Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1595/21.0T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ARRESTO
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 376.º, N.º 3 E 392.º, N.º 1, AMBOS DO CPC
Sumário: I - Tendo sido requerido arresto de bens de terceiro com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica da sociedade titular dos bens a arrestar é processualmente admissível decretar o arresto ao abrigo do n.º 2 do artigo 392.º do CPC.

II - O arresto previsto no n.º 2 do art 392º do CPC basta-se com um juízo de mera verosimilhança no que respeita aos requisitos da impugnação pauliana.

III - No arresto previsto no nº 2 do art 392º CPC basta demandar o terceito adquirente.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - R..., Ld.ª veio intentar contra P..., Ld.ª, procedimento cautelar especificado de arresto, requerendo-o, “por aplicação subsidiária do disposto no nº 3 do art 735º CPC (ex vi do disposto no art 391º/2 do mesmo diploma legal”), em bens de terceiro, até ao valor de 4.662,98 € (valor da dívida acrescido de 20%).

Para tanto, alegou, em síntese, que se encontra pendente no Juízo Local Cível de Castelo Branco – Juiz 2, o processo de execução de sentença n.º 90561/19.1YIPRT.1, sendo ela, Requerente, ali Exequente, e Executada, C... Unipessoal, Lda, Ld.ª,    ascendendo a quantia exequenda a € 3 885,82. Refere que em resultado das diligências de penhora tentadas nessa execução teve conhecimento que o ativo da Executada, a referida C... Unipessoal, Lda, havia sido  transferido para a aqui Requerida,  P..., Ld.ª, em 23 de Abril de 2019, tudo indicando, em face do teor das faturas exibidas pelo sócio único da ali Executada para documentar a transferência de património entre esta e a Requerida,  estar-se perante uma transmissão global de estabelecimento.

Mais descreve, por outro lado, que a acima referida Executada, C... Unipessoal, Lda, Ld.ª, foi constituída em 15 de Outubro de 2012, com sede na Rua..., ..., em ..., tendo então como sócio único, AA, sendo que, desde Maio de 2019, que tem como sócio único, BB, casado com CC, e residente na Rua..., ..., ..., sendo actualmente gerente dessa sociedade, DD, igualmente residente na  Rua..., ..., ..., tendo  como objeto social a produção e comércio de produtos agrícolas, agroindústria e sua comercialização, tendo alargado em 2016 o seu objecto social.

Por seu turno, a Requerida, P..., Ld.ª foi constituída em Julho de 1995, tendo como sócios BB e mulher, CC, tendo a sua sede também na Rua..., ..., ..., e desde 30 de Abril de 2008 que são seus  gerentes o referido DD e EE, também com morada na Rua..., ..., em ..., ambos filhos de BB e CC, tendo as suas instalações na denominada Quinta..., em ..., local onde explora um centro hípico e produz produtos hortícolas.

Relativamente ao crédito cuja garantia patrimonial pretende proteger com o arresto, refere que, pelo menos desde 2010, começou a fornecer material de rega a BB, para instalação na Quinta..., sendo as faturas emitidas em nome da Requerida -  P..., Ld.ª, Ld. – a pedido daquele, mas que, desde 2013, também a pedido de BB, as faturas emitidas pela prestação de bens pela Requerente passaram a ser emitidas em nome da sociedade Executada, C... Unipessoal, Lda, não obstante o material fornecido ter continuado a ser aplicado no mesmo local em que o era o anteriormente fornecido, fazendo, aliás, parte de um mesmo sistema de irrigação.

Refere ainda a Requerente que a correspondência bancária da sociedade Executada era recebida na casa de morada de família de BB, e que, por detrás desta sociedade, sempre esteve BB e não AA. Este prestava serviços à Requerida a ferrar cavalos e mantinha boa relação com a família daquele, sendo que, como sócio único da sociedade Executada aquando da sua constituição, logo  em Janeiro de 2013, pouco depois da mesma, viu aprovado em seu nome pelo PRODER um projeto para a instalação de jovem agricultor, financiamento esse que se destinava  a BB,  que de outra forma o não poderia alcançar, tendo aquele saído da sociedade depois dos 5 anos em que a lei o obrigava a dedicar-se ao projecto sem que a sociedade tivesse que devolver os apoios recebidos, passando a ser sócio da mesma o referido BB.

No que se refere ao “justificado receio”, a Requerente situa-o na forma como BB e respetiva família têm tentado prejudicar os seus credores ao longo dos anos. Refere,  como exemplo,  que BB e mulher foram sócios e avalistas da sociedade F..., S. A., e que, na pendência de execução de que a mesma foi alvo, em Setembro de 2004, aqueles e os já mencionados seus filhos, alteraram o capital social da referida sociedade de forma a que os sócios originários e executados naquele processo passassem a deter apenas 5% da sociedade, tendo ainda alterado as regras de amortização das quotas, tendo mantido a gerência dessa sociedade durante mais quatro anos, após o que a mesma veio a ser objeto de um processo de insolvência.  Refere ainda, ao nível do dito receio, que DD, já se viu que filho de BB, instaurou contra o pai uma execução, não obstante não existir qualquer  litígio entre ambos, residindo os dois na mesma morada, sendo o exequente representado nessa execução pelo mesmo advogado que representou a mãe na respectivo pedido de insolvência, e também a C..., Unipessoal, Ld.ª, quando também esta se apresentou à insolvência, que foi decretada com caráter limitado, acrescendo que o referido DD, depois de ter logrado a penhora de bens para pagamento do seu suposto crédito, indicou como IBAN o do pai, tornando-se assim evidente que a execução se destinou a prejudicar credores.

 Conclui que as empresas em causa servem os interesses da família de BB e que são usadas como instrumentos de práticas abusivas destinadas a prejudicar terceiros, pelo que pugna pela procedência do procedimento cautelar, devendo ser decretado o arresto de bens da Requerida pela dívida contraída em nome da sociedade C..., Unipessoal, Ld.ª, alicerçando este pedido na figura da desconsideração da personalidade jurídica.

O Tribunal da 1ª instância indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar, entre o mais, referindo que, «(…) a figura da desconsideração da personalidade jurídica destina-se a lograr alcançar, mercê dessa desconsideração, o património do sócio ou sócios por detrás dessas decisões prejudiciais para os credores da sociedade», e que, «analisando o requerimento inicial, verifica-se que a ação apenas foi intentada contra a sociedade requerida, e não também contra os respetivos gerentes». Mais referiu que, «(..,) a factualidade descrita reporta-se, na sua essência, à atuação de BB, o qual não é gerente das sociedades – no caso concreto da Requerida, não o é desde 2008, no caso da sociedade C..., Unipessoal, Ld.ª desempenhou essas funções, brevemente, entre Maio e Agosto de 2019. Sem prejuízo, mais cumpre salientar que ambas as sociedades, apesar do alegado, se mostram independentes entre si, ou seja, não se mostram inseridas sequer numa qualquer relação de grupo, muito embora ainda que assim fosse tal não seria suficiente para, por si só, permitir que se lance mão da figura jurídica ora em análise (…)». Conclui que «o fundamento conducente ao fumus bonus iuris se mostra insuficientemente alegado, e, ainda que, tal como vem descrito, seja (fosse) objeto de demonstração em sede de produção de prova, sempre seria insuficiente para poder vir a dar provimento à pretensão do Requerente», assinalando ainda que, «da factualidade alegada não se retiram factos de natureza essencial à eventual procedência da pretensão da Requerente».

II- Do assim decidido, apelou a Requerente, que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

1. Por não se conformar com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, vem a recorrente submeter à douta consideração deste Tribunal “ad quem” o presente recurso, tendo em vista a revogação da decisão que decidiu indeferir liminarmente a providência cautelar, por “insuficiência” de alegação no que concerne ao “fomus bonus iuris”, porquanto:

 2. A recorrente é credora da sociedade “C... Unipessoal, Lda.”, contra quem corre execução para pagamento coercivo.

3. A “C... Unipessoal, Lda.” vendeu todos os seus bens à sociedade requerida “P..., Lda.”.

 4. Assim, a recorrente requereu o arresto de bens na titularidade da sociedade requerida, adquirente desses bens.

5. Para tanto, alegou a existência de crédito, o justo receio e deduziu factos que tornam provável a procedência da impugnação do ato translativo, em futura ação principal.

6. É, todavia, este último pressuposto que o “Tribunal a quo” entende não se encontrar preenchido (motivo pelo qual nem apreciou o justo receio invocado), indeferindo liminarmente a providência cautelar.

7. Em sede de petição inicial, a requerente ofereceu extensa alegação, explanando e expondo o funcionamento de ambas as sociedades, que estão ao serviço do mesmo gerente de facto (Sr. BB), sendo a gerência e sócios distribuídos entre a família desse gerente, coincidindo as duas no local da sede - que é a casa de morada de família do gerente de facto – onde inclusive se rececionava correspondência bancária de uma sociedade que formalmente pertencia ao AA.

8. Acontece que o AA detinha uma vida que não era sequer compatível com o desenvolvimento e expansão da sociedade a que acedeu dar nome, em virtude boas relações que tem com a família do Sr. BB, para quem sempre prestou serviços enquanto ferrador de cavalos.

9. Por sua vez, a requerente, no exercício da sua atividade, sempre forneceu material a pedido do gerente de facto, senhor BB, que encomendava, pedia orçamentos e recebia o material. Material que a requerente instalava sempre no mesmo local, independentemente da sociedade a que faturava, pois que ambas coincidiam nas instalações.

 10. Toda esta realidade fáctica está documentada.

11. Factos que são demonstrativos, em nosso modesto entendimento, do evidente abuso de direito de personalidade coletiva, para efeitos do disposto no artigo 392º/2 do CPC, a fundamentar a futura impugnação da aquisição de bens pela sociedade requerida.

 12. Ao não o entender assim, é nosso modesto entendimento que o Tribunal “a quo” violou o artigo 365º/1 e o artigo 392º/2, ambos do CPC. Todavia,

13. Ainda que a Mmª Juiz do Tribunal “a quo” entendesse que a desconsideração da personalidade coletiva não era suficiente para tornar provável a procedência de impugnação da aquisição, em sede de ação principal a intentar, deveria ter convidado a requerente a suprir tal insuficiência, posto que a realidade alegada é de tal forma extensa, que só da sua leitura resultam várias soluções jurídicas possíveis para a impugnação, em sede de ação principal futura.

 14. A petição inicial da recorrente conjugada com  a prova documental junta, patenteia um quadro factual vasto, que efetivamente justifica o prosseguimento dos autos, ou, pelo menos, um convite ao aperfeiçoamento, ao invés de uma decisão como a proferida, que coartou ao requerente qualquer possibilidade de ver discutida e julgada a sua pretensão.

15. Pelo que, com a decisão de indeferimento liminar da presente providência sem prévio convite, é nosso entendimento – e sempre com o devido respeito – que o Tribunal “a quo” violou, ainda, o disposto no art.590º/4 do CPC, cometendo a nulidade prevista no art.195º/1 do CPC.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.exas. doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar de arresto, substituindo-se a mesma por outra que ordene o prosseguimento dos autos, se necessário, com convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

III – Os factos necessários para a apreciação do recurso resultam do acima relatado, entendendo-se, no entanto, útil, fazer relevar o seguinte:

1-No dia 22/10/2021, consoante «auto de diligência» constante de fls 23 destes autos, teve lugar tentativa de penhora no âmbito da execução  90561/19.... em que é executada a empresa C... Unipessoal, Lda, tendo-se a mesma frustrado, porque o gerente da mesma,  “Sr DD”, referiu que os bens não eram da executada, eram da Quinta...  e exibiu as facturas  que se mostram anexos a esse auto, tendo a exequente confirmado, na diligência em causa, que nelas se encontram descritos alguns bens que correspondem à descrição dos bens por si vendidos e ali instalados.

IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida resultam para apreciar no presente recurso, as seguintes questões, que correspondem ao seu objecto:

-se os factos invocados pela apelante se mostravam susceptíveis de justificar o arresto de bens da Requerida, ao abrigo do disposto no nº 2 do art 392º CPC;

- a, assim não se entender, se se justificava convite ao aperfeiçoamento, nos termos do nº 4 do art 590º CPC, de tal modo que não tendo sido proferido tal despacho o processo enferma de nulidade, nos termos do art 195º/1 do CPC.

A apreciação da primeira questão reclama que se refira, em devido abono da decisão recorrida, que também este Tribunal entende, em função dos factos que a Requerente alegou na petição e a forma como o fez, que a mesma andou longe de perspectivar o arresto de bens de terceiro, nos termos do nº 2 do art 392º CPC, disposição essa, a que, aliás,  não fez qualquer referência. O que pretendeu foi o que deixou claro logo no início da petição – o arresto de bens de terceiro, em função de factos de que resulta, no seu entender, a desconsideração da personalidade colectiva da devedora originária, e que entendeu suficientes e adequados para justificar o arresto de bens de outra sociedade, que, tal como aquela, servia os interesses da mesma pessoa individual e respectiva família.

Foi apenas em função da justeza da decisão recorrida que a Requerente entreviu que o caminho para o arresto de bens não pertencentes a sociedade dela devedora mas de outra que, alegadamente, havia adquirido o património daquela, seria passível de ser obtido através do arresto na vertente a que se refere o nº 2 do art 392º CPC, onde se afirma que «sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduz ainda os factos que tornam provável a procedência da impugnação». E que assim foi, demonstra-o a circunstância de, em lugar algum da petição, ter feito referência à acção que se mostra principal relativamente àquela vertente de arresto, e que é a da impugnação pauliana,  preceda a mesma ou não o dito pedido de arresto de bens de terceiro, antes parecendo dar por certo que o seria a já pendente execução. Por isso, e com razão, a decisão recorrida acentuou que «da declarada pretensão de arrestar os bens alegadamente vendidos, não se revela possível apurar aquela que virá a ser a pretensão principal da requerente  (…).

É apenas agora nas alegações de recurso que vem referir «a futura impugnação da aquisição de bens pela sociedade requerida» (conclusão 11ª).

É certo que no final da petição aludiu à aplicação do disposto no art 735º/3 do CPC, ex vi do disposto no art 391º/2, aplicação que reputa de “subsidiária”, mas, na verdade, aquela disposição nada tem a ver com o arresto, nem se lhe pode aplicar subsidiariamente. Reporta-se a «situações especialmente previstas na lei», em que a execução (e não o arresto) é “ab initio” movida contra terceiro, nas quais  se insere, para além da situação de bens do terceiro vinculados à garantia do crédito e bens do devedor onerados por direitos de gozo de terceiro, a do terceiro adquirente por acto impugnado[1], estando em causa nesta situação execução contra terceiro contra quem tenha sido (já) obtida com sucesso sentença de impugnação pauliana e que, por isso, tem como titulo executivo, justamente, a sentença de impugnação pauliana.

Dito isto, resta saber se os factos que a Requerente alegou com um intento que não o de obter o arresto de bens da requerida, nos termos e para o efeito do disposto no nº 2 do art 392º, são, não obstante, bastantes, para que, convertendo-se o arresto requerido no que se pretende apenas agora, no recurso, obter, os autos possam efectivamente prosseguir para prova desses factos.

Questão que aqui se coloca por ser sabido que a solução acolhida no art 376º/3 CPC, segundo a qual o tribunal não esta adstrito à providência concretamente requerida,  permite a convolação de uma providência para outra, desde que os factos essenciais para o preenchimento dos requisitos destoutra estejam alegados.

Já  Abrantes Geraldes[2], a respeito da norma do nº 3 do art  392º aCPC, em tudo idêntica à presente no nº 3 do referido art 376º, se manifestava no sentido de que, do que se trata é afinal de admitir «a correcção do erro de qualificação jurídica que podia ser remediada através da interpretação que melhor correspondesse aos fundamentos invocados, nos termos do art 664º CPC», mais referindo que «a mera alteração do nomen júris jamais suscitou qualquer problema quanto à liberdade qualificativa do tribunal nos termos do art 664º, aplicável por maioria de razão à qualificação jurídica de determinada providência».

Também Rita Barbosa  da Cruz[3], não exactamente a respeito de situação como a dos autos, mas a respeito da situação do  credor que pretendendo prevenir o perigo de dissipação de bens do devedor lança mão de uma providência cautelar não especificada em vez do arresto, o que, para o efeito aqui em questão se equivale, se pronuncia no sentido de que,  «o juiz, apreciando a causa de pedir e o pedido e fazendo a respectiva subsunção ao arresto e não ao procedimento cautelar comum, deve mandar seguir o procedimento correcto por aplicação do art 199º, tratando-se de mera correcção do erro na escolha do procedimento cautelar ajustado à pretensão, deixando intocada a matéria factual apresentada pelas partes». E acrescenta: «Ainda assim, se o erro no procedimento não for detectado, o juiz não está vinculado à qualificação feita pelas partes, aplicando-se directamente o art 664º na resolução da questão», deixando claro que «no caso em apreço não se ultrapassa quaisquer obstáculos legais. Os factos preenchem os requisitos do arresto. Houve um simples erro na escolha do procedimento adequado que ao juiz é lícito corrigir nos termos legais».

Na situação dos autos o que importa é, pois, saber se da matéria de facto alegada  resulta o preenchimento do tipo de arresto a que se reporta o nº 2 do art CPC 392º quando se mostre prévio à interposição da acção de impugnação pauliana.

Foi já o longínquo DL 180/96 de 25/9 que passou a permitir, por via do disposto no então art 407º/2 aCPC, que o arresto, para além de poder ser deduzido como incidente da acção de impugnação pauliana, passasse a poder ser requerido como preliminar dessa acção, com a vantagem acrescida de melhor acautelar o secretismo necessário ao procedimento de arresto. Mas, nesse caso de arresto deduzido previamente à acção de impugnação pauliana – hoje previsto no nº 2 do art 392º em termos idênticos àqueles do nº 2 do art 407º aCPC - o legislador foi mais exigente, impondo que o requerente logo demonstrasse factos que tornassem possível a procedência dessa acção, o que significa, em última análise, que se proceda à alegação dos requisitos da impugnação pauliana.

O que significa que são diferentes os requisitos a preencher no arresto de bens de terceiro consoante já se mostre ou não pendente a acção de impugnação pauliana: «Se a acção já tiver sido instaurada, bastará a alegação e prova dos factos relativos à probabilidade do crédito e ao justo receio de perda da garantia, destinando-se o arresto dos bens a dar eficácia à decisão que eventualmente venha a ser proferida; se a acção ainda não tiver sido instaurada, exige-se, complementarmente, a alegação e prova sumária dos pressupostos da impugnação, como factor de credibilidade e de seriedade da pretensão, tanto mais que vai interferir na esfera jurídica de terceiros, porventura alheios à relação creditícia de onde emerge o direito». [4]

Num caso de um arresto ou no do outro, e como Cura Mariano o evidencia [5], «a providência de arresto (...), é dependente da acção pauliana e não da acção declarativa ou executiva para cobrança do crédito, para os efeitos do art 383º CPC. Ela visa acautelar, em primeira linha, a eficácia da sentença que determina a possibilidade do credor executar os bens transmitidos no património do seu adquirente, pelo que a relação de dependência estabelece-se com a acção pauliana». Acrescentando no mesmo sentido: «Daí que sejam as vicissitudes desta acção que determinarão a caducidade da providência, nos termos do disposto no art 389º do CPC».

O que sucede porque os bens a arrestar são de terceiro.

De facto, o que o(s) arresto(s) previsto(s) no nº 2 do art 392º CPC têm de especial, relativamente ao (normal) arresto a que se refere o nº 1 dessa disposição processual, é que os bens a arrestar não são bens do devedor.

Ficaria muito incompleta a protecção que o instituto da impugnação pauliana (e também o da declaração de nulidade, nos termos do art 605º CC) pretende assegurar aos credores - destinando-se, um e outro, como se destinam, a impedir que o credor, que tem no património do devedor a sua garantia patrimonial, art 601º CC, veja esvaziado esse património através da sua transferência a terceiros feita, precisamente, com esse objectivo -  se não se tivessem previsto os arrestos referidos no nº 2 do art 392º.   

Como explica Abrantes Geraldes[6], ainda por referência ao aCPC, o «disposto no art 407º/2 CPC mais não é do que a adjectivação do direito conferido ao credor de perseguir os bens do devedor para efectivo exercício de um direito de crédito, quando se verifique a prática de actos de que resulte a diminuição da garantia patrimonial – art 619º/2 CC. Na verdade, a concessão ao credor da possibilidade de obter a declaração de ineficácia de tais actos poderia revelar-se insuficiente, se fosse desacompanhada do direito de obter a sua prévia apreensão, designadamente quando se esteja perante bens móveis relativamente aos quais nem o registo consiga tornar eficaz a sentença constitutiva».

Como o refere Rita Barbosa da Cruz [7]  o arresto que recai sobre bens que o devedor haja transmitido a terceiro «vem dar cobertura àquelas situações em que o devedor transmite os seus bens  para, dolosamente, impedir a satisfação do direito do credor».

Esclarecendo esta autora que este arresto «não contraria a lei civil, pois não dispensa a prévia impugnação judicial da transmissão dos bens do devedor». Explicando, porquê: «Com o intuito de facilitar e garantir a eficácia do arresto, assegurando o já referido secretismo de que depende o sucesso deste procedimento, permite apenas ao credor cumular no mesmo processo a impugnação da transmissão e o arresto. É evidente que o arresto só procederá se a impugnação for bem sucedida, pois desta depende a legitimidade do credor para arrestar os bens do devedor no património do terceiro obrigado à restituição».

De onde se conclui que  o arresto de bens de terceiro a que se refere o nº 2 do art 392º CPC, quando intentado previamente à acção de impugnação pauliana, pressupõe a cumulação do pedido da procedência da impugnação da transmissão com o pedido de arresto nos termos do nº 1 dessa norma, devendo, pois, o credor alegar, para lá de factos que fundamentem o seu direito de crédito (fumus boni júris), e factos que justifiquem o receio de perda da garantia patrimonial (periculum in mora)  - nº 1 do art 392º – requisitos estes genéricos do aresto, os factos que fundamentem a impugnação da transmissão, que sendo os que «tornem possível a procedência da acção impugnação pauliana», coincidem com  os requisitos da impugnação pauliana.

Vejamos, assim, se da concreta petição de arresto dos autos resultam suficientemente alegados os factos a que se fez referência.

Não havendo dúvida de que o crédito que o requerente invoca sobre a  requerida é anterior ao acto de transmissão de bens que aquela pretende impugnar  - pois tal crédito  respeita a fornecimentos de bens pela A. à  C... Unipessoal, Lda, a que se reportam as facturas juntas à petição de fls 33 verso a 38 vº, ocorridas entre Setembro de 2013 e Outubro de 2015  - e este (o acto de transmissão de bens) teve lugar, segundo alegação da requerente, a 23/4/2019, configurando-se como oneroso, como resulta das facturas juntas de fls 19 vº a 22 vº com que o gerente da C..., Unipessoal, Ld.ª, no acto da frustrada penhora, justificou a ausência de bens a penhorar relativamente a essa sociedade, invocando serem todos esses bens da aqui Requerida P... Lda – constituem requisitos para a impugnação pauliana que resulte do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade  - cfr al b) do art 610º CC -  e que tanto o devedor como o terceiro tenham agido de má fé  - art 612º/1,1ª parte -  entendendo-se por má fé,  «a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor» - nº 2 desse art 612º.

Como é referido no Ac STJ 6/11/2003, «a existência da “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor” é conclusão a extrair dos factos que a patenteiam».

Está em causa na consciência do prejuízo um processo psicológico que Cura Mariano [8] qualifica como «pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva». Por isso, estando em causa um evento da vida interior do homem, a sua prova não é feita de forma directa, «com excepção da relevância da sua confissão», antes resultando «de indícios seguros e do funcionamento de critérios de normalidade», em que interferem, naturalmente, e por excelência, as presunções judiciais: «a constatação de determinadas circunstâncias permite ao juiz efectuar um raciocínio, em que, utilizando as regras da experiência, os princípios da lógica, ou mesmo os dados da intuição humana, firme a consciência não revelada por sinais exteriores».

E faz este autor notar que o legislador entendeu relativamente à impugnação pauliana «não interferir no labor jurisprudencial através do estabelecimento de presunções legais orientadoras ou taxativas»: «cabe ao julgador trabalhando com as regras da experiência e da normalidade da vida, efectuar os raciocínios presuntivos que descubram a existência de má fé».

Ora, na situação dos autos estão alegados factos susceptíveis de funcionarem como  factos base de presunções judiciais no sentido de conduzirem à conclusão de que, a transferência dos bens constantes das acima aludidas facturas da C..., Unipessoal, Ld.ª para a aqui Requerida, foi feita com o único intuito de lesar os credores daquela sociedade.

Na verdade, que outro sentido se poderá dar, de acordo com a experiência da vida, à  circunstância de, tendo o aqui Requerente fornecido à C..., Unipessoal, Ld.ª os bens constantes das facturas de fls  fls 33 verso a 38 vº, esses mesmos bens terem sido transferidos para a aqui Requerida, de tal modo que, na penhora havida na execução interposta pela aqui Requerente contra a referida sociedade Unipessoal, em que a mesma se pretendia fazer pagar relativamente ao preço daqueles bens, o gerente da mesma, não sócio dela mas filho do seu único sócio, ter referido, de modo à obstar à realização da penhora que os bens que ali se encontravam não eram da executada eram da Quinta...,  exibindo as facturas  juntas aos presentes autos fls 19 vº a 22 vº?

Procedimento este que se tem que situar no contexto de confusão entre objectos sociais, actividades desenvolvidas, local de desenvolvimento dessas actividades (num caso e noutro na Quinta...), sede social, gerência de uma e outra das sociedades e configuração da pessoa de AA como testa de ferro de BB. 

Salientando-se que uma e outra das sociedades tiveram sede na mesma morada  – Rua..., ..., em ... – morada esta que será ao lado da residência de BB e CC  – Rua..., ..., ... -    que são pais do referido DD,  sendo BB o  socio único da sociedade unipessoal, tendo sucedido nessa gerência ao referido AA,  em 22/4/2019, véspera da emissão das facturas acima referidas.

 Devendo ainda conjugar-se todas essas circunstâncias com a actuação e postura  de BB e DD aquando das frustradas penhoras de 11/6/2021 e 22/10/2021, cujos autos constam respectivamente a  fls  67 vº  e 23, e que aqui se dão como inteiramente reproduzidos.  

 Por outro lado, não pode senão entender-se que da referida transferência de bens da C..., Unipessoal, Ld.ª para a aqui Requerida, P... Lda,  resultou a impossibilidade para o aqui Requerente  de obter a satisfação integral do seu crédito de  €3.885,82, como resulta do referido auto de penhora  e mais tarde da insolvência dessa sociedade.  

Saliente-se que, como o evidencia Rita Barbosa Cruz, também relativamente ao arresto a que se refere o nº 2 do art 392º, o juiz se deve bastar com um juízo de mera verosimilhança no que respeita aos requisitos da impugnação pauliana, referindo que «para que o arresto mantenha o efeito útil de acautelar os resultados do processo principal, torna-se necessário que, na apreciação dos requisitos de que depende a impugnação, o juiz tenha as mesmas preocupações de equilíbrio entre a celeridade e o risco de lesão na esfera jurídica de um terceiro, eventualmente alheio à relação creditícia do requerente com o devedor». Acrescentando, como justificação: «É neste sentido também que nos induz a letra da lei, ao determinar que o requerente terá que deduzir factos que tornem provável a procedência da impugnação, revelando a intenção do juiz se bastar com um mero juízo de probabilidade sobre a verificação dos factos que fundamentam a impugnabilidade da aquisição»[9].

E faz lembrar, para minimizar o risco deste juízo de mera probabilidade, que, de todo o modo, «a procedência da acção de impugnação é conditio sine qua non da validade do arresto contra o adquirente de bens do devedor», pois que, «se a acção pauliana for rejeitada, o arresto realizado caduca, por incidir sobre coisa alheia». 

 Por fim, cabe assinalar que relativamente ao crédito do credor requerente do arresto a jurisprudência é unânime em bastar-se com um simples juízo de probabilidade da sua existência, «ainda que a origem e a viabilidade (desse crédito) sejam discutíveis em termos de facto ou de direito»[10].
Por outro lado, a circunstância da presente providência cautelar vir dirigida apenas contra o terceiro adquirente e não contra o devedor não obsta à legitimidade passiva daquele, como o entende Cura Mariano, quando refere [11]: «Basta que o procedimento cautelar de arresto seja deduzido contra o terceiro adquirente dos bens (art 407º/2 CPC) uma vez que dele apenas pode resultar a ineficácia perante o credor requerente dos actos de disposição praticados por aquele, segundo as regras da penhora (art 662º CC). Não se procedendo aqui á venda dos bens em causa, não há um interesse do devedor que justifique sequer a possibilidade da sua presença neste procedimento» [12] 

Do que se expôs, deve concluir-se, vista a convolação operada no arresto inicialmente pretendido, para o previsto no nº 2 do art 392º CPC, estarem suficientemente alegados os pressupostos de que este depende, de modo a poderem prosseguir os presentes autos com vista ao arresto de bens que hajam sido fornecidos pela Requerente à C... Unipessoal, Lda e que esta transmitiu onerosamente à aqui Requerida.
Com o que resultam prejudicadas as demais questões evidenciadas como constituindo objecto do presente recurso.

V-  Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, determinando a prossecução dos presentes autos de arresto na vertente prevista no nº 2 do art 392º CPC.

Custas na 1ª instância pelo apelante nos termos do art 539º/2 CPC e sem custas a presente apelação.

                                                                       Coimbra, 15 de Fevereiro de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)

                                                                       (Pires Robalo)

(...)


                [1] - Cfr Rui Pinto, «Manual da Execução e Despejo», Agosto de 2013, p 291 e ss
                [2] - «Temas da Reforma de Processo Civil», IV, Vol VI, «Procedimentos Cautelares Especificados», p.195
                [3] - «O Arresto», na Revista «O Direito», nº 132, (Janeiro/Junho), p. 161

[4]- Abrantes Geraldes, «Temas da Reforma do Processo Civil», IV, Volume 6, . «Procedimentos Cautelares Especificados», p 195
 [5] - «Impugnação Pauliana», 2ª ed, p 300
[6] - Obra e lugar citados
[7] -  «O Arresto» na Revista «O Direito», nº 132 (Janeiro –Junho) p 107 a 196, concretamente p 161. 
[8] - Obra referida, p 199
[9]- Obra e lugares citados, p 164
[10] - Rita B. da Cruz, obra e lugares citados, p 127
                [11]  - Nota 126, a fls 163
[12] - Ao contrário do sustentado por Rita Barbosa da Cruz, obra e lugar citados,  nota 126, em pé de página, a fls 163, onde escreve: «Não obstante a letra da lei induzir no sentido de o arresto ser intentado apenas contra o terceiro, adquirente dos bens do devedor, julgamos estar perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo, porquanto a relação material controvertida respeita simultaneamente ao devedor, contra quem deve ser feita prova do crédito e do justo receio de perda da garantia patrimonial e ao terceiro, directamente interessado na manutenção do acto de transmissão e sobre quem vai recair,  em caso de procedência do arresto, o acto de conservação dos bens – cfr arts 611º e 616º CC e art 28º CPC . Aliás a lei refere que o requerente deve deduzir factos que fundamentem os requisitos do arresto e ainda os que tornem provável a procedência da impugnação, sugerindo uma cumulação».
E ao contrário do que a aqui Relatora entendeu no Acórdão da Relação de Lisboa de 25/6/2015 (Proc nº 232/14.4), cuja estrutura serviu de modelo ao presente.