Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra
1 - Relatório
No recurso de contra-ordenação nº. 2395/24.1T9LRA, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria - Juiz ..., foi proferida decisão que julgou improcedente o recurso interposto pela arguida AA e manteve a decisão da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária que a condenou pela prática da contra-ordenação prevista pelos artigos 27.º, n.º 2, al. a), 2.º, e 28.º, n.ºs 1, al. b), e 5, 133.º, 136.º, 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada, na coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de 30 (trinta) dias.
Inconformada com a decisão, dela veio a arguida interpor o presente recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem.
“ “A) DA NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
K. A decisão de que ora se recorre faz tábua rasa da invocação da inexistência de imputação objetiva, bem como, de toda a matéria factual trazida aos autos para prova da referida inexistência de imputação objetiva, nomeadamente, do facto de não ser a Arguida proprietária do veículo à data da alegada prática da contraordenação em crise nos presentes autos.
L. A Decisão ora recorrida limita-se a invocar que estão preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo contraordenacional em causa, sem fazer qualquer apreciação crítica acerca da situação concreta, e da alegação e provas juntas pela Recorrente, limitando-se a retirar ilações e a fazer conclusões, desconsiderando tudo quanto se invocou, com o devido respeito, sem qualquer consideração pela alegação e prova de que não era a Arguida sequer a proprietária do veículo à data dos factos.
M. O dever de fundamentação, previsto no art.º 374.º, n.º 2 do CPP não foi respeitado na decisão proferida que não contém os factos em que se baseou nem os fundamentos considerados para a conclusão de que estão preenchidos todos os elementos do tipo contraordenacional em causa.
N. Nestes termos, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 205.º, n.º 1 da CRP, 154.º do CPC ex vi art.º 4.º do CPP, art.º 97.º, n.º 5 do CPP e art.º 374.º, n.º 2 do CPP porquanto está insuficientemente fundamentada, pelo que é nula nos termos do art.º 379.º, n.º 1 do CPP.
B) DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
O. Como se disse, a decisão de que ora se recorre faz tábua rasa da invocação da inexistência de imputação objetiva e, principalmente, de toda a matéria factual trazida aos autos para prova da referida inexistência de imputação objetiva, nomeadamente, do facto de não ser a Arguida proprietária do veículo à data da alegada prática da contraordenação em crise nos presentes autos.
P. A Recorrente apenas adquiriu o veículo alegadamente apanhado em excesso de velocidade nos presentes autos com a matrícula ..-QP-.. no dia 27.10.2021, ou seja, em dia posterior à alegada prática dos atos relatados no auto de notícia.
Q. Pelo que não poderia ser a condutora do automóvel à data dos alegados factos, até porque não era a sua proprietária.
R. A Douta Decisão de que se recorre não se pronunciou, em momento algum, acerca da factualidade trazida aos autos pela aqui Recorrente, nem sequer sobre os documentos juntos.
S. Acontece que a factualidade colocada em crise pela Recorrente é absolutamente essencial para a decisão a proferir nos presentes autos, uma vez que prova cabalmente que não era a aqui Recorrente Titular do documento de identificação do veículo à data dos alegados factos.
T. A Douta Decisão ora em crise foi proferida sem qualquer consideração pela alegação e prova de que não era a Arguida sequer a proprietária do veículo à data dos factos.
U. Nestes termos, a decisão ora recorrida é nula por omissão de pronúncia, de acordo com o disposto nos artigos 171.º, n.º 2 do Código da Estrada e art.º 374.º, n.º 2 do e art.º 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, o que expressamente se invoca para os devidos efeitos legais.
C) DO ERRO DE JULGAMENTO / DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
V. Como resulta quer da alegação quer da prova junta ao seu Recurso de impugnação, a Arguida apenas adquiriu o veículo alegadamente apanhado em excesso de velocidade nos presentes autos com a matrícula ..-QP-.. no dia 27.10.2021, à empresa A..., LDA, com o NIPC ...48, tendo-o registado em 04/11/2021.
W. Da prova junta resulta que não era a Recorrente a condutora do veículo, nem sequer a proprietária do veículo à data dos alegados factos que deram origem ao processo contraordenacional, nem sequer a titular do documento de identificação do veículo em questão.
X. O auto de contraordenação deveria ter sido levantado ao titular do documento de identificação do veículo à data da prática dos alegados factos, e nunca à aqui Recorrente.
Y. Não pode a aqui Recorrente ser condenada por uma alegada contraordenação que não praticou nem poderia ter praticado, nem sequer poderia ser Arguida nos presentes autos.
Z. Não sendo a aqui Recorrente a condutora do veículo à data da prática dos alegados factos, nem sequer a sua proprietária, não existiu, pois, violação de qualquer dever de cuidado a que a Recorrente estivesse vinculada, nem sequer existe nexo de imputação objetiva entre a eventual violação do dever objetivo de cuidado e o resultado típico.
AA.Nestes termos, os pontos 1, 2 e 4 dos Factos Provados deveriam ter sido dado como não provados.
BB. A Douta Decisão de que ora se recorre padece de vício nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP porquanto apreciou erradamente a prova carreada aos autos.
CC.A Douta Decisão de que ora se recorre violou o disposto nos artigos 27.º, n.º 2, al. a), 135.º, n.º 3, e 171.º, n.º 2 todos do Código da Estrada e 30.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
TERMOS EM QUE DEVE DAR-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO,ORDENANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A REVOGAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE REVOGUE A DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA E ABSOLVA A AQUI RECORRENTE DA PRÁTICA DA CONTRAORDENAÇÃO QUE LHE É IMPUTADA.
FAZENDO-SE, ASSIM, JUSTIÇA! ”
Na 1ª. Instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
“ 1º A arguida vem recorrer da sentença proferida nos presentes autos, por não concordar com a improcedência do recurso de impugnação judicial em virtude de não ter sido realizada uma correta interpretação/aplicação dos artigos 27.º, n.º 2 al. a) 2.º, 135.º, n.º 3, 171.º, n.º 2, todos do Código da Estrada e ainda do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
2.º Sustenta a recorrente que a prova junta aos autos e atendida pelo Tribunal a quo não é suficiente para imputar à arguida a prática daqueles factos, não se preenchendo, assim, o elemento objeto e subjetivo do tipo contraordenacional.
3.º Existindo, assim, falta de fundamentação da sentença o que importa a nulidade da mesma (artigo 379.º, n.º 1 al. a), por reporte ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
4.º Com tal afirmação não podemos concordar.
5.º A referida sentença encontrou a sua fundamentação na prova junta aos autos, alicerçando a sua convicção na prova junta e produzida pela autoridade administrativa, designadamente no auto de contraordenação, na decisão administrativa e, inclusive, na “defesa” apresentada pela arguida.
6.º O que existe é, tão só, uma discordância entre a posição da arguida e a posição adotada pelo Tribunal a quo, uma vez que a mesma lhe foi desfavorável.
7.º O que existiu, na ótica da arguida, foi uma errada ou insuficiente fundamentação da sentença, mas nunca isso se poderá traduzir na falta de fundamentação da mesma e, consequentemente, na nulidade da sentença por violação das disposições conjugadas dos artigos 205.º, n.º 1 da CRP, 154.º do CPC ex vi art.º 4.º do CPP, art.º 97.º, n.º 5 do CPP e art.º 374.º, n.º 2 do CPP.
8.º Pelo supra exposto, discordamos da posição assumida pela recorrente no que se refere à falta de fundamentação da sentença e, consequentemente, da nulidade da mesma, devendo manter-se, nesta parte, a sentença recorrida, indeferindo-se a nulidade.
9.º Por seu turno, a arguida sustenta ainda no presente recurso que a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia e de erro de julgamento, por o Tribunal a quo não ter atendido à factualidade trazia pela arguida, mas também por ter “ignorado” a prova documental por si carreada (v.g. fatura da compra do automóvel).
10.º Mais uma vez, com tal afirmação não podemos concordar.
11.º Estatui o artigo 171.º, n.º 2, do Código da Estrada que “Quando se trate de contraordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo”.
12.º Nestes termos, recai sobre o proprietário do veículo o ónus de ilidir a presunção de que, à data dos factos, não era ele o condutor do referido veículo.
13.º Tal ilisão não foi efetuada pela arguida, pelo menos no período de 15 dias úteis concedido para elaboração da defesa.
14.º Segundo informação trazida aos autos pela própria arguida, a arguida efetuou o registo de propriedade no veículo no dia 04/11/2021.
15.º Foi notificada para elaborar a defesa a que alude o artigo 134.º, do Código da Estrada, no dia 13/07/2022.
16.º No prazo concedido para o efeito, não ilidiu a presunção.
17.ºNo entanto, aquando da receção da notificação, a arguida já tinha efetuado o registo da propriedade do veículo e, bem assim, conhecimento de que à data daqueles factos não era ela a proprietária do veículo.
18.º Face à inércia demonstrada pela arguida, e decorrido o prazo para a defesa, teve-se por “definitiva” a presunção de que é condutor à data dos factos o proprietário do veículo.
19.º É, desta forma, referido na sentença recorrida que: “No caso dos autos, a arguida/recorrente sustenta a nulidade da decisão final porquanto aí expressamente se fez constar que que a arguida não apresentou defesa, não se pronunciou nem efetuou o pagamento voluntário da coima.
Ora, compulsados os autos de contraordenação n.º ...90, que deram origem aos presentes, contata-se que o afirmado pela Autoridade Administrativa encontra correspondência no processado. A “defesa” que a arguida/recorrente fez chegar aos autos, ocorreu em 27.01.2023 (cfr. fls. 11v.), i.e., em momento posterior à Decisão Administrativa (que data de 16.01.2023), pelo que, independentemente da denominação que a arguida lhe confere, não corresponde na sua materialidade ao exercício do direito de defesa a que ora nos reportamos (antes, à própria impugnação a Decisão Administrativa que viria a ser objecto de convite a aperfeiçoamento).”
20.º Ocorre omissão de pronúncia quando o Tribunal devia pronunciar-se sobre determinada questão e não se pronuncia.
21.º Entende-se por questão, “o dissidio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas pela parte na defesa da sua pretensão.”.
– cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09/02/2012, proferido no âmbito do processo n.º 131/11.1YFLSB.
22.º Destarte, concluímos que a sentença recorrida pronunciou-se sobre a questão em análise, tanto se pronunciou que deu como provados por os mesmos não terem sido contraditados pela arguida no tempo e pelo modo devido.
23.º Pelo exposto, não podemos concordar com a posição assumida pelo recorrente de que a sentença padece de nulidade por omissão de pronuncia e erro de julgamento.
24.º Pelo que, dever-se-á manter na integra a decisão recorrida, na convicção de que assim se fará JUSTIÇA.”
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º., nº. 2 do Código de Processo Penal.
Foram colhidos os vistos e realizou-se a conferência.
II– Fundamentação.
Delimitação do objeto do recurso.
Nos recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância relativos a processos de contra-ordenação o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra, da matéria de direito, como estatui o nº. 1, do artigo 75.°, do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 244/95, de 14-09 e pela Lei n.º ...09/2001, de 24-12, (doravante designado por RGCO) sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida” ou “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido”, nº.2 do artigo 75.º., do RGCO.
Em consonância com o disposto no artigo 412.º n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente ao processo contraordenacional ex vi do disposto nos artigos 41º n.º 1 e 74º n.º 4, do RGCO, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas questões de conhecimento oficioso, Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série- A, de 28.12.1995.
Assim, no caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pela recorrente:
- Da nulidade por falta de fundamentação
- Da nulidade por omissão de pronúncia.
- Do erro notório na apreciação da prova.
III – A Decisão Recorrida
A decisão recorrida tem o seguinte conteúdo:
“ I – RELATÓRIO
À ora recorrente, AA, foi aplicada, pelo MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA – AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA –, a coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias, pela prática de uma contraordenação, p. e p. pelos artigos 27.º, n.º 2, al. a), 2.º, e 28.º, n.ºs 1, al. b), e 5, 133.º, 136.º, 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada.
Inconformada com tal decisão, veio a arguida dela interpor recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 59º e seguintes do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, nos termos e com os fundamentos que melhor se acham plasmados a fls. 32 e ss. dos autos, invocando a nulidade do auto de contraordenação – se bem se depreende, por impercetibilidade da assinatura do auto –, bem assim da Decisão Administrativa – por um lado, por descurar a defesa escrita apresentada e, por outro lado, por inexistência de imputação objectiva.
Mais alega não ter sido dispensada – ou, suspensa – como se impunha, a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados e, em última análise, perdoada à luz da Lei n.º 28-A/2023, de 02.08.
O recurso de impugnação foi admitido a fls. 45 dos autos, tendo o Ministério Publico e a recorrente anuído na prolação de decisão por despacho judicial nos termos do artigo 64.º, n.º 2, do RGCO.
*
O Tribunal é competente.
A arguida tem legitimidade para impugnar judicialmente a Decisão da Autoridade
Administrativa.
▪ DA NULIDADE DO AUTO DE CONTRAORDENAÇÃO:
A arguida/recorrente invoca a nulidade do auto de contraordenação por impercetibilidade da assinatura do auto.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O Código da Estrada contém norma específica a respeito dos requisitos do auto de notícia pela prática de contra-ordenação rodoviária, estipulando no artigo 170.º que, em tal auto, devem ser mencionados, além do mais, “a) Os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos”.
Ora, compulsado o teor do auto de contraordenação que faz fls. 1 a 1v., facilmente se afere dele constarem todos os elementos exigidos pelo disposto no artigo 170.º do Código Estrada.
Com efeito, é claramente percetível no campo “O Autuante”, a assinatura aí aposta – e mais –identificando o mesmo pelo nome “BB” e pelo número “...09”. Inexiste, pois, qualquer omissão/impercetibilidade na assinatura que inquine a validade do auto de contraordenação.
Ainda que não fosse esse o caso, sempre se dirá que nunca a falta de tais indicações acarretaria a invocada nulidade pois que o auto de contra-ordenação não é equiparável a qualquer acusação, razão pela qual, quando muito, estaríamos perante uma mera irregularidade (cfr. arts. 118.º, n.º 1, 119.º e 120.º a contrario, e 123.º, todos do CPC, por remissão do art. 41.º, n.º 1, do D.L. n.º 433/82, de 27 de Outubro), que sempre estaria sanada, porque a arguida a não invocou antes da prolação da decisão administrativa.
Em face de tudo o exposto, não é de atender à nulidade invocada.
▪ DA NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA:
A arguida/recorrente invoca a nulidade da Decisão Administrativa – por um lado, por descurar a defesa escrita apresentada e, por outro lado, por inexistência de imputação objectiva.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Enquanto expressão infraconstitucional do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa, o artigo 50.º do RGCO vem assegurar à infractora a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre o que se lhe oferecer por conveniente, sobre as contraordenações que lhe são imputadas e sobre as sanções em que incorre.
Por sua vez, e atendendo à remissão operada expressamente pelo artigo 41.º, n.º 1 do RGCO para o Código de Processo Penal (CPP), estabelece o artigo 61.º, al. b) do CPP que o arguido goza, em especial, do direito de «ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte».
Para tanto, será a entidade infractora notificada para o exercício do direito de defesa em sede administrativa, conjuntamente com todos os elementos necessários para que fique a conhecer a totalidade dos aspectos de facto e de direito relevantes para a decisão, pois que «tem de ser concedida ao arguido uma oportunidade para ele se pronunciar acerca da conduta que lhe é imputada e quanto ao enquadramento jurídico da mesma, o que implica dar-lhe conhecimento da contraordenação que se considera poder ter sido por si cometida e de quais as sanções em que pode vir a ser condenado» -Cf. António Beça Pereira, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2016, 11.ª Edição, p. 134.
Assim se consegue descortinar que o exercício do direito de defesa vem dar a possibilidade de a arguida/recorrente explanar as suas razões de facto e de direito, de oferecer prova e, no fundo, de contraditar e/ou de rebater a imputação contraordenacional que lhe é feita, procurando influenciar o sentido decisório futuro que será espelhado na decisão final administrativa – Cf. Assim, Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de Direito das Contraordenações, Coimbra, Almedina, 2020, p. 196, segundo o qual dever-se-á considerar o arguido enquanto «participante constitutivo do procedimento contraordenacional, não o entendendo como mero objecto daquele».
Por esta razão, e em conformidade com o que se já se explanou, não se poderá reconduzir estritamente o exercício do direito de defesa a um direito abstracto da arguida/recorrente a ser ouvida, mas antes ao direito a intervir processualmente, seja na contradição dos factos imputados, seja no direito considerado aplicável e ainda no oferecimento de prova com a expectativa de que esta possa influir no sentido decisório final – Cf. Assim, Simas Santos e Jorge Lopes De Sousa, in Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, pp. 307 a 308 – de tal forma que, «quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa» - Cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2003, do Supremo Tribunal de Justiça, in Diário da República n.º 21/2003, Série I-A de 2003-01-25, pp. 547 – 559.
No caso dos autos, a arguida/recorrente sustenta a nulidade da decisão final porquanto aí expressamente se fez constar que que a arguida não apresentou defesa, não se pronunciou nem efectuou o pagamento voluntário da coima.
Ora, compulsados os autos de contraordenação n.º ...90, que deram origem aos presentes, contata-se que o afirmado pela Autoridade Administrativa encontra correspondência no processado. A “defesa” que a arguida/recorrente fez chegar aos autos, ocorreu em 27.01.2023 (cfr. fls. 11v.), i.e., em momento posterior à Decisão Administrativa (que data de 16.01.2023), pelo que, independentemente da denominação que a arguida lhe confere, não corresponde na sua materialidade ao exercício do direito de defesa a que ora nos reportamos (antes, à própria impugnação a Decisão Administrativa que viria a ser objecto de convite a aperfeiçoamento).
Por outro lado, da Decisão Administrativa, ao contrário do alegado pela arguida/recorrente, constam todos os elementos objectivos (e subjectivos) do tipo contraordenacional em presença.
Estabelece o n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC que «a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias».
Por seu lado, estabelece o artigo 181.º, n.º 1 do Código da Estrada que «a decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter: a) A identificação do infrator; b) A descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão; c) A indicação das normas violadas; d) A coima e a sanção acessória; e) A condenação em custas».
Cumprirá aferir em que termos se concretizam estas exigências por forma a confrontá-las com o teor da decisão administrativa impugnada. Caso se conclua que a decisão omitiu algum destes requisitos, cumprirá, então, extrair as devidas consequências.
Ainda que a lei não defina qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, tem-se entendido que o grau de fundamentação em causa não coincide inteiramente com aquele que resulta do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Por um lado, o Ilícito de Mera Ordenação Social tem reconhecidamente uma carga axiológicovalorativa menos intensa que no Direito Criminal, o que vem justificar que não se possa afirmar que, do ponto de vista constitucional, as garantias de defesa devem conhecer de equiparação nos ilícitos criminal e contraordenacional, atendendo à diferente natureza dos ilícitos – Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.ºs 659/2006 e 487/2009, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Este diferente enquadramento garantístico é compreensível desde logo se atendermos que, enquanto no Direito Penal está em causa a tutela de bens jurídicos com relevância penal, já as normas de mera ordenação social procuram tutelar «meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta dos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social», o que vai determinar que a vertente sancionatória seja conformada procedimentalmente com um cunho mais simplificado e menos formal que o processo penal – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.03.2011, Proc. 583/09.0T20BR.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Sem prejuízo do entendimento de que as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa possam ser menos profundas do que as colocadas no seio dos processos criminais – Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09.07.2009, Proc. 2761/08-1, acessível em www.dgsi.pt – é exigido um grau de fundamentação mínimo e indispensável ao efectivo exercício de defesa do arguido, sob pena de violação manifesta do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2011, Proc. 990/10.5T2OBR.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Na medida em que os requisitos ínsitos no artigo 58.º do RGCO aplicáveis à decisão condenatória contraordenacional têm em vista assegurar à arguida/recorrente a possibilidade de exercer o seu direito de defesa, então será necessário facultar-se um «conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos» - Cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3.ª edição, 2006, Vislis Editores, em anotação ao art. 58.º.De outra forma, dificilmente se compreenderia que a arguida/recorrente estivesse em condições de formular um juízo de oportunidade sobre a conveniência de futura e eventual impugnação judicial e, ainda, dificilmente se permitiria ao tribunal aferir do processo lógico seguido pela Autoridade Administrativa na decisão condenatória – Cfr. Oliveira Mendes e Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2ª Edição, Almedina, p. 157.
Compulsados os autos, e com pertinência para o que se vem discutindo, resulta do teor da decisão da Autoridade Administrativa:
Ora, do teor da decisão transcrita facilmente se afere constarem todos os elementos objectivos (e subjectivos) do tipo contraordenacional em presença.
Nessa medida, improcede a arguição de nulidades efectuada pela arguida/recorrente.
*
Não existem outras nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra, desde já, conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Factos Provados:
Com pertinência para apreciação da responsabilidade contraordenacional da arguida, mostram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 05.09.2021, pelas 13H36, na EN1, 128.04 Leiria – área deste Juízo Local Criminal – a arguida AA conduzia o veículo automóvel ligeiro com a matrícula ..-QP-...
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida circulava pelo menos a uma velocidade de 101 Km/h, correspondente à velocidade registada de 107 km/h, deduzida a margem de erro legalmente admissível, conforme verificado através do equipamento Jenoptik MultaRadar C, aprovado pelo IPQ (aprovação Modelo n.º 11.20.19.03.27, de 07Mai2020) e aprovado para uso pelo despacho n.º 3715/2017, da ANSR, de 17Mar, com verificação periódica do IPQ em 21.05.2021.
3. A velocidade permitida no local – fora de localidade – é de 60 Km/h.
4. A arguida não agiu com o cuidado a que estava legalmente obrigada e de que era capaz.
5. Do RIC da arguida nada consta.
Factos não provados:
Com relevância para a decisão do presente recurso de impugnação, inexistem factos por provar.
Motivação da matéria de facto:
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova coligida nos autos e examinada à luz das regras da experiência comum, mormente no teor do auto de contraordenação de fls. 1 a 3, certificado de verificação de fls. 4, notificação de fls. 5 a 6., Decisão de fls. 7 a 7v., notificação de fls. 8 a 10, recurso de impugnação de fls. 11 a 12v. aperfeiçoado a fls. 31 a 44v., parecer de fls. 18, e RIC de fls. 21, e ficha de fls. 19 a 20, os quais são de molde a sustentar a factualidade que supra deixámos consignada nos pontos 1 a 3 e 5 supra da rubrica “Factos provados” e, para além dela, através daquele que é um processo lógico-dedutivo, balizado pelas regras da experiência face aos demais factos provados, também a matéria que se fez consignar no ponto 4. de idêntica rubrica.
III – SUBSUNÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS:
À arguida AA foi aplicada pelo MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA – AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA –, como se disse, a coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias, pela prática de uma contraordenação, p. e p. pelos artigos 27.º, n.º 2, al. a), 2.º, e 28.º, n.ºs 1, al. b), e 5, 133.º, 136.º, 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada.
Do mencionado artigo 27.º e 28.º do Código da Estrada resulta que a arguida, ao circular a uma velocidade superior em mais de 30Km/h à legalmente permitida no local, infringiu tais prescrições, sendo sancionada com coima de (euro) 120 a (euro) 600.
Tal contra-ordenação, punível a título negligente (cfr. artigo 133.º do CE) – praticada pela arguida – é classificada como sendo grave [cfr. artigo 145.º, n.º 1, al. b) do Código da Estrada], sancionável, não só com coima, mas também com sanção acessória [cfr. artigo 138.º, n.º 1], sendo certo que a sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir [cfr. artigo 147.º, n.º 1], a qual, no caso em apreço, tem a duração mínima de 1 (um) mês e máxima de 1 (um) ano [n.º 2 do artigo 147.º do CE).
Ora, face ao exposto, temos que a Decisão Administrativa que aplicou ao arguido a coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias não pode deixar de ser tida como proporcional e adequada.
Com efeito, segundo decorre do artigo 139.º do CE, “1 - A medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contraordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos. 2 - Na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contraordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e a situação económica do infrator, quando for conhecida. (…)”.
No caso, tendo presente, por um lado, que a arguida actuou a título negligente e não detém antecedentes contraordenacionais, sem olvidar, por outro, o excesso da velocidade permitida, a coima aplicada cifra-se relativamente próximo do seu patamar inferior e a sanção acessória mesmo no seu limite mais baixo (sequer estando reunidos, no caso, os pressupostos para a suspensão da sua execução – cfr. artigo 141.º do CE).
Termos em que será de manter a Decisão Administrativa, sem prejuízo do seguinte: a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. artigo 1.º), abarcando, nomeadamente, as sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023 [artigo 2.º, n.º 2, al. a)]. Com efeito, especifica o seu artigo 5.º que “São perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 €”.
Tem sido entendimento dominantes, incluso da própria AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA, que o perdão em causa aplica-se independentemente da idade do infrator.
Ora, os factos pelos quais a arguida foi condenada pela Autoridade Administrativa –condenação ora mantida por este Tribunal Judicial – foram cometidos no dia 05.09.2021 e o limite máximo da contraordenação que lhe foi imputada não excede os indicados € 1.000,00.
Em face do exposto, ao abrigo do preceituado nos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, al. a) e 5.º, todos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, 127º e 128º, ambos do Código Penal, haverá que declarar perdoada a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias aplicada à arguida AA.
IV – DECISÃO:
Face ao exposto, e julgando totalmente improcedente o recurso apresentado pela arguida,
AA, decide-se:
a) manter a Decisão da Autoridade Administrativa que lhe aplicou, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 27.º, n.º 2, al. a), 2.º, e 28.º, n.ºs 1, al. b), e 5, 133.º, 136.º, 138.º e 147.º, todos do Código da Estrada, a coima de € 180,00 (cento e oitenta euros) e a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias;
Porém, uma vez transitada em julgado a presente Decisão:
b) Declarar perdoada a sanção acessória de inibição de conduzir por um período de 30 (trinta) dias aplicada à arguida AA.
Custas pela arguida/recorrente, que se fixam em 1 UC, de acordo com o disposto no artigo 94.º, n.º 3 do RGCO, e artigos 3.º, n.º 1, e 8.º, n.ºs 7 e 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
Notifique e Registe “
IV - Apreciação do mérito do recurso
Sustenta a recorrente, em primeiro lugar, que a decisão ora colocada em crise enferma de nulidade, por falta de fundamentação, nos termos previstos no artigo 379º., nº1 alínea a) por referência ao artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, aplicáveis por força da remissão prevista no artigo 41º., nº.1 do RGCO.
Estipula o artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, com a epígrafe “nulidades da sentença”, que:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
Por seu lado, prescreve o artigo 374º., do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “requisitos da sentença”:
“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
(…) 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
A sentença compõe-se de três partes, a saber: relatório, fundamentação e dispositivo.
Na fundamentação está, precisamente, a enumeração dos factos que consiste na explanação dos factos considerados provados e dos factos que não resultaram provados, por referência à factualidade narrada na acusação ou pronúncia, na contestação, e no pedido de indemnização, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa.
E, por seu lado, a exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve conter, de modo completo e conciso, a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, isto é, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros.
A fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional, no artigo 205º. nº. 1º. da Constituição da República Portuguesa, o qual estatui que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O objetivo de tal dever de fundamentação é permitir “a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina”, Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 294. Em sentido idêntico, vai o entendimento de Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal, Anotado, vol. II, pág.537.
É evidente que a fundamentação deverá ser adequada às circunstâncias do caso, podendo sê-lo de forma mais ou menos exigente, segundo critérios de razoabilidade, consoante a complexidade das questões e a função da decisão.
No caso vertente estamos perante um ilícito contraordenacional, a decisão, proferida mediante despacho judicial, contém a enumeração dos factos tidos por si como provados, a indicação que inexistem factos não provados, os concretos meios de prova – provas pré constituídas de natureza documental - devidamente identificados que permitem conhecer o percurso que possibilitou a convicção do tribunal para dar como provados os factos assim nela considerados.
Como tal, a decisão mostra-se fundamentada, ainda que de modo frugal, pelo que se conclui pela improcedência da alegada nulidade.
Entende, ainda, a recorrente que a decisão padece de nulidade por omissão de pronúncia, situação prevista na alínea c) do n.º 1 do supra referido artigo 379º. do Código de Processo Penal.
Em ordem a fundamentar esta pretensão, alega, para tanto, que o tribunal a quo não emitiu pronúncia sobre uma questão suscitada na impugnação judicial, a saber: não ser a arguida a “titular do documento de identificação do veículo, à data da prática dos factos, dado que só, em momento posterior, procedeu a aquisição da viatura e ao registo do correspondente direito.
A omissão de pronúncia significa, essencialmente, a ausência de posição ou decisão expressa sobre questões que foram submetidas pelas partes à apreciação do tribunal ou de que este deva conhecer oficiosamente.
Constitui entendimento reiteradamente afirmado, na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respetivas posições, na defesa das teses em presença.
Também haverá que ter presente que não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões se mostre prejudicado pela solução dada a outra questão apreciada.
Vejamos, então, se o Tribunal omitiu pronúncia devida relativa a questão de que deveria tomar conhecimento.
Estatui o artigo 118º. do Código da Estrada
“1 - Por cada veículo matriculado deve ser emitido um documento destinado a certificar a respetiva matrícula, donde constem as características que o permitam identificar.
2 - É titular do documento de identificação do veículo a pessoa, singular ou coletiva, em nome da qual o veículo for matriculado e que, na qualidade de proprietária ou a outro título jurídico, dele possa dispor, sendo responsável pela sua circulação.”
Dispõe o artigo 135º., do Código da Estrada:
“1 - São responsáveis pelas contraordenações rodoviárias os agentes que pratiquem os factos constitutivos das mesmas, designados em cada diploma legal, sem prejuízo das exceções e presunções expressamente previstas naqueles diplomas.
2 - As pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis nos termos da lei geral.
3 A responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:
a) Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução;
b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infrações que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infrações referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor;
c) Locatário, no caso de aluguer operacional de veículos, aluguer de longa duração ou locação financeira, pelas infrações referidas na alínea a) quando não for possível identificar o condutor;
d) Peão, relativamente às infrações que respeitem ao trânsito de peões.
4 - Se o titular do documento de identificação do veículo ou, nos casos previstos na alínea c) do número anterior, o locatário provar que o condutor o utilizou abusivamente ou infringiu as ordens, as instruções ou os termos da autorização concedida, cessa a sua responsabilidade, sendo responsável, neste caso, o condutor.”
Por sua vez, determina o artigo 171º. do mesmo diploma:
“1 - A identificação do arguido deve ser efetuada através da indicação de:
a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa coletiva, denominação social;
b) Domicílio fiscal;
c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respetivo serviço emissor e número de identificação fiscal;
d) Número do título de condução e respetivo serviço emissor;
e) (Revogada.)
f) Número e identificação do documento que titula o exercício da atividade, no âmbito da qual a infração foi praticada.
2 - Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.
3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infratora.
4 - O processo referido no n.º 2 é arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo.
5 - Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa coletiva, deve esta ser notificada para, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, ou, no caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, do locatário, com todos os elementos constantes do n.º 1 sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2.
6 - A pessoa coletiva, sempre que seja notificada para tal, deve, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação de quem conduzia o veículo no momento da prática da infração, indicando todos os elementos constantes do n.º 1, sob pena do processo correr contra a pessoa coletiva.
7 - No caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, quando for identificado o locatário, é este notificado para proceder à identificação do condutor, nos termos do número anterior, sob pena de o processo correr contra ele.
8 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado nos termos do n.º 2 do artigo 4.º”
Como decorre dos sobreditos normativos “sobre o titular do documento de identificação do veiculo” ( pessoa que consta no registo automóvel como proprietário do veículo em causa, )- impende a obrigação de quando notificada para tal identificar o condutor, não o fazendo estabelece-se uma presunção legal, e isto porque é razoável exigir ao “titularidade do documento de identificação do veículo” que tenha conhecimento de quem, no momento em que é praticada a infração, circulava com o seu veiculo na via pública.
Nos termos do artigo 349º. do Código Civil as “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
Sendo assim, a presunção assenta numa relação lógica estabelecida pelo legislador entre o facto-base (provado) e o facto presumido (desconhecido ou incerto), ou seja, o titular do direito de propriedade, pelo simples facto de ter o domínio da viatura, está habilitado a saber, ou a indagar, quem é que naquela data a conduzia.
Analisados os autos verifica-se que a infração imputada a arguida ocorreu no dia 5 de Setembro de 2021, consubstancia-se na circulação da viatura com a matrícula ..-QP-.., na via publica, com velocidade superior a permitida para o local.
Mais decorre do auto de notícia que não foi identificado o condutor da viatura no momento em que a mesma circulava em excesso de velocidade.
No dia 13 de Julho de 2022, foi dirigida à arguida uma notificação para identificar, no prazo concedido para a defesa, a pessoa responsável pala prática da infração.
Como decorre da análise dos autos a arguida não apresentou defesa, não se pronunciou e não efetuou o pagamento voluntário da coima e a entidade administrativa lançou mão da presunção legal estabelecido no supra referido artigo 171º. do Código da Estrada para imputar a responsabilidade contra-ordenacional à arguida.
Sustenta a recorrente que, à data dos factos, não era ela quem conduzia a viatura até porque não era a proprietária da viatura nem “era titular do documento de identificação do veículo e do correspondente direito”, uma vez que só, no dia 27 de Outubro de 2021, comprou a viatura à empresa A..., Lda., com o NIPC ...48, e, posteriormente, no dia 4 de Novembro de 2021, procedeu ao registo dessa aquisição a seu favor.
Esta questão foi colocada à apreciação do tribunal de 1ª. instância, na impugnação judicial da decisão administrativa, contudo, o tribunal recorrido chamado a pronunciar-se não tomou posição expressa sobre a mesma, sendo certo que se trata de questão que respeito à concreta relação material e processual submetida à cognição do tribunal - o thema decidendum- e não aos motivos ou argumentos alegados.
Por conseguinte, o tribunal incorreu em omissão de pronúncia, artigo 379º., nº. 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por não se conhecer da questão suscitada pela arguida, questão esta que era pertinente para a decisão final.
Por último, não se argumente que está vedado à arguida, em sede de impugnação judicial, discutir que não foi a autora da infração contra-ordenacional na vertente que defendeu: não ser titular do documento de identificação do veiculo e do correspondente direito” à data da prática dos factos, sob pena de colocar em causa um efetivo direito de defesa da visada e a norma do artigo 32º., nºs. 1 e 10, da Constituição da República Portuguesa.
Nesta conformidade, constatando-se a existência da nulidade prevista na alínea c) do nº .1 do aludido artigo 379º. do Código de Processo Penal, impõe-se a anulação da decisão e, após a produção das provas que se entender por conveniente, se profira decisão.
Fica prejudicado o conhecimento da restante questão.
V- Decisão
Pelo exposto, decide-se na 5ª. Secção do Tribunal da Relação de Coimbra concedendo provimento ao recurso, declarar a nulidade da decisão recorrida nos termos do artigo 379º. nº. 1 alínea c) do Código de Processo Penal, e consequentemente, após a produção de provas que se entender por conveniente, se profira decisão, em conformidade.
Sem tributação.
Notifique-se
Coimbra, 5 de Fevereiro 2025
Maria da Conceição Miranda
Cristina Pêgo Branco
Sandra Rocha Ferreira