Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HELENA LAMAS | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA ADESÃO REMESSA DAS PARTES CIVIS PARA OS MEIOS COMUNS PODER DISCRICIONÁRIO IRRECORRIBILIDADE DO DESPACHO | ||
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Data do Acordão: | 03/12/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECLAMAÇÃO | ||
Decisão: | INDEFERIDA | ||
Legislação Nacional: | ARTS 71º, 72º, 82º, Nº 3, 152º, Nº 4 E 417º, Nº 10, TODOS DO C.P.P.. | ||
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Sumário: | 1 - Consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.
2 - O despacho que ao abrigo do artigo 82º, nº 3 do CPP remete as partes civis para os meios comuns, constitui decisão fundada no poder discricionário do julgador, visando a boa administração da justiça e a obtenção de uma decisão em prazo razoável. 3 - Constitui uma decisão que depende da livre resolução do tribunal - livre mas motivada - pelo que não é susceptível de recurso, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea b) do CPP. 4 - Irrecorribilidade que não é absoluta, dado que se o despacho proferido ao abrigo do nº 3 do artigo 82º do C.P.P. for arbitrário ou infundado, ter-se-á de admitir o respectivo recurso por violação do artigo 97º, nº 5 do C.P.P., neste caso, ou com base no que dispõem os artigos 20º, nºs 1 e 5 e 32º, nºs 1 e 7 da Constituição da República Portuguesa, naquele caso. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. RELATÓRIO 1.1. A decisão No Processo Comum Singular nº 58/21.9SBGRD do Juízo Local Criminal da Guarda, foi proferido o seguinte despacho em 22/4/72024:
1.2.O recurso 1.2.1. Das conclusões da assistente e demandante civil AA Inconformada com a decisão, a demandante civil interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
A. Importa registar que, atento o princípio do aquisitivo processual, é sólido e pacifico nos autos, o seguinte: a) A fls… dos autos a lesada deduziu pedido de indemnização civil, o qual foi admitido por douto despacho de 13.10.2023 – cfr. doc. n.º 1; b) Em sede de contestação, a demandada civil requereu a remessa dos autos para os meios comuns, pretensão esta que foi indeferida nos termos e com os fundamentos expressos no douto despacho com a ref.ª Citius 30130293 de 24.02.2023, fundamentos estes, de facto e de direito que se mantêm – cfr. doc. n.º 2; c) O relatório pericial foi remetido aos autos em Novembro de 2023 e face ao teor do relatório foram solicitados apenas três esclarecimentos complementares – cfr. doc. n.º 3, ainda sem despacho. Perante esta factualidade, não existe retardamento muito menos retardamento intolerável do processo, que justifique a prolação do douto despacho que aqui se põe em crise, e que remete, indevidamente, as partes para os meios comuns.
1.2.2 Da resposta do Ministério Público Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, defendendo a total improcedência do recurso, concluindo assim: Também respondeu a demandada civil, argumentando que que não existe data previsível para a elaboração do relatório final por parte do INML e as partes nessa altura dispõem de prazo para apresentar reclamações e, eventualmente, requerer a realização de uma segunda perícia; que a demandante civil dispõe igualmente de um tribunal especializado que é o Tribunal Cível, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto. 1.2.4. A Exmª Procuradora-geral Adjunta discordou do despacho recorrido, afirmando que «…o despacho judicial, para além de enfermar de falta fundamentação e até de alguma opacidade, já que não é a necessidade da prestação de esclarecimentos que retarda intoleravelmente o processo penal, pois trata-se de meio de prova tipicamente previsto na própria lei processual penal e integrado na tramitação normal de qualquer processo que convoque o domínio de especiais conhecimentos técnicos ou científicos, o mesmo não atendeu ao relatório pericial de avaliação de dano corporal em direito civil, com avaliação do dano corporal, junto em 19.03.2024, o qual poderá até responder aos factos constantes do pedido de esclarecimentos apresentado pela lesada em 27.02.2024. Por outro lado, não é caso para dizer que o requerido pedido de esclarecimentos venha comprometer qualquer rigor da decisão a proferir a final em matéria de pedido de indemnização civil, já que nada faz antever a existência no horizonte de quaisquer incidentes que retardarão intoleravelmente o processo penal. (…) o despacho judicial limitou a afirmar que as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizavam uma decisão rigorosa, sem cuidar de explicar que questões eram essas, parecendo que isso estaria relacionado com a falta de estabilização das lesões da lesada, o que, salvo o devido respeito, não acontecia, atento o teor do relatório pericial de avaliação de dano corporal em direito civil, junto em 19.03.2024, com avaliação do dano corporal, por haver estabilização das lesões sofridas pela lesada(podendo até responder às questões constantes do pedido de esclarecimento efetuado pela lesada). (…) Há efetivamente claras vantagens em resolver no processo penal todas as questões que decorrem do facto criminoso. A principal razão é, desde logo, a economia processual e de meios. … Mas outra razão, não menos importante, agora sob o ponto de vista do prestígio da justiça, é a possibilidade de evitar casos julgados contraditórios…». 1.2.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foi proferida decisão sumária que, abrigo do artigo 417º, n.º 6, alínea b) do Código de Processo Penal, decidiu rejeitar o recurso. A recorrente reclamou, tempestivamente, para a conferência e o Ministério Público junto desta instância não se voltou a pronunciar. Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência.
II. OBJECTO DO RECURSO De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso oficioso que, no caso em apreço, não se suscitam. Por outro lado, considerando o que dispõe o artigo 417º, nº 10 do C.P.P., importa apreciar ainda o fundamento da reclamação que, no caso concreto, coincide com a motivação. Assim, examinadas as conclusões do recurso, a questão que importa conhecer é a da remessa das partes civis para os meios comuns.
III. APRECIAÇÃO DO RECURSO A recorrente insurge-se contra o despacho prolatado em 22/4/2024, que remeteu as partes civis para os meios comuns, argumentando que viola o princípio da adesão obrigatória, além de que o retardamento do processo, a existir, não é intolerável, dado que o requerimento feito em 27/2/2024, na sequência da notificação do relatório pericial, apenas solicitou três esclarecimentos à perícia. O presente recurso foi admitido, por despacho de 7/6/2024, com o seguinte teor: « Por ser legalmente admissível (art. 399.º e 400.º a contrario do CPP), por ser tempestivo (art. 411.º, n.º 3 do CPP), a assistente ter legitimidade e interesse em agir [art. 401, al. b) e n.º 2 do CPP] e o recurso se encontrar motivado, nos termos do art. 412.º C.P.P, admito o recurso interposto pela assistente. O recurso tem efeito suspensivo e sobe imediatamente nos próprios autos, conforme o disposto nos arts. 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2 al. a) e 408.º n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Penal.». No entanto, o artigo 400º, nº1, al. b) do C.P.P. estipula que «Não é admissível recurso de decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal». De acordo como artigo 152º, nº 4 do C.P.C., «consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador». Ora, é esta a situação do despacho recorrido que, ao abrigo do artigo 82º, nº 3 do mesmo código, remete as partes civis para os meios comuns. A possibilidade de remessa para os meios cíveis do pedido de indemnização formulado no processo penal – de acordo com o princípio da adesão consagrado no artigo 71º do C.P.P. - encontra-se prevista da seguinte forma: «O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização cível inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal». O princípio da adesão foi a opção do nosso legislador por razões práticas que se prendem com a economia processual: o mesmo tribunal, e num único processo, decide os efeitos civis, a indemnização, dos danos causados pelo crime, assim se evitando que sejam proferidas decisões contraditórias quando estão em causa os mesmos factos, com redução de custos, nomeadamente para o demandante civil. Por outro lado, verifica-se maior celeridade processual, através da concentração da actividade probatória. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1ª edição 1974, reimpressão, p. 562, refere ainda o contributo deste sistema para o fim retributivo e preventivo da pena e, por esta via, para alcançar o fim do processo penal, e dá particular realce à realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização. Ao contrário do aflorado pela recorrente, o princípio da adesão não é um princípio absoluto, a própria lei admite excepções. Essas excepções ao princípio da adesão encontram-se descritas, de forma taxativa, no artigo 72º do C.P.P., podendo então o demandante, naquelas situações, optar livremente por aderir ou não ao processo penal na dedução do seu pedido cível. Uma vez deduzido no processo penal o pedido de indemnização civil fundado na prática do crime, pode, porém, ocorrer a situação prevista no artigo 82º, nº 3 do C.P.P., ou seja, a remessa para o tribunal cível do pedido de indemnização cível formulado no processo penal. Os fundamentos para esta decisão tanto podem ser de ordem substantiva – questões que inviabilizem uma decisão rigorosa -, como de ordem processual – questões que retardem intoleravelmente o processo penal, como por exemplo, no que toca à prova dos danos, a realização de perícias complexas e demoradas. Assim, esta norma procura dar satisfação ao direito consagrado no artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, de obtenção de uma decisão em prazo razoável e através de um processo equitativo. Então, a nossa lei processual penal consagrou o poder de o julgador remeter as partes para os tribunais cíveis, no caso de ocorrerem circunstâncias que, segundo o seu pudente arbítrio, inviabilizem uma decisão rigorosa, com desvantagem para o pedido cível, ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem de forma intolerável o processo penal . Nas palavras de Henrique Gaspar, in Código de Processo Penal comentado, 4ª edição revista, Almedina, p. 243, «A decisão que remeta as partes para os tribunais cíveis depende da apreciação do tribunal, de acordo com critérios exclusivamente prudenciais face às circunstâncias do caso; constitui uma decisão que depende da livre resolução do tribunal (livre, embora motivada), e não é, por isso susceptível de recurso, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea b) do CPP». Igualmente no sentido da irrecorribilidade da decisão proferida ao abrigo do artigo 82º, nº 3 do C.P.P., veja-se Luís Lemos Triunfante, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, p. 876: «A manutenção do princípio da adesão obrigatória da ação civil ao processo penal mas alargando as hipóteses em que a ação civil pode ser proposta em separado, nomeadamente nos casos em que – dada a dificuldade, a complexidade ou a natureza das questões postas – o juiz penal entenda não estar em condições de decidir sobre o pedido civil, ou em que tal possa causar uma sensível demora à decisão da causa penal – esta faculdade/poder/dever do juiz penal é usada frequentemente na prática judiciária. Na verdade, trata-se de uma decisão cautelar, destinada a evitar que através do sistema de adesão, que em princípio se consagra, se possa entravar a rápida administração da justiça penal». Em suma, estamos perante uma decisão fundada no poder discricionário do julgador, visando a boa administração da justiça e a obtenção de uma decisão em prazo razoável. É certo que a irrecorribilidade em questão não é absoluta, dado que se o despacho proferido ao abrigo do nº 3 do artigo 82º do C.P.P. for arbitrário ou infundado, ter-se-á de admitir o recurso do mesmo, por violação do artigo 97º, nº 5 do C.P.P., neste caso, ou com base no que dispõem os artigos 20º, nºs 1 e 5 e 32º, nºs 1 e 7 da Constituição da República Portuguesa, naquele caso – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos direitos humanos, volume II, 5ª edição atualizada, UCP editora, p. 569. Como aponta Pereira Madeira, in Código de Processo Penal comentado, 4ª edição revista, Almedina, p. 1250, «a livre resolução não poderá volver-se nunca em decisão arbitrária, já que deve ser sempre aferida e adoptada em função das finalidades processuais para que foi conferida, sob pena de desvio de poder. Havendo desvio de poder, pode questionar-se a irrecorribilidade do acto, sendo certo que, como já foi anotado, na dúvida o recurso deve ser admitido». No caso em apreço, o despacho recorrido foi antecedido do cumprimento do contraditório e mostra-se devidamente fundamentado, conforme exposto supra. Na verdade, o despacho em questão faz referência à circunstância de anteriormente – e estamos a falar há mais de um ano! – ter sido indeferido idêntico pedido de remessa das partes para os meios comuns, e refere o facto de as lesões da vítima não estarem consolidadas/estabilizadas. Mais, a própria recorrente invoca que em 27/2/2024 foi junto aos autos um requerimento (da assistente/demandante/recorrente), a solicitar esclarecimentos ao relatório pericial, sobre o qual não recaiu ainda despacho, perícia essa que foi solicitada em 5/4/2023 – cfr. fls. 443. Ou seja, é patente o atraso que a matéria cível acarreta para a decisão da causa penal! Argumenta ainda a recorrente que a remessa das partes civis para os meios comuns ofende o seu direito a obter justiça em prazo razoável, considerando que, atento o valor do pedido, pode haver recurso até ao S.T.J.. Ora, manifestamente, a existência de dois graus de recurso na jurisdição cível não pode servir de bitola para a questão do reenvio das partes do pedido civil deduzido na acção penal para os meios comuns. Depois, não vemos que o reenvio da acção civil enxertada para a jurisdição civil possa atentar contra as garantias de defesa da recorrente, sendo certo que o critério para tal decisão, conforme opção do legislador, é o não retardamento do processo penal. Deste modo, encontrando-se a decisão que remeteu as partes civis para os meios comuns fundada na lei e motivada, a mesma não é susceptível de recurso.
IV. DECISÃO Nestes termos e pelos fundamentos expostos: Acordam os juízes desta Relação em indeferir a reclamação e, consequentemente, manter a decisão sumária proferida nos autos que rejeitou o recurso interposto pela assistente/demandante civil AA. Custas da presente reclamação pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs, sem prejuízo da condenação tributária constante da decisão sumária. Coimbra, 12 de Março de 2025 (Helena Lamas - relatora) (Maria José Guerra – 1ª adjunta) (João Abrunhosa – 2º adjunto)
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