Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2604/15.8T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
APLICAÇÃO DA LEI NOVA
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 09/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 703 CPC, 6 LEI Nº 41/2013 DE 26/6, 2, 18, 260 CRP
Sumário: 1.- Fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica.

2.- A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).

3.- Neste sentido, importa começar por sublinhar a legitimidade e plena justificação das expetativas dos titulares de documentos particulares a que a lei atribuiu expressamente força executiva na exequibilidade do título de que se muniram. A alteração ao CPC de então que veio reconhecer estes documentos como títulos executivos deve ser lida no contexto da evolução da legislação em matéria de ação executiva, e em especial no que respeita à definição dos títulos executivos, no sentido da diminuição das exigências formais para a concessão da característica de exequibilidade a documentos particulares.

4.- A aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

C(…) CRL., Exequente nos autos à margem referenciados e neles melhor identificada, tendo sido notificado do despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo apresentado e com ele não se conformando, veio dele interpor recurso de Apelação, alegando e concluindo que

(…)

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II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa as que constam do elemento narrativo dos Autos; destacando, em particular, que:

1 - No exercício da sua actividade creditícia, a Exequente ora apelante, concedeu aos executados um empréstimo no montante de 17.000,00€ (dezassete mil euros), destinado a financiar a actividade dos Executados.

2 - O empréstimo encontra-se titulado por contrato de mútuo com fiança, celebrado no dia 3 de Setembro de 2012, em Tabuaço - conforme Doc. 1 junto e se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.

3 - Para garantia do bom e integral pagamento do capital mutuado, juros, impostos, comissões, encargos e despesas, a Executada (…) constituiu-se como garante pessoal na qualidade de fiadora, assumindo solidariamente com os Executados e como principal pagadora todos as obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado.

4 - Interpelados para proceder à liquidação do capital mutuado e respectivos juros, os Executados não procederam à liquidação da dívida.

1 - No exercício da sua actividade creditícia, a Exequente ora apelante, concedeu aos executados um empréstimo no montante de 17.000,00€ (dezassete mil euros), destinado a financiar a actividade dos Executados.

2 - O empréstimo encontra-se titulado por contrato de mútuo com fiança, celebrado no dia 3 de Setembro de 201 2, em Tabuaço - conforme Doe. 1 que se junto e se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.

3 - Para garantia do bom e integral pagamento do capital mutuado, juros, impostos, comissões, encargos e despesas, o Executado (…) constituiu-se como garante pessoal na qualidade de fiadora, assumindo solidariamente com os Executados e como principal pagadora todos as obrigações decorrentes do contrato de mútuo celebrado.

4 - Interpelados para proceder à liquidação do capital mutuado e respectivos juros, os Executados não procederam à liquidação da dívida.

5 - Motivo pelo qual, no dia 30/04/2015 o Exequente, ora Apelante apresentou em juízo requerimento executivo para cobrança do respectivo crédito no montante total de 16.155,11 €, dando à execução o documento particular supra identificado.

6 - Sucede que, por decisão dotada de 06/05/2015, o tribunal o quo entendeu "indeferir liminarmente o requerimento executivo apresentado, nos termos do disposto no artigo 726.°, n.º 2, o) do CPC, por ser manifesto a falta do título".

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Não foram produzidas contra-alegações.

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Nos termos do art. 635º, do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608°, do mesmo Código.

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As questões suscitadas, na sua própria matriz constitutiva e redactorial, consistem em apreciar se:

I.

7)      A exclusão de determinado tipo de documentos do rol dos títulos executivos acarreta consigo não apenas a privação do acesso imediato à acção executiva, como também a privação da presunção de prova do direito de crédito.

8)      Ao entender como entendeu, o tribunal de 1ª instância desconsiderou as legítimas expectativas criadas pelo Exequente ora apelante, convencido de que a posse de um documento particular, legalmente dotado de exequibilidade no momento do sua constituição seria bastante para poder aceder, imediatamente, em caso de incumprimento por porte do devedor, à acção executiva.

9)      Pelo que, ao decidir pelo indeferimento do requerimento executivo, o tribunal o quo violou o princípio do segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição do República Portuguesa, na sua vertente subjectiva de princípio de protecção da confiança.

Apreciando, diga-se - pressuponentemente - que, em função do que se consagra no art. 2º CRP (Estado de Direito Democrático), a segurança jurídica não é específica do Estado de Direito. Basta recordar a garantia do caso julgado e do caso administrativo decidido, a prescrição aquisitiva e a extintiva em Direito Civil ou a prescrição do procedimento criminal. Mas é o Estado de Direito que lhe oferece um quadro institucional rigoroso o qual possa plenamente desenvolver.

Olhada no plano subjectivo, a segurança jurídica reconduz-se a protecção da confiança, tal como a jurisprudência a tem interpretado. Os cidadãos têm direito à protecção da confiança, da confiança que podem pôr nos actos do poder político que contendam com as suas esferas jurídicas. E o Estado fica vinculado a um dever de boa fé (ou seja, de cumprimento substantivo, e não meramente formal, das normas e de lealdade e respeito pelos particulares).

Não é apenas a Administração pública que lhe está sujeita (artigo 260.°, n.º 2, da Constituição) (e artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo). É o Estado e são quaisquer entidades públicas, em todas as suas actuações. Não faria sentido que, ao agir, como legislador, como decisor político, na ordem interna ou na ordem externa ou como tribunal, o Estado pudesse deixar de acatar esse imperativo.

É também a segurança jurídica um dos fundamentos da restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 282.°, n.º 4) e é ainda para tutela da confiança que o Tribunal Constitucional em vários acórdãos (dentre outros, n.ºs 232/94, 60/95, 499/97, 559/98, 221/00 e 38/2004) tem admitido recursos de decisões respeitantes a normas não impugnadas no processo [artigo 280.º, n.º 1, alínea b)], quando não era exigível que o recorrente, durante o processo, tivesse suscitado a questão de inconstitucionalidade (Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Edição, 2010, pp. 102-103).

Isto dito, e em conformidade, pois à emergência sinóptica das questões em perfil -, o que importa verificar é, também aqui, se esta aplicação imediata e para o futuro da exclusão do elenco dos títulos executivos dos documentos que tinham essa característica nos termos do artigo 46.º do CPC antigo afronta qualquer princípio constitucional.

O que, em perspectiva analítica decisória, nos reenvia, na apreciação do problema judiciário em perfil para a argumentação expendida, designadamente, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 161/2015, a que, declaradamente, se adere.

Deste modo, por reenvio inter-textual expressivo, assinale-se que:

«A alteração normativa em presença caracteriza-se pela aplicação para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes. Nestes casos, ainda que a nova regulação jurídica não substitua ex tunc a disciplina normativa existente, ela acaba por atingir posições jurídicas ou garantias geradas no passado e relativamente às quais os respetivos titulares formaram legítimas expetativas de não serem perturbados por um regime jurídico inovador. Trata-se da situação que a doutrina classifica de «retroatividade inautêntica» ou «retrospetiva».

É certo que o legislador pode legislar inovatoriamente, estando habilitado a alterar a lei processual (i.e., a lei por que se regem processos judiciais), mesmo quanto a pressupostos processuais ou a legitimidade ativa relativamente a factos passados, dentro de certos limites. De facto, não havendo «um direito à não-frustração de expetativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados» (Acórdão n.º 287/90, disponível, tal como os demais citados, em www.tribunalconstitucional.pt), bem se compreende, que o juízo da conformidade constitucional destes casos «dependerá essencialmente de uma ponderação de bens ou interesses em confronto» (J. Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 266).

Numa situação (também) como a objeto do presente processo um dos limites constitucionais à atuação do legislador é o princípio da segurança jurídica ou ao princípio da proteção da confiança. Com efeito, apesar de o texto da Constituição não aludir expressamente a este princípio, ele é pacificamente dedutível do princípio do Estado de Direito consagrado no seu artigo 2.º. A afirmação deste princípio significa que, num Estado de Direito, a atuação dos poderes públicos deve ser previsível e confiável.

Como o Tribunal Constitucional também salientou, no Acórdão n.º 862/2013:

«A proteção da confiança é uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.

Sustentado no princípio do “Estado de direito democrático”, o seu conteúdo tem sido construído pela jurisprudência, em avaliações e ponderações que têm em conta as circunstâncias do caso concreto».

As componentes subjetivas da segurança exigem «calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos» (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, p. 257). Só a perspetivação do futuro permite a organização do plano de vida de cada um.

Conforme vem sendo afirmado pelo Tribunal Constitucional «fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/2003)» (Acórdão n.º 355/2013).

A questão que deve ser colocada é, então, saber se a norma em causa afeta, de forma inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expetativas legitimamente fundadas dos cidadãos, traduzindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito – i.e. uma violação do princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP (cfr., v.g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 11/83, 10/84, 287/90, 330/90, 486/96, 559/98, 556/2003, 128/2009, 188/2009, 399/2010, 3/2011, 396/2011 e 355/2013). A jurisprudência do Tribunal Constitucional definiu os critérios para aferir se a afetação da confiança legítima dos cidadãos em causa é ou não constitucionalmente admissível (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.os 287/90, 303/90, 399/2010, 396/2011 e 355/2013).

Seguindo a metodologia adotada na jurisprudência do Tribunal Constitucional, importa começar por formular um juízo sobre a legitimidade das expetativas dos cidadãos visados. Neste âmbito, é necessário que i) as expetativas dos particulares sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, que ii) o Estado (em especial, o legislador) tenha atuado de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade, e que iii) os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta essa expetativa de continuidade de comportamento estadual materializados ou traduzidos em atuações concretas (cfr. Acórdão n.º 355/2013). Confirmada a legitimidade da confiança deve, então, avançar-se para a ponderação sobre a prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expetativa legítima) sacrificado pela mesma (cfr. Acórdãos n.os 556/2003 e 355/2013). Este juízo implica também a aferição da medida da afetação da confiança – relativamente a interesses públicos prevalecentes – no sentido de esta não poder ser desrazoável ou excessiva (Cfr. Acórdão n.º 355/2013). Neste âmbito deve recorrer-se a um raciocínio de ponderação semelhante ao efetuado quanto ao princípio da proporcionalidade

Em suma, de acordo com o Acórdão n.º 287/90:

«a ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

Afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão)».

Aqui chegados, cumpre transpor para a norma em apreciação os padrões de aferição da conformidade das normas infraconstitucionais com o princípio paramétrico da proteção da confiança.

Neste sentido, importa começar por sublinhar a legitimidade e plena justificação das expetativas dos titulares de documentos particulares a que a lei atribuiu expressamente força executiva na exequibilidade do título de que se muniram. A alteração ao CPC de então que veio reconhecer estes documentos como títulos executivos deve ser lida no contexto da evolução da legislação em matéria de ação executiva, e em especial no que respeita à definição dos títulos executivos, no sentido da diminuição das exigências formais para a concessão da característica de exequibilidade a documentos particulares. A extensão da exequibilidade aos documentos particulares constitutivos da obrigação de entrega de coisas fungíveis, com a reforma de 1961, a que se seguiu a dispensa de reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques de valor inferior à alçada da Relação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 533/77, de 30 de dezembro, mais tarde alargada a todos os títulos de crédito, independentemente do valor por via do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de julho, culminando no alargamento da exequibilidade de documentos particulares relativos a obrigações pecuniárias de montante «determinável por simples cálculo aritmético», ou documentos relativos a obrigações de entrega de «coisas móveis infungíveis» e ainda às obrigações de «prestação de facto positivo ou negativo» com dispensa generalizada de reconhecimento notarial, bastando a imputação ao executado da assinatura nele inscrita, desde que do seu conteúdo derive o reconhecimento ou a constituição de alguma das obrigações previstas, inserem-se numa «linha que revela a tendência do legislador para a ampliação do âmbito de influência direta da ação executiva, sem intermediação da ação declarativa» (A. S. Abrantes Geraldes, “Títulos Executivo”, in A Reforma da Ação Executiva, Thémis, ano IV – n.º 7 – 2003, pp. 38-39).

De concluir será, portanto, que, nesta matéria, o legislador atuou de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade que os determinaram à realização de planos de vida, pressupondo a continuidade do comportamento estadual. A concretização dos ditos planos traduziu-se no municiamento com documento bastante (à data da formação do título) para garantir a imediata execução do seu crédito, através da recolha de um documento particular de reconhecimento de dívida assinado pelo devedor. Os cidadãos atuaram de acordo com um comportamento social normal, respeitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse retirado o valor de título executivo a esses documentos.

Como nota o Ministério Público nas alegações produzidas nesses autos, «muitos dos credores que são, presentemente, titulares de um mero documento particular (assinado pelo devedor, e que importe constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes), que à data da sua constituição consubstanciava título executivo, poderiam, oportunamente – caso fosse previsível a alteração legislativa sob escrutínio -, ter obtido, dos devedores, a subscrição de documento formalmente mais exigente (máxime documento exarado ou autenticado por notário), cuja exequibilidade não seria, assim, eliminada».

 

Facilmente se deduzirá, por conseguinte, que os credores que aceitaram os documentos particulares assinados pelos devedores como garantias dos seus créditos, dotadas de exequibilidade, determinaram os seus atos/negócios na convicção de que o legislador manteria as regras por si criadas, não retirando aos aludidos documentos, imprevisivelmente, a natureza que possuíam à data da sua constituição.

Demonstrada a verificação de uma mutação inesperada da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não podiam contar, o que causou uma afetação das suas legítimas expetativas, cabe, portanto, apreciar se existem razões de interesse público que justifiquem aquela afetação. E mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança do regime legal vigente, ainda assim será necessário aferir se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdão n.º 287/90).

É o que procuraremos avaliar de seguida.

Aceita-se, sem esforço, que a opção por um elenco mais modesto dos títulos executivos valoriza a segurança jurídica, impondo, por exemplo, maiores cautelas formais na verificação da autenticidade das declarações ou assinaturas constantes dos documentos ou obrigando à propositura da ação declarativa. Uma tal opção legislativa corporiza, portanto, um interesse público legítimo e relevante. Tanto mais quando não é possível ignorar que a exequibilidade dos documentos particulares, nos moldes que resultavam da anterior redação do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC, potencia o risco de interposição de execuções por quem não seja titular de um direito de crédito. Como observado por António Santos Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 41), «generalizada a dispensa de qualquer intervenção notarial suscetível de confirmar a autenticidade da assinatura e fundada a exequibilidade apenas na apresentação de um documento imputado ao executado, ninguém está livre de ser demandado em ação executiva com base em documento viciado ou abusivamente utilizado».

Independentemente de outros propósitos que possam ter estado na origem da implementação desta alteração legislativa, não pode ser negado que com ela o legislador procurou atenuar aquele risco, como decorre do que, a propósito, consta da “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 113/XII que veio a dar origem à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil:

«Relativamente à ação executiva, mantendo-se o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, a intervenção legislativa é feita em diversos planos.

Desde logo, é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.

Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente».

A medida legislativa em apreciação tem portanto a virtualidade de libertar o executado da necessidade de se defender de atos de agressão da sua esfera patrimonial diante de execuções abusivamente instauradas, o que, sem prejuízo do direito do exequente a instaurar execução com base no título executivo de que dispõe, também constitui direito merecedor de proteção à luz da Constituição.

Compreende-se, pois, a solução normativa em apreciação à luz do interesse público invocado. Mesmo considerando a maior morosidade no exercício do direito de crédito que ela acarreta em prejuízo da sua eficácia, a solução encontrada estabelece um compromisso entre celeridade e segurança que respeita os limites da liberdade de conformação do legislador. Ao garantir o direito de acesso aos tribunais, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, não garante o direito a um determinado tipo de processo. Ora, a restrição ao direito de ação que a norma em análise implica traduz-se tão-só na eliminação da via executiva como via imediata de satisfação do crédito. Subsiste sempre a via geral do processo de declaração, além da via simplificada do processo de injunção.

Recorde-se, porém, que a questão de constitucionalidade que é suscitada não reside na limitação do elenco dos títulos executivos. Ela incide, sim, na aplicação do novo elenco legal dos títulos executivos aos documentos constituídos no passado e que anteriormente eram dotados de força executiva. É, portanto, no confronto entre o interesse público em evitar execuções injustas e o interesse particular em manter a força executiva do documento que titula o crédito que se joga a apreciação da proporcionalidade da solução encontrada.

Nesta ponderação importa reter que o risco de instauração de execuções injustas por parte do credor munido de simples documento constitutivo de dívida assinado pelo devedor pode ser - e tem efetivamente sido -, contrabalançado por variadas soluções legislativas. Desde logo, a previsão da possibilidade de deduzir oposição à execução (embargos de executado) a garantir o pleno exercício do contraditório por parte do executado (artigo 816.º do CPC antigo e artigo 731.º do CPC novo). Ou a faculdade concedida ao juiz de, na sequência de dedução de oposição à execução com simples fundamento na falta de autenticidade da assinatura imputada ao executado, ordenar a suspensão da execução caso seja apresentado documento que constitua indício de prova revelador da viabilidade da oposição (artigo 818.º do CPC antigo e artigo 733.º do CPC novo) ou ainda a penalização do exequente que atue sem a prudência exigível (artigo 819.º do CPC antigo).

Diferentemente, a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva pode deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito.

Ainda que subsistam outras vias de acesso ao direito, como o processo de injunção ou a ação declarativa, o credor deixa de poder contar com a presunção de prova da dívida que lhe oferecia o documento munido de força executiva.

Na verdade, não deve ignorar-se que o direito de ação executiva, materializado no título executivo, pressupõe a presunção da prova da dívida. Por conseguinte, a exclusão de determinado tipo de documento do rol dos títulos executivos acarreta consigo não apenas a privação do acesso imediato à ação executiva como também a privação da presunção de prova do direito de crédito.

Apesar de o título executivo não se confundir com o documento que o materializa, a função probatória do documento constitui pressuposto da sua função executiva. Como sublinhado por José Lebre de Freitas, «o título executivo extrajudicial constitui documento probatório da declaração de vontade constitutiva duma obrigação ou duma declaração direta ou indiretamente probatória do facto constitutivo duma obrigação e é este seu valor probatório que leva a atribuir-lhe exequibilidade» (A Ação Executiva cit., pp. 83-84). É por isso que o documento constitui a base da ação executiva, independentemente da atual existência da obrigação, a qual não é, por via de regra, questionada neste tipo de ação.

Se em si mesma esta perda do benefício de uma presunção da prova de um direito se contém na liberdade de conformação do legislador, a incidência do novo regime jurídico sobre situações jurídicas constituídas no passado exige, todavia, uma ponderação de interesses contrapostos, constituídos, por um lado, pelas expetativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente e, por outro, pelas razões de interesse público que justificam a alteração das soluções legislativas. Nessa ponderação assume especial relevância a lesão ao interesse particular legítimo, na medida em que esta constitui uma ablação do valor de título executivo do documento particular que possui. A esta relevância da lesão do interesse particular contrapõe-se a prossecução de um interesse público de particular relevância que pode ser alcançado com um nível similar de eficácia através de meios menos lesivos ou numa escala temporal maior.

Assim, no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do credor particular (que pode ficar sem possibilidade de fazer valer o seu crédito), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado. Ora, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo. Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas.

Não se trata de exigir que a atribuição de força executiva a um documento particular por uma lei revogada tenha de ser garantida até à extinção da última execução baseada num desses títulos e ainda por instaurar. Na verdade, bastaria a previsão de um período de tempo após a publicação da nova lei durante o qual fosse permitido aos titulares de tais documentos instaurar execuções com base neles para assegurar a devida proteção da sua legítima confiança na estabilidade do ordenamento jurídico.

Conclui-se, assim, que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.

 

Não havendo motivo para alterar o julgado, cumpre reiterar, no âmbito do presente recurso, o juízo de inconstitucionalidade com os mesmos fundamentos.

Daí que, em tais termos, se justifique - como no Acórdão em referência - continuar a julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2.º da Constituição, a norma resultante dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961.

Ou, em formulação que lhe atribuem J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. 1º, 4ª Edição Revista, p. 206 não pode deixar e significar que «tendo essencialmente uma função aglutinadora e sintetizadora, o preceito do Estado de direito democrático, em princípio, não produz normas com determinibilidade autónoma, ou seja, normas que não encontrem tradução em outras disposições constitucionais. Mas não está à partida excluída a possibilidade de colher dele normas que não tenham expressão directa em qualquer outro dispositivo constitucional, desde que elas se apresentem como consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado). Aí caberão, entre outros: um direito geral à reparação de danos (de que são expressão parcial os arts. 22° e 37°-4); o direito de ser ouvido em todos os processos de decisão que contendam com os direitos ou interesses legítimos de uma pessoa (cfr. art. 268°-3), incluindo o direito de defesa em todo o processo sancionatório (cfr. arts, 28°-1 e 32°-1) e o direito de contraditório em todo o contencioso susceptível de afectar direitos ou interesses legítimos; a autonomia de organização colectiva privada (cfr. art. 48°-1 e 2); a proibição de leis retroactivas lesivas de direitos ou interesses legítimos dos cidadãos (cfr. arts. 18°-3 e 103°/3); o direito à notificação de decisões judiciais; o direito de recurso a tribunais contra todo o acto lesivo de direitos ou interesses; a liberdade de trabalho; a proibição de leis restritivas e de intervenções restritivas de direitos, liberdades e garantias desnecessárias, desadequadas e desproporcionadas; a irrevogabilidade dos actos administrativos constitutivos de direitos (cfr. AcsTC nºs 634/93, 187/01 e 200/01)».

O que determina, consequentemente, atribuir resposta afirmativa às questões em I. formuladas.

***

Podendo, assim, concluir-se, sumariando (art. 663º. Nº7 NCPC), que:

1.

Fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica.

2.

A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios: afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).

3.

Neste sentido, importa começar por sublinhar a legitimidade e plena justificação das expetativas dos titulares de documentos particulares a que a lei atribuiu expressamente força executiva na exequibilidade do título de que se muniram. A alteração ao CPC de então que veio reconhecer estes documentos como títulos executivos deve ser lida no contexto da evolução da legislação em matéria de ação executiva, e em especial no que respeita à definição dos títulos executivos, no sentido da diminuição das exigências formais para a concessão da característica de exequibilidade a documentos particulares.

4.

Inserem-se numa «linha que revela a tendência do legislador para a ampliação do âmbito de influência direta da ação executiva, sem intermediação da ação declarativa.

5.

Nesta matéria, o legislador atuou de forma a gerar nos particulares expetativas de continuidade que os determinaram à realização de planos de vida, pressupondo a continuidade do comportamento estadual. A concretização dos ditos planos traduziu-se no municiamento com documento bastante (à data da formação do título) para garantir a imediata execução do seu crédito, através da recolha de um documento particular de reconhecimento de dívida assinado pelo devedor. Os cidadãos atuaram de acordo com um comportamento social normal, respeitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse retirado o valor de título executivo a esses documentos.

6.

Os credores que aceitaram os documentos particulares assinados pelos devedores como garantias dos seus créditos, dotadas de exequibilidade, determinaram os seus atos/negócios na convicção de que o legislador manteria as regras por si criadas, não retirando aos aludidos documentos, imprevisivelmente, a natureza que possuíam à data da sua constituição.

7.

Generalizada a dispensa de qualquer intervenção notarial suscetível de confirmar a autenticidade da assinatura e fundada a exequibilidade apenas na apresentação de um documento imputado ao executado, ninguém está livre de ser demandado em ação executiva com base em documento viciado ou abusivamente utilizado. Independentemente de outros propósitos que possam ter estado na origem da implementação desta alteração legislativa, não pode ser negado que com ela o legislador procurou atenuar aquele risco, como decorre do que, a propósito, consta da “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 113/XII que veio a dar origem à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil.

8.

Relativamente à ação executiva, mantendo-se o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, a intervenção legislativa é feita em diversos planos. Desde logo, é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório.

9.

Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório. Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais.

10.

A medida legislativa em apreciação tem portanto a virtualidade de libertar o executado da necessidade de se defender de atos de agressão da sua esfera patrimonial diante de execuções abusivamente instauradas, o que, sem prejuízo do direito do exequente a instaurar execução com base no título executivo de que dispõe, também constitui direito merecedor de proteção à luz da Constituição.

11.

Ao garantir o direito de acesso aos tribunais, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, não garante o direito a um determinado tipo de processo. Ora, a restrição ao direito de ação que a norma em análise implica traduz-se tão-só na eliminação da via executiva como via imediata de satisfação do crédito. Subsiste sempre a via geral do processo de declaração, além da via simplificada do processo de injunção.

12.

Diferentemente, a imprevista eliminação de exequibilidade a um documento que anteriormente era dotado de força executiva pode deixar o credor em sérias dificuldades (senão mesmo privado de meios) para ver satisfeito o seu direito de crédito. Ainda que subsistam outras vias de acesso ao direito, como o processo de injunção ou a ação declarativa, o credor deixa de poder contar com a presunção de prova da dívida que lhe oferecia o documento munido de força executiva.

13.

Apesar de o título executivo não se confundir com o documento que o materializa, a função probatória do documento constitui pressuposto da sua função executiva. Como sublinhado, o título executivo extrajudicial constitui documento probatório da declaração de vontade constitutiva duma obrigação ou duma declaração direta ou indiretamente probatória do facto constitutivo duma obrigação e é este seu valor probatório que leva a atribuir-lhe exequibilidade. É por isso que o documento constitui a base da ação executiva, independentemente da atual existência da obrigação, a qual não é, por via de regra, questionada neste tipo de ação.

14.

No juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do credor particular (que pode ficar sem possibilidade de fazer valer o seu crédito), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado. Ora, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo. Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que bastaria a previsão de um regime transitório adequado para acautelar as expetativas legítimas dos titulares de títulos executivos que perderam essa natureza, sem descurar o interesse público que reside na eliminação de execuções injustas.

15.

A aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição. Não havendo motivo para alterar o julgado, cumpre reiterar, no âmbito do presente recurso, o juízo de inconstitucionalidade com os mesmos fundamentos.

***

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao recurso interposto, revogando-se a decisão proferida, ordenando-se o prosseguimento dos Autos, com todas as legais consequências.

Sem Custas.

***

António Carvalho Martins ( Relator )

Carlos Moreira

Anabela Luna de Carvalho