Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
412/22.9T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
QUALIDADE DE SENHORIO
DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE O IMÓVEL
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – PORTO DE MÓS – JUÍZO LOCAL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1022.º, 1023.º, 1027.º, 1083.º, N.º 1 E 2, AL. A) E 1095.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Sendo a acção de despejo de carácter pessoal ou obrigacional, e não uma acção real, como tal não é exigível que o A. prove ser proprietário, mas antes, e somente, que interveio como senhorio de um contrato de arrendamento, seja a que título for, designadamente cabeça de casal, e que exista um arrendatário.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

I – Relatório

 

1. Herança Aberta e indivisa de AA, representada pela cabeça de casal BB, residente na ..., intentou acção declarativa contra CC e DD, residentes na ..., pedindo:

a) Ser resolvido do contrato de arrendamento celebrado entre a autora, na qualidade de cabeça de casal com os réus, em 1 de Janeiro de 2020;

b) Ser decretado o despejo imediato dos réus do locado, correspondente ao 1.º andar do prédio da moradia sita na Estrada ..., ... em ..., ..., com a sua entrega livre de pessoas e bens, com fundamento em incumprimento grave dos deveres dos arrendatários;

c) Assim, como serem os réus condenados a retirarem todos os veículos que se encontram estacionados no jardim da moradia (partes comuns), e todos os bens aí colocados, como peças auto, ferramentas e outros bens e utensílios;

d) Serem os réus condenados a pagar à autora a quantia de 2.172,50 €, correspondentes a metade das faturas de eletricidade, água e gás.

Alegaram, em síntese, que a cabeça de casal deu arrendamento aos réus, no dia 1 de Janeiro de 2020, o 1º andar de determinado imóvel. Foi acordado com o arrendatário do r/c que as despesas de água, electricidade e gás seriam da responsabilidade dos arrendatários, pagando, cada um, metade dessas despesas. Logo nos primeiros meses surgiram problemas. Os réus ocuparam a garagem e transformaram-na numa oficina improvisada de veículos automóveis, continuando o réu CC com as actividades de oficina improvisada no logradouro da moradia, local onde mantem estacionados vários dos seus veículos, peças e ferramentas. Que ocorreram vários episódios de mau relacionamento, com os arrendatários do R/c, incluindo agressões físicas e verbais e uso de pastor alemão para ameaças, a que acrescem ruídos perturbadores dos vizinhos. O mau relacionamento passou também a atingir a senhoria, com injúrias e atitudes desrespeitosas. Que se encontram em dívida valores referentes a electricidade, água e gás, da responsabilidade dos réus, na proporção de metade, no montante de 2.172,50 €.

Os réus contestaram, alegando que as queixas contra os réus não passam de falsidades. Que a relação de arrendamento teve início em Outubro de 2019, tendo acordado que o valor de renda incluía as despesas cujo pagamento a autora reclama. Que tem o veículo na parte da frente do logradouro e entretêm-se na sua reparação, facto lícito, porque o logradouro está incluído no arrendamento. 

Apresentaram reconvenção, alegando que a autora tem perturbado os réus, com o propósito de os forçar a abandonar o locado, o que integra assédio ao arrendamento. Termina, pedindo a condenação da autora a pagar aos réus a quantia de 25.000 € de danos não patrimoniais.

A autora replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e em consequência:

I – Declarou a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre A. e RR, sobre o 1.º andar da moradia sita na Estrada ..., ..., em ..., ..., com fundamento em violação grave e reiterada de regras de sossego e de boa vizinhança, condenando-se os RR a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens;

II – Absolveu os RR. do demais peticionado;

III – Condenou A. e RR no pagamento das custas da acção, na proporção de 1/3 para a A. e 2/3 para os RR;

IV – Absolveu a A./Reconvinda de todos os pedidos;

V - Condenou os RR nas custas da reconvenção.

*

2. Os RR recorreram, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª- A decisão sobre a matéria de facto efetuou incorreta interpretação e aplicação da prova produzida no caso presente, razão pela qual se impõe que a mesma seja impugnada e, consequentemente, alterada (art.º 662º/1 do CPC).

2ª- Os factos que os Réus consideram incorretamente julgados (art.º 640º/1/a, do CPC) são os dados como provados sob os números 1 e 2.

3ª- Em relação ao número 1, pugnam os Réus que seja dado como não provado, por ausência de prova documental nesse sentido, e ainda porque o depoimento de BB (de 02.43 a 02.56) não pode conduzir a essa conclusão.

4ª – O documento “contrato de arrendamento para fins habitacionais “é um mero projeto de contrato, que não é contrato porque está assinado por um dos contraentes, no caso a suposta Cabeça de Casal, e do mesmo não se pode extrair quem é o proprietário do imóvel a que se refere.

5º - Com a petição inicial, ou após a contestação, a Autora não teve o cuidado, a exigência, de juntar aos autos, documento comprovativo da propriedade do imóvel, e da sua qualidade de Cabeça de Casal, e impunha-se que tal fosse apresentado.

6º - Assim, por manifesta falta de prova, o ponto 1 dos factos assentes, deve ser considerado não provado.

7º - Sobre o contrato de arrendamento, o teor do ponto 2 dos factos assentes deve ser alterado.

8º - É que, não pode ser dado como provado que “No dia 1 de Janeiro de 2020, a Autora outorgou a entrega do gozo temporário, do prédio identificado no ponto 1, aos Réus, mediante o pagamento de renda mensal, no valor de €350,00, a pagar até ao 8.º dia de cada mês a que respeite, através de escrito particular epigrafado “Contrato e arrendamento para fins habitacionais”, pelo prazo certo de 1 ano, com início em 01/01/2020, renovável por períodos iguais “.

9º - Quando, de forma contraditória, nos factos provados sob o números 29, 30 e 31, se diz que “29. Em 5 de Novembro de 2019, os Réus pagaram à Autora, por transferência bancária, para a conta por ela fornecida, a quantia de 700,00€, por conta da renda do mês de Novembro e um mês de caução; 30. Em 5 de Dezembro de 2019, os Réus pagaram à Autora o valor de 420,00€, por conta da renda do mês de Dezembro e €70,00 de despesas com electricidade, água e gás; 34. Em meados de Outubro de 2019, a Autora acordou pessoalmente e sem qualquer formalidade, com os Réus, a cedência do gozo do 1.º andar do prédio descrito no ponto 1, sob a contrapartida do pagamento de renda, no valor de €350, a que acresciam despesas mensais de água, eletricidade e gás, no valor de €75,00;

10º - Isto perante a confissão de BB (depoimento gravado) (voltas [04:08.780 a 05:31.580].

11º - Se foi cedido aos Réus o gozo e fruição do imóvel a partir de “meados de outubro “, mediante o pagamento de “renda do valor de € 350,00 “, como a Autora confessa, o contrato de arrendamento celebrado pelos Réus foi em meados de outubro de 2019, não foi em janeiro de 2020, e teve início em meados de outubro de 20189, não teve início em 1 de janeiro de 2020, sendo o contrato de arrendamento meramente verbal.

12º - Assim, decorrente do que foi confessado por quem se apresentou no processo como “representante da herança “, deve o teor do ponto 2 dos factos provados ser alterado, passando a ter a seguinte redação: Em meados de outubro de 2019, a Autora outorgou a entrega do gozo temporário, do prédio identificado no ponto 1, aos Réus, mediante o pagamento de renda mensal, no valor de €350,00, mediante contrato meramente verbal, sem prazo, com início em meados de outubro de 2019 “.

13º - Não resultou provado que a herança por óbito de AA é dona e legítima possuidora do prédio urbano correspondente ao 1.º andar do prédio urbano sito na Estrada ..., ..., em ..., inscrito no Serviço de Finanças ... com o artigo ...13, da referida freguesia, nem que a mesma é representada por BB.

14º - Pelo que, não fazendo a Autora prova desses factos, e sendo esse facto, desde logo alegado na petição inicial (artigo 1), natural fundamento o pedido de resolução contratual, a ação deve desde logo improceder.

15º - Acresce que, a improcedência da ação resulta ainda do facto de o contrato de arrendamento que a Autora pretende resolver não ser o contrato que ela apresenta como Doc. 1, e identifica como tendo sido outorgado em 1 de janeiro de 2020, e que pretende ver e foi resolvido.

16º - O arrendamento com os Réus existe desde meados de outubro de 2019, através de contrato meramente verbal, pois que foi a partir dessa data que os Réus usaram e fruíram, o imóvel, pagaram as rendas.

17º - A Autora não pediu a resolução do contrato de arrendamento verbal celebrado com os Réus em outubro de 2019, aliás, também não poderia a sentença declarar a resolução deste outro contrato de arrendamento, sob pena de nulidade (art.º 615º/e, do CPC).

18º - Com os fundamentos expostos, deve este Venerando Tribunal julgar procedente a presente apelação, alterando-se os concretos pontos de matéria de facto e julgando a ação improcedente.

Pelo que, com os fundamentos expostos, deve este Venerando Tribunal julgar procedente a presente apelação, alterando-se os concretos pontos de matéria de facto e revogando-se a sentença recorrida, nos termos sobreditos, assim fazendo V. Ex.cias, a costumada JUSTIÇA !

3. A. A. contra-alegou, concluindo que:

1 – Decidiu corretamente o Tribunal a quo ao julgar parcialmente procedente a ação;

2 – Decidiu bem o tribunal a quo, ao declarar a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre A. e RR, sobre o 1º andar da moradia sita na Estrada ..., ..., em ..., ..., com fundamento em violação grave e reiterada de regras de sossego e de boa vizinhança;

3 – Condenando os RR a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens.

4 – O contrato de arrendamento é válido, sendo que os RR habitam o 1º andar e pagam as rendas;

5 - Foi arrendado aos RR, uma fração do imóvel - o primeiro andar - uma das partes autónomas do referido imóvel.

6 – Devendo assim manter-se a matéria de facto dada como provada.

Termos em que, mantendo-se inalterável a douta sentença e se não concedendo provimento ao recurso, farar-se-à a costumada JUSTIÇA!

II – Factos Provados

 

1. A Herança por óbito de AA, com o n.º de contribuinte fiscal ...14, representada pela cabeça-de-casal BB, é (dona e) legítima possuidora do prédio urbano correspondente ao 1.º andar do prédio urbano sito na Estrada ..., ..., em ..., inscrito no Serviço de Finanças ... com o artigo ...13, da referida freguesia;

2. No dia 1 de Janeiro de 2020, a Autora outorgou a entrega do gozo temporário, do prédio identificado no ponto 1, aos Réus, mediante o pagamento de renda mensal, no valor de €350,00, a pagar até ao 8.º dia de cada mês a que respeite, através de escrito particular epigrafado “Contrato e arrendamento para fins habitacionais”, pelo prazo certo de 1 ano, com início em 01/01/2020, renovável por períodos iguais;

3. A moradia supra identificada no ponto 1 é composta de cave, rés-do-chão e primeiro andar;

4. O rés-do-chão encontra-se arrendado ao casal EE e FF e o 1.º andar encontra-se arrendado aos Réus;

5. A moradia descrita no ponto 1, tinha apenas um contador eléctrico e um contador de água, razão pela qual a Autora acordou com os Réus e os outros inquilinos EE e GG, que as despesas de água, electricidade e gás seriam pagas à parte e a dividir igualmente entre os Réus e os outros inquilinos;

6. Na moradia existe também uma cave/garagem que não foi objeto de arrendamento a nenhum dos arrendatários, destinando-se à guarda de bens pessoais da Autora e dos seus filhos;

7. A pedido do arrendatário do rés-do-chão, pois este tinha um casal de filhos gémeos, e precisava de espaço para arrumar algumas caixas com roupa e brinquedos, a Autora emprestou-lhe a chave da cave/garagem;

8. O arrendatário do rés-do-chão, sem autorização da Autora, bem-intencionado, cedeu a chave da cave para que os Réus também lá guardassem alguns bens pessoais;

9. Em meados de Agosto de 2020, o Réu trocou a fechadura, impedindo a Autora de aceder à garagem até 13/8/2021, data em que retirou os seus pertences e a fechadura foi novamente trocada, em diligência judicial de restituição provisória da posse;

10. O Réu neste espaço de tempo, transformou a referida garagem/cave numa oficina improvisada de veículos automóveis, com diversas ferramentas e componentes de veículos automóveis espalhados na garagem e inclusive um pequeno guindaste para remover o motor dos veículos;

11. Por decisão proferida nos autos de procedimento cautelar, apenso A a estes autos, foi decidido em 27/7/2021, decisão já transitada em julgado, o seguinte: “Atento o exposto, julga-se procedente o presente procedimento cautelar e se decide: I – Determinar a imediata restituição pelo requeridos, a favor da requerente, da posse sobre a cave/garagem integrante do prédio urbano (…), bem como ordenar aos requeridos a imediata retirada do interior dessa garagem de todos os bens que lhes pertençam e que se encontrem depositados no seu interior”;

12. O Réu CC continuou com a actividade de oficina improvisada no jardim da moradia até data não concretamente apurada em que arrendou uma garagem, a usar o logradouro do prédio para fazer mudanças de óleo dos veículos e mudar os motores, entre outras reparações;

13. A Autora várias vezes pediu ao Réu que limpasse o jardim e retirasse os veículos acumulados, peças e componentes de veículos automóveis e ferramentas, sem sucesso;

14. No dia 6 de Novembro de 2020, pelas 19h30, o Réu CC estacionou o seu veículo em frente ao acesso à habitação dos arrendatários do r/c, impedindo que estes estacionassem a sua viatura e acedessem à sua fracção;

15. Após a recusa do Réu em remover a viatura, foi chamada a GNR, que se deslocou ao local;

16. Após a retirada dos militares da GNR, o Réu CC empurrou a vizinha e arrendatária do r/c, FF, até à esquina das escadas que dão acesso ao 1.º andar e ali encurralada, a Ré DD puxou-lhe os cabelos, desferiu-lhe vários murros, na cabeça e cara, o que a fez perder a visão e cair ao chão;

17. Como consequência da agressão, a vizinha FF ficou com uma cicatriz com 1 cm e incapacitada para o trabalho, por 12 dias;

18. Os Réus são proprietários de uma cadela da raça Pastor Alemão e em dia não concretamente apurado, em Março de 2021, na presença dos vizinhos HH e FF, arrendatários do r/c, o Réu CC, disse para a cadela “não vás para o pé dessa puta!”

19. Noutro dia, também em Março de 2021, o Réu CC, na presença de HH e FF, disse para a cadela “não vás para o pé desses merdas que não te quero ao pé deles já te avisei!”;

20. Os factos descritos nos pontos 14 a 19 deram origem a processo-crime que correu termos sob o n.º 232/20...., no Juízo Local Criminal ..., com sentença já transitada em julgado, com a condenação do Réu CC na pena única de 220 dias de multa, pela prática em coautoria material, na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física e em autoria material e forma consumada de dois crimes de injúria, na pessoa da vizinha FF e na condenação da Ré DD na pena de 150 dias de multa, pela prática em coautoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, na pessoa da vizinha FF;

21. No dia 4 de Setembro de 2021, o Réu CC soltou a cadela, que se dirigiu à parte de baixo da moradia, para o local onde se encontrava o filho dos vizinhos a brincar, na altura com 5 anos de idade e colocou-lhe as patas em cima, o que provou a sua queda, batendo com a cabeça no chão;

22. O Réu em vez de chamar o animal, sentou-se nas escadas de acesso ao 1.º andar, a rir-se;

23. Em meados de Outubro de 2021, num Sábado, o vizinho EE encontrava-se de joelhos, a plantar uma planta em vaso, junto à sua porta de entrada, no r/c, quando o Réu CC soltou a cadela, que se dirigiu para a parte de baixo da moradia, a rosnar e a ladrar a EE;

24. Quando EE alertou o Réu para chamar a cadela, o Réu CC respondeu “o que é que se passa caralho?”, enquanto se ria;

25. Com frequência quase diária, a partir de 21 de Dezembro de 2021, entre as 22h30 e as 24h00, os Réus fazem barulho a brincar com a cadela em casa, a jogar à bola com a cadela, a arrastar bancos de madeira e móveis, bater com as portas, para além do ruído do compressor, que também usam;

26. Em data não concretamente apurada, no Verão de 2020, a Autora deslocou-se à moradia, por ter recebido uma chamada do EE a alertar que o Réu CC tinha desligado o contador eléctrico, localizado no 1.º andar da moradia;

27. A Autora pediu ao Réu que ligasse o disjuntor, pois o r/c estava sem electricidade, ao que aquele respondeu “caralho se foda”, “filha de uma grande puta”, “o que queres daqui?”, “Saia daqui para fora que não pode estar aqui”;

28. A partir de Janeiro de 2020, os Réus deixaram de pagar as despesas de electricidade, água e gás;

29. Em 5 de Novembro de 2019, os Réus pagaram à Autora, por transferência bancária, para a conta por ela fornecida, a quantia de 700,00€, por conta da renda do mês de Novembro e um mês de caução;

30. Em 5 de Dezembro de 2019, os Réus pagaram à Autora o valor de 420,00€, por conta da renda do mês de Dezembro e €70,00 de despesas com electricidade, água e gás;

31. Em 6 Janeiro de 2020, a Autora emitiu recibo de renda, referente ao período de Janeiro de 2020;

32. No dia 17 de Junho de 2020, os Réus apresentaram uma participação à Autoridade Tributária, contra a Autora, dando conta que “A senhora recebeu um total de €1.120,00 em rendas, sem ter emitido documentação legal, tendo atrasado deliberadamente a assinatura do contrato para o dia 1/1/2020, só começando a emitir facturas a partir dessa data”;

33. Em Agosto de 2021, os Réus mandaram instalar no 1.º andar um contador de gás;

34. Em meados de Outubro de 2019, a Autora acordou pessoalmente e sem qualquer formalidade, com os Réus, a cedência do gozo do 1.º andar do prédio descrito no ponto 1, sob a contrapartida do pagamento de renda, no valor de €350, a que acresciam despesas mensais de água, electricidade e gás, no valor de €75,00;

35. Em 8 de Junho de 2020, a Requerente enviou uma carta registada aos Réus, a comunicar que pretendia resolver o contrato de arrendamento, com fundamento na violação reiterada de regras de bom trato, sossego e boa vizinhança, abuso na ocupação de espaços que não se encontram arrendados, como a ocupação indevida da garagem, com troca de fechaduras, a provocação de distúrbios na vizinhança e mau ambiente, pedindo a devolução do locado, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação;

36. Em 14 de Dezembro de 2020, os Requeridos receberam uma Notificação Judicial Avulsa requerida por BB, em que esta comunicava a resolução do contrato, pedindo a devolução do locado livre de pessoas e bens, até ao dia 31 de Dezembro de 2020;

37. Em 22 de Junho de 2021 a Ré enviou uma carta registada aos Réus, informando a pretensão de não pretender renovar o contrato, solicitando a entrega do locado livre e devoluto de pessoas e bens, até o dia 31 de Dezembro de 2021.

 

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Resolução do contrato de arrendamento por violação de regras do sossego e de boa vizinhança.

2. Os RR impugnaram a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 1. e 2., pretendendo que aquele passe a não provado e este tenha uma redacção diferente que sugerem, com base em inexistência de prova documental e insuficiência do depoimento de parte, contraditoriedade dos factos provados e confissão em depoimento de parte (cfr. as conclusões de recurso 1ª a 12ª).

Na motivação da decisão da matéria de facto a julgadora exarou que:

“Para prova dos factos descritos no ponto 1 a 4 teve-se em consideração o teor do depoimento de parte da Autora, legal representante da Herança, em conjugação com o documento epigrafado “contrato de arrendamento para fins habitacionais”, com o teor do depoimento da testemunha II, contabilista da Autora, que confirmou ter, a pedido da Ré, disponibilizado o documento para assinatura, aos Réus.

Salienta-se ainda que, com fundamento na confissão da Autora, se julgou igualmente provado os factos descritos nos pontos 29, 39 e 34, tendo a Autora admitido ter acordado com os Réus a entrada no locado logo em meados de Outubro, oferecendo a Autora o mês de Outubro, mas exigindo o pagamento da renda nos meses de Novembro de Dezembro de 2019 e das quantias acordadas para pagamento das despesas de electricidade, gás e água.”.

2.1. Relativamente ao facto provado 1., defendem os apelantes que inexiste prova documental sendo insuficiente o depoimento de parte. Vejamos.

Tal facto é igual à alegação da A. no art. 1º da p.i. Os RR no art. 4º da contestação impugnaram, dizendo desconhecer quem é o “proprietário” do prédio urbano que lhes foi dado de arrendamento. Circunscreveram, pois, à impugnação à propriedade do prédio.

Do doc. nº 1 (junto com a p.i.) e que sustenta o facto provado 2., resulta, da cláusula 1ª que a A. se arrogou proprietária e também legítima possuidora do prédio que deu de arrendamento, contrato assumido e assinado pelos RR. E os RR aquando do acordo espelhado no facto provado 34. nada disseram ou questionaram em contrário para tomarem de arrendamento à A. o dito prédio. E do doc. nº 3 (junto pelos RR com a contestação) resulta do recibo de renda que a A. se identificou como locadora, facto que os RR não contrariaram, antes o alegaram (no art. 10º de tal articulado). E do Doc. nº 4 (junto com o mesmo articulado), resulta que os RR alegaram aí (no respectivo art. 12º) ter apresentado participação na AT contra a A., dando conta que a senhoria recebeu um determinado total de euros em rendas sem ter emitido documentação legal, tendo atrasado deliberadamente a assinatura do contrato para o dia 1.1.2020, só começando a emitir facturas a partir dessa data.

Ou seja, conjugando estes elementos é indesmentível que a A. agiu como senhoria do referido prédio e assim foi reconhecida pelos RR. De maneira que, se não há prova que a A. seja a proprietária do prédio, como os RR defendem acertadamente, há prova que a A. agiu como senhoria do mesmo e os RR como arrendatários, podendo, pois, concluir-se que a A. é legítima possuidora do mencionado prédio. Pelo que, procedendo, parcialmente, a impugnação deduzida, apenas há que expurgar a referência a propriedade que do facto conta, concretamente “a dona”.

De maneira que o facto provado 1. ficará, em correspondência, com a prova, com a redacção que tem, mas dela se retirando aquela menção (que ficará em letra minúscula).     

2.2. Quanto ao facto provado 2. dizem os recorrentes que existe contraditoriedade dos factos provados e a A. confessou o mesmo em depoimento de parte.   

Ora a redacção que os apelantes propõem para o facto provado 2. já está consagrada no facto 34. Exceptua-se apenas a inclusão da expressão “sem prazo”, pois nenhuma prova se produziu nesse sentido. Mas deve adicionar-se a expressão “com início em meados de Outubro de 2019”, pois foi confessada pela representante da A. em depoimento de parte, confissão reduzida a escrito pela julgadora na acta de julgamento (sessão de 12.11.2024).

Desta sorte, há que harmonizar a redacção dos factos provados 2. e 34., entre si, a formalidade e a não formalidade do contrato, bem com efectuar o acrescento referido, harmonizando, ainda, com o teor dos factos provados 29. e 30, pelo que se julga parcialmente procedente a impugnação, passando os apontados factos a ter a seguinte redacção (a negrito, ficando a anterior em letra minúscula):   

2. No dia 1 de Janeiro de 2020, a Autora formalizou o acordo referido em 34., mediante o pagamento de renda mensal, no valor de €350,00, a pagar até ao 8.º dia de cada mês a que respeite, através de escrito particular epigrafado “Contrato e arrendamento para fins habitacionais”, pelo prazo certo de 1 ano, com início em 01/01/2020, renovável por períodos iguais;

34. Em meados de Outubro de 2019, a Autora acordou pessoalmente e sem qualquer formalidade, com os Réus, a cedência do gozo do 1.º andar do prédio descrito no ponto 1, com início em meados de Outubro de 2019, sob a contrapartida do pagamento de renda, no valor de €350, a que acresciam despesas mensais de água, electricidade e gás, no valor de €75,00;

3. Na fundamentação de direito da sentença apelada exarou-se que:

“Definida a factualidade apurada, impõe-se proceder à aplicação do direito, tendo em vista a resolução das questões enunciadas.

No que respeita à sucessiva alteração legislativa que o regime da locação para habitação, no que respeita à validade da relação de arrendamento, é aplicável à relação contratual sub judice, ao abrigo do artigo 12.º, n.º 1 do CC, a legislação vigente à data da celebração do contrato – 1 de Janeiro de 2020 - a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 13/2019, de 12/02.

Face à factualidade julgada provada, verifica-se terem as partes celebrado contrato de locação, na modalidade de arrendamento para fim habitacional, com prazo certo (artigos 1022.º, 1023.º, 1027.º, 1095.º do CC).

Prescreve o artigo 1083.º, n.º 1 do CC, que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com fundamento em incumprimento pela outra parte.

Prescreve o artigo 1083.º, n.º 2, al. a) do CC, que constitui fundamento de resolução o incumprimento, que pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, pelo senhorio, a violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou normais constantes do regulamento do condomínio.

Ora, encontra-se julgado provado nos pontos 6, 7, 8, 9 e 10 terem-se os Réus apossado, sem autorização da Autora, da garagem/cave onde esta guardava bens pessoais seus e onde se encontravam igualmente bens pessoais do outro arrendatário, vizinho do r/c, EE e FF, tendo o Réu feito dessa garagem, uma oficina improvisada para veículos automóveis, seus e de terceiros, onde se encontrava um pequeno guindaste para ajudar na remoção dos motores, ferramentas, componentes e peças de automóveis.

Ora, resulta evidente que uma garagem/cave usada como local de depósito de bens não é adequada para servir de garagem de reparação de veículos, independentemente desta actividade ter uma feição amadora ou mais profissional, por causa da sujidade que actividades como mudanças de óleo, trabalhos de chaparia, pinturas sempre provocam.

O facto de o Réu ter-se apossado da referida garagem e mudado a fechadura, à revelia da vontade da proprietária, sem avisar e sem lhe oferecer imediatamente uma cópia da chave, concluindo o Tribunal pela nega categórica em remover os seus pertences e devolver a posse da referida garagem à sua propriedade, devolução que já só veio a acontecer com a procedência de procedimento cautelar para restituição da garagem, constitui um facto muito grave, que isoladamente já é fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, em face da violação grave da confiança e deterioração do relacionamento entre senhoria e arrendatário, e em face da violação do direito de propriedade da senhoria – que não lhe cedeu aquele espaço, fosse a que título fosse.

Encontra-se igualmente provado nos pontos 14 a 27, que ambos os Réus mantiveram relacionamento conflituoso com os arrendatários do r/c, com inclusive a prática de factos ilícitos crime, que resultaram na condenação, já transitada em julgado, de ambos os Réus pela prática de crime de ofensa à integridade física e o Réu ainda pela prática de dois crimes de injúria, sobre JJ, arrendatária do r/c. Resulta igualmente provado, que o Réu, em pelo menos duas ocasiões, aproveitou-se da sua cadela da raça Pastor Alemão, propositadamente, para incomodar o filho dos arrendatários, naquela data com 5 anos, causando a sua queda e pânico, e para intimidar o mesmo arrendatário, que se encontrava ajoelhado, de costas, i.e., vulnerável, na sua parte do logradouro, mantendo o Réu postura sorridente, sem ordenar ao animal que se afastasse dos vizinhos, retirando da conduta do animal satisfação pessoal. Resulta ainda provado, que com frequência quase diária, a partir de Dezembro de 2021, entre as 22h30 e as 24h00 os Réus usaram o compressor, brincaram com a cadela da raça Pastor Alemão, atirando a bola, arrastando mobiliário e batendo com as portas, acções propícias a causar muito ruído e incómodo, impedindo o descanso dos filhos dos arrendatários do r/c.

Apesar dos Réus terem o direito de gozo sobre o locado, atento o contrato de arrendamento, válido à data dos factos, esse direito cede perante o direito ao descanso, não podendo os Réus actuar como se vivessem sozinhos na moradia, praticando condutas, de propósito, pois poderiam facilmente adoptar outras condutas não violadores do direito ao descanso e ao sossego dos vizinhos, como levar o cão a passear e brincar, à rua, ou parque, ou limpar a casa e usar o compressor, durante o dia, ao fim-de-semana.

O direito à resolução do contrato de arrendamento supra mencionado, com fundamento na falta de interesse do contraente na subsistência do contrato, atenta a importante função social do arrendamento no acesso a uma habitação condigna, com um mínimo de estabilidade, não se basta com um qualquer interesse subjectivo do credor, tem de ser apreciada em termos objectivos, com o rigor apontado pelo regime previsto no artigo 808.º, n.º 2 do CC, isto é, com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer pessoa e não segundo o juízo valorativo e arbitrário do próprio credor.

Não basta assim que a senhoria reclame já não lhe interessar a manutenção da relação de arrendamento. Como se encontra escrito no Ac. TRG de 23/2/2017: “[é] necessário conferir se, em face das circunstâncias concretas e objetivas, essa perda de interesse corresponde, ou não, aos padrões de normalidade social aplicáveis ao caso, pois que só assim se pode considerar a perda de interesse subjetivo, objetivamente justificada” (Ac. TRG 23/2/2017, processo n.º 3113/15.0T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt).

Como verificamos, a Autora reclama não pretender a manutenção da relação de arrendamento em face do esbulho da sua garagem, pelos Réus, dos conflitos constantes, violações dos seus direitos de personalidade e dos outros arrendatários, no que diz respeito ao direito ao sossego, ao bom nome, e inclusive à integridade física. A gravidade e a reiteração do comportamento dos Réus é de molde a poder-se concluir não ser exigível à Autora a manutenção do arrendamento.

Em face do supra exposto, impõe-se concluir pela procedência do pedido de resolução do contrato de arrendamento, por violação culposa dos deveres, por parte dos arrendatários e Réus, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 1083.º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e 1043.º do CC, impondo-se em consequência condenar os Réus na entrega imediata do locado, livre e devoluto de pessoas e bens (em sentido semelhante cfr. TRG 23/2/2017, processo n.º 3113/15.0T8GMR.G1).”.

Os RR discordam pelos motivos constantes das suas conclusões de recurso (cfr. as conclusões de recurso 13ª a 17ª). E que no essencial se resumem a dois: não resultou provado que a A. é dona e legítima possuidora do prédio arrendado, pelo que o pedido de resolução contratual deve improceder; acresce que a improcedência da acção resulta ainda do facto de o contrato de arrendamento que a A. pretende resolver não ser o contrato que ela identifica como tendo sido outorgado em 1 de Janeiro de 2020, pois o arrendamento com os RR existe desde meados de Outubro de 2019, através de contrato meramente verbal, certo que a A. não pediu a resolução do contrato de arrendamento verbal celebrado com os RR em Outubro de 2019, que também não poderia a sentença declarar a resolução deste outro contrato de arrendamento, sob pena de nulidade (art. 615º, nº 1, e), do NCPC). Não acompanhamos esta dupla argumentação. Vejamos, então.

Primeiro. Não resultou provado que a A. é dona do prédio arrendado, mas apurou-se que é legítima possuidora do imóvel arrendado, conforme facto provado 1.

Ora, sendo a acção de despejo de carácter pessoal ou obrigacional, e não uma acção real, como tal não é exigível que o autor prove ser proprietário, mas antes, e somente, que interveio como senhorio de um contrato de arrendamento, seja a que título for, designadamente cabeça de casal, e que exista um arrendatário (vide já a longínqua doutrina pacífica, por exemplo de Pinto Loureiro, Tratado de Locação, Vol. III, pág. 271, A. Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 2ª Ed., 1985, págs. 170 e 312, e Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 1996, pág. 805 e também a pacífica jurisprudência, desde por exemplo o Ac. de 12.3.1963, em BMJ, 125, pág. 384, e Ac. Rel. Porto, de 6.6.1980, em CJ, Ano V, T. 3, pág. 94).

Nesta circunstância os factos 1., 2. 29. a 32. e 34. são elucidativos, falam por si, tal como o doc. nº 1, atrás referido (junto com a p.i.), bem como a assunção de arrendamento feita no articulado de contestação, docs. 3 e 4 juntos com a mesma, anteriormente mencionados, e conclusão 16º do recurso dos RR.

Portanto o pedido de resolução contratual formulado pela A. pode proceder.  

Segundo. Como resulta da conjugação dos factos provados 2. e 34., com suporte, ainda, nos factos 29. a 32., bem como nos 35. a 37., a A. e os RR só celebraram um único contrato de arrendamento, e não dois. Contrataram em Outubro de 2019 e formalizaram em Janeiro de 2020.

Sendo evidente que não se pode falar em 2 contratos de arrendamento, a julgadora a quo, só resolveu o único contrato de arrendamento que estava em apreço – vide o segmento decisório -, independentemente da referência à data exacta, informal e formal, do acordo/outorga do mesmo.

De modo que ao fazê-lo ela não extravasou do pedido, pois não condenou em objecto diverso do pedido (nos termos do art. 615º, nº 1, e), 2ª parte, do NCPC). Declarou a resolução do único contrato de arrendamento celebrado entre A. e RR, sobre o 1º andar da moradia sita na Estrada ..., ..., em ..., ....     

Atento o explicitado, a apelação não pode ser provida.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): (…).

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a sentença recorrida.

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Custas pelos RR.

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Coimbra, 5.6.2025

Moreira do Carmo

Carlos Moreira

Fonte Ramos