Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BRIZIDA MARTINS | ||
Descritores: | UNIDADE E PLURALIDADE DE INFRACÇÕES; CRIME CONTINUADO; CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ | ||
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Data do Acordão: | 05/23/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | GUARDA (J C GENÉRICA DE SEIA – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 30 DO CP | ||
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Sumário: | I - Decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal” (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, 1018/1019). II - Se o facto global, apenas, preenche um tipo legal, será de presumir que estamos perante uma unidade de facto punível, presunção que pode ser elidida se se mostrar que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. III - O comportamento global do arguido depois que foi fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes preenche os tipos legais de desobediência e de condução de veículo em estado de embriaguez. IV - O arguido que após fiscalização, com a submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue e a todo um conjunto de procedimentos legais, nomeadamente a sua detenção, constituição de arguido, notificação para comparência em tribunal, libertação e notificação de que não poderia conduzir no prazo de 12 horas, sob pena de cometer um crime de desobediência, afigura-se-nos inequívoco que o mesmo teve necessariamente de formular um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado temporalmente. V - Perante a afirmação da existência de duas resoluções criminosas, consumadas em actos independentes e distintos no espaço e no tempo, sem que o segundo tenha sido favorecido pelo primeiro, no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (caso em que haveria um único crime continuado), impõe-se concluir pela verificação de dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal. VI - A tipicidade do crime de condução em estado de embriaguez exige a condução de veículo automóvel na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o efeito das mesmas, ao passo que no crime de desobediência qualificada se prescinde da verificação de efetiva embriaguez durante a condução automóvel. VII - Pelo que se verifica concurso efectivo, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, e de um crime de desobediência qualificada, não ocorrendo qualquer situação de concurso aparente, mormente de consumpção. VIII - Não se verifica violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, com base na alegação de que autonomizar o conteúdo do ilícito da segunda condenação sob o efeito do álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra. * I – Relatório.1.1. No âmbito dos autos supra mencionados, o arguido AA, entretanto já mais identificado, foi submetido a julgamento, porquanto alegadamente incurso na prática de factos que o instituiriam na prática, em autoria material e em concurso efectivo de infracções, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292.º e 69.º do Código Penal e de um crime de desobediência qualificada, p. e. p. nos termos dos art.ºs 348.º, n.º 2, do Código Penal e 154.º, n.º 2, do Código da Estrada. Realizado o contraditório, proferiu-se sentença que, além do mais por ora irrelevante, determinou a sua condenação pela prática, em autoria material, e em concurso efectivo, dos propalados ilícitos, isto é, i) de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p., nos termos dos (citados) art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), na pena parcelar de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 300,0 (trezentos euros), bem como em 3 (três) meses e 15 (quinze) dias de proibição de conduzir veículos com motor; ii) de um crime de desobediência qualificada, p. e p., nos termos do art.ºs 348.º, n.º 2 e 154.º, n.º 2, na pena parcelar de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco), no total de € 600,00 (seiscentos euros). Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares de imediato operado, o arguido acabou condenado na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros), e na proibição de conduzir veículos com motor durante um período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias. 1.2. Inconformado com o teor do assim decidido, cingindo-se unicamente ao enquadramento jurídico dos factos realizado na 1.ª instância, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 56/7), retirando da correspondente motivação as seguintes conclusões e pedido (transcrição): «1. Ao arguido foi instaurado um processo-crime (facto provado 1), por condução de veículo em estado de embriaguez. 2. Na mesma noite foi novamente interceptado, fiscalizado, e foi-lhe instaurado novo processo, com novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez (o que consta destes autos). 3. O arguido foi condenado nestes autos pelo crime de condenação de veículos em estado de embriaguez. 4. Tal condenação é indevida uma vez que existe “um concurso aparente de crimes, pois que autonomizar o conteúdo de ilícito desta (segunda) condução com álcool, significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto, em violação do art.º 29.º 5 da CRP: punir o arguido duas vezes pelo mesmo facto.” 5. Assim sendo a decisão a tomar seria a da absolvição. 6. Sobrescrevemos, para tanto, na defesa desta posição, os argumentos e fundamentos do acórdão prolatado no processo 810/15.4PFPRT.P1, de 03/03/2016, pelo Desembargador Neto de Moura, no TRP, disponível em www.dgsi.pt. 7. Foi violado o artigo 29.º 5 da CRP. Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada, e o arguido absolvido do crime de condução em estado de embriaguez, assim como da pena acessória de inibição de conduzir veículos.» 1.3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 56. 1.4. Entretanto, nos termos expressos de fls. 50/52, já o Ministério Público respondera ao mesmo, sustentando que constituindo o seu objecto apurar se a pessoa que depois de ter sido submetida a teste de pesquisa de álcool no sangue e de ter apresentado resultado positivo, ficando consequentemente impedida de conduzir pelo período de doze horas, voltar a conduzir e for novamente submetida a teste e apresentar resultado positivo comete apenas o crime de desobediência qualificada, previsto nos art.ºs 348.º, n.º 2 do Código Penal e 154.º, n.º 1 do Código da Estrada, ou também, em concurso real, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a resposta deve ser neste último sentido e daí que a dever improceder a impugnação do condenado. 1.5. Observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto (a fls. 59/63), emitiu parecer conducente a idêntico improvimento da impugnação. 1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta. 1.7. Porque não vinha requerida a realização de audiência, e nenhum fundamento obstava ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência. Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão. * II – Fundamentação.2.1. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do CPP), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). No caso vertente, tal como transposto nas conclusões apresentadas, porque não intercede fundamento conducente a qualquer intervenção oficiosa, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a questão decidenda consiste efectivamente em apurarmos se a pessoa que depois de ter sido submetida a teste de pesquisa de álcool no sangue e de ter apresentado resultado positivo, ficando consequentemente impedida de conduzir pelo período de doze horas, voltar a conduzir e for novamente submetida a teste e apresentar resultado positivo, comete apenas o crime de desobediência qualificada, previsto nos art.ºs 348.º, n.º 2 do Código Penal e 154.º, n.º 1 do Código da Estrada, ou também, em concurso real, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. 2.2. Antecedendo tal ponderação, vejamos o acervo fáctico e respectiva motivação acolhidos na decisão sob censura. Consignou-se, a propósito: «2.1. Factos Provados Com relevo para a decisão, provaram-se os seguintes factos: 1. No dia 17.12.2017, cerca das 0h44, na Vila de …, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ---. 2. O arguido foi fiscalizado e submetido ao teste quantitativo ao ar expirado, acusando uma TAS de pelo menos 1,767 g/l. 3. Os factos descritos em 1. e 2 deram origem ao Processo n.º 175/17.0GTVIS e depois de ter sido constituído arguido e sujeito a Termo de Identidade e Residência pelo destacamento de Trânsito da GNR de Viseu, foi notificado pela mesma entidade policial, de que ficava impedido de conduzir veículos automóveis, pelo período de doze (12) horas, com a advertência de que, se o fizesse, praticaria um crime de desobediência qualificada, do que ficou ciente. 4. Não obstante, nesse mesmo dia, pelas 02H50m, o arguido conduziu o mesmo veículo automóvel de matrícula ---, na Estrada Nacional n.º 231, na localidade de …, onde foi novamente interceptado por militares da GNR afectos ao Posto Territorial de Paranhos da Beira. 5. Na sequência do qual veio o arguido a ser conduzido ao posto territorial de …, e submetido a novo teste de alcoolemia no aparelho 6810, modelo ARFC – 0718, acusando uma TAS de pelo menos 1,288 g/l, correspondente à TAS de 1,40 g/l registada, deduzido o erro máximo admissível. 6. O arguido sabia que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu até momentos antes de iniciar a condução lhe determinariam necessariamente uma TAS superior a 1,20 g/l e, não obstante, não se absteve de conduzir o seu veículo na via pública. 7. O arguido sabia que estava impedido de conduzir pelo período de doze horas, na sequência de ter acusado uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida e, não obstante, não se absteve de conduzir antes de decorrido aquele período, em violação da ordem que lhe foi regularmente comunicada. 8. Agiu em todas as circunstâncias descritas voluntária e conscientemente. 9. Sabia que as descritas condutas o faziam incorrer em responsabilidade criminal. Mais se provou: 10 - O arguido confessou os factos de forma integral e sem reservas e verbalizou arrependimento. 11. O arguido é … e exerce funções de …, auferindo o rendimento mensal líquido de € ---. 12. Vive com a mãe e um irmão mais velho, em casa própria da progenitora. 13. A progenitora paga mensalmente a quantia de € 160,00 para amortização do crédito contraído para aquisição de habitação própria. 14. O arguido contribui com € 200,00 para as despesas do agregado familiar. 15. A mãe do arguido é reformada e aufere nessa qualidade uma pensão mensal no valor de € 280,00. 16. O irmão do arguido é … e aufere um rendimento mensal líquido de € ---. 17. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade. 18. O arguido não tem antecedentes criminais registados. 2.2. Factos não provados Inexistem factos por provar. 2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO A convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida e examinada em audiência. O arguido confessou os factos que lhe são imputados de forma integral e sem reservas, verbalizando arrependimento. Inexistem motivos para duvidarmos do acerto das suas declarações, as quais encontram correspondência nos documentos juntos aos autos, entre os quais o talão de fls. 9 (de onde se extrai a TAS de que era portador) e a notificação que lhe foi feita no âmbito do Processo n.º 175/17.0GTVIS e respectivo talão de fls. 19, de onde se conclui a taxa de alcoolémia apresentada naqueles autos. Quanto à situação socioeconómica, familiar, profissional e demais circunstâncias pessoais de vida do arguido, o tribunal atendeu às suas declarações, inexistindo nos autos elementos de facto que as infirmem. Relativamente aos antecedentes criminais do arguido tomou-se em consideração o certificado de registo criminal junto a fls. 24. Os elementos subjectivos, situando-se no plano interno do arguido, foram também objecto de confissão.» 2.3. A questão decidenda tem merecido decisões opostas na jurisprudência, designadamente por parte dos Tribunais da Relação. Com efeito, o entendimento de que apenas é cometido o crime de desobediência foi seguido, por exemplo, nos Acs. TRP, de 3 de Junho de 2016 e de 11 de Novembro de 2009 e do TRE, de 28 de Junho de 2011 [proferidos, os dois primeiros, nos processos, respetivamente 810/15.4PFPRT.P1 e 516/03.3PTPRT.P1, disponíveis em http://www.dgsi.pt, e o último publicado na Colectânea de Jurisprudência, n.º 231, Tomo III, págs. 263-264], com base na argumentação, que é perfilhada pelo recorrente (na remissão que na peça recursiva faz expressamente para o primeiro deles), de que o acto gerador da responsabilidade criminal é a ingestão de bebidas alcoólicas e, portanto, nas 12 horas abrangidas pela proibição, em que os efeitos do álcool perduram, a condução automóvel num segundo momento insere-se ainda na mesma unidade criminosa, não havendo lugar a outro crime de condução de veículo em estado de embriaguez, bem como, por outro lado, que existe uma situação de concurso aparente de normas, em que o segundo crime de condução de veículo em estado de embriaguez é consumido pelo crime de desobediência qualificada. Por outro lado, em dissonância com tal entendimento, a posição segundo a qual a condução com taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,20 g/l dentro daquele período das 12 horas de impedimento de conduzir integra a prática do crime de desobediência qualificada e também, em concurso efectivo, um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, foi adoptada, nomeadamente, nos Acs. do TRE, de 20 de Dezembro de 2011 e 21 de Junho de 2011; do TRP, de 28 de Setembro de 2016; de 20 de Abril de 2016; de 9 de Setembro de 2015; de 17 de Junho de 2015 e 26 de Outubro de 2016, bem como do TRG, de 20 de Fevereiro de 2018 [os cinco primeiros proferidos nos processos, respetivamente, 237/09.7GBPSR.E1, 441/10.5GTABF.E1, 95/16.5PFPRT.P1, 794/15.0PFPRT.P1 e 73/15.1GDAND.P1, bem como o último, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt; o sexto publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XL, Tomo III, pág. 237/239 e o sétimo, disponível na Colectânea de Jurisprudência online]. Esta segunda posição, que cremos ser claramente maioritária, assenta na consideração de que em situações como a em apreço nos autos, havendo uma pluralidade de resoluções criminosas e sendo diversa a natureza jurídica dos bens protegidos, são cometidos dois crimes de condução em estado de embriaguez, o segundo deles em concurso efectivo com o crime de desobediência. Como resulta do excerto da sentença recorrida supra transcrito, foi este o entendimento seguido pel0 Mmo. Juiz a quo, com quem concordamos, em face da factualidade dada como provada. Na verdade, apurou-se que no dia 17 de Dezembro de 2017, cerca das 00H44m, na Vila de …, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ---, apresentando uma TAS de pelo menos 1,767 g/l, tendo, nessas circunstâncias, sido notificado de que ficava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, sob pena de incorrer no crime de desobediência qualificada. Porém, pelas 02H50m desse mesmo dia, o arguido conduzia o mesmo veículo automóvel, agora na Estrada Nacional n.º 231, na localidade de …, apresentando uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,288 g/l, correspondente à TAS de 1,40 g/l registada, deduzido o erro máximo admissível. Mais se provou que, em ambas as situações, o arguido quis conduzir o veículo automóvel, sabendo que o fazia em vias públicas e que não o podia fazer por ter ingerido bebidas alcoólicas determinantes de uma taxa de álcool no sangue superior ao limite permitido por lei, bem como que não podia conduzir no período de 12 horas subsequente à primeira fiscalização por parte das autoridades policiais, sob pena de cometer um crime de desobediência, mais sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, pelo que actuou dolosamente. Perante esta factualidade é inequívoco que as condutas do arguido integram dois episódios absolutamente distintos no tempo e no espaço, ambos violadores do mesmo bem jurídico - a segurança rodoviária - que por duas vezes foi posto em causa, sendo que, na segunda situação, foi ainda violado um outro bem jurídico - o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas. Não obstante, o recorrente sustenta que, para além do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 348º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao art.º 154º, n.º 2, do Código da Estrada, apenas incorreu num único crime de condução de veículo em estado de embriaguez, ancorando-se na argumentação expendida no referido Ac. TRP, de 3 de Março de 2016, onde se afirma: «Aparentemente simples, a solução para o caso convoca, no entanto, a temática, verdadeiramente complexa, da unidade ou pluralidade de infracções. Em tese, o conglomerado de factos que ficaram descritos permite equacionar estas três hipóteses: - ocorre a realização plúrima do mesmo tipo legal e o arguido comete, em concurso real, dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez; - há um só crime de condução de veículo em estado de embriaguez (ainda que em concurso real com o crime de desobediência) porque existe uma só resolução criminosa; - a situação configura um crime continuado de condução de veículo em estado de embriaguez. É bem sabido que a figura do crime continuado vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos actos da mesma natureza. É mais ou menos consensual que o crime continuado impõe a verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ● realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam, fundamentalmente, o mesmo bem jurídico; ● que essa realização seja executada de forma essencialmente homogénea; ● que ela se realize no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior; ● que essa solicitação diminua consideravelmente a culpa do agente. Segundo o Professor Eduardo Correia (“Direito Criminal”, vol. II, 209), “… pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma situação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.” Está bem de ver que ocorre a exigida unidade do bem jurídico violado e não é difícil encontrar homogeneidade na actuação do arguido. Mas, existe o circunstancialismo exógeno diminuidor da culpa do arguido? A mediação de um período de tempo dilatado entre os factos criminosos permite ao agente “mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma”, pelo que, não o fazendo, não pode falar-se em diminuição sensível da culpa (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 161). Mas o que importa realçar, sendo isto um ponto pacífico, é que, ainda que demonstrada a repetição do mesmo crime e a utilização de um procedimento idêntico, num quadro temporal bastante circunscrito, se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior, está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal do crime continuado. Como se ponderou no acórdão do STJ de 15.12.2007 (disponível em www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Maia Costa), se “o elemento nuclear e substancial do instituto do crime continuado é a mitigação da culpa resultante de uma situação exógena à vontade do agente que induza ou facilite a repetição da conduta ilícita por parte daquele”, não poderá subsumir-se os factos ao crime continuado quando esses mesmos factos “revelam que a reiteração criminosa resulta antes de uma predisposição do agente para a prática de sucessivos crimes, ou que estes resultam de oportunidades que ele próprio cria.” Assim sendo, e descortinando-se na conduta do arguido pluralidade de resoluções criminosas, não poderia falar-se em continuação criminosa porque terá sido o próprio arguido a criar a situação propiciadora da sucessão de crimes. Ficam-nos, então, as duas primeiras hipóteses: concurso real de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou um só crime porque há unidade de resolução criminosa. Na primeira instância, como decorre da sentença recorrida, concluiu-se pela segunda hipótese da alternativa - o arguido cometeu um só crime de condução de veículo em estado de embriaguez -, adoptando-se a solução do acórdão desta Relação de 11.11.2009 (disponível em www.dgsi.pt), que é justificada com os seguintes argumentos: - o legislador estabeleceu no artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, o impedimento de conduzir pelo período de 12 horas após obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cominando a violação de tal comando com crime de desobediência qualificada no n.º 2 do mesmo preceito legal; - é um só o acto (ingestão de bebidas alcoólicas) que constitui a génese do crime, mas os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento mais que uma vez, com base na mesma fonte geradora da responsabilidade criminal, resultado que constituiria uma violação do princípio ne bis in idem, que tem consagração constitucional no artigo 29.º, n.º 2, da CRP. Pela solução do concurso real de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez se bate o recorrente Ministério Público, fazendo seus os argumentos esgrimidos no acórdão, também desta Relação, de 09.09.2015 (acessível em www.dgsi.pt), que podem ser assim resumidos: - o que gera a responsabilidade penal do arguido não é a ingestão de bebidas alcoólicas, mas o facto de conduzir um veículo na via pública em estado de embriaguez; - estamos perante concurso efectivo de crimes porque temos duas resoluções criminosas, consumadas em actos independentes entre si: “a consumação da primeira resolução cessou quando o arguido foi fiscalizado pela primeira vez”; quando libertado, “formulou um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e temporalmente dele separado”. No douto parecer que emitiu, o Ex.mo PGA sufraga e reforça esse entendimento, invocando o acórdão da Relação de Évora de 21.12.2011 (proc. n.º 237/09.7 GBPSR.E1). Da mesma Relação, o acórdão de 21.06.2011 (proc. n.º 441/10.5 GTABF.E1), sublinha que “a ingestão de bebidas alcoólicas em excesso não é, só por si, a génese de coisa alguma criminalmente tipificada”. Também o estado de embriaguez, por si só, não tem relevância criminal, mas é elemento do tipo objectivo do crime em causa e, obviamente, é provocado pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. Por isso pode dizer-se que a conduta criminosa, o iter criminis, se inicia com a ingestão de bebidas alcoólicas (e, nessa perspectiva, que o crime tem a sua “génese” nesse acto) até o agente atingir o estado de embriaguez (que para a tipicidade criminal exige um grau de alcoolemia de, pelo menos, 1.20 g/l no sangue) e consuma-se quando ele, nesse estado, inicia a condução do veículo na via pública. Mas, como bem se frisa na decisão da Relação de Évora de 21.06.2011, o ponto axial da quaestio decidendi está em determinar se podemos autonomizar na conduta do arguido duas decisões criminosas que fundamentem a imputação de dois crimes ou se, diferentemente, há unidade de “desígnio criminoso”. A tese da pluralidade de decisões criminosas é aí justificada nos seguintes termos: “A consumação de um primeiro desígnio cessou quando foi fiscalizado pela primeira vez (...) no âmbito do processo 1303/10.1 GBABF, no âmbito de um procedimento ritualizado que leva o seu tempo a ser celebrado: há que soprar no alcoolímetro, há perguntas a responder, há documentos a apreciar, há papeis a preencher e a assinar, etc., etc. Não se trata propriamente de um momento agradável para o cidadão fiscalizado e processado por conduzir alcoolizado. Recuperada a liberdade de movimentação, o arguido teve necessariamente, de acordo com a experiência da vida, de formular um novo desígnio criminoso para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado por um assinalável lapso de tempo preenchido por acontecimentos especialmente relevantes para um normal cidadão. Havendo duas decisões de delinquir, ambas consumadas em actos interruptos e independentes, e não se vislumbrando que a prática do primeiro acto haja favorecido a decisão ulterior, há dois delitos.” Que a existência de uma só ou de várias decisões criminosas tem de estar, explicitamente, reflectida na matéria de facto provada é ponto que não suscita discussão. Ora, do conglomerado factual que se deu por provado não decorre, expressamente, nem uma coisa nem outra e a afirmação de que resulta da experiência comum que o arguido, depois de fiscalizado, teve de tomar uma nova decisão de conduzir, apesar de continuar em estado de embriaguez, é tão válida como a afirmação de sentido contrário. O que deve entender-se por resolução criminosa? Segundo o Professor Eduardo Correia, a resolução corresponde ao “termo daquele específico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor e o desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido”, pelo que “se diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os fundamentos para o juízo de censura em que a culpa se analisa” (Unidade e Pluralidade de Infracções, 1968, pág. 94). Teremos unidade de resolução criminosa (que não é o mesmo que resolução criminosa única), quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação. Sendo uma questão do foro subjectivo, normalmente, só por via indirecta, através da análise e ponderação de elementos indiciários poderemos concluir num ou noutro sentido. «O índice da unidade ou pluralidade de determinações volitivas e, por aí, a solução da questão da unidade ou pluralidade de infracções hão-de provir fundamentalmente não apenas da ausência ou verificação de uma “descontinuidade” na actuação do agente, mas de uma análise global da “forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Na verdade, “(…) a experiência e as leis de psicologia ensinam-nos que, em regra se entre os diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo” (Eduardo Correia, Ob. Cit., 94 a 98). Se bem que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez se consume logo que o agente, tendo uma TAS igual ou superior a 1.2 g/l, inicia a condução, não se esgota nesse momento. A consumação prolonga-se no tempo, persiste enquanto se mantiver o exercício da condução nesse estado. Por isso pode qualificar-se como um crime duradouro, que se caracteriza justamente por o estado antijurídico ter “uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 296). Retornando ao caso concreto, quando iniciou o exercício da condução, depois de se ter colocado em estado de embriaguez, o arguido, certamente, projectou fazê-lo até atingir o seu destino (provavelmente, dada a hora tardia, o seu domicílio). Se, a meio caminho, tivesse uma avaria na sua viatura (ou uma indisposição provocada pela embriaguez) e fosse obrigado a imobilizá-la, ninguém dotado de razoabilidade e bom senso diria que ele teve de renovar o respectivo processo deliberativo (é dizer, renovar a intenção de agir) ao retomar o exercício da condução automóvel. A decisão criminosa é uma só e o dolo do arguido abarca, ab initio, uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispôs logo a praticar até ao destino final. Ora, as coisas não deixam de ser assim só porque foram agentes policiais que o obrigaram a interromper o exercício da condução para o fiscalizarem. O que aqui temos é um processo resolutivo inicial que não se esgota com a detenção pelo OPC, mas sim com a chegada ao destino que o arguido tinha em mente quando iniciou a viagem. Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez. Mas, que assim não seja, mesmo que se entenda, como na jurisprudência atrás citada, que há, necessariamente, renovação da decisão criminosa, nem por isso se poderá, afoitamente, concluir pela pluralidade de infracções. Frequentemente, ocorrem situações em que o comportamento do agente é subsumível a vários tipos ou o mesmo tipo legal é várias vezes preenchido pelo mesmo comportamento e, quando assim sucede, a essa pluralidade tanto pode corresponder uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (caso em que teremos concurso efectivo de crimes) como poder retirar-se do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante, ou (quando o mesmo tipo é preenchido várias vezes) um único sentido de ilicitude. Perfilhamos, pois, o entendimento de que decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal” (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, 1018/1019). E na “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” o julgador desempenha papel fundamental, que não poderá ficar-se pela simples aplicação automática das normas sobre concurso de crimes, sobretudo das normas do artigo 30.º do Código Penal. Como identificar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica no comportamento global do agente? Seguindo, de perto, o ensinamento daquele Mestre (Ob. Cit.), dir-se-á que, se o facto global, apenas, preenche um tipo legal, será de presumir que estamos perante uma unidade de facto punível. Presunção que pode ser elidida se se mostrar que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Se, face às normas efectivamente aplicáveis, o comportamento global do agente preencher vários tipos legais, haverá concurso, que, no entanto, pode ser aparente ou efectivo. Cristalinamente, a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global do agente constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícitos autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Porém, tal presunção pode ser elidida se e quando os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercepcionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o artigo 77.º do Código Penal. Assim acontece nos casos de relacionamento entre um crime instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, ou seja, quando um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. “Parece aqui particularmente claro – afirma o Autor que vimos seguindo – que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso (…). Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global.” O comportamento global do arguido depois que foi fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes preenche os tipos legais de desobediência e de condução de veículo em estado de embriaguez. Mas esse comportamento do arguido deverá considerar-se dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, pois é patente que ele agiu movido pelo propósito de não acatar a proibição temporária de conduzir. A condução do veículo surge como o meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social. Temos, então, um concurso aparente de crimes, pois o sentido de ilícito da desobediência surge como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da condução automóvel sob influência do álcool, pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito desta (condução) significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. Sujeitar o caso à incidência das regras da punição do concurso de crimes contidas no artigo 77.º do Código Penal afigura-se desproporcionado e politico-criminalmente desajustado. Seria violar a proibição, constitucionalmente consagrada (artigo 29.º, n.º 5, da CRP), de punir o arguido duas vezes pelo mesmo facto.» Pese embora o labor argumentativo utilizado, sucede, porém, tal como é posto em evidência nos citados acórdãos que se pronunciaram no sentido oposto, que o facto penalmente punido pelo art.º 292º é a condução de veículo automóvel, em via pública ou equiparada, apresentando o agente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. Assim, a fonte geradora de responsabilidade criminal é a condução automóvel por parte do agente que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e não unicamente a ingestão dessas bebidas, que por si só não é criminalmente punida. Significa isto que, no caso vertente, o primeiro crime de condução de veículo em estado de embriaguez e a respectiva resolução criminosa cessaram quando o arguido foi, pela primeira vez, às 00 horas e 44 minutos, fiscalizado pela autoridade policial. Após essa fiscalização, com a submissão do arguido ao teste de pesquisa de álcool no sangue e a todo um conjunto de procedimentos legais, nomeadamente a sua detenção, constituição de arguido, notificação para comparência em tribunal, libertação e notificação de que não poderia conduzir no prazo de 12 horas, sob pena de cometer um crime de desobediência, afigura-se-nos inequívoco que o mesmo teve necessariamente de formular um novo desígnio para voltar a conduzir, diferente do primeiro e dele separado temporalmente. Isto porque o resultado positivo daquela fiscalização, as respetivas consequências e o conjunto dos procedimentos legais a ela inerentes interromperam forçosamente a resolução inicialmente tomada de conduzir em estado de embriaguez. Perante a afirmação da existência de duas resoluções criminosas, consumadas em actos independentes e distintos no espaço e no tempo, sem que o segundo tenha sido favorecido pelo primeiro, no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (caso em que haveria um único crime continuado), impõe-se concluir pela verificação de dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal. Por outro lado, uma vez que no segundo episódio a conduta do arguido, para além do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, preenche também os elementos típicos do crime de desobediência qualificada, importa verificar se tais infracções estão entre si numa situação de concurso efectivo ou aparente. De acordo com o disposto no art.º 30.º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos pela conduta do agente (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo), sendo que em ambos os casos o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar numa só ação, como em várias acções. Como refere o citado Ac. TRP, de 28 de Setembro de 2016, «Há assim concurso real de crimes quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime – existe uma pluralidade de acções típicas – e concurso ideal quando a mesma acção viola mais do que uma norma penal ou a mesma norma penal mais do que uma vez – existe uma unidade na acção típica. Nestas situações, à pluralidade de tipos penais abrangidos por uma ou mais acções há-de corresponder uma pluralidade de punições pelos crimes “efetivamente cometidos” (é esta a expressão legal). Porém, há situações em que a mesma acção típica só aparentemente preenche uma pluralidade de tipos legais, mas, na verdade, as normas penais potencialmente aplicáveis se encontram entre si numa relação em que umas excluem outras. Aqui não existe verdadeiramente concurso de crimes mas sim concurso de normas. Maioritariamente a doutrina tem considerado três tipos de situações de concurso de normas: especialidade, subsidiariedade ou consumpção. Muito sinteticamente, haverá especialidade quando as normas estão entre si numa relação de subordinação lógica – um crime é tipificado por referência ao outro, como qualificado ou privilegiado. Subsidiariedade ocorrerá nas situações em que a interpretação das normas permite concluir que uma tipifica uma ação que constitui a fase prévia da realização do tipo previsto na outra (subsidiariedade implícita) ou nas situações em que seja o próprio texto da lei a condicionar a aplicação de uma norma à ausência da outra (subsidiariedade expressa). A consumpção verificar-se-á nos casos em que as normas estão entre si numa relação em que a violação de uma é instrumental para a violação da outra. O critério operativo essencial para verificar em que tipo de relação as normas se encontram deve ser o dos bens jurídicos protegidos.» Em matéria de concurso de crimes, a lei acolheu um critério teleológico, segundo o qual o número de infracções efetivamente cometidas se determina pelo número de valores ou bens jurídicos que são negados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só atividade (pluralidade de crimes através de uma mesma ação), da mesma forma que quando só um valor é negado, existe um único crime, mesmo havendo uma pluralidade de acções. Ora, no caso em apreço nos autos são inequivocamente distintos os bens jurídicos tutelados pelos dois crimes praticados pelo arguido aquando do segundo episódio: por um lado a segurança rodoviária, protegida pelo crime de condução em estado de embriaguez, e, por outro lado, o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes sejam obedecidas, tutelado pela incriminação da desobediência qualificada. Acresce que, para além dos bens jurídicos protegidos, também as próprias acções típicas são distintas. Com efeito, no crime de desobediência qualificada, a ação típica consiste na violação da proibição de conduzir veículos automóveis nas 12 horas subsequentes a um exame de pesquisa de álcool no sangue com resultado igual ou superior a 1,20 g/l. O bem jurídico tutelado - a autonomia intencional do Estado - é atingido com a simples desobediência à proibição de conduzir, independentemente de o agente se encontrar ou não em estado de embriaguez. A resolução criminosa consiste em decidir iniciar a condução contra aquela proibição, decisão essa que assume autonomia em relação à decisão de conduzir sob a influência do álcool. Por seu turno, no crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a ação típica consiste em conduzir um veículo automóvel sob o efeito do álcool, isto é, com uma taxa de alcoolemia no sangue igual ou superior a 1,20 g/l. Em suma, a tipicidade do crime de condução em estado de embriaguez exige a condução de veículo automóvel na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e sob o efeito das mesmas, ao passo que no crime de desobediência qualificada se prescinde da verificação de efetiva embriaguez durante a condução automóvel. Pelo exposto, de acordo com o preceituado no art.º 30.º do Código Penal, no caso dos autos o arguido incorreu na prática, em concurso efectivo, de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 348.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo código, por referência ao art.º 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, não ocorrendo entre essas normas qualquer situação de concurso aparente, mormente de consumpção. Conclui-se, assim, que a conduta do arguido foi objecto de correta e adequada subsunção jurídica na sentença recorrida, com cuja fundamentação se concorda inteiramente. Por conseguinte, também não se reconhece razão ao recorrente quando invoca a violação, pela sentença recorrida, do princípio ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, com base na alegação de que autonomizar o conteúdo do ilícito da segunda condenação sob o efeito do álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. Com efeito, o que esse preceito constitucional proíbe é que alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que não ocorre na situação dos presentes autos, uma vez que, como vimos, os factos que justificam a punição pelos dois crimes são distintos, a que correspondem duas resoluções criminosas igualmente distintas. Improcede, pois, o recurso. * III – Decisão.Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UCs, sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção [cfr. art.ºs 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma]. * Coimbra, 23 de Maio de 2018Brízida Martins (relator)Orlando Gonçalves (adjunto) |