A.A. . Porém, com as recentes obras levadas a cabo pela Ré nesse seu edifício, foram colocadas caleiras nas quatro “águas” ou beirados desse dito telhado, a fim de apanharem as águas daí provenientes, tendo sido colocados dois tubos de descarga dessas águas fixados nas paredes poente e sul do prédio, que encaminham as águas assim recolhidas para o prédios dos Apelados, tubos esses exteriores às referidas paredes . Na sentença recorrida foi apreciado o pedido dos autores no sentido de a Ré ser obrigada a retirar essas caleiras e os tubos de descarga da água nelas recolhida, aí se reconhecendo expressamente a existência de uma antiga servidão de estilicídio a favor do prédio daquela, questão com a qual as partes concordam, pelo que nada cumpre acrescentar sobre tal verificação . Esta figura jurídica visa atender às situações criadas pelos proprietários que deixam ficar os beirados dos telhados dos seus prédios urbanos a gotejar sobre prédios vizinhos, isto é, as situações em que alguma(s) parede(s) de um prédio urbano define(m) o limite da propriedade e uma vez que o(s) beirado(s) fica(m) dela(s) saliente(s), já sobre prédio vizinho, as águas que deles caiem tem necessariamente de tombar no prédio vizinho, face ao que está prevista a referida figura de servidão (estilicídio) – artº 1365º do C. Civ. –, nos termos da qual uma vez constituída, o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça esse escoamento, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante . Mas como resulta da referida previsão legal o que nela está previsto é o “gotejar” sobre o prédio vizinho, isto é, o acto de cair água de um telhado gota a gota, e de cada uma das “canas” formadas pelas telhas . Por outras palavras, com a referida figura jurídica está previsto o escoamento das águas pluviais que caiem de um dado telhado ou cobertura ao longo dos seus beirados e em toda a sua extensão, sem o que nem se compreenderia a necessidade de o proprietário dever edificar de modo a deixar um intervalo mínimo de cinco decímetro entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo . Donde que a obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só exista quando elas caem gota a gota nos prédios ditos servientes – neste sentido veja-se H. Mesquita in “Direitos Reais”, pg. 157 . Mas o que o dono do prédio beneficiado com a dita servidão não pode fazer é agravar essa forma de escoamento, designadamente reunindo essas diversas quedas numa caleira e daí encaminhá-las para um ponto de queda único, o que não está contemplado no referido preceito legal – Ac. Rel. Po. de 25/10/93, in C.J. XVIII, tomo IV, pg. 244, onde se escreve, citando Guilherme Moreira (As Águas, 262) : “ o espaço fixado por lei entre a beira do edifício e o prédio é o que se considerou suficiente para que as águas que caem do edifício sejam embebidas pelo terreno e se espraiem de forma quenão causem grandes prejuízos aos prédios inferiores. Não sucederá, porém, o mesmo se as águas não caírem gota a gota mas forem conduzidas por caleiras ao longo dos beirais para tubos de descarga. Neste caso, os prédios inferiores não são obrigados a receber essas águas. A lei não impõe a servidão legal de escoamento para as águas pluviais de prédios urbanos, ... “ . Isto até porque o chamado “exercício das servidões” é regulado pelo respectivo título, o que , no caso, resulta da usucapião constituída pela queda “gota a gota” dos antigos beirados – artº 1564º do C. Civ. – não sendo permitido ao dono do prédio dominante fazer obras de modo a tornar mais onerosa a servidão – ver David Augusto Fernandes, in “Lições de Direito Civil (direitos reais)” , pg. 331; e Manuel Henrique Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais”, pg. 275 e nota (26), onde escreve : “ Generalizando, diremos que a violação, por qualquer proprietário, do direito de vizinhança, sempre que se traduza em inovações ou transformações materiais que contrariem as restrições que a lei impõe em benefício dos proprietários vizinhos, faz nascer, a cargo do autor da violação, uma obrigação propter rem e, concomitantemente, atribui ao proprietário ou aos proprietários lesados o direito de exigir a destruição das obras realizadas” . “ Em idêntico sentido, ... o C. Civ. italiano, que estatui não poderem os proprietários inferiores impedir ou estorvar o escoamento das águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, nem poderem os proprietários destes prédios tornar o referido escoamento mais gravoso, ... “ . Donde que se repute absolutamente correcta a interpretação e a aplicação da lei constante da sentença recorrida, nos termos da qual “ ... o escoamento (das águas pluviais caídas num telhado) , reunidas por acção de obra humana, por ex. caleiras, não poderá fazer-se sem o consentimento dos respectivos proprietários, pois que nesta hipótese não se pode falar de estilicídio ... “ . Ora, com a colocação de caleiras pela Ré nos beirados do seu prédio deu-se como que uma extinção do referido “estilicídio”, designadamente por renúncia, nos termos do artº 1569º, nº 1, al. d), do C. Civ., mas sem que a Ré daí possa retirar qualquer outro encargo sobre o prédio vizinho, isto é, não pode fazer escoar as ditas águas sobre este prédio por outra forma e nem sequer ocupar o seu espaço aéreo com tubos de descarga das águas recolhidas nas caleiras de que agora dotou o prédio dominante . Donde que à Ré apenas lhe cumpria fazer escorrer essas águas para a via pública e por tubos colocados na parede norte do seu prédio, designadamente nos cantos nascente e poente dessa parede, tanto mais que nessas caleiras são colhidas não só as águas que antes caíam sobre o prédio vizinho mas ainda aquelas que caíam desse telhado para o caminho sito a norte do prédio da Ré, e relativamente às quais o prédio dos A.A. não está onerado com qualquer servidão . Pelo que bem andou a sentença recorrida ao decidir manter ou conservar as caleiras no telhado do prédio da Apelante, mas ordenando a retirada dos tubos de queda colocados no exterior das paredes sul e poente do prédio da Ré, onde ocupam o espaço aéreo do prédio dos A.A., sem qualquer direito para o efeito, assim se libertando tal espaço e obrigando a Apelante a fazer cair as águas recolhidas nas caleiras do seu prédio para a via pública, sita a norte . Concluindo, não se reconhece fundamento para a pretensão da Apelante com o objecto do seu recurso, pelo que importa confirmar a sentença recorrida, o que se decide. IX Decisão :Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação deduzida, face ao que se confirma a sentença recorrida . Custas pela Recorrente . *** Tribunal da Relação de Coimbra, em 31/01/2006 |