Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
257/22.6T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PROMESSA DE COMPRA E VENDA SEM ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS TRANSLATIVOS DO CONTRATO DEFINITIVO
AQUISIÇÃO DA POSSE PELO PROMITENTE COMPRADOR
INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1263.º, D); 1265.º 3 1296.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. Estando em vigor a promessa de compra e venda, sem que se assegure uma antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo, a aquisição da posse, como proprietário, por parte do promitente comprador, só ocorrerá com a inversão do título da posse.
II. A inversão do título da posse tem que consistir numa oposição expressa à situação anterior, através de atos materiais ou jurídicos, inequívocos, reveladores do novo animus da atuação e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os atos se opõem.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

AA, BB e CC intentaram ação contra DD, EE e FF, requerendo que estes sejam condenados, a título principal, a (i) reconhecer que o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...77 deverá integrar o acervo hereditário por óbito de GG, em virtude de aquisição derivada por compra e venda celebrada entre o falecido GG e HH; (ii) ordenar o cancelamento da inscrição da aquisição do prédio a favor dos RR. DD e EE, atenta a nulidade do respetivo contrato de compra e venda (venda de bem alheio) e (iii) ordenar a restituição do prédio aos Autores e, a título subsidiário, (iv) reconhecer que o prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...77 deverá integrar o acervo hereditário por óbito de GG, em virtude de aquisição originária por usucapião subsequente à celebração do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 25.02.2002; (v) reconhecer a Autora AA como dona e legítima proprietária do prédio por usucapião; (vi) reconhecer a nulidade da compra e venda realizada em 2018 a favor dos RR. DD e EE e (vii) ordenar a restituição do prédio aos Autores.

Para tanto, e em síntese, alegam:

Em 01.06.1998, a herança de II, proprietária do prédio rústico sito em ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...77, celebrou um contrato de arrendamento rural pelo prazo de 10 anos, renovável por períodos iguais e sucessivos de 3 anos, com GG, casado, à data, com a Autora AA.

Posteriormente, em 25.02.2002, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda tendo por objeto o mesmo imóvel, pelo preço de € 8.230,17, o qual foi integralmente liquidado nessa data, ficando a escritura agendada para o mês de abril desse ano e, posteriormente, para setembro.

Sucede, porém, que os vendedores vieram a falecer, entretanto, não se tendo chegado a realizar a escritura de compra e venda, tendo GG, desde essa data, ficado investido na posse do imóvel, ocupando e cultivando o terreno, ininterruptamente, à vista de todos e sem qualquer oposição de ninguém.

Mais sustentam que, posteriormente, foi o imóvel alienado, pela Ré FF a favor dos Réus DD e EE, em 09.08.2018, pelo preço de €

6.000,00.

Os Réus apresentaram contestação, sustentando, em síntese:

(i) a invalidade, por vício de forma, do contrato-promessa de compra e venda do

imóvel; (ii) que, em virtude do contrato de arrendamento celebrado, GG era um mero possuidor precário, exercendo a posse em nome de outrem; (iii) ainda que não existisse contrato de arrendamento, o contrato-promessa de compra e venda, de eficácia meramente obrigacional, nunca lhe conferiria a posse do imóvel e (iv) ainda que a Autora AA tivesse exercido uma posse em nome próprio, a mesma sempre seria não titulada, a qual se presume de má-fé, não tendo decorrido os prazos legais necessários à usucapião (considerando que, desde 09.08.2018, os Réus DD e EE passaram a exercer sobre o prédio adquirido uma posse plena).

           Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a ação, absolvendo os Réus dos pedidos.


*

Inconformados, os Autores recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

1. O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito.

2. Da sentença resultam como não provados os factos descritos como D, E, F, G, e M.

3. Tais factos foram mal julgados, pelo que se impõe a sua reapreciação.

4. Quanto ao facto disposto em G., entendeu o tribunal que, tendo sido um documento junto para provar o facto, este documento não tinha força probatória plena porquanto a assinatura nele aposta foi impugnada pela parte contraria. No entanto, olvidou-se de o valorar enquanto prova sujeita ao princípio da livre apreciação, principalmente tendo em conta as declarações da testemunha JJ (min. 16:00 até 16:28, ou ainda 34:44 até 34:55).

5. Ainda assim, o Tribunal fez a analise uma análise critica condicional de tal facto que também constitui erro de julgamento. É que o tribunal avaliou a declaração aposta na

carta como se tentasse provar que o preço do terreno havia sido pago, no entanto nunca foi essa a intenção dos A., mas sim provar que o emissor da carta apenas em 2006 mostrou o seu desagrado tendo em conta o valor reduzido do imposto (0,61€ anuais).

6. Tendo tal em conta, que melhor se explica nas alegações em si, deverá o facto G ser dado como provado e deverá tal prova ter o alcance defendido.

7. Quanto aos factos D, E, e F, entendeu o Tribunal não valorizar o depoimento da testemunha JJ, no entanto, todo o depoimento é escorreito, esclarecido, e, talvez principalmente, um depoimento suportado em registos escritos para que não falhasse a memória do sucedido há cerca de 20 anos.

a. Quanto ao facto D, a testemunha explicou, no que se pode ouvir da gravação da prova a min. 36:02 até 36:38, a forma como se procedeu ao pagamento da totalidade do terreno, com o preço acordado de dois mil contos.

i. Nesse sentido deveria, ainda, o facto D ser aditado de modo que se dê como provado o pagamento dos valores de € 3.242,19 e € 4.488,08.

ii. E claro, ser dado como provado nesses termos.

b. Quanto ao E, a min 22:20 até 22:50 a testemunha declara que era sempre ela a

receber os valores relativos ao terreno, porquanto era procuradora do Sr. HH, depositando-lhos seguidamente. A testemunha declara expressamente que recebeu 3 cheques de 120 contos, mais os dois cheques em 2002, de modo a perfazer os dois mil contos, e que a partir dali mais nenhum pagamento tinha sido feito.

c. Quanto ao facto F, a min. 33:00 até 33:28, as declarações da testemunha provam

cabalmente o descrito, confirmando o doc.9.

8. Quanto ao facto descrito em M, todas as testemunhas, com as passagens da gravação assinaladas nos locais próprios, declararam que era o Sr. GG e depois o filho que sempre exploravam o terreno, plantando, surribando, podando, cuidado e tirando os frutos. Uma testemunha diz, ainda que toda a gente em ... conhecia os A. como donos do terreno (a min. 07:33 até 07:57 do depoimento do Sr. KK.

9. Neste sentido foram tais factos (D, E, F, G e M) erradamente julgados como não provados, pelo que deviam ter sido dados como provados.

10. Tendo assente os factos, é já possibilidade do Tribunal concluir que o negócio celebrado em 1998 foi um negócio simulado, principalmente atendendo ao que o Tribunal dá como provado no facto 8 da sentença.

11. Ainda que não se possa concretizar o negócio real, porquanto a compra e venda é um negócio formal (241º/2, e 875º CC), é obrigatório avaliar se a posse se transferiu, ou não, com aquele contrato e o subsequente comportamento das partes.

12. Tendo em conta o Ac. de 03-11-1999, do STJ, o corpus da “detenção” é indiscutível.

13. Havendo o corpus, como diz o art.º 1252/2 do C.C., presume-se o animus, que, nos casos de arrendamento é “interrompido” pelo contrato. No entanto, no caso que nos ocupa o tal contrato não é válido, por ser simulado e não corresponder à vontade real das partes. Não havendo o permanente reconhecimento de que os A. não são proprietários, através do contrato eles agem conforme ao direito de propriedade, na convicção que são donos – juntam o corpus e o animus.

14. Tal contrato (nulo) serve, ainda, para outra coisa, se houver a intenção de interpretar a real vontade das partes: serve para saber que a aquisição da posse é derivada, através da entrega “de um símbolo ou realização de um ato que simboliza a coisa cuja posse se transfere”. No fundo foi exatamente para isso que os outorgantes elaboraram o contrato de arrendamento, não para o arrendar realmente, mas sim para justificar a posse dos A.

15. Tendo a posse dos A. iniciado a 1 de julho de 1998 e durado, pelo menos, até 09 de agosto de 2018, durou 20 anos e 69 dias, pelo que operou a aquisição originária por

usucapião.

16. Ainda que assim não se entenda, o que só se defende por cautela de patrocínio, terá sempre de se considerar a inversão do título da posse dos A. em 2002, porquanto acabaram por assinar um contrato de promessa de compra e venda, e liquidaram o valor total acordado, deixando posteriormente de entregar quaisquer valores ao Sr. HH.

17. Tal falta de pagamento das rendas constitui oposição expressa por parte do detentor (sem conceder no que se defende sobre 1998) porquanto não foi um simples e mero “deixar de pagar de rendas”, mas sim um ato concertado, motivado, com motivações

conhecidas pelo antigo possuidor, com fundamento numa compra e venda que, na simplicidade do Sr. GG, estaria concluída a partir do momento em que pagasse o preço.

18. Tal posse terá de ser considerada de boa-fé.

19. Assim, começando, na pior das hipóteses segundo a prova dos factos, no dia 30 de junho de 2002, momento em que foi pago o remanescente dos dois mil contos, até, pelo menos 09 de agosto de 2018, durou 16 anos e 40 dias, pelo que a usucapião, nesta pior das hipóteses, operou passados 15 anos do dia 30 de junho de 2002.

20. A ação foi proposta nos 3 primeiros anos desde a aquisição de terceiro (ainda que estivesse) de boa-fé, pelo que os seus direitos não são protegidos.

21. Violou, o tribunal a quo, pelo menos as normas constantes dos art.º 240, 241, 374, 376, 1251, 1252, 1253, 1263, 1265, 1288, 1317 do Código Civil, assim como o art.º 411 e 615 c) do Código de Processo Civil.


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Os Réus contra-alegaram, concluindo:

1. Os factos descritos em D), E), F), G) e M) da matéria de facto não provada foram corretamente julgados e não merecem qualquer censura;

2. O início da posse em 1998 é matéria não alegada pelas partes na acção, logo, subtraída à apreciação do Tribunal «a quem».

3. O Tribunal «a quem» não tem, pois, de se pronunciar sobre tal questão.

4. Deve ser alterado o facto provado descrito em 8, no seguinte sentido: «A ideia inicial das partes, aquando da conclusão do acordo referido em 5º supra, era a de vender/comprar o imóvel em causa, mas não sendo tal possível por falta de consentimento de LL, ex-mulher de HH, que tinha licitado o quinhão hereditário deste na herança de MM, optaram por celebrar um contrato de arrendamento até à resolução do processo de partilha por divórcio».


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As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação da matéria de facto;

A simulação do arrendamento;

A aquisição derivada;

O início da posse aquisitiva;

A inversão do título da posse.


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A reapreciação da matéria de facto.

Estão em causa os factos provados em 8 e não provados em D, E, F, G, e M.

Os Recorrentes e os Requerentes da ampliação do objeto do recurso invocam certos documentos e os testemunhos de JJ, NN, OO e PP.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil (doravante CPC)).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação são sujeitos à livre apreciação do julgador.

Lembremos também que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem fatores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.

Ora, reapreciadas as provas apresentadas, a nossa convicção vai em sentido idêntico ao formado pelo tribunal recorrido, devendo ser esclarecido o facto 8.

Vejamos:

Quanto ao facto 8. (A intenção das partes, aquando da conclusão do acordo referido em 5.º supra, era a de vender/comprar o imóvel em causa.):

O depoimento de JJ refere que HH pretendia vender e que GG tinha interesse em adquirir o prédio, o que não sucedeu por questões relacionadas com os proprietários, acabando antes por formalizar um contrato de arrendamento. No seguimento daquela intenção, as partes deram início às negociações tendentes à efetiva alienação/aquisição do imóvel, mediante a celebração do contrato-promessa de compra e venda. Do referido depoimento resulta que a compra e venda não era possível porque o prédio tinha mais do que um proprietário ou problemas de partilha.

Assim, entendemos que subjacente ao arrendamento não está uma intenção (dissimulada) de compra e venda, mas sim de arrendamento; aquela intenção de compra e venda conduziu sim às diligências subsequentes relativas ao contrato promessa.

Na sua motivação de facto, a Sra. Julgadora expressa também este sentido, embora nos pareça que a redação escolhida não é a mais adequada.

Pelo exposto, a fim de evitar uma interpretação que não é a correta, decidimos alterar a redação do facto, passando a ser:

A ideia inicial das partes, em 1998, era a de vender/comprar o imóvel em causa; mas não sendo isso possível, por falta de intervenção de todos os interessados, optaram por celebrar um contrato de arrendamento, sem prejuízo de diligenciarem por futuros contrato promessa e de compra e venda.

Quanto ao facto não provado D) (Em abril de 2002, GG liquidou o remanescente do preço respeitante ao acordo firmado em 9.º, no montante de € 4.987,98.):

Também não ficamos convencidos do pagamento total do preço.

JJ refere-o, mas não nos convence. A testemunha afirma ter depositado 2 (dois) cheques, um no valor de € 3.242,19 e outro no valor de € 4.488,08, os quais totalizam € 7.730,27, valor total esse não coincidente com o preço constante do Contrato Promessa. Afirma ainda que o preço de venda era de 2.000 contos (2.000.000$00), o que corresponde a € 9.975,96, valor este que nada tem a ver, uma vez mais, com o preço constante do Contrato Promessa. O montante de € 4.987,98, que estaria em dívida, nos dizeres do documento, não corresponde com qualquer dos valores referidos pela testemunha.

Estranhamente, apesar da sua aparente intervenção nuclear, não se recorda se teve participação no contrato de arrendamento e desconhece se foi ou não celebrado o contrato-promessa compra e venda, com isso e aquilo denunciando um desconhecimento que afeta a sua razão de ciência e a sua fiabilidade.

Nenhuma outra prova foi produzida a este respeito.

Tendo o alegado pagamento sido realizado através de cheques, estes não foram juntos, nem requerida qualquer diligência a respeito.

(“Ao abrigo do art. 411º do CPC, o juiz só deve intervir ativamente no campo probatório, da descoberta da verdade material, quando alguma das partes pedir a sua intervenção, alegando e demonstrando que para cumprir o ónus que lhe incumbe pretende apresentar determinadas provas, sejam documentos, seja outro tipo de prova, mas está a ter grandes dificuldades em conseguir apresentar as mesmas nos autos.” RG, acórdão de 12.10.2017, proc. 227/07, em www.dgsi.pt.)

           Quanto ao facto não provado E) (Desde essa data, os promitentes-compradores deixaram de pagar qualquer montante a título de rendas e estas não lhe foram exigidas pelos promitentes-vendedores.):

Do depoimento de JJ (fragilizado, como vimos) não resulta a prova de que os promitentes-compradores deixaram de pagar qualquer montante a título de rendas e que estas não lhe foram exigidas pelos promitentes-vendedores. A mesma apenas refere que os valores das rendas respeitantes a três anos foram descontados no preço a pagar.

Quanto ao facto não provado F) (Em 21.08.2002, o promitente-comprador GG liquidou a SISA (atual IMT) relativa à aquisição do imóvel, no montante de € 200,00.):

O IMT inerente à transmissão apenas foi liquidado dois anos depois do suposto pagamento da integralidade do preço, em 20.02.2004,

Quanto ao facto não provado G) (Em 30.03.2006, HH escreveu uma missiva à “prima QQ” [reportando-se à procuradora JJ], na qual referiu, entre o mais, o seguinte: “Como pode verificar pela fotocópia junta, o “Imposto sobre imóveis”, ainda traz os “...”, ainda não foi efetuado o Registo ou não foi feita a escritura? Estou a levantar o problema não por causa do valor, mas sim para efeitos de legalização”):

Foi pelos Recorridos posta em causa a veracidade e autoria da carta em questão.

O conteúdo que JJ apresenta para a carta não coincide completamente com o conteúdo da carta doc. 7 da petição.

Estranhamente, a testemunha não se recorda de qualquer diligência que tenha feito na sequência da carta.

Em conclusão, não se atesta que HH tenha assinado aquele escrito.

(De qualquer maneira, o conteúdo da carta não é apto a demonstrar o pagamento integral do preço, mas sim a questionar porque não foi feita a escritura (na qual seria pago o restante preço)).

 Quanto ao facto não provado M) (Desde 2002, GG e a Autora AA ocupam o prédio identificado em 4.º supra, cultivando-o, executando trabalhos inerentes à manutenção da plantação como sejam a substituição de árvores pouco produtivas, limpeza dos troncos, enxertia, adubar as árvores, poda, sachar as ervas, regar, estrumar e colher os seus frutos.):

As testemunhas NN, OO e PP não se reportaram especificamente a atos de cultivo do terreno ou à execução de trabalhos ali feitos, posteriores ao falecimento de GG. Eles reportaram-se essencialmente à plantação de um pomar, à surriba do terreno e à abertura de uma charca – os quais foram incluídos na matéria provada, sendo depois genéricos e meramente conclusivos. No que toca especificamente à Autora AA, não foi produzida prova acerca da sua participação em qualquer concreto trabalho realizado no terreno.

Pelo exposto, julgamos a impugnação dos Autores improcedente e a dos Réus procedente, alterando a redação do facto 8 e mantendo a matéria de facto não provada, fixando os factos provados do seguinte modo:

Factos provados:

1. A Autora AA é viúva de GG, com quem foi casada catolicamente desde ../../1977, sem convenção antenupcial, no regime da comunhão de adquiridos, em primeiras e únicas núpcias de ambos.

2. Os Autores RR e BB são os únicos filhos da Autora AA e de GG.

3. A Ré FF era filha e única herdeira de HH, o qual era herdeiro de SS (esposa de II).

4. Em 1998, o prédio rústico sito em ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...56 (atualmente 2077), encontrava-se registado a favor da herança aberta por óbito de II.

5. Em 02.12.1998, por escrito denominado “contrato de arrendamento rural”, a herança de II, representada pela Cabeça-de-Casal SS, na qualidade de senhoria, deu de arrendamento a TT, na qualidade de arrendatário, o prédio referido no artigo anterior.

6. Nos termos da cláusula segunda de tal acordo: “[o] presente arrendamento é feito pelo prazo de 10 (Dez) anos, renovável por períodos sucessivos de 3 anos, enquanto por qualquer das partes não for denunciado com a antecedência legal, e tem o seu início no dia 1 de junho de 1998”.

7. Estabelece a cláusula terceira o seguinte: “[a] renda anual é de 120 000$00 (cento e vinte mil escudos) devendo ser paga à Cabeça-de-casal ou seu representante, antecipadamente até ao dia 31 de maio de cada ano”.

8. (Alterado) A ideia inicial das partes, em 1998, era a de vender/comprar o imóvel em causa; mas não sendo isso possível, por falta de intervenção de todos os interessados, optaram por celebrar um contrato de arrendamento, sem prejuízo de diligenciarem por futuros contrato promessa e de compra e venda.

9. Em 25.02.2002, por escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda”, HH (como procurador da sua mãe SS), na qualidade de promitente-vendedor, declarou prometer vender a GG, na qualidade de promitente-comprador, o qual prometeu comprar, o prédio rústico identificado em 4.º supra.

10. Ficou ainda estipulado em tal acordo o seguinte: “Segunda. O preço é de € 8.230,17 (1.650.000$00) que será pago pela forma seguinte: a) € 3.424,19 (650.000$00) no acto da assinatura do presente contrato, dando o primeiro outorgante a respectiva quitação. b) € 4.987,98 (1.000.000$00) com a assinatura da escritura pública de compra e venda”. Terceira. A escritura será celebrada até final do mês de abril de 2002 e deverá ser marcada num Cartório de ... ou de ... pelo primeiro outorgante, que deverá avisar o segundo da data e local com 15 dias de antecedência. Quarta. Todas as despesas com sisa, escritura e demais encargos serão suportadas, como é de lei, pelo segundo outorgante”.

11. Durante o período inicial do acordo referido em 5.º, GG

plantou um pinhal, surribou o terreno e abriu uma charca no mesmo, à vista dos vizinhos que habitavam na aldeia de ... e sem a oposição de ninguém.

12. GG faleceu em ../../2003.

13. No âmbito do processo de liquidação do imposto sucessório por óbito de GG, em 26.12.2003, foi apresentada relação de bens por parte da Cabeça-de- Casal, a Autora AA, na qual não se encontra relacionado o imóvel identificado em 4.º supra.

14. Em 20.02.2004, a Autora AA apresentou junto da Autoridade Tributária declaração relativa ao pagamento do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, tendo por objeto o bem imóvel mencionado em 4.º supra.

15. Nessa declaração, declarou como “facto tributário” a “aquisição do direito de propriedade plena sobre imóveis”, como “alienante do bem” HH e como “valor global do ato ou contrato” o montante de € 2.500,00.

16. Na escritura de partilha do acervo hereditário por óbito de GG, realizada em ../../2006, no qual não se incluiu o imóvel identificado em 4.º supra, todos os bens foram adjudicados ao cônjuge sobrevivo, a Autora AA.

17. HH faleceu em ../../2014.

18. Em 28.06.2018, a Ré FF apresentou junto da Autoridade Tributária a participação do imposto de selo por óbito de HH, na qual incluiu, entre outros, o prédio identificado em 4.º supra.

19. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 09.08.2018, o Réu DD

 procurou a Ré FF com o intuito de adquirir o prédio identificado em 4.º supra.

20. Em 09.08.2018, por escrito denominado “Compra e Venda”, a Ré FF, na qualidade de vendedora, declarou vender aos Réus DD e EE, que declararam comprar, o prédio rústico identificado em 4.º supra, pelo preço de € 6.000,00, já recebido pela vendedora.

21. Desde essa data, os Réus DD e EE exercem a posse sobre o aludido imóvel.


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A simulação do arrendamento.

A reapreciação da matéria de facto, relativa especificamente ao facto 8., permitiu afastar qualquer dúvida a respeito da alegada simulação, que não existe.

Os interessados quiseram, na impossibilidade de realização imediata de uma compra e venda, outorgar efetivamente um arrendamento.

A aquisição derivada.

Da celebração de um contrato-promessa decorrem efeitos meramente obrigacionais e não efeitos reais, não tendo o mesmo a virtualidade de transmitir o direito de propriedade sobre o bem em benefício do promitente-comprador.

Do contrato em causa decorrem unicamente obrigações, a cargo de ambas as partes, de prestação de facto, daí decorrendo os necessários efeitos legais em caso de incumprimento.

Nenhum destes efeitos legais, decorrente do incumprimento do contrato promessa, é acionado pelos Autores.

O direito à execução específica do contrato nunca poderia aqui operar porque, estando em causa uma promessa com eficácia meramente obrigacional, o bem já foi alienado a um terceiro.

O início da posse aquisitiva.

O início reportado a 1998 nem sequer foi invocado pelos Autores na petição.

Efetivamente, estes, aceitando o arrendamento, apenas fundam o seu direito numa compra ocorrida em 25.02.2002 ou, subsidiariamente, na aquisição originária (usucapião) com início naquela data.

Como detinham o prédio a título de arrendatários, com mera promessa de venda, nunca concretizada, cabia aos Autores a hipótese de demonstrarem a inversão do título da posse, a partir de certa data.

Antes de conferirmos tal inversão, vejamos se, com a promessa e domínio do bem, ocorreu uma antecipação desejada da transmissão da propriedade.

Por regra, o promitente-comprador com a entrega da coisa é um possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor.

Excecionalmente, pode ser manifestada pelas partes, no contrato e circunstâncias do mesmo, a intenção de, desde logo e a título definitivo, transferir para o promitente-comprador a posse correspondente ao direito de propriedade.

(Ver também os acórdãos citados no do STJ, de 11.3.2021, proc. 3944/16, em www.dgsi,pt.)

No caso, essa intenção fica por demonstrar.

Não resultou provado o pagamento integral do preço, resultando que o remanescente deveria ter sido pago no ato da escritura, que não chegou a realizar-se.

As partes previram expressamente no contrato-promessa a posterior celebração da escritura pública, e nada demonstra que tivessem previsto não proceder à sua realização, nomeadamente por forma a evitar custos adicionais.

Não se verifica qualquer oposição expressa por parte de GG relativamente a HH, no sentido de se arrogar, a partir da celebração do contrato-promessa, proprietário do imóvel.

Embora tenha uma feição negativa, não ficou provado que GG tivesse deixado de proceder ao pagamento das rendas que lhe cabiam na qualidade de arrendatário.

Veja-se ainda o assente em 13, 16 e 18.

Este conjunto de elementos não permite assegurar a intenção de, desde logo com a promessa e a título definitivo, transferir para o promitente-comprador a posse correspondente ao direito de propriedade.

A inversão do título da posse.

A inversão do título da posse tem que consistir numa oposição expressa à situação anterior, através de atos materiais ou jurídicos, inequívocos, reveladores do novo animus da atuação e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os atos se opõem.

A inversão do título vem prevista na al. d) do art. 1263.º e 1265.º do Código Civil.

Para a inversão não basta um mero aproveitamento da inércia de outrem.

(Ver acórdão do STJ de 17.12.2014, processo nº1313/11, em www.dgsi.pt., no qual se cita: “O detentor há-de tornar diretamente conhecido da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial quer extrajudicialmente) a sua intenção de atuar como titular do direito”.)

Assim, seria necessário que a posição dos interessados ficasse inequívoca, o que não foi demonstrado, remetendo-se ainda para o que já se disse na questão anterior.

Alguns vizinhos de GG tomavam-no como proprietário, não tendo sido confirmada essa posição relativamente a um leque mais alargado de pessoas, e concretamente quanto ao identificado HH.

Se tal circunstância fosse do conhecimento generalizado, mal se compreenderia que o Réu DD, quando pretendeu adquirir o imóvel, se dirigiu à Ré FF e não à Autora AA.

O único ato praticado pela Autora AA que, em abstrato, poderia ser suscetível de revelar uma vontade de inversão do título da posse, foi o pagamento do imposto municipal sobre transmissões efetuado em 20.02.2004.

Esse ato não se encontra inequivocamente relacionado com a suposta transação alegada nos autos, existindo também uma discrepância no valor.

E este ato não chegaria ao conhecimento do proprietário.

Considerando os prazos constantes do artigo 1296.º do Código Civil, e porque estamos perante uma posse não registada, não teriam os mesmos decorrido aquando da celebração da escritura de compra e venda a favor dos 2.º e 3.º Réus.

Tal imposto foi liquidado em 20.02.2004. (15 anos = 20.2.2019.)

Pelo menos em 27.11.2018, os Autores tiveram conhecimento de que os 2.º e 3.º Réus haviam adquirido o imóvel.


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            Decisão.

           Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelos Recorrentes, vencidos.

2024-07-10


(Fernando Monteiro)

(Alberto Ruço)

(Fonte Ramos)