Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
654/05.1TBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PROPRIETÁRIOS DE TERRENOS CONFINANTES
VENDA A PROPRIETÁRIO CONFINANTE DO PRÉDIO VENDIDO
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1380º DO CC E 18º Nº1 DO DL Nº 384/88, DE 25 DE OUTUBRO (LEI DO EMPARCELAMENTO RURAL).
Sumário: 1. A venda de prédio rústico a proprietário com aquele confinante não afasta, por si só, em caso de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, a possibilidade de qualquer um destes poder exercer o direito de preferência, consagrado pelo artigo 1380º do CC.

2. A letra da lei não afasta o que o espírito do legislador reclama, a bem do princípio da unidade do sistema jurídico, ou seja, que sendo vários os prédios confinantes, a cada um dos respectivos proprietários assiste um direito de preferência, autónomo e distinto, limitando-se a lei a estabelecer, nos nºs 2 e 3 do artigo 1380º do CC, um critério de prioridade entre os vários preferentes.

3. São requisitos do direito real de preferência a que alude o artigo 1380.º do CC, a existência de dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, que ambos sejam aptos para cultura, que um deles tenha sido vendido ou dado em cumprimento, que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado, e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante ou, sendo-o, na hipótese de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, não se tratando de um caso de alienação de prédio encravado, aquele que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... e mulher, B..., residentes na Rua Lage de Abril, nº 35-A, Canas de Senhorim, concelho de Nelas, propuseram a presente acção de declaração, sob a forma de processo sumário, contra C... e mulher, D..., residentes na Rua José Cardoso Pires, nº 5, 5º C, em Lisboa, e E... e mulher, F..., residentes na Rua Lage de Abril, nº 46, Canas de Senhorim, concelho de Nelas, pedindo que, na sua procedência, se declare o direito de preferência dos autores, relativamente ao negócio de compra e venda e, consequentemente, lhes seja reconhecido o direito de haver para si o prédio alienado, condenando-se os réus adquirentes a verem-se substituídos, na posição de adquirentes, pelos autores, para quem será transferida a propriedade do mesmo, em virtude da preferência legal que lhes advém da sua qualidade de proprietários de terreno confinante que mais se aproxima da unidade de cultura para a zona, mas a quem não foi dada a oportunidade de preferir.
Na contestação, que apenas os réus E... e mulher, F..., apresentaram, estes aceitam ter adquirido, através de contrato de compra e venda, o prédio em questão, aos réus C...e mulher, D..., que confina com outro de que os autores são donos, mas que os contestantes são proprietários de um outro prédio rústico que, por confinar, igualmente, com o vendido, retira aos autores, qualquer que seja a área do prédio destes, o direito de preferirem na compra, para além de que os autores só não compraram o prédio porque não quiseram, uma vez que o mesmo lhes foi oferecido pelos réus C... e mulher, D..., pelo preço pelo qual foi adquirido.
Em reconvenção, pedem que os autores sejam condenados a pagar-lhes o total de 2529,08€, que despenderam com a aquisição do prédio em litígio.
Na resposta, os autores alegam que fundamentaram o pedido num direito de preferência autónomo, sendo certo que nunca lhes foi comunicada a venda ou as condições do negócio, tendo depositado a quantia respeitante ao registo da aquisição do prédio, efectuada pelos réus contestantes.
Conhecendo sob a forma de saneador-sentença, o Exº Juiz julgou a acção, improcedente por não provada e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
Do saneador-sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - No passado dia 21 de Julho de 2005, os réus C... e mulher D... venderam aos réus E... e mulher, F..., o prédio rústico, composto de terra de cultura com videiras e casa de arrumação, sito à Fonte das Moitas no lugar e freguesia de Canas de Senhorim, prédio inscrito na matriz sob o artº.8060 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Nelas sob o n°4366.
2ª - O preço da venda daquele prédio foi de 2.100,00 €, tal como consta da respectiva escritura junta aos autos.
3ª - Prédio este que tem 288 m2 de área, tal como consta da respectiva certidão de teor junta com a p.i.
4ª - Este prédio ora vendido confina do lado Poente com o prédio rústico dos autores sito igualmente à Fonte das Moitas na freguesia de Canas de Senhorim que se encontra inscrito na matriz rústica daquela freguesia sob o artº 8061 e registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Nelas sob o n°2530.
5ª - E tem actualmente 1520 m2 de área - tal como consta da respectiva certidão matricial junta com a p.i.
6ª - E, pese embora a circunstância dos réus adquirentes E... e mulher serem também proprietários de um outro prédio rústico que confina com o prédio ora vendido.
7ª - Este seu prédio tem apenas 720 m2 de área.
8ª - Isto é, muito menos de metade da área do prédio dos autores.
9ª - E, uma vez que nunca foi dado aos autores/apelantes, por qualquer dos réus, a oportunidade de preferir.
10ª - Dado que nunca lhes foi comunicada a venda ou qualquer projecto nesse sentido com as respectivas condições essenciais do negócio.
11ª - Os autores, ao abrigo do disposto no art° 1380 n° 2 al. b) do CC, em 12 de Dezembro de 2005, intentaram a presente acção pretendendo, assim, substituir-se aos adquirentes e haverem o prédio alienado para si.
12ª - Depositando o preço de aquisição acrescido das respectivas despesas efectuadas pelos réus.
13ª - Por ser conferido aos autores direito de preferência na alienação do prédio vendido.
14ª - Dado serem proprietários de um terreno confinante com o prédio ora vendido com a área superior ao do prédio confinante dos réus adquirentes.
15ª - E, assim, pela preferência, obterem a área que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a zona que na região é de 20.000 m2.
16ª - Efectivamente os réus adquirentes reconhecem que o prédio dos autores tem área superior ao deles.
17ª - Mas alegam que tal facto é irrelevante uma vez que o direito de preferência consagrado no art° 1380 do CC apenas é conferido aos proprietários confinantes, no caso de venda, a quem não seja confinante.
18ª - Entendimento que não pode aceitar-se dado que o art° 1380 n° 1 do CC estatui que os proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
19ª - Referindo-se no seu n°2 que sendo vários os proprietários com direito de preferência cabe este direito:
a) No caso de alienação de prédio encravado, ao proprietário que estiver onerado com a servidão de passagem.
b) Nos outros casos, ao proprietários que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona. (Sem alusão a qualquer venda anterior a quem não seja confinante).
20ª - Daí que os autores tenham fundamentado a presente acção, tanto no pedido como na causa de pedir, ao abrigo do disposto na referida al. b) do n° 2 do art° 1380 do CC.
21ª - Pois o prédio confinante dos autores tem 1540 m2 de área e o dos réus apenas 720.
22ª - Assim sendo e não se verificando qualquer encrave, estamos perante uma situação prevista na al. b) do n° 2 daquele preceito legal.
23ª - Isto é, a prevalência tem que ser atribuída ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a região.
24ª - Tal como referem os grandes Mestres Pires de Lima e Antunes Varela ao esclarecer que: “O nº 2 do artº 1380º, procura dar solução como fazia a Lei nº 2116 ao problema do concurso de preferentes, ou seja, ao caso de haver vários proprietários confinantes com áreas inferiores à unidade de cultura e fá-lo pela forma que parece mais conveniente para a concentração da propriedade e extinção das servidões de passagem”.
25ª - E acrescentam, aqueles Ilustres Mestres, no seu comentário o seguinte; "não sendo o prédio encravado, ou não querendo o proprietário onerado exercer o direito de preferência, é conferida prioridade ao proprietário que obtiver a área que mais se aproxime da unidade de cultura".
26ª - Rematando assim: "Da letra do nº 2 resulta claramente que, sendo vários os prédios confinantes com a área inferior à unidade de cultura, a cada um dos respectivos proprietários assiste um direito de preferência autónomo, limitando-se a lei a estabelecer um critério de prioridade entre os vários preferentes” (conf C.C. Anotado - Pires de Lima e Antunes Varela Art° 1380 do C. Civil - Vol. Ill - 2o Ed. pag. 273 e 274).
27ª - Aliás, a Jurisprudência aponta nesse sentido - (veja-se Ac. Rel. Porto de 06/02/76 - In, Col. Jur. 1976 - 1o - 96) - ao referir que; "Havendo vários proprietários confinantes do prédio vendido e em relação ao qual se pretende exercer o direito de preferência, não basta alegar que se é proprietário confinante daquele, mas tem também de se fazer a prova de que, de todos os proprietários confinantes, é aquele que, pela preferência ou licitação, no caso de igualdade de circunstâncias, obtém a área que mais se aproxima da unidade de cultura fixada para a respectiva região”.
28ª - Isto porque, cada um dos concorrentes preferentes é titular de um direito de preferência autónomo e distinto, em vez de um direito pertencente em comum a vários interessados - o que há verdadeiramente é direitos iguais e concorrentes.
29ª - Entendimento também perfilhado no Ac. Rel. Coimbra de 16/11/82 - In. Col. Jur.1982-5°. 26 - quando refere: “a) - O autor, proprietário do prédio confinante com o vendido não tem de alegar e provar que o seu direito de preferência é melhor que o de qualquer outro titular de direito de preferência; b) - A melhor preferência é concedida aos proprietários confinantes que obtenham a área que mais se aproxime da unidade de cultura, quer esta seja excedida ou não».
30ª - Com o devido respeito, a fundamentação da douta sentença recorrida, quando refere que a norma do art° 1380 n° 2 al. b) não prevê qualquer direito de preferência autónomo, não merece acolhimento.
31ª - E muito menos na parte em que refere que tal disposição legal apenas contém normas para a resolução de conflitos entre os direitos de preferência previstos no n°1, quando exista mais do que um proprietário confinante, na venda de um prédio a terceiro.
32ª - Pelo que, o douto despacho saneador sentença violou, além do mais, o disposto no art° 1380 do CC, designadamente o seu n° 2 alínea b).
Nas suas contra-alegações, os réus contestantes entendem que o saneador-sentença deve ser, integralmente, confirmado.
Na decisão recorrida, consideraram-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Por escritura pública, outorgada no Cartório Notarial de Nelas, a folhas 130 e 130 v°, do Livro de Notas e Escrituras Diversas — UM-F, em 21 de Julho de 2005, os primeiros réus declararam vender ao segundo outorgante, réu marido, pelo preço de € 2.100,00, o seguinte prédio:
-Prédio rústico, composto de terra de cultura com videiras e casa de arrumação, sito à Fonte das Moitas, freguesia de Canas de Senhorim, concelho de Nelas, inscrito na respectiva matriz, sob o artigo 8060º, com o valor patrimonial de € 6,25, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Nelas, sob o n°4366, de Canas de Senhorim, inscrito, a favor do vendedor, pela inscrição G-l – A).
O referido prédio tem a área de 288 m2 e confronta de Norte com baldio, Nascente com Manuel da "República" (actualmente com os segundos réus), do Sul com a linha de caminho de ferro e do Poente com Virgínia Mendes Dias (actualmente com os autores) – B).
Os autores são donos e possuidores do prédio rústico, sito, igualmente, à Fonte das Moitas, no lugar e freguesia de Canas de Senhorim, composto por terreno de cultura, com 80 videiras, a confrontar de Norte com baldio, Nascente com Herdeiros de João Sofia [prédio identificado em A)], do Sul com linha de caminho de ferro e do Poente com caminho, prédio inscrito na matriz da referida freguesia, sob o artigo 8061º, e descrito, a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Nelas, sob o n°2530 – C).
O prédio, identificado em A), confina a Poente com o prédio, identificado em C) – D).
Os segundos réus são proprietários de um outro prédio rústico, confinante com o prédio referido em A), correspondente ao artigo matricial n°8059, da freguesia de Canas de Senhorim, situação que já ocorria aquando da compra e venda aí referida – E).
O prédio dos segundos réus tem 750 m2 de área – F).
Os segundos réus tiveram com a compra os seguintes encargos:
Preço pago........................................................................€ 2.100,00
Certidão matricial para instruir a escritura de compra……..€ 4,60
Certidão registral para instruir a escritura de compra........€ 28,25 Emolumentos da escritura de compra..............................€ 217,06
Certidão da escritura de compra..........................................€ 20,34
IMT..........................................................................................€ 105,00
Certidão matricial para registo................................................ € 4,60
Emolumentos de registo....................................................... € 49,23 – G).
O prédio, referido em C), tem área superior ao prédio, referido em E) – H).
Os prédios, referidos em A), C) e E), destinam-se a cultura arvícola – I).

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir na presente apelação, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, consiste em saber se o direito de preferência contido no artigo 1380º, do Código Civil (CC), só é concedido quando a venda é efectuada a quem não seja proprietário confinante do prédio vendido.

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DO DIREITO DE PREFERÊNCIA DO OUTRO CONFINANTE

Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam, reciprocamente, do direito de preferência, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante, não obstante a área daqueles ser superior à unidade de cultura, em conformidade com as disposições combinadas dos artigos 1380º, nº 1, do CC, e 18º, nº 1, do DL nº 384/88, de 25 de Outubro (Lei do Emparcelamento Rural).
Por seu turno, o proprietário de terreno confinante a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira, dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e deposite o preço devido, nos quinze dias seguintes à propositura da acção, nos termos do estipulado pelos artigos 1410º, nº 1, e 1380º, nº 4, ambos do CC.
Assim sendo, resolvido que está, face ao quadro normativo vigente, e tal nem sequer é controvertido pelas partes, a questão de saber se a área do prédio dos autores é inferior á unidade de cultura, resta definir, no que reside a verdadeira essência da apelação, se o prédio dos réus contestantes, por, também, ser confinante com o prédio alienado, constitui, por si só, como estes defendem e a sentença recorrida consagrou, facto impeditivo do exercício do direito de preferência, por parte dos autores, titulares de um outro prédio, igualmente, confinante com aquele.
O direito de preferência baseado na confinância de prédios integra-se num conjunto de providências legais tendentes a combater a excessiva pulverização da propriedade rústica, que oferece inconvenientes, de ordem económica, pela menor produtividade dos prédios, quando estes se reduzem a proporções muito limitadas.
Os objectivos da lei, ao permitir a unificação de terrenos confinantes, são os de evitar a dispersão e de conseguir formar prédios com dimensão óptima, tornando-os, assim, mais rentáveis e produtivos.
Sendo vários os proprietários com direito de preferência, ou seja, na hipótese de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, não se tratando de um caso de alienação de prédio encravado, o direito de preferência cabe ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona, nos termos do estipulado pelo artigo 1380, nº 2, a) e b), do CC, de acordo com o princípio subjacente a este normativo legal de contribuir para a concentração da propriedade e a extinção das servidões de passagem, "tendo em conta os interesses agrários a acautelar e a promoção do reagrupamento espontâneo, por forma a que a transmissão de qualquer terreno implicasse a sua aquisição por um proprietário confinante, e, havendo vários, por aquele que mais benefícios alcançasse e mais vantagens oferecesse, sob o ponto de vista da estrutura agrária local"[ Parecer nº 32/VII, da Câmara Corporativa, de 21-4-60, sobre o Projecto de Decreto-Lei de que resultou, mais tarde, a Lei nº 2116, de 15-6-62 [primeiro diploma que estabeleceu as bases a que deveria obedecer o emparcelamento da propriedade rústica, com vista a conseguir explorações, economicamente, rentáveis], regulamentada pelo Decreto nº 44647, de 26 de Outubro, que consagrou uma solução paralela á que consta do artigo 1380º, do Código Civil, Pareceres da Câmara Corporativa, 1960, II, 122 e 123.].
Com efeito, esta preocupação de obviar aos inconvenientes derivados da exploração agrícola, em áreas fragmentadas com superfícies inferiores à unidade de cultura fixada para a respectiva zona, de evitar a dispersão e de conseguir formar prédios com dimensão óptima, tornando-os mais rentáveis e produtivos, através da criação de um direito de preferência, foi acolhida pelo artigo 1380°, do CC.
Assim sendo, a letra da lei, que tem de ser entendida em termos convenientes e razoáveis, impostos pelas regras da interpretação, não afasta o que o espírito do legislador reclama, a bem do princípio da unidade do sistema jurídico, consagrado pelo artigo 9º, do CC, ou seja, que sendo vários os prédios confinantes, a cada um dos respectivos proprietários assiste um direito de preferência, autónomo e distinto, limitando-se a lei a estabelecer, nos nºs 2 e 3, do artigo 1380º, do CC, um critério de prioridade entre os vários preferentes[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 274; RC, de 16-11-82, CJ, Ano VII, T5, 26; RC, de 17-2-78, CJ, Ano III, T2, 272; RP, de 6-2-76, CJ, Ano I, T1, 96.].
Pelo exposto, são requisitos do direito real de preferência, a que alude o artigo 1380º, do CC, a existência de dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, que ambos sejam aptos para cultura, sem que os dois atinjam ou transcendam os limites da área mínima de cultura, que um deles tenha sido vendido ou dado em cumprimento, que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado, e que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante ou, sendo-o, na hipótese de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, não se tratando de um caso de alienação de prédio encravado, aquele que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxime da unidade de cultura fixada para a respectiva zona.
A venda de prédio rústico a proprietário de prédio com aquele confinante não afasta, por si só, em caso de concurso de preferentes proprietários de prédios confinantes, a possibilidade de qualquer um destes poder exercer o direito de preferência, consagrado pelo artigo 1380º, do CC[ Em sentido contrário, STJ, de 7-7-1994, BMJ nº 439º, 562; RE, de 14-3-2002, CJ, Ano XXVII, T2, 267; mas não, conforme vem citado pelos apelados, Galvão Teles, O Direito, 106º-119º, 352; e Direito de Preferência na Alienação de Prédios Confinantes, O Direito, 124º, 7 e seguintes, nem Antunes Varela, RLJ, Ano 125º, nº 3814, 11 e ss, Ano 127º, nºs 3847, 308 e ss., 3848, 326 e ss., e 3848, 365 e ss., nem, finalmente, o Acórdão do STJ, de 18-3-86, RLJ, Ano 124º, nº 3813, 365, onde a questão que se coloca tem a ver, exclusivamente, com a problemática da unidade de cultura, nem ainda o Acórdão da RC, de 28-10-80, BMJ nº 302º, 321. ].
Aliás, o elemento histórico de interpretação da norma conduz, também, à solução que se defende, quando se compara o texto do artigo 1380º, nº 1, do CC, segundo o qual “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam, reciprocamente, do direito de preferência, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”, com o preceituado pelo artigo 18º, nº 1, do DL nº 384/88, de 25 de Outubro, citado, nos termos do qual “os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artigo 1380º, do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”.
Note-se, a este propósito, que o legislador do artigo 18º, da Lei do Emparcelamento Rural de 1988, veio dizer que os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência, previsto no artigo 1380º, do CC, mas não nos termos aí consagrados, excluindo, textualmente, a referência final a “proprietário confinante”, que neste se continha, e, intervindo na polémica reinante, há vários anos, na doutrina e na jurisprudência, a respeito da questão da unidade de cultura, estatuiu no sentido de que preferência se verifica, ainda que a área dos terrenos confinantes seja superior à unidade de cultura[ Antunes Varela, RLJ, Ano 127º, 370 e ss.].

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Porém, os apelantes alegam que os autores tiveram conhecimento da venda, e que só não adquiriram o prédio porque não quiseram, tendo-lhes o mesmo sido oferecido pelos vendedores, pelo preço por que foi adquirido pelos contestantes, tendo sido comunicado aos autores o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato, recusando estes o negócio, por só estarem interessados em adquiri-lo, por 600 €, invocando, implicitamente, as excepções da renúncia e da caducidade do exercício do direito de preferência.
Com efeito, há que apurar se os autores tiveram conhecimento dos elementos essenciais da alienação, para se poder concluir, com precisão, da existência ou inexistência da renúncia e da caducidade eventual, recorrendo-se às regras sobre a distribuição do ónus da prova, a fim de resolver a questão.
Importa, assim, indagar se o obrigado à preferência deu conhecimento ao titular do direito de todos os elementos essenciais do negócio perspectivado – o projecto de venda -, indicando as cláusulas que derroguem o regime legal, supletivamente imposto – as cláusulas do respectivo contrato – e esclarecendo o titular do direito, quando as circunstâncias do caso concreto o justifiquem, sobre o significado da própria inexistência de cláusulas acessórias, v.g., quando, em termos de previsibilidade e normalidade, a sua inclusão seja a regra, em vez da omissão, os quais, face ao interesse, objectivo e objectivamente cognoscível do preferente, sejam necessários para uma correcta formulação da decisão de exercer ou não o seu direito[ Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, 1990, 113 e ss. e 161.].
Desde logo, a identificação do objecto do contrato e o preço a pagar pelo titular do direito de preferência, as condições de pagamento, as garantias prestadas ou exigidas, a data prevista para a celebração do contrato e, eventualmente, a identificação do terceiro de quem o obrigado à preferência tenha recebido proposta contratual, sempre que o perspectivado contrato com o terceiro provoque o surgimento de relações jurídicas entre este e o titular do direito de preferência[ RP, de 17-5-1983, CJ, Ano VIII, T3, 232.], ou quando o nome do terceiro constitua dado essencial para uma correcta formação da vontade de preferir[ Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, 1990, 126.].
Como assim, há que reconhecer, para além de tudo o mais, que os factos dados como provados são exíguos para permitir concluir no sentido da verificação da excepção peremptória da caducidade, por se acharem controvertidos, importando, portanto, indagar sobre o teor da eventual comunicação efectuada pelos réus C... e mulher, D..., aos autores, para, reflexamente, daí extrair os efeitos jurídicos pertinentes.
Impõe-se, pois, perspectivar a matéria factual alegada por ambas as partes, também, neste particular, seleccionando, entre os factos articulados, os que interessam à decisão da causa, por forma a alicerçar as várias soluções plausíveis da questão de direito, tudo nos termos do disposto pelos artigos 510º, nºs 1, b) e 3 e 511, nº 1, ambos do CPC, e, a final, sentenciar em conformidade, sem esquecer que, independentemente da solução que vier a ser definida quanto às excepções da renúncia e da caducidade, acabou de decidir-se no sentido da verificação dos pressupostos do exercício do direito de preferência, no caso em apreço, «maxime», no que toca ao requisito objecto específico da apreciação pelo presente acórdão, ou seja, pelo não afastamento do direito dos autores, em razão da confinância do prédio vendido com aquele de que os réus E... e mulher, F..., já eram titulares.
Procedem, pois, as conclusões constantes das alegações dos autores.

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CONCLUSÕES:

A letra da lei não afasta o que o espírito do legislador reclama, a bem do princípio da unidade do sistema jurídico, ou seja, que sendo vários os prédios confinantes, a cada um dos respectivos proprietários assiste um direito de preferência, autónomo e distinto, limitando-se a lei a estabelecer, nos nºs 2 e 3, do artigo 1380º, do CC, um critério de prioridade entre os vários preferentes.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador-sentença recorrido, devendo o Mº Juiz «a quo» elaborar, em sua substituição, o correspondente despacho com os factos assentes e com aqueles que devam incluir a base instrutória, em conformidade com o que acaba de ser decidido, declarando-se, porém, que o direito dos autores preferentes não é afastado, em razão da confinância do prédio vendido com aquele de que os réus E... e mulher, F..., já eram titulares.

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Custas, a cargo dos réus-apelantes.

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Notifique.