Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/17.7T8CVL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ASSINATURA A ROGO
NÃO SABER OU NÃO PODER ASSINAR
NÃO SABER OU NÃO PODER LER
NOTÁRIO
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 373.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) A assinatura a rogo só se encontra prevista para quem não saiba ou não possa assinar, independentemente de saber ou poder ler ou escrever.

II) A referência legal a subscritor que “não saiba ou não possa ler” contempla duas situações: a pessoa analfabeta (que não saiba ler ainda que saiba assinar) e o incapacitado fisicamente, ocasional ou definitivamente, para o fazer (por deficiência visual).

III). A exigência de leitura por notário do documento ao subscritor que não saiba ou não possa ler não se aplica àquele que tendo assinando o documento e sabendo e podendo ler, não domina a língua em que o documento se ache redigido.

Decisão Texto Integral:   





                                                                                             

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A. intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B. ,

pedindo a condenação do réu no pagamento à autora da quantia de 10.000,00€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento,

alegando, para tal e em síntese:

a 14 de agosto de 2015, a autora e C. celebraram com o réu um contrato promessa de cessão de quotas, através do qual prometerem ceder ao réu, e este prometeu adquirir-lhes, as duas quotas na sociedade D. , Lda., pelo preço global de 40.000,00€, sendo que o réu, até ao presente, apenas pagou a quantia de 30.000,00€, permanecendo em dívida a quantia de 10.000,00€, correspondente ao remanescente do preço acordado e que deveria ter sido pago até 30 de junho de 2016;

a 04 de dezembro de 2015 veio a ser celebrado o contrato definitivo de cessão de quotas;

por contrato de cessão de crédito, datado de 21 de setembro de 2016, a autora adquiriu a C. todos os direitos emergentes do contrato promessa supra referido.

O réu apresenta Contestação, alegando, em síntese:

Sendo o réu de nacionalidade francesa e sabendo o réu ler a escrita portuguesa e não tendo a subscrição dos contratos promessa em causa sido feita ou confirmada perante o notário, não o obrigam, sendo ineficaz em relação ao réu;

tal contrato promessa deve ser anulado por existência de erro na declaração, uma vez que o réu se encontrava convencido de que a faturação da firma era distinta (por superior) da que se veio a verificar, ao contrário do que lhe havia sido comunicado;

por esse motivo, as partes acordaram na redução do valor da cessão para a quantia de 30.000,000€, já paga;

no contrato definitivo de cessão de quotas, tanto a autora como C. declararam já ter recebido do réu o respetivo valor da cessão em causa, pelo que, tal declaração é tida como confessória, implicando o reconhecimento pela autora de que já recebeu a totalidade do preço.

Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.


*

Realizada audiência final foi proferida Sentença a julgar a ação procedente, condenando o réu a pagar à autora a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) acrescida de juros de mora, desde 01 de julho de 2016, à taxa civil legal, até efetivo e integral pagamento.

*

Inconformado com tal decisão, o réu interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Se o facto de o Réu não saber ler português tornaria o contrato nulo ou ineficaz perante o réu
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de Facto

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1. Por documento datado de 14 de Agosto de 2015, reduzido a escrito e denominado “Contrato Promessa de Cessão de Quotas”, a autora A. e C. , promitentes cedentes, declararam prometer ceder ao réu B. ,  promitente cessionário, que declarou prometer adquirir-lhes duas quotas na sociedade com a firma D., Lda., com o NIPC ...,  uma com o valor nominal de 4.950,00€ e outra com o valor nominal de 50,00€, pelo preço global de 40.000,0€.

2. Nesse documento, os outorgantes declararam que o preço referido em 1) seria pago do seguinte modo: 8.000,00€ como sinal e principio de pagamento no momento da assinatura do documento referido em 1), servindo este de quitação; 22.000,00€ com a celebração do contrato definitivo e 10.000,00€ até 30 de junho de 2016.

3. Os outorgantes declararam, nesse documento, que o contrato definitivo seria realizado até ao dia 01/12/2015, em hora, dia e local a indicar pelo aqui réu.

4. Por documento datado de 04 de dezembro de 2015, reduzido a escrito e denominado “Contrato Particular de Cessão de Quotas”, foi celebrado o contrato prometido, por A. , primeira outorgante, C. , segundo outorgante, B. , terceiro outorgante e E. , quarta outorgante.

5. No documento referido em 4), na cláusula terceira, consta que: “A quota é cedida livre de quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo seu valor nominal, que a cedente (primeira outorgante) declara já haver recebido do cessionário, dando assim terminada a presente cessão de quotas”.

6. No documento referido em 4), na cláusula quinta, consta que: “Declara o segundo outorgante que a sua quota é cedida livre de quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos e obrigações inerentes, pelo seu valor nominal, que o cedente declara já haver recebido da cessionária e quarta contratante, dando assim terminada a presente cessão de quotas”.

7. Por documento datado de 21 de setembro de 2016, reduzido a escrito e denominado “Contrato de Cessão de Crédito e Direitos” C. , primeiro outorgante, declarou ceder a A. , segunda outorgante, todos os direitos, de qualquer natureza, sobre B. , emergentes do contrato promessa de cessão de quotas, aludido em 1).

8. Por conta do preço referido em 1) foi paga pelo réu a quantia de 30.000,00€.

9. O ilustre mandatário da autora remeteu ao réu uma carta datada de 11/08/2016, com o seguinte teor: “Exmos. Senhores: Represento a D. A. e o Sr. C. , que me incumbiram de tratar de assunto que se relaciona com V. Exas., respeitante à cessão das quotas de que eram titulares na sociedade D., Lda. Face às informações e elementos documentais facultados pelos meus clientes, V. Exas. ainda não procederam ao pagamento da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) que se obrigaram a pagar até 30 de junho de 2015. Antes de interpor a adequada ação judicial para cobrança de tal valor, interpelo V. Exas. para que procedam à sua regularização, no prazo de 8 dias.”

10. O réu é de nacionalidade francesa e tem a sua residência em França, tendo vivido em Portugal apenas no período durante o qual geriu a empresa D., Lda., referida em 1).

11. O réu compreende e fala a língua portuguesa.

12. A faturação da firma não foi entregue ou mostrada ao réu, em momento anterior à data referida em 4).

13. Foi dado conhecimento ao réu, em momento anterior à data referida em 4), dos bens constantes do imobilizado da firma D., Lda.

14. O teor dos documentos referidos em 1) e 4) foi lido e explicado ao réu, aquando da outorga dos mesmos.


*

1. Impugnação da matéria de facto

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

O Réu faz assentar as suas discordâncias com o decidido, na impugnação que deduz à decisão proferida em sede matéria de facto, sustentando que o facto dado como “Não provado” sob a al. a), deveria ter sido dado como “provado”:

a) o réu não sabe ler a escrita portuguesa.

O Réu pretende que o tribunal reconheça tal facto como provado, para do mesmo retirar que:

- tendo por provado que o recorrente não sabe ler e, nessa medida assinar, a subscrição do contrato-promessa de cessão de quotas, só o obrigava, legalmente, quando feita ou confirmada perante o notário, depois de lido o documento ao rogante, nos termos do artigo 373º, nº3 e 4 do CC, invocando ainda o disposto nos artigos 154º e 155º do Código do Notariado;

- sendo a assinatura a rogo elemento integrante do documento particular produzido por quem não sabe ler, a falta de demonstração do reconhecimento notarial implica a preterição de uma formalidade ad substanciam, com a subsequente nulidade da declaração nele incita.

Ou seja, segundo o Apelante, e invocando o disposto nos ns. 3 e 4 do artigo 373º do CC, o facto de o mesmo não saber ler português, implicaria que:

- que não saberia assinar;

- a aplicação das regras da assinatura a rogo, nomeadamente que a sua assinatura fosse prestada perante um notário;

- e que tal assinatura fosse precedida da leitura de tal documento ao réu.

Ora, desde já adiantamos não assistir qualquer razão ao réu na leitura que faz do citado artigo 373º do Código Civil.

Dispõe o artigo 373º do Código Civil:

Assinatura

1. Os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem, a seu rogo, quando não souber assinar.

(…)

3. Se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só o obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor.

4. O rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, depois de lido o documento ao rogante.

Quanto à previsão da assinatura a rogo, como resulta do nº1 da citada norma, só se aplica quando o subscritor não souber ou não puder assinar, o que não é o caso: o réu sabe assinar (e sabe ler e escrever), tendo sido, ele próprio, quem assinou os documentos em causa.

Quanto ao que se dispõe no nº3 a referência que aí é feita a pessoa que não saiba ou não possa ler, contempla duas situações: a pessoa analfabeta (que não saiba ler ainda que saiba assinar) e o incapacitado fisicamente, ocasional ou definitivamente, para o fazer (por deficiência visual)[1].

Em qualquer um destes casos, se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, mas possa assinar, a subscrição só o obriga quando confirmada perante o notário, depois de lido o documento ao subscritor.

Contudo, não é essa a situação invocada nos autos: o réu não alega, nunca, que não saiba ler (ou escrever) mas, apenas, que, “não sabe ler a escrita portuguesa”.

Ora, a previsão do artigo 373º não abarca as situações do subscritor que, sabendo ler e escrever, não domina a língua (falada ou escrita) em que documento se ache escrito.

Com a mesma, não se pretende salvaguardar a compreensão que o subscritor possa ter das declarações aí apostas, de tal modo que a solução dada por lei para o facto de o subscritor “não saber ou não poder ler”, passa pela mera leitura prévia do documento ao subscritor (aliás, no caso em apreço, até se encontra dado como provado que o teor de tais documentos lhe “foi lido e explicado ao réu, aquando da outorga dos mesmos” – ponto 14. dos factos provados).

De qualquer modo, o Réu não alega, nunca, que, o facto de não “saber ler” português lhe tenha dificultado a compreensão do respetivo conteúdo – tendo-lhe sido lido o seu conteúdo, encontrando-se ainda provado que o mesmo “compreende e fala a língua portuguesa” – ponto 11 dos factos provados –, limitando-se a invocar tal facto para o efeito de sobre ele recair a exigência prevista no artigo 373º CC, exigência que, como referimos, não é aplicável ao caso.

A subscrição assume quatro funções: i) indicativa, que permite distinguir o autor do documento dos demais (sou eu que escrevo); ii) identificativa, que permite imputar aquela concreta assinatura aquele sujeito (demonstro-te que sou eu); iii) declarativa que consiste na assunção da paternidade do documento ao seu auto, apropriação do conteúdo da declaração (confirmo que o texto corresponde àquilo que penso e quero”; iv) finalmente a função presuntiva, nos termos da qual da assinatura emergem uma serie de ações subjetivas: a afirmação da completude do texto (afirmo que o texto é definitivo e não necessita de modificações”) e o conhecimento do seu teor, assente este na máxima de experiência segundo o qual ninguém subscreve um documento sem inteirar-se – previamente – do seu conteúdo[2].

Se o subscritor, sabendo e podendo ler, conclui que, seja por a linguagem do mesmo se afigurar para si hermética, dados os termos técnicos de que se socorre, seja porque os conhecimentos de que dispõe da língua em que o documento se acha redigido, são insuficientes para completo esclarecimento do que está a assinar, poderá sempre pedir esclarecimentos ou exigir a tradução do documento.

Ou seja, ainda que o réu visse deferida a sua pretensão a dar como provado que o mesmo “não sabe ler o português”, tal não importaria a consequência que o réu dele pretende extrair: de que tal documento só o obrigava legalmente se a sua subscrição tivesse sido feita ou confirmada perante o notário, depois de lido o documento ao subscritor, nos termos dos ns. 3 e 4 do artigo 373º CC.

Concluindo, é de rejeitar a pretensão da Apelante de, em sede de impugnação da matéria de facto, ver reapreciado o teor da al. a) dos factos dados como Não Provados, que se não conhece, por respeitar a facto que se afigura irrelevante para a decisão do recurso.

Apesar de sobre o juiz impender o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (nº2 do artigo 608º do CPC), tal dever cede perante o disposto no artigo 130º do CPC, que veda ao tribunal a prática de atos inúteis[3], devendo o tribunal da Relação abster-se conhecer das questões de facto que sejam irrelevantes para a decisão do recurso.


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Fazendo o Apelante assentar as suas divergências co o decidido na pretendida alteração à matéria de facto, pretensão que viu decair, a apelação é de improceder sem outras considerações.

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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas da Apelação a suportar pelo Réu Apelante

                                                                               Coimbra, 25 de janeiro de 2022                                              


(…)


[1] José Alberto dos Reis, censura Cunha Gonçalves pelo facto de este referir que a assinatura a rogo é sempre feita por pessoas analfabetas, salientando que a pessoa pode saber ler, mas não saber escrever e pode saber ler e escrever e estar, no momento impossibilitada de escrever – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora, 4ª ed., p.419.
[2] Luís Filipe Pires de Sousa, “Direito Probatório Material, Comentado”, Almedina, pp.151-152.
[3] Tal solução encontra-se em consonância com as demais normais respeitantes à reapreciação da matéria de facto pela Relação, nomeadamente, com o disposto na al. c) do nº3 do artigo 662º do CPC, determinando que a Relação só anulará a decisão proferida em 1ª instâncias com vista à matéria de facto quando a considere indispensável, e na al. d) da citada norma, que prescreve que  a Relação só deve determinar que o tribunal da 1ª instancia fundamente a decisão se incidir sobre algum facto essencial para o julgamento da causa