Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALEXANDRA GUINÉ | ||
Descritores: | CRIME DE BURLA QUALIFICADA IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO E DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA DO TRIBUNAL PRINCÍPIOS NE BIS IN IDEM E DO CASO JULGADO ENCERRAMENTO DA PRODUÇÃO DE PROVA REAGENDAMENTO DA AUDIÊNCIA DECLARAÇÕES DE ARGUIDOS - DISPENSABILIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 4 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 26.º, 30º, 77º, 217.º, N.º1, 218.º, N.º1 E 2, ALÍNEA B), TODOS DO CÓDIGO PENAL; ART.ºS 119.º, AL. C), E 120.º N.º 1 AL. D), 127.º,187.º E 188.º, 269.º, N.º 1, AL. E), 332.º, N.º 5, 412º, 417º, DO CPP; ARTS. 2.º, 18.º, 32.º, N.º 1, E 20.º, N.º 4, TODOS DA CRP; ART.º 6º DA LEI Nº 41/2004, DE 18 DE AGOSTO; ART.º 10.º DA LEI Nº 23/96, DE 26 DE JULHO | ||
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Sumário: | 1 - Os arguidos recorrentes estiveram presentes em anteriores sessões da audiência de julgamento, tendo prestado declarações, reservando-se embora o direito de, sobre parte do objeto do processo, apenas se pronunciarem após a realização de outras diligências de prova.
2 - Mesmo que sejam justificadas as faltas às sessões designadas para a continuação da audiência de julgamento, desconhecendo-se quando é que o(s) arguido(s) poderia(m) voltar a comparecer em Tribunal, e ponderando o risco de prescrição e do protelar do julgamento e a possibilidade de os arguidos apresentarem memoriais ou prestarem últimas declarações não se verifica uma compressão ou limitação desproporcionada do núcleo essencial dos direitos de audição, de defesa e de contraditório, na continuação da audiência de julgamento sem a presença dos arguidos. 3 - Na observância do princípio do acusatório e da vinculação temática do Tribunal uma vez que na primeira acusação o Ministério Público não imputou ao arguido a factualidade integradora dos crimes objeto dos presentes autos, nem estes poderiam ser conhecidos pelo Tribunal, nem o Tribunal poderia sindicar a oportunidade da imputação dos crimes - a que se referem os presentes autos - ser feita na primeira acusação, devendo, antes, conhecer todo o objeto do processo que foi sujeito à sua apreciação. 4 - Sendo a vítima a interlocutora e destinatária da comunicação telefónica ou outra, considera-se justificada a divulgação de todos os dados da comunicação, precisamente, porque é a própria comunicação o meio utilizado para cometer um crime, sem que haja intromissão ilícita nas telecomunicações que necessite de salvaguarda, porque não há sequer intromissão nem há violação à reserva constitucional da privacidade, mas antes um telefonema, visando o cometimento do crime, não podendo falar-se de uma conversa privada, tutelada pelo direito. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em audiência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório
1. Nos autos de processo comum coletivo a correr os seus termos sob o n.º 1515/08.8TACBR no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo Central Criminal de Viseu - Juiz 4 - a que se referem os presentes autos de recurso foi proferido despacho datado de 14.11.2024 de não reagendamento da audiência designada para o dia 15.11.2024, sendo ainda proferido despacho datado de 15.11.2024, indeferindo a arguição de nulidade suscitada nessa audiência por ter sido encerrada a produção de prova, sem que os arguidos estivessem presentes e pudessem completar as suas declarações.
2. Realizada a audiência de julgamento foi mediante Acórdão, datado de 09.01.2025, decidido: AA 1) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1 e 2, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, pelos factos respeitantes ao caso SOBEYS #871" – 16.08.2007; 2) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1 e 2, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) e 6 (seis) meses de prisão, pelos factos respeitantes ao caso CHANGE BD" – 13.12.2007; 3) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1 e 2, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) e 4 (quatro) meses de prisão, pelos factos respeitantes ao caso THE MONEY SHOP" – 27.12.2007; 4) Em cúmulo jurídico das penas referidas nos pontos 1), 2) e 3) condenar o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. BB 5) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, pelos factos respeitantes ao caso SOBEYS #871" – 16.08.2007; 6) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, pelos factos respeitantes ao caso CHANGE BD" – 13.12.2007; 7) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, pelos factos respeitantes ao caso THE MONEY SHOP" – 27.12.2007; 8) Em cúmulo jurídico das penas referidas nos pontos 5), 6) e 7) condenar o arguido BB na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva. CC 9) Condenar o arguido CC pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, pelos factos respeitantes ao caso SOBEYS #871" – 16.08.2007; DD 10) Condenar a arguida DD pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, pelos factos respeitantes ao caso CHANGE BD" – 13.12.2007; EE 11) Condenar a arguida EE pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, pelos factos respeitantes ao caso MONEY SHOP" – 27.12.2007; 12) Declarar a perda a favor do Estado das vantagens obtidas pelos arguidos e, em consequência, condenar os arguidos a pagar ao Estado Português os seguintes montantes: a) Os arguidos AA e BB, solidariamente, a quantia global de 22.087,45€ (vinte e dois mil e oitenta e sete euros e quarenta e cinco cêntimos); b) O arguido CC a quantia de 3.779,97€ (três mil setecentos e setenta e nove euros e noventa e sete cêntimos); c) A arguida DD a quantia global de 9.700,00€ (nove mil e setecentos euros); d) A arguida EE a quantia global de 5.306,59€ (cinco mil trezentos e seis euros e cinquenta e nove cêntimos).
3. Inconformados recorreram os arguidos BB e DD dos despachos datados de 14.11.2024 e de 15.11.2025, apresentando as seguintes conclusões:
«III – CONCLUSÕES A. O objeto do presente recurso é constituído pelos despachos de 14/11 e de 15/11, supra transcritos nos n.os 10 e 12. B. Vários dados são incontroversos: i) a audiência de julgamento no âmbito dos presentes autos esteve interrompida desde 12/07/2018 até 06/09/2024, por razões a que os Arguidos foram alheios, tendo a ver, a um tempo, com a demora na tramitação de cartas rogatórias para inquirição de testemunhas arroladas pelo Ministério Público, a outro tempo, pelo atraso na obtenção de elementos e subsequentes esclarecimentos por parte da Polícia Judiciária; ii) a audiência foi interrompida em 12/07/2018 porquanto os Arguidos, ora Recorrentes, quiseram prestar declarações sobre o teor de escutas telefónicas com que foram confrontados, o que não puderam/quiseram então fazer por se terem verificado discrepâncias – devidamente assinaladas pelo Tribunal – que cabia à Polícia Judiciária esclarecer, após o que declararam querer prestá-las, tudo como está consignado na ata respetiva; iii) a falta do Arguido BB às audiências de 24/10 e de 15/11 teve a ver com o seu estado de doente oncológico, submetido a intervenções cirúrgicas torácicas de urgência nos passados dias 28/08 e 29/08, a que se seguiu a um período de convalescença com sessões de quimioterapia e consultas marcadas, entre outras, para as datas designadas para as sessões de 24/10 e 15/11; a falta da Arguida DD deveu-se ao facto de ser ela quem acompanha o Pai nas consultas/tratamentos no IPO ...; ambos os Arguidos declararam não prescindir de estar presentes na audiência e nela prestarem as declarações sobre as escutas telefónicas com que foram confrontadas na pretérita sessão de 12/07/2018; iv) após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido o Arguido BB, foi inicialmente previsto um tempo de recuperação de 4 semanas (cfr. declaração médica de 01/09/2024 junta por requerimento de 02/09/2024), mas, posteriormente, tendo-se complicado a convalescença do Arguido, foi, em 25/10/2024, emitida nova declaração médica pelo IPO ..., donde consta que o Arguido “encontra-se a cumprir plano de tratamentos nesta instituição e desaconselham-se quaisquer deslocações que não as estritamente necessárias para os tratamentos previstos, previsivelmente até ao final do mês de novembro” (cfr. declaração médica junta com o requerimento de 12/11); v) o Tribunal considerou justificadas as faltas dos Arguidos às sessões de 24/10 e 15/11, não tendo posto em causa a genuinidade da doença do Arguido, tendo mesmo consignado não ser “indiferente às razões invocadas e muito menos insensível ao atual estado de saúde do Arguido BB” – cfr. despacho recorrido de 14/11; vi) porém, o Tribunal entendeu que não havia motivo nem para adiar a sessão de 15/11, nem para não encerrar a produção da prova (apesar da falta dos Arguidos e do seu desejo de prestar declarações sobre a matéria das escutas). C. Vejamos em seguida quais foram os fundamentos subjacentes aos despachos recorridos invocados pelo Tribunal: a) a natureza urgente do processo por haver perigo de prescrição (a ocorrer entre dezembro de 2025 e abril de 2026), não podendo o Tribunal aguardar ad eternum que os Arguidos estejam em condições de poder prestar declarações; b) o facto de ao Arguido BB incumbir impedir que o tratamento fosse marcado para 15/11, dia da sessão de audiência de julgamento (item em que seguiu a promoção do Ministério Público de 13/11); c) terem ainda os Arguidos a possibilidade de apresentar memoriais ao abrigo do art. 98.º, n.º 1, do CPP, e de prestar declarações, findas as alegações, nos termos do art. 348.º, n.º 1, do CPP; d) não ser indispensável a sua presença em audiência, por já terem prestado declarações. D. A matéria em causa não é de tratamento fácil, até porque não há norma expressa que preveja a situação em apreço. Compreende-se a preocupação do Tribunal em garantir a prossecução da ação da justiça e a realização da audiência de julgamento; mas tal louvável objetivo não pode ser feito a todo o custo, designadamente pondo em causa o exercício de direitos fundamentais, que foi o que, ressalvado o devido respeito, aconteceu no caso dos autos. E. Há mesmo um sentido de proporcionalidade e de bom senso que não esteve presente, tendo em conta que esta audiência de julgamento esteve interrompida durante seis anos por razões a que os Arguidos foram alheios, estando agora em causa apenas uma interrupção por um período de dois ou três meses (os Arguidos faltaram às sessões de 24/10 e de 15/11, pretendendo a sua continuação para janeiro, data em que previsivelmente o Arguido BB já estaria em condições de poder prestar declarações, não excluindo a possibilidade disso poder acontecer ainda em dezembro). F. À luz da compatibilização dos vários direitos e interesses em presença, os despachos recorridos fizeram má aplicação do direito ao caso concreto. G. Vejamos um a um os argumentos utilizados. Primeiro: a questão do risco de prescrição. Não nos parece que esse risco fosse iminente, se o julgamento fosse concluído em janeiro de 2025, como pedido. Em qualquer caso, se esse risco legitima que ao processo tenha sido atribuída natureza urgente e justifica que o tribunal adote as medidas necessárias para o acautelar, isso não pode ser feito à custa de direitos fundamentais do arguido. Acresce que, in casu, aquilo que fundamentalmente contribuiu para esse risco foram circunstâncias completamente alheias aos Arguidos, como decorre do facto de esta audiência de julgamento ter estado interrompida durante seis anos (!). Quanto ao argumento de o julgamento não poder aguardar ad eternum, os Arguidos também estão de acordo; porém, pedir que uma audiência marcada para novembro passasse para janeiro não tem nada a ver com uma tramitação ad eternum. De todo o modo, importa ainda recordar que, caso os pedidos dos ora Recorrentes se revelassem abusivos ou dilatórios – o que não aconteceu –, sempre poderia o Tribunal ultrapassar a questão lançando mão dos mecanismos legais previstos quanto a demoras abusivas, designadamente os previstos nos arts. 6.º, n.º 1, 618.º e 670.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 4.º do CPP. H. Segundo: a questão de ao Arguido caber impedir a marcação de tratamentos para dias designados para a realização da audiência de julgamento. É um argumento surpreendente e até chocante, porque revela elementar falta de compaixão. Os tratamentos em causa não se reportam a matéria corriqueira ou despicienda. São tratamentos oncológicos de um doente que foi submetido a duas cirurgias torácicas. Parece evidente que, nesse contexto, perante consultas marcadas por um hospital público – que não perguntam ao doente qual é a data da sua conveniência, marcando os tratamentos de acordo com as disponibilidades dos serviços e as necessidades do doente –, não é exigível ao arguido doente que peça ou sugira uma alteração de data para poder estar presente na audiência de julgamento. Ademais, a justificação da ausência não tem apenas a ver com as consultas, mas com o seu estado de convalescença, que desaconselhava quaisquer deslocações que não fossem para realizar os tratamentos. I. Terceiro: a questão dos memoriais e das últimas declarações de arguido. Os memoriais são uma faculdade do arguido, cabendo-lhe avaliar se a deve usar ou não. Se o arguido entende que quer prestar declarações sobre determinada matéria, é esse direito que tem de ser respeitado. De resto, o Arguido BB nem tem atualmente condições intelectuais para se exprimir adequadamente através de memoriais. Quanto às últimas declarações, a prestar ao abrigo do art. 348.º, n.º 1, do CPP, estas ocorrem já após o encerramento da produção de prova e a prolação das alegações finais do defensor, não substituindo as declarações prestadas durante a fase de produção de prova, devidamente escrutinadas pelo seu defensor, que, a partir delas, até pode ter necessidade de requerer outras diligências de prova. J. Quarto: a questão da não indispensabilidade da presença dos Arguidos em audiência. Este é o único argumento invocado que teria base legal, nos termos do art. 332.º, n.º 5, do CPP, já que, com o fundamento aí previsto, o tribunal pode efetivamente prosseguir a audiência até final, mesmo sem a presença do arguido, se o arguido já tiver sido interrogado e o tribunal não considerar indispensável a sua presença. Os restantes argumentos acabam por ser meros obiter dictum. A questão fundamental do presente recurso é por isso a de saber se o tribunal poderia ou não ter prosseguido a audiência sem os Arguidos estarem presentes, quando os mesmos declararam querer estar presentes para continuarem a prestar declarações, as quais haviam sido interrompidas por motivo a que foram alheios. K. In casu, não se mostra preenchido um dos requisitos para que o Tribunal pudesse prosseguir a audiência sem os Arguidos, ora Recorrentes, estarem presentes e prestarem as declarações que queriam prestar, porque a isso se opõe o regime do art. 332.º, n.º 5, do CPP, que pressupõe dois requisitos cumulativos: i) o arguido já ter sido interrogado; ii) o tribunal não considerar indispensável a sua presença. Ora, mesmo que o Tribunal considerasse não indispensável a presença dos Arguidos, o certo é que os mesmos ainda não haviam completado as suas declarações, as quais haviam sido interrompidas em 12/07/2018 por motivo a que foram alheios. Assim sendo, faltaria sempre um dos requisitos que a lei exige para que o processo pudesse continuar até final sem a presença dos arguidos. L. Em suma, os despachos recorridos, quer quando não foi reagendada a audiência de 15/11 – o despacho de 14/11 –, quer quando foi indeferida a arguição de nulidade suscitada nessa audiência por ter sido encerrada a produção de prova, sem que os Arguidos estivessem presentes e pudessem completar as suas declarações (que haviam sido interrompidas por motivo a que foram alheios) – por despacho proferido em ata de 15/11 –, violaram o regime do art. 332.º, n.º 5, do CPP, na medida em que determinaram o prosseguimento do processo até final sem dar aos Arguidos a possibilidade de completarem as suas declarações (que tinham sido interrompidas e que eles não prescindiram de prestar), bem como, na ponderação dos vários direitos e interesses em presença, as garantias de defesa, o princípio da proporcionalidade e o direito a um processo equitativo, salvaguardados pelos arts. 32.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 4, todos da CRP. M. Quanto ao despacho de 14/11, estamos perante uma violação direta do art. 332.º, n.º 5, do CPP, bem como dos princípios constitucionais supra referidos. Quanto ao despacho de 15/11, para além das violações do art. 332.º, n.º 5, do CPP e dos princípios constitucionais supra convocados, ocorre ainda violação do art. 119.º, al. c), do CPP, porque não foi declarada a nulidade insanável que ocorreu (faltas dos Arguidos em caso em que a lei exige a sua comparência), bem como violação do art. 120.º, n.º 1, al. d), do CPP, porque não foi declarada a nulidade decorrente de não ter sido dada a possibilidade aos Arguidos de, durante a fase de produção de prova, continuarem a prestar declarações, que haviam sido interrompidas por motivo a que os mesmos eram alheios. N. O entendimento normativo adotado pelo Tribunal, quanto ao art. 332.º, n.º 5, do CPP, no sentido de que o tribunal pode determinar a continuação da audiência de julgamento até ao encerramento da produção da prova ou até ao final da audiência de julgamento sem o arguido estar presente, quando o mesmo, não podendo estar presente por motivo de doença ou outro motivo justificado, manifestou a vontade de continuar a prestar declarações (que haviam sido interrompidas por motivo a que era alheio), é inconstitucional, por violação das garantias de defesa, previstas no art. 32.º, n.º 1, do CRP, bem como do direito a um processo equitativo, nos termos previstos no art. 20.º da CRP e no art. 6.º da CEDH, considerando ainda o princípio da proporcionalidade ínsito aos arts. 2.º e 18.º da CRP. Termos em que o recurso merece provimento, com as legais consequências».
4. Notificado respondeu o Ministério Público concluindo que «A pretensão dos arguidos não tem fundamento legal, estando o recurso claramente votado ao fracasso».
5. Os arguidos BB, DD e EE, recorreram do Acórdão condenatório datado de 09.01.2025 proferido nos autos apresentando as seguintes conclusões: «-- QUESTÃO PRÉVIA: DA PROIBIÇÃO DA PROVA OBTIDA ATRAVÉS DE METADADOS --- A. O acórdão recorrido formulou a sua convicção, em parte relevante, nos dados de tráfego constantes dos apensos II, III e IV. B. Os dados de tráfego em apreço foram obtidos e valorados no âmbito do referido proc. n.º 104/07...., na sequência de despacho judicial de 12/10/2007, donde consta o seguinte: - Dispensar as operadoras de rede móvel “VODAFONE” e “OPTIMUS”, do segredo de telecomunicações, ordenando que tais operadoras forneçam na íntegra os elementos pretendidos e referidos na promoção de fls. 79 e 80 sob as alíneas B), C), D) e E) [trata-se dos pedidos a fazer à VODAFONE e OPTIMUS no sentido da obtenção das listagens que contenham todas as chamadas e sms’s recebidos e efetuados ainda que em roaming, bem como a respetiva localização celular (BTS) e outros dados que permitam a identificação de cartões bancários utilizados para proceder ao carregamento de vários cartões telefónicos] – cfr. fls. 423 a 426 destes autos. C. Acontece, porém, que, entretanto, a utilização de prova obtida através de metadados – dados referentes ao tráfego de comunicações e de localização – foi declarada inconstitucional pelo acórdão n.º 268/22 do Tribunal Constitucional, tendo em conta a sua conservação e obtenção sem que tenha sido dado ao visado o direito a conhecer que tais dados foram conservados pelas operadoras de telecomunicações e transmitidos às autoridades de investigação criminal. D. No caso dos autos, a recolha da informação em pauta não foi obtida ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17/07, que, ao tempo, ainda não se encontrava em vigor. A conservação dos dados de tráfego estava prevista na Lei n.º 41/2004, de 18/08, e a recolha de tal informação para os autos foi deferida pelo despacho supra referido de fls. 425/426, que convocou para o efeito os arts. 187.º 188.º e 269.º, n.º 1, al. e), todos do CPP, sendo certo que o art. 269.º remete para os arts. 187.º e 189.º do CPP. E. Em face do exposto, entende-se que o entendimento dado aos arts. 187.º, 188.º e 269.º, n.º 1, al. e), todos do CPP, no sentido de permitir que o juiz pode autorizar que as operadoras de telemóvel facultem aos autos os elementos relativos aos dados de tráfego das comunicações em pauta e respetiva localização celular, por elas conservados, dispensando-as do segredo de telecomunicações e sem que os visados tivessem sido notificados de que os seus dados foram conservados e acedidos pelas autoridades, é inconstitucional, por violação, de forma desproporcionada, do direito à autodeterminação informativa, nos termos consagrados no art. 35.º, n.os 1 a 4, e 26.º, n.º 1, da CRP, devidamente conjugado com o art. 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP. F. Sendo inconstitucional a utilização de tais dados de tráfego, nos termos em que foram conservados e obtidos, o acórdão recorrido sustentou a decisão recorrida em meio de obtenção de prova proibido, o que acarreta a nulidade dessa utilização, nos termos previstos no art. 126.º, n.º 3, do CPP, o que se deixa arguido. Declarada tal nulidade, decorrente da utilização de prova proveniente de meio de obtenção de prova proibido, deve declarar-se a nulidade do acórdão recorrido, ordenando-se a sua reformulação expurgada de tais meios de prova. --- IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO --- G. Impugnam-se os factos provados sob os n.ºs 12, 13, 14, 15, 16, 25, 29, 30, 31, 38, 40 e 42. Tais factos devem ser dados como não provados, pelo menos no que diz respeito à participação dos Recorrentes na factualidade aí descrita. Por outro lado, deve passar a provado o facto não provado n.º 1. H. Os meios de prova em que se funda tal impugnação são os seguintes: a) declarações prestadas pelo Arguido BB, prestadas na audiência de 14/06/2018 , das 11:04:47 às 13:08:50, cujo excerto relevante se transcreveu; b) declarações prestadas pela Arguida DD, prestadas na audiência de 14/06/2018, das 15:21:46 às 15:57:28, cujo excerto relevante se transcreveu; c) declarações prestadas pela Arguida EE, prestadas na audiência de 14/06/2018, das 15:59:12 às 16:40:01, cujo excerto relevante se transcreveu; 3 Todas as declarações foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal d) declarações prestadas pela testemunha FF, prestadas na audiência de 24/05/2018, das 14:49 às 15:07, cujo excerto relevante se transcreveu; e) declarações prestadas pela testemunha GG, prestadas na audiência de 24/05/2018, das 15:09 às 15:30, cujo excerto relevante se transcreveu; f) declarações prestadas pela testemunha HH, na audiência de 24/05/2018, das 11:55 às 12:10, cujo excerto relevante se transcreveu; g) declarações prestadas pela testemunha II, prestadas na audiência de 24/05/2018, das 15:37 às 15:45, cujo excerto relevante se transcreveu; h) a certidão junta aos autos em 06/07/2018, proveniente do proc. n.º 104/07...., que incorpora uma minuta manuscrita de um contrato-promessa de compra e venda entre o Arguido BB e JJ; i) a certidão junta aos autos em 12/07/2018, proveniente do proc. n.º 104/07...., que incorpora o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o Arguido BB e JJ, em 16/01/2008; j) a caderneta predial junta aos autos em 12/06/2018, pela testemunha HH, a fls. 4085 e 4086; k) auto de busca e apreensão de 18/06/2008, que teve lugar no âmbito do proc. n.º 104/07...., a fls. 1890 a 1912; l) despacho judicial de 18/02/2010, proferido no proc. n.º 104/07...., o qual não se localiza nos presentes autos, razão pela qual, por facilidade, se junta como doc. 1, cujo teor pode oficiosamente ser confirmado pelo Tribunal. I. Ponderados os meios de prova convocados, podemos estabelecer o seguinte: a) parece não haver dúvida de que existe um contrato-promessa assinado em janeiro de 2008; quanto a um anterior contrato-promessa (alegadamente celebrado no verão de 2007), também parece não haver dúvida de que existiu uma minuta, junta aos autos em 06/07/2018; b) é verdade que não aparece o contrato-promessa então assinado em 2007, mas tem de se admitir como plausível a versão de BB no sentido de que o mesmo estaria na pasta preta identificada no auto de busca de 18/06/2008, a fls. 1890 a 1912, a qual terá desaparecido/extraviado, como está expressamente admitido no despacho judicial de 18/12/2010 junto como doc. 1; c) de qualquer forma, não há qualquer razão consistente para pôr em causa os depoimentos supra transcritos das testemunhas FF, então Presidente da Junta de Freguesia ..., bem como HH, proprietário de um terreno na referida freguesia, no sentido de que foram contactados em 2007 por um arquitecto e por um senhor estrangeiro, que estariam interessados na aquisição de terrenos com uma certa dimensão, os quais também teriam vindo a contactar BB para o mesmo efeito; d) como também não há qualquer razão consistente para pôr em causa o depoimento da testemunha GG, que acompanhou as obras de terraplanagem efetuadas por altura do negócio que o Arguido BB tinha feito sobre a Quinta ..., bem como da testemunha II, que chegou a fazer medições e orçamentos para essas obras que depois acabaram por ser adjudicadas a outro empreiteiro; e) é neste contexto que é plausível a versão do Arguido BB, no sentido de que os pagamentos efetuados através da WESTERN UNION se destinavam a pagamentos por conta do preço desse negócio da Quinta ..., nos termos que lhe haviam sido comunicados pelo sobrinho AA, que foi, de resto, a pessoa que envolveu o alegado JJ nesta operação, no quadro dos esquemas fraudulentos em que estava envolvido e de que era verdadeiro mestre; f) BB foi imprudente e até ganancioso, na perspetiva acrítica com que se deixou envolver na operação montada pelo sobrinho, mas não há prova consistente e segura de que ele conhecia os artifícios fraudulentos montados por AA, dotado de uma inteligência superior (quase genial), em que ele pura e simplesmente acreditou ou quis acreditar, como tantas vezes acontece com as pessoas que se deixam levar por aquilo que é fácil e dá dinheiro; g) finalmente, não há qualquer motivo para duvidar da versão das Arguidas DD e EE, então com pouco mais de 20 anos, que, sem qualquer consciência de participarem numa burla, acederam aos pedidos do Pai no sentido de se deslocarem aos balcões para efetuar os levantamentos, como beneficiárias das transferências, do dinheiro que lhes era entregue em numerário e que entregavam ao pai, o Arguido BB. J. A argumentação do Tribunal, no sentido de justificar os factos impugnados, não convence, porquanto: i. a circunstância de só existir um contrato-promessa assinado em 2008, não afasta que as negociações para a compra e venda se tivessem iniciado no verão de 2007 (mesmo que não se tenha conseguido trazer aos autos o contrato assinado em 2007, mas apenas uma minuta não datada), porque aquilo que é relevante é que, desde o verão de 2007, estava em curso (ou em perspetiva) um negócio, o qual legitimava a existência de pagamentos com vista ao pagamento de parte do seu preço; ii. a existência desse negócio é comprovada pelas declarações das testemunhas HH, FF, GG e II, relativamente às quais não há qualquer razão para as pôr em crise, e muito menos para nem sequer as valorar, como aconteceu com o acórdão recorrido; o argumento de que tais declarações se referem a um projeto e a obras sem ligação com as transferências aqui em causa padece de qualquer lógica, porque a sua existência, a ser comprovada, corrobora a versão dos Recorrentes; iii. as conversas telefónicas cruzadas entre os Arguidos, com vista a assegurar o recebimento das transferências fraudulentamente asseguradas por AA, não podem fazer presumir (pelo menos sem margem para dúvida) que os Recorrentes – particularmente quanto às Recorrentes DD e EE – estavam a par dos artifícios fraudulentos utilizados por AA, em que eles não tiveram participação direta, como resulta dos factos provados 17 a 24, 26 a 28, 32 a 37 e 39; iv. a circunstância de os pagamentos serem feitos em pequenas prestações e ordenadas por vários remetentes não pode fazer presumir que os Recorrentes tinham conhecimento dos artifícios fraudulentos utilizados– particularmente quanto às Recorrentes DD e EE –, porque BB se limitou a seguir aquilo que o AA lhe dizia e DD e EE limitaram-se a seguir as instruções do Pai, sem nenhum deles ter qualquer consciência dos artifícios utilizados pelo Arguido AA; v. relativamente às Recorrentes DD e EE a presunção do Tribunal no sentido de que as mesmas conheciam e aderiram aos artifícios fraudulentos em apreço é particularmente temerária, porque realmente não se funda em nada que substancialmente o possa sustentar, limitando-se a fazer o que o Pai lhes pedia, o que, no quadro de uma relação familiar, tem de ser entendido com naturalidade e verosimilhança; vi. não se pode desvalorizar a notável capacidade de AA para convencer e ludibriar as pessoas, como decorre do próprio esquema em que AA conseguia levar funcionários da WESTERN UNION a fazer o que ele queria (cfr., a título de exemplo, factos provados 9, 10, 18 a 21, 26 a 28, 32, 33 e 39); vii. finalmente, deve ainda dizer-se que, dos depoimentos convocados pelo Tribunal, nada se pode retirar quanto ao conhecimento dos Arguidos, ora Recorrentes, quanto ao conhecimento que tinham acerca dos artifícios fraudulentos levados a cabo por AA; KK, funcionária dos CTT, confirmou que os Arguidos fizeram levantamentos, mas nada sabia sobre o que conhecimento que eles teriam (ou não) do plano traçado; LL e MM são inspetores da PJ, que obviamente não têm conhecimento dos factos. K. Pelo exposto, tendo particularmente em conta que os artifícios fraudulentos foram praticados por AA e que não há prova consistente no sentido de que os Recorrentes estivessem a par deles, considerando a prova supra convocada, deve ser deferida a impugnação da matéria de facto, dando como não provados os concretos pontos de facto constantes do probatório sob os n.os 12, 13, 14, 15, 16, 25, 29, 30, 31, 38, 40 e 42, no que diz respeito à participação dos Recorrentes nessa factualidade. 4 E dando como provado o facto não provado n.º 1, o que, todavia, nem é fundamental para a anulação da condenação dos Recorrentes. --- DO DIREITO --- --- DO NÃO PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DO CRIME DOS CRIMES IMPUTADOS AOS ARGUIDOS --- L. Deferida a impugnação da matéria de facto, não se comprova que os Arguidos, ora Recorrentes, tenham participado nos artifícios fraudulentos levados a cabo por AA, o que é suficiente para considerar não preenchida o tipo legal (objetivo e subjetivo) do crime de burla por que foram condenados. M. Tal asserção é particularmente ostensiva quanto às Recorrentes DD e EE, relativamente às quais não foi estabelecida qualquer conexão relevante com os artifícios fraudulentos em apreço. --- DA VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO E DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM --- N. Mesmo que não seja deferida a impugnação da matéria de facto, os Arguidos não podem ser condenados nestes autos, tendo em conta a condenação que já ocorreu no âmbito do proc. n.º 104/07..... O acórdão recorrido violou o caso julgado e o princípio ne bis in idem. O. Basta comparar os factos dados como provados no proc. n.º 104/07.... (cfr. factos 1 a 17 do respetivo probatório) e os factos dados como provados nos presentes autos (cfr. factos 1 a 16 do respetivo probatório) para se verificar a perfeita identidade de plano e resolução criminosa, bem como de metodologia e instrumentos utilizados; acresce que as situações concretas em causa nestes autos ocorreram no mesmo dia ou no mesmo hiato temporal daquelas em causa no proc. n.º 104/07..... P. Ademais – e esse dado é muitíssimo relevante –, as situações concretas em causa nestes autos já eram conhecidas ao tempo do inquérito relativo ao processo n.º 104/07...., como se retira do envio da certidão que deu origem aos presentes autos, remetida em 03/07/2009, contemporânea com a acusação deduzida naqueles autos. Q. Ou seja, os factos em causa nestes autos não foram apurados e objeto de acusação no processo n.º 104/07.... tão-somente porque o Ministério Público determinou a sua separação e investigação em processo autónomo, o que foi feito em frontal violação do princípio da unidade relativa os crimes em relação aos quais se verifique uma situação de conexão, como manifestamente era o caso, nos termos dos arts. 24.º, 29.º e 30.º do CPP. R. À luz dos dados de facto constantes dos autos e dos ensinamentos e jurisprudenciais convocados no corpo da motivação, concluímos no seguinte sentido: a) grande parte da factualidade em causa nestes autos – tudo aquilo que tem a ver com o plano e resolução criminosa – já foi ponderada no processo n.º 104/07....; b) as situações concretas em que se traduziram as burlas objeto destes autos ocorreram no mesmo hiato e enquadramento espácio-temporal das anteriores; c) as situações em pauta eram já conhecidas no âmbito do inquérito do processo 104/07...., existindo manifesta conexão com as anteriores, pelo que deveria ter sido garantida a unidade do processo, evitando-se uma fragmentação desnecessária e infundada, como exigia o adequado cumprimento das regras constantes nos arts. 24.º, 29.º e 30.º do CPP; d) o caso julgado formado pela decisão do processo n.º 104/... abrange os factos reais que nele foram apurados, bem como os factos hipotéticos que nele deviam e podiam ter sido julgados, por estarem em unidade sequencial com aqueles, o qual foi assim violado; e) a inobservância desse caso julgado não só prolongou arbitrariamente o processo de punição dos Arguidos, como prejudicou a consideração global de todos os factos abrangidos na determinação da medida da pena, de acordo com os critérios previstos no art. 71.º do CP; f) a construção dogmática do acórdão condenatório – que autonomiza, de forma artificial, supostas resoluções criminosas autónomas, punidas em sede de um concurso de crimes, nos termos do art. 30.º do CP, quando, na realidade, não há motivo atendível para dissociar as situações em pauta (ocorridas naqueles e nestes autos) – não garante a unicidade do exercício do poder punitivo público, o qual é devedor de critérios de razoabilidade e proporcionalidade; g) deste modo, os Arguidos, ora Recorrentes, foram julgados pela prática do mesmo crime que lhes era imputado no processo 104/... – considerada a extensão do caso julgado material às situações que podiam e deviam ter sido julgadas no seu âmbito –, o que se consubstancia na violação do princípio do ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP, razão pela qual o acórdão condenatório deve ser anulado, com a consequente extinção do procedimento criminal em causa nestes autos. S. Por cautela, vem arguir-se a inconstitucionalidade do entendimento normativo adotado pelo acórdão recorrido quanto ao art. 30.º do CP, no sentido de que, havendo concurso de infrações, com identidade de arguidos, podem ser julgados em processo autónomo factos ocorridos no mesmo hiato, sequência e enquadramento espácio-temporal de factos já julgados, que, de acordo com as regras de conexão, podiam e deviam ter sido objeto do mesmo processo, sendo já conhecidos à data do inquérito do primitivo processo, por violação do caso julgado penal, ínsito à construção do Estado de Direito, tal como consagrado no art. 2.º da CRP, bem como do princípio ne bis in idem, assegurado no art. 29.º da CRP. T. Mantém-se interesse na subida e apreciação do recurso interlocutório interposto em 17/12/2024 dos despachos de 14/11 e de 15/11, o que se declara para os efeitos do art. 412.º, n.º 5, do CPP. Termos em que o recurso merece provimento, com as legais consequências, designadamente as seguintes: a) a declaração de nulidade da utilização dos dados de tráfego incorporados nos autos, com a consequente declaração de nulidade do acórdão recorrido, determinando-se a sua reformulação expurgado de tais meios de prova proibidos; b) deferida a impugnação da matéria de facto, devem ser os Arguidos absolvidos, por não se mostrar preenchido o tipo legal dos crimes por que foram condenados; c) em qualquer caso, deve declarar-se a extinção do procedimento criminal em causa nestes autos, tendo em conta que a decisão condenatória consubstanciou uma violação do caso julgado penal e do princípio ne bis in idem».
6. Os recorrentes declararam, ainda, manter interesse na subida e apreciação do recurso interlocutório interposto em 17/12/2024 dos despachos de 14/11 e de 15/11.
7. Notificado do recurso do Acórdão condenatório, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos: «1ª – A obtenção dos dados de tráfego valorados pelo Tribunal não está ferida de inconstitucionalidade, nem de qualquer outra nulidade, tratando-se de prova validamente obtida. 2ª- Não existem razões para alteração da matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal recorrido, a qual assenta numa apreciação da prova em conformidade com o comando normativo estabelecido no artigo 127do CPP, tratando-se, aliás, da única apreciação compatível com as regras da experiência comum. 3ª – Não ocorreu violação do caso julgado e do principio ne bis in idem. Termos em que, o recurso dos arguidos não merece provimento. V.Ex.ªs, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!». 8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto. 9. Admitidos os recursos, os autos foram aos vistos, tendo sido realizada a requerida audiência.
II. fundamentação 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso O objeto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação (que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem), sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (Cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995). Assim, o tribunal ad quem tem de apreciar apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.ºs 1 e n.º 3, ambos do Código de Processo Penal (CPP) – cfr. Ac. STJ de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271. De acordo com as conclusões da motivação dos recursos interpostos nestes autos, são as seguintes as questões a que cabe dar resposta: 1. (recurso dos despachos datados de 14.11.2024 e 15.11.2024) - Justifica-se o não reagendamento da audiência de julgamento? 2. (recurso do Acórdão condenatório) 2.1 - Violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem? 2.2 - Valoração da prova proibida? 2.3 - Erro de Julgamento? 2.4 – Não preenchimento típico? 2. Despachos recorridos e Acórdão recorrido (transcritos na parte ora relevante)
2.1 Despacho recorrido proferido no dia 14.11.2024 «PEDIDOS DE REAGENDAMENTO DA CONTINUAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO No passado dia 12 vieram os arguidos BB e DD requerer o reagendamento da diligência agendada para o próximo dia 15 em virtude de o arguido BB ter marcado para esse mesmo dia novo tratamento de quimioterapia no IPO Coimbra e a sua filha arguida DD ter que assegurar a sua deslocação e acompanhamento. Pois bem, antes de mais, cumpre assinalar que o Tribunal não é naturalmente indiferente às razões invocadas e muito menos insensível ao atual estado de saúde do arguido BB, em todo o caso, como se referiu no anterior despacho de 21.10.2024, não seriam “deferidos outros pedidos de semelhante natureza, sob pena de pôr em risco as razões subjacentes ao despacho em que se conferiu natureza urgente aos autos”. Acresce que, como bem assinala a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção que antecede, “se o arguido tem condição para se deslocar para Coimbra, também a terá para se deslocar para este Tribunal, situado bem mais próximo da sua residência”, pois que reside em ... (que dista da cidade ... cerca de 20 quilómetros, enquanto que Coimbra dista cerca de 90 quilómetros), acrescentando que, “relativamente à marcação do tratamento, coincidentemente para o dia do julgamento, incumbia-lhe se, como refere, pretende prestar declarações, impedir que o tratamento fosse marcado para o dia do julgamento, sendo certo que tal marcação ocorreu em 30/10/2024 quando bem sabia já que o julgamento – a requerimento seu -, fora adiado para essa data” – itálico, sublinhado e destacado nosso Perfilha-se, pois, a posição da Digna Magistrada do Ministério Público. De forma que, pelas mesmas razões, e por todas aquelas que já foram anteriormente registadas em anteriores despachos (designadamente as expendidas naquele em que foi conferida natureza urgente ao processo – despacho de 04.09.2024), indefere-se, pois, o requerido».
2.2 Despacho recorrido proferido no dia 15.11.2024 «Dando-se uma vez mais por reproduzido tudo quanto se registou nos anteriores despachos, importa consignar que, contrariamente ao alegado, o Tribunal procurou sempre assegurar o exercício dos direitos dos arguidos, agendando datas por diversas vezes, aliás, esta mesma diligência é um exemplo disso mesmo e foi, justamente, marcada para que os arguidos pudessem prestar declarações. Tudo, pois, para referir que não se vislumbram as apontadas nulidades invocadas pela defesa dos arguidos BB, DD e EE no requerimento que antecede. Seja como for, e por que já com a concordância de todos os sujeitos processuais se designou o próximo dia 28/11/2024, pelas 09h30m, para a defesa do arguido AA produzir as respetivas alegações finais, poderão ainda assim os demais arguidos, querendo, comparecer e, nessa altura, fazer uso do direito que a lei lhes reserva nos termos do disposto no art.º 361.º do C.P.P e bem assim, querendo, fazer igualmente uso do direito que a lei igualmente lhes reserva no art.º 98.º n.º 1 do mesmo diploma legal, isto é, o de apresentarem exposições e memoriais onde registem tudo o que tiverem conveniente à salvaguardada dos seus direitos e que o Tribunal, oportunamente, terá em consideração na decisão que vier a proferir a final. Notifique». 2.3 Acórdão recorrido «FUNDAMENTAÇÃO 2.1 FACTOS PROVADOS Com interesse para a boa decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos: 1) O arguido AA é cidadão luso-americano, tendo nascido em ..., Estados Unidos da América do Norte (EUA) em 26/06/1979. 2) Em 2007, o arguido AA conhecia o sistema de processamento de transferências monetárias realizado por empresas como a Western Union (WU), companhia de serviços financeiros e comunicações baseada nos Estados Unidos da América do Norte, a qual oferece, entre outros, serviços de transferências monetárias através de uma rede de agentes e instituições financeiras disseminadas por aquele continente, mas também na Europa e noutras partes do Mundo. 3) Para as transferências monetárias o procedimento normal consistia, em 2007, na aquisição do serviço de envio de dinheiro para qualquer parte do mundo onde existisse uma agência WU, entregando o cliente o montante que pretendia transferir em numerário, bem como o pagamento do serviço propriamente dito, procedendo a WU à entrega do montante contratado numa qualquer agência com quem tivesse acordo para o efeito à pessoa indicada como seu beneficiário e se apresentasse a recebê-la. 4) Para controlo e segurança da operação, no local de pagamento, este só seria feito ao beneficiário indicado pelo remetente, o qual devia preencher um formulário com os seus dados pessoais e outros elementos, como um telefone de contacto, aqueles primeiros comprovados através da exibição de um documento de identificação com assinatura legível e fotografia, sendo obrigatoriamente indicados o seu nome e o do remetente, o montante esperado e o denominado Money Transfer Control Number (MTCN), número de controlo de transferência composto por 10 dígitos gerado automaticamente pelo sistema informático, o qual era fornecido ao remetente que, por sua vez, para o efeito de levantamento da quantia transferida, o facultaria ao beneficiário, destinatário da transferência monetária. 5) Por seu turno, o funcionário da agência pagadora encarregado de processar a operação com entrega do montante ao beneficiário, anotaria os elementos referentes ao documento de identificação por ele exibido, obrigatoriamente o seu número, data de emissão e validade. 6) As transferências eram efetuadas de forma individual e automática e imediatamente, embora pudessem manter-se ativas no sistema, acessíveis a pagamento, durante cerca de 1 (um) ano. 7) Após a sua chegada ao nosso país, o referido AA passou a relacionar-se com os familiares da linha materna aqui existentes, os arguidos BB e filhos deste, NN, DD, EE e OO, bem como com o marido da primeira, FF, e ainda com CC, amigo da família, que o receberam e auxiliaram, integrando-o inicialmente em empresas que geriam, embora sem funções específicas uma vez que o mesmo não dispunha de qualquer formação nas áreas que constituíam o respetivo objeto social. 8) Em data não apurada, mas sempre anterior a finais de 2006, o arguido AA formulou um plano que consistia em, a partir do nosso país, passar a captar valores monetários da WU e seus agentes, aproveitando o sistema de transferências monetárias utilizado pela referida instituição financeira, que conhecia perfeitamente. 9) Os procedimentos por si concebidos para alcançar tal propósito consistiam em entrar em contacto telefónico, a partir de Portugal, utilizando telefones da rede móvel nacional ou em VOIP - abreviatura de sistema de comunicação telefónica através da World Wide Web, mediante um protocolo designado Voice Over Internet Protocol -, com estabelecimentos constituídos agências WU em qualquer parte do mundo, designadamente nos Estados Unidos da América do Norte (EUA), Canadá e alguns países europeus. 10) Para o assinalado efeito, ora dirigia ameaças aos colaboradores com quem estabelecia comunicação, sempre em língua inglesa, que domina, consistentes na alegada colocação de engenhos explosivos nas instalações onde se encontravam aptos a deflagrar e/ou na existência de atiradores furtivos nas suas imediações (snipers), que disparariam, por forma a levar os funcionários a acreditar nas afirmações que lhes dirigia, convencendo-os de que tinha condições para visionar o que ocorria no interior, ora construía realidades inexistentes, convencendo-os da ocorrência de anomalias no sistema informático de transferências ou afirmando-se possuir qualidades que não detinha nem detém, nomeadamente a de funcionário do serviço de suporte técnico da mesma instituição financeira. 11) Quando se tornava necessário, o arguido AA contactava telefonicamente previamente o serviço de apoio ao cliente da WU - através dos n.os (800) 325-6000 (877) 984-0473 - a fim de obter as informações necessárias à consecução dos seus desígnios. 12) De tal propósito e processos destinados a alcançá-lo deu o mesmo AA concreto e pormenorizado conhecimento ao arguido BB que, perspetivando alcançar para si e para os seus filhos, entre os quais, as arguidas DD e EE, benefícios materiais semelhantes, a eles aderiu sem reservas, assegurando o auxílio que fosse necessário da sua parte na execução dos atos destinados a alcançar tal objetivo, por si, ou por intermédio de terceiros, designadamente de seus filhos e do arguido CC. 13) A fim de conseguir o efetivo recebimento dos valores ilicitamente captados, os mesmos necessitavam de se socorrer de terceiros no sentido de, em ato seguido à realização da transferência monetária, e a fim de evitar o seu cancelamento, caso fosse detetada a ilegitimidade do meio utilizado, se organizarem e se deslocarem às diversas agências da aludida WU existentes no nosso país para recolherem os valores fraudulentamente captados, para o efeito habilitando quem ali comparecesse, em regra por via telefónica, com os elementos imprescindíveis à entrega dos valores transferidos e obtidos de forma ilícita, bem como a posterior dissimulação da sua origem. 14) Na coadjuvação de tal tarefa, careciam os arguidos AA e BB da colaboração de pessoas em quem depositassem inteira confiança, por forma a manter o sigilo exigido pela natureza dos atos projetados e resultados materiais obtidos, o que naturalmente acontecia, entre outros, com os arguidos DD e EE, familiares de ambos, e com o arguido CC, pessoa das relações dos demais e com disponibilidade de tempo, sobre quem o arguido BB exercia ascendente, a quem os arguidos AA e BB deram conhecimento dos objetivos visados e de os alcançarem através dos referidos processos, a eles os mesmos igualmente tendo aderido visando beneficiar desses proveitos. 15) Após o recebimento das quantias captadas em moeda local, em especial dólares americanos (USD), depois convertidos, no momento do pagamento, em euros, no caso de países não integrados na União Monetária, esse dinheiro era entregue ao arguido AA e, com mais frequência, ao arguido BB, ou creditado em contas bancárias por ambos indicadas acordando-se entre todos o destino a dar-lhe. 16) Quer os contactos estabelecidos entre o arguido AA com as diversas lojas agências WU por si escolhidas e com o suporte técnico da WU, quer os destinados a assegurar que algum dos participantes nos factos a seguir descritos se apresentava a recolher os valores captados, quer ainda a indicação de destinatário das transferências a ilicitamente determinar eram acordados entre o primeiro e o arguido BB, cabendo a este, na maior parte dos casos, os contactos com o arguido CC e com as suas filhas DD e EE para aquele efeito. CASO "SOBEYS #871" 17) No dia 16 de agosto de 2007, o arguido AA, utilizando um telefone móvel onde havia colocado o cartão com o n.° ...18 da rede Vodafone - Portugal, estabeleceu contacto telefónico com o número (1) ...79 instalado na loja denominada Sobey's #871, situada na ..., 985, em ..., ..., Canadá, que sabia ser uma agência Western Union (WU), por isso, ali sendo possível o processamento de transferências monetárias, virtualmente, para qualquer parte do mundo. 18) Após estabelecer ligação, tendo sido atendido pela colaboradora da loja PP -, o mesmo arguido, identificando-se como o colaborador da WU n.°...97 QQ, comunicou-lhe que estava a proceder ao carregamento de um programa novo, solicitando-lhe que introduzisse no sistema as suas - dela- credenciais. 19) Seguidamente, verificando que a referida PP acreditara na ilusão criada e transmitida daquela forma, passou a fornecer-lhe indicações para realização de transferências monetárias mas de modo a que a mesma não se apercebesse de que estava a enviar valores para pessoas e destinos concretos; para conferir credibilidade à sua conduta e sossegar a referida colaboradora, solicitou-lhe que inscrevesse nos recibos de cada transferência a palavra inglesa "VOID”, que significa "ANULAR” ou “ANULADA". 20) Sempre que a referida PP realizava uma transferência, o arguido AA solicitava-lhe que lhe fornecesse o respetivo MTCN, o que ela fez. 21) Conseguiu, assim, que aquela colaboradora realizasse, em seu nome – dela -, como remetente, as seguintes transferências monetárias com destino a Portugal e tendo como beneficiários os arguidos a seguir indicados:
22) Na posse dos MTCN indicados no antecedente quadro, o arguido AA contactou telefonicamente os arguidos BB e CC dando-lhes indicação da sucessiva disponibilidade dos valores sucessivamente transferidos, acabando os mesmos por se deslocarem a balcões dos CTT de Viseu, o primeiro, na Loja do Cidadão, o segundo no Bairro ..., onde procederam à recolha dos valores transferidos nos termos descritos no quadro que antecede. 23) No entanto, lograram que lhe fossem entregues apenas as quantias referentes às três primeiras transferências ali indicadas, num valor total de 5.737,426, correspondente ao câmbio do dia, tendo as demais sido canceladas. 24) Ao se arrogar, de forma séria e convincente, de uma qualidade que efetivamente não possuía - a de funcionário do serviço técnico competente da empresa habilitado para intervir daquela forma - e criando a aparência de uma realidade de facto inexistente - a de que estava a proceder ao carregamento de um programa informático novo e de que as operações que iria a seu pedido executar não corresponderiam a verdadeiras transferências monetárias -, assim induzindo em erro a referida colaboradora, pretendeu o arguido AA levá-la a efetuar sucessivas transferências efetivas de valores monetários a seu favor, nessa medida enriquecendo, atos esses suscetíveis de causar, como causaram, um efetivo prejuízo patrimonial à WU, visto não terem dado entrada na sua disponibilidade os valores correspondentes. 25) Agiram os arguidos AA, BB e CC livre e conscientemente, em comunhão e conjugação de esforços e intenções, sabendo que cometiam atos punidos pela lei penal portuguesa. Caso "Change BD" 26) No dia 13 de dezembro de 2007, o arguido AA contactou telefonicamente, a partir de Portugal, onde se encontrava, a loja situada na estacão ferroviária de ..., na Suíça, denominada "Change BD", à qual se encontra atribuído o número de telefone (41) ...04. 27) Afirmando ao colaborador da loja que o atendeu, o qual, de resto, nem conhecia, que transações anteriores apresentavam problemas de datação, o arguido logrou convencê-lo da necessidade em realizar transferências monetárias de teste com vista a determinar qual o terminal que provocava a anomalia. 28) Através desse meio, conseguiu levá-lo que o mesmo efetuasse validamente 6 transferências monetárias com destino a Portugal, todas tendo como destinatário a arguida DD, dados que lhe forneceu, assim, obtendo fraudulentamente o montante global de 9.700,00€, ao câmbio daquele dia, a seguir discriminado:
29) Durante o período em que o arguido AA esteve em contacto com a referida agência WU igualmente manteve comunicações telefónicas com o arguido BB, e este com a sua filha DD, para o efeito quer da indicação desta como destinatária das transferências, quer dos sucessivos momentos da sua deslocação para recebimento em Portugal dos valores transferidos, instruções que esta veio a cumprir, apresentando-se nos locais indicados, de posse dos diversos MTCN, obtendo o valor monetário fraudulentamente captado aos balcões dos CTT de Viseu e aos balcões do banco Millenium-BCP, neste caso requerendo o seu depósito em conta por si titulada, com o n.° ...05. 30) Agiram os AA, BB e DD livre e conscientemente, visando, conjunta e concertadamente induzir em erro o colaborador da “Change BD”, levando-o a realizar transferências monetárias tendo por destinatária a última sem a correspetiva entrada de valores que é pressuposto de tais operações, para o efeito de alcançarem um benefício material correspondente aos montantes transferidos, assim causando à loja um prejuízo equivalente. 31) Sabiam os arguidos AA, BB e DD estar a cometer factos punidos pela lei penal CASO "THE MONEY SHOP" 32) No dia 27 de dezembro de 2007, encontrando-se em Portugal, o arguido AA estabeleceu contacto telefónico com a loja denominada "The Money Shop", situada em ..., ..., ..., ..., ..., no Reino Unido, à qual se encontra atribuído o número de telefone (44) ...07, estabelecendo conversação com RR. 33) Uma vez mais, utilizando o pretexto de se tratar do operador do departamento técnico da WU de nome QQ, apercebendo-se de que a referida colaboradora da loja experienciava dificuldades de acesso ao sistema de transferências monetárias devido a um problema com o respetivo código de acesso - password na terminologia informática anglo-saxónica -, logrando convencê-la de que diligenciaria pela remoção dos obstáculos, em sucessivos contactos telefónicos, dela obteve a indicação do denominado número de agência (Account Number) e de sequências do cartão de coordenadas exclusivo da mesma agência. 34) Este cartão, denominado Bingo Card na terminologia anglo-saxónica, consiste numa tabela de sequências de números e letras para uso interno exclusivo de cada agência destinado a legitimar os pedidos de operações inseridos no sistema, quer pelas agências WU quer pelo centro de atendimento próprio da WU. 35) O número de agência é individualmente atribuído pela WU quando determinada loja ou empresa celebra o respetivo contrato para realização das operações disponibilizadas por esta, sendo por referência a esse elemento de identificação de agência que as mesmas são realizadas. 36) Dada a sua função, a utilização destes elementos só podia ser feita pelos colaboradores das diversas agências WU, não podendo ser divulgada a clientes. 37) Em seguida, de posse destes elementos, por processo não esclarecido em concreto, sem que a WU tenha recebido qualquer valor monetário, o arguido AA conseguiu que fossem realizadas cinco transferências monetárias com destino a Portugal, no valor total de 6.650,03€, tendo como destinatários os arguidos EE e BB, conforme a seguir se especifica:
38) À exceção do valor recolhido ao balcão dos CTT em ... pelo arguido BB, com quem o arguido AA se manteve em contacto durante o lapso de tempo de que necessitou para captar os referidos valores, todos os demais foram transferidos para a conta titulada no Banco 1... pela arguida EE, com o n.° ...05, a quem o seu pai e o arguido AA foram transmitindo a necessária informação relativa aos MTCN. 39) Ao se arrogar, de forma séria e convincente, de uma qualidade que efetivamente não possuía - a de funcionário do serviço técnico competente da empresa habilitado para intervir daquela forma - e aproveitando a informação obtida da referida colaboradora da loja, logrou o arguido AA levar a WU a executar sucessivas transferências monetárias a seu favor, nessa medida enriquecendo, atos esses suscetíveis de causar, como causaram, prejuízo patrimonial à WU, visto não terem dado entrada na sua disponibilidade os valores correspondentes. 40) Sabiam os arguidos AA, BB e EE estar a cometer factos punidos pela lei penal. 41) Pela prática de factos da semelhante natureza e configuração, sendo dez de burla agravada, e outros de extorsão, cometidos num período temporal em que os factos agora descritos se inscrevem, foram os arguidos condenados por decisão transitada em julgado no âmbito no Processo Comum Coletivo n.º 104/07.... do Juízo Criminal de Viseu – Juiz 2, transitado em julgado no dia 16-04-2014, constante do Apenso n.° 1 - e que aqui, dada a sua extensão, se dá a respetiva factualidade provada por inteiramente reproduzida -, nos seguintes termos: a) o arguido AA, na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão efetiva; b) a arguida EE na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período; c) o arguido BB, na pena única de 10 (dez) anos de prisão; d) a arguida DD, na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período, sob regime de prova; e) o arguido CC, na pena única de 3 (três) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período. 42) Os arguidos BB, CC, DD e EE conheciam a intenção e os processos usados pelo arguido AA para levar terceiros a fazerem disposições patrimoniais que causaram à WU prejuízos patrimoniais, correspondentes a uma efetiva execução de transferências monetárias sem a entrada do correspetivo valor, montantes que sucessivamente recolheram nas circunstâncias descritas ou diligenciando para que ingressassem em contas bancárias que titulavam, tendo consciência de que, pelo menos, o arguido AA satisfazia os gastos com a sua manutenção e consumo de nível superior ao que lhe permitia a sua capacidade de ganho lícito, os quais ultrapassavam o padrão de pessoas com idêntico estatuto social e económico, decidindo participar nos factos descritos para poderem beneficiar desses montantes captados da forma descrita. Das Condições de Vida e Antecedentes Criminais do arguido AA 43) O arguido AA: O arguido AA nasceu nos Estados Unidos da América, filho de emigrantes, o pai cidadão da Indonésia, a mãe Portuguesa, o arguido permaneceu no país de origem até aos treze anos de idade, altura em que veio para Portugal onde integrou o agregado de um tio materno na zona de ..., até ter concluído o ensino secundário. No decurso do seu trajeto vivencial registou períodos de vivência nos EUA e em Portugal, sendo que em 2003 viria a regressar definitivamente a Portugal por questões penais. O arguido AA não equaciona o regresso ao país de origem, pelos mesmo motivos. É o segundo de dois filhos de um casal de mediana condição económica. Cresceu em contexto familiar normativo e sem constrangimentos económicos. O seu desenvolvimento psicossocial terá decorrido dentro dos parâmetros considerados funcionais, em ambiente afetivamente gratificante, tendo os progenitores exercido uma ação pedagógica adequada na transmissão de valores socialmente adequados. Do processo evolutivo do arguido destaca-se ainda o seu percurso académico, que terá decorrido em moldes regulares e investidos, tendo concluído duas licenciaturas, em Engenharia civil e em Informática. A sua primeira ocupação laboral foi nos EUA, no Banco 2..., onde ascendeu a uma posição hierárquica que lhe proporcionou uma remuneração salarial vantajosa e o que lhe permitiuum estilo de vida economicamente acima da média, privilegiando o convívio com indivíduos com semelhante estilo de vida, nomeadamente com rendimentos igualmente acima da média. Tais ligações precipitaram-no para um modo de vida algo descontrolado e centrado na aquisição de maiores rendimentos, envolvendo-se em crimes de burla financeira, situação que o levou a decidir-se pelo regresso a Portugal, como forma de se subtrair à intervenção do Sistema de Justiça Americana, tendo sido nessa altura que requereu a nacionalidade Portuguesa. Em 2005, e após ter sido decretada a medida de coação de prisão preventiva no âmbito de um pedido de extradição por parte das autoridades americanas, esteve três meses em situação privativa de liberdade, tendo sido depois libertado. Aquando o seu regresso a Portugal AA retomou as condições habitacionais anteriormente vivenciadas durante a adolescência, junto do tio materno em ..., tendo nesse enquadramento colaborado na empresa do tio, BB, no ramo da construção civil. O seu envolvimento em novas práticas delituosas, crimes de idêntica natureza, levaram à sua prisão em 2008, tendo permanecido em situação de reclusão até 25.01.2013, data em que expirou o prazo da prisão preventiva. Em 30.03.2013, foi condenado numa pena de dezassete anos de prisão, que cumpre desde então, pela prática de crimes vários de burla qualificada, extorsão e branqueamento. No decurso do cumprimento da pena privativa, o arguido viu a sua situação jurídica ser agravada, na sequência de várias condenações decorrentes de cúmulos jurídicos, sendo que terá os 5/6 da pena previstos para 21.08.2026 etermo da pena em 21.02.2030. No presente contexto prisional, o arguido tem vindo a denotar um comportamento institucional adequado. Presentemente encontra-se inativo, embora tenha referido interesse na prossecução de qualquer ação formativa, ocupando o tempo no ginásio ou na biblioteca. O arguido AA começa a evidenciar traços de algum desgaste que justifica com os anos de privação de liberdade. O seu discurso aponta para uma maior reflexão quanto aos comportamentos desajustados que culminaram na presente situação jurídica, conseguindo identificar os fatores de risco, que associa a anterior período vivencial, marcado pela sua imaturidade e consequente ambição desmesurada, sem grande ponderação nas suas ações. Detentor de competências pessoais e laborais para se reorganizar, o arguido consegue delinear alguns projetos futuros, que passam por fixar residência em ..., onde os pais terão uma propriedade, uma quinta, sendo que o progenitor faleceu em dezembro de 2022. No âmbito laboral não apresenta planos concretos, que justifica como sendo prematuro, face à medida de pena aplicada, embora verbalize a intenção de inverter o modo de vida que o caracterizou e que culminou na prisão, situação que estará dependente da sua exclusiva determinação e empenho. Em termos de apoio no exterior, continua a beneficiar do suporte económico disponibilizado pela progenitora que, devido a residir nos EUA, apenas o pode visitar ocasionalmente. 44) O arguido AA apresenta os seguintes registos criminais: a) Por sentença transitada em julgado em 22.11.2005, no proc. n.º 3199/05...., do extinto 2.º Juízo de Competência Criminal de Viseu, por factos praticados em 28.11.2003, o arguido AA foi condenado na pena única de 180 dias de multa, à taxa diária de 5€, pela prática de dois crimes de falsificação de documento. Tal pena foi declarada extinta a 21.12.2005. b) Por sentença transitada em julgado em 21/10/2013, no proc. n.º 454/08...., do Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em setembro de 2006, o arguido AA foi condenado na pena de 18 meses de prisão pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. c) Por acórdão proferido em 27-08-2010, no Processo Comum Coletivo n.º 104/07.... do Juízo Criminal de Viseu – Juiz 2, transitado em julgado no dia 16-04-2014, foi o arguido condenado na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão, pela prática no ano de 2007, de: - Dez crimes de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a) e b), do Código Penal (CP), nas seguintes penas: um crime com a pena de 5 anos de prisão; um crime com a pena de 4 anos e 8 meses de prisão; um crime com a pena de 4 anos e 6 meses de prisão; um crime com a pena de 4 anos e 4 meses de prisão; três crimes com a pena de 4 anos de prisão, por cada um; um crime com a pena de 3 anos e 8 meses de prisão; e dois crimes com a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, por cada um; - Dezassete crimes de extorsão, p. e p. pelos arts. 223º, nºs 1 e 3, a), e 204º, nº 2, g), do CP, nas seguintes penas: um crime punido com a pena de 6 anos de prisão; três crimes com a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, por cada um; cinco crimes com a pena de 5 anos de prisão, por cada um; quatro crimes tentados com a pena de 3 anos de prisão, por cada um; quatro crimes tentados com a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por cada um; - Um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368º-A, nºs 1 a 3, do CP, com a pena de 5 anos de prisão. d) Por sentença transitada em julgado a 18/06/2014, no proc. n.º 775/12...., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por factos praticados em 25/01/2012, o arguido AA foi condenado na pena de 8 meses de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal. e) No proc. n.º 215/08...., do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por factos praticados nos anos de 2006 e 2007, o arguido AA foi condenado, por sentença transitada em julgado a 07/06/2017, na pena única de 10 anos de prisão, a que corresponderam as penas parcelares de: - 6 anos de prisão pela prática de crime de rapto qualificado, p. e p. pelos arts. 160.º, n.º 1, al. a) e 2 al. a), por referência ao art.º 158.º, n.º 2, al. a), do Código Penal; - 6 anos de prisão pela prática de crime de extorsão qualificada, p. e p. pelos arts. 223.º, n.º 1 e 3, al. a), por referência ao art.º 204.º, n.º 2, al. a), do Código Penal; - 4 anos de prisão pela prática de crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º-A, n.ºs 2 e 3, por referência ao n.º 1, do Código Penal; - 1 ano de prisão pela prática de crime de falsificação de documento, p e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. f) No proc. n.º 111/08...., por sentença transitada em julgado a 14/03/2018, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por factos praticados a 25/02/2007 e em maio e junho de 2008, o arguido foi condenado na pena de 3 anos e 9 meses de prisão efetiva, pela prática de crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 26.º, 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal. g) Por sentença transitada em julgado a 09/05/2014, no proc. n.º 311/10...., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, por factos praticados no ano de 2008, o arguido AA foi condenado na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, nas penas parcelares de: - Um (1) ano de prisão pela prática de crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º, n.º 1, do Código Penal; - Dois (2) anos de prisão pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo arts. 217.º, n.º 1 e 2018.º, n.º 1, do Código Penal. h) No Processo n.º 303/14...., do Juízo Central da Comarca de Aveiro – J2 – por factos de 28/07/2014, por acórdão proferido em 15/07/2019 e transitado em julgado em 30/09/2019, pela prática, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 4 (quatro) crimes de burla, previstos e punidos pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico das aludidas penas, na pena única de 4 (quatro) de prisão; i) No processo Comum Coletivo n.º 136/15...., do Juízo Central Civil e Criminal da Guarda, por factos praticados em setembro de 2015, por acórdão de 16/12/2020, transitado em julgado a 30/09/2021, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva; j) No processo Comum Coletivo n.º723/15...., do Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 3, comarca de Setúbal, o arguido foi condenado pela prática desde setembro de 2015 até maio de 2016, por acórdão de 22/06/2022, transitado em julgado em 07/09/2022 pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de corrupção ativa, p. e p. pelos arts. 374.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, do Código Penal, como reincidente, ao abrigo dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão. k) No processo de cumulo jurídico n.º 3311/18...., do Juízo Central Criminal de Viseu, do Juiz 1, o arguido foi condenado por acórdão proferido em 08.07.2022, transitado em julgado em 23.09.2022, na pena única de 21 anos de prisão. Das Condições de Vida e Antecedentes Criminais do arguido BB 45) O arguido BB: BB é o quarto de oito irmãos, cuja família fixou residência na localidade onde ainda hoje permanece. O pai, empresário da construção civil, ea mãe, doméstica, proporcionaram à família as condições necessárias para um quotidiano sem carências de ordem económica, com um relacionamento estável entre todos os elementos. O processo de socialização familiar e o processo no contexto escolar decorreram com normalidade, com a conclusão da, então, 4ª classe com 10 anos de idade. Começou a acompanhar o pai na atividade de construção civil, que manteve até ao cumprimento do serviço militar, com 20 anos, demonstrando, já na altura, capacidades pessoais de gestão, enquanto o pai se fixava mais em tarefas manuais. Finalizado aquele serviço, retomou, em pleno, a mesma atividade profissional, sobretudo após o falecimento do pai, quando tinha 25 anos. Entretanto, todos os irmãos haviam emigrado para os EUA. Desde então, consolidou a sua empresa de construção civil, geradora de um número considerável de postos de trabalho (80 colaboradores), sendo esta considerada uma empresa de referência na zona, e expandiu-se para outros sectores de atividade, em sociedade com alguns familiares. Casado desde os 23 anos, tem quatro filhos. Para além da atividade laboral, manifestava interesse por outras atividades, tendo estado ligado ao poder autárquico local, desde 1974. Foi, também, membro do Clube de Caça e Pesca de ... e Presidente da Associação da queijaria e pastores de .... À data da reclusão, BB residia com a cônjuge e dois dos seus quatro filhos, numa moradia de que era proprietário. Na altura beneficiava de uma imagem social positiva, associada a um empresário empreendedor, respeitador e com credibilidade profissional, cujas empresas permitiam garantir vários postos de trabalho na zona. Preso em 30/04/2014, BB deu entrada no E.P. de Coimbra em 27/05/2014, proveniente do EPR de Viseu. Recluso primário, BB teve contactos anteriores com o sistema de justiça penal, resultantes do exercício de funções no poder autárquico, nomeadamente no Proc. n.º483/05...., em que foi condenado numa pena de 3 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, pela prática de crimes de abuso de poder e prevaricação, pena extinta por cumprimento. De salientar que, de 12/10/2010 a 22/12/2011, esteve em prisão preventiva à ordem do Proc. 215/08.... e de 22/12/2011 a 16/07/2012 esteve, à ordem do mesmo processo, em Obrigação de Permanência na Habitação fiscalizada por meios de Vigilância Eletrónica. Cumpria pena de dez anos de prisão pela prática dos crimes de burla qualificada, extorsão e branqueamento de capital, à ordem do Proc. 104/07..... No seu percurso institucional, apresentou conduta adequada e em conformidade com as normas. Frequentou, em 2014, o curso “Formar para Integrar”, promovido pelo CPJ, e a ação de formação “Como construir um curriculum vitae” e “Postura em entrevista de emprego”. Devido a problemas de saúde do foro oncológico, o arguido beneficiou de Modificação da Execução da Pena de Prisão em 20-12-2018, medida de flexibilização da pena que decorreu sem incidentes. Entretanto, beneficiou de liberdade condicional em 18-09-2023, medida que cumpre até 26-07-2026, não havendo, até ao momento, registo de qualquer anomalia; Reintegrou a empresa familiar, que constituiu e que, durante o período em que esteve privado de liberdade, foi a filha DD, arguida nos presentes autos, que assumiu todas as responsabilidades relação com os familiares. 46) O arguido BB apresenta os seguintes registos criminais: a) No Processo n.º483/05...., cujos termos correram pelo Tribunal Judicial de ..., foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado no dia 18.03.2011, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de prevaricação e de um crime de abuso de poder, ambos por factos praticados em 11.09.2005. Tal pena foi declarada extinta a 26.05.2015. b) Por sentença proferida no Processo n.º41/10...., cujos termos correram pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado no dia 10.02.2014, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de 11€, pela prática de um crime de falsificação de boletins, atas e documentos, por factos praticados em 08.03.2010. Tal pena foi declarada extinta a 05.06.2015. c) No Processo n.º104/07...., cujos termos correram pelo Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2, comarca de Viseu, foi o arguido condenado por acórdão transitado em julgado no dia 16.04.2014, na pena de 10 anos de prisão, pela prática de um crime de extorsão, por factos praticados em 28.08.2007, por um crime de branqueamento, por factos praticados em 2007, dois crimes de extorsão, por factos praticados em 24.08.2007, um crime de burla qualificada, por factos praticados em 21.08.2007, dois crimes de extorsão na forma tentada, por factos praticados no dia 17.09.2007, um crime de extorsão, por factos praticados no dia 17.09.2007, um crime de burla qualificada, por factos praticados em agosto de 2007, dois crimes de extorsão, por factos praticados no dia 27.08.2007, um crime de burla qualificada, por factos praticados no dia 13.08.2007, três crimes de extorsão, por factos praticados no 31.08.2007, dois crimes de extorsão na forma tentada, por factos praticados no dia 28.08.2007, cinco crimes de burla qualificada, por factos praticados nos dias 21.08.2007, agosto e novembro de 2007 e 30.11.2007 , dois crimes de extorsão na forma tentada, por factos praticados nos dias 23.09.2007 e 29.08.2007. d) No Processo n.º215/08...., cujos termos correram pelo Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 1, comarca de Viseu, foi o arguido condenado por acórdão transitado em julgado no dia 20.12.2017, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de extorsão, por factos praticados em 2006, um crime de branqueamento, por factos praticados em dezembro de 2006, um crime de rapto, por factos praticados 17.02.2007. e) No Processo n.º73/17...., cujos termos correram pelo Tribunal Judicial de ..., foi o arguido condenado por sentença transitada em julgado no dia 02.07.2020, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, pela prática de um crime abuso de confiança fiscal, por factos praticados em 11.07.2011. f) No proferido no Processo n.º2324/22...., cujos termos correram pelo Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 4, comarca de Viseu, foi o arguido condenado por acórdão cumulatório, transitado em julgado no dia 18.01.2023, na pena única de 14 anos de prisão, o qual englobou as penas aplicadas nos processos 104/07...., 73/17.... e 215/08..... Das Condições de Vida e Antecedentes Criminais da arguida DD 47) A arguida DD: DD é a terceira de quatro irmãos. Nasceu no seio de uma família residente em ..., uma pequena localidade rural da freguesia ..., concelho ..., onde não há registo de dificuldades económicas nem de outra natureza. Os pais sempre tiveram uma relação pautada por uma dinâmica comunicacional correta, a qual acabou por ser incutida na educação que deram aos filhos, tendo-se as figuras parentais constituído, por esse motivo, como modelos positivos de identificação. O pai da arguida era empresário com uma vivência quotidiana muito centralizada na atividade que exercia com o objetivo de proporcionar à família o máximo de bem-estar. Contudo, todo o tempo livre de que dispunha dedicava-o aos quatro filhos. A mãe, que nunca trabalhou fora de casa, conciliava a realização das tarefas domésticas com a prestação dos cuidados aos filhos. DD integrou o sistema de ensino na idade normal. Completado o ensino secundário, concluiu no Instituto Politécnico ... licenciatura em Engenharia Civil, concretizando o projeto que foi construindo de assessorar o pai nas obras de construção civil. Durante o tempo da licenciatura, fazia o percurso diário entre o local de residência da família e a cidade ... onde estudava, considerando sempre preferível manter-se integrada no meio familiar. A arguida já teve contactos anteriores com as estruturas judiciais, embora todos estejam circunscritos a um determinado período. No âmbito do processo: 104/07...., DD foi condenada em cúmulo jurídico pela prática, em coautoria, dos crimes de burla qualificada e de branqueamento de capital na pena única de 3 anos e 8 meses de prisão. A pena de prisão foi suspensa na sua execução com regime de prova, por igual período. Durante o mesmo, a Equipa de Reinserção Social acompanhou a execução da mesma e não registou qualquer incidente. Após terminar o curso, DD começou a trabalhar para a empresa familiar de construção civil da qual também é sócia, como consultora técnica. Desde que o pai se encontra em cumprimento de pena de prisão, a arguida tem assumido a gestão da empresa, mantendo a mesma atividade e o mesmo número de colaboradores. Mantém-se integrada no agregado familiar de origem, constituído atualmente, para além da própria, pela mãe e pela irmã SS, médica dentista, também arguida nos presentes autos. Reside em agregado com um clima de grande coesão e de grande comunicação entre os vários elementos que o compõem, o que reforça os laços que os unem, proporcionando um ambiente de confiança e de partilha. Embora privilegie o convívio com a família, a arguida ocupa os seus tempos livres habitualmente na companhia de uma das irmãs e dos amigos. A arguida revela-se apreensiva com o presente processo, considerando que o processo em que viu envolvida teve impacto no seu quotidiano e na própria imagem social, na altura, aguardando agora com alguma expectativa o desenrolar dos ulteriores trâmites processuais. 48) A arguida DD apresenta o seguinte registo criminal: a) No Processo n.º104/07...., cujos termos correram pelo Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2, comarca de Viseu, foi a arguida condenada por acórdão transitado em julgado no dia 05.07.2013, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de branqueamento, por factos praticados em 2007 e dois crimes de burla qualificada, por factos praticados em 11.2007 e 19.12.2007. Tal pena foi declarada extinta em 05.03.2017. b) No Processo n.º73/17...., cujos termos correram pelo Juízo de Competência Genérica de Mangualde, comarca de Viseu, foi a arguida condenada por sentença transitada em julgado no dia 02.07.2020, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5€, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por factos praticados em 15.07.2011. Tal pena foi declarada extinta em 21.01.2022. Das Condições de Vida e Antecedentes Criminais da arguida EE 49) A arguida EE: EE é a mais nova de uma fratria de quatro, nasceu e cresceu no seio de uma família residente em ..., com uma boa integração social que lhe proporcionou um ambiente favorável à adequada aprendizagem das regras e normas sociais, recordando a sua infância e adolescência de forma positiva. Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo feito num só ano letivo o 3º e 4º anos de escolaridade, com o objetivo de assim frequentar o mesmo nível de ensino que a sua irmã DD, um ano mais velha. Após a conclusão do ensino secundário, ingressou na Universidade ..., em Psicologia, tendo no ano seguinte mudado para a licenciatura em Medicina Dentária, na Universidade ..., que concluiu em julho de 2007. Apresenta um percurso profissional estável, com início por volta dos 24 anos de idade. Realizou estágio profissional, embora sem remuneração, numa clínica dentária de ..., tendo começado a trabalhar no .... Como se tratava de uma localidade distante da sua morada de família, optou por mudar-se para ... de forma a exercer medicina dentária. Em 2009/2010, abriu um consultório na localidade de ..., tendo-se mudado posteriormente para .... No ano de 2013 abriu umanova clínica em .... Em termos afetivos, EE, não mantém nenhum relacionamento afetivo, sentindo-se de tal forma bem integrada no seio da sua família de origem que não coloca a hipótese de se autonomizar. De facto, o agregado familiar é caraterizado por um clima de grande união e de comunicação entre os vários elementos que o compõem, reforçando assim os laços que os unem, proporcionando um ambiente de confiança e de partilha. Relativamente aos factos pelos quais vem acusada, mostra-se recetiva a assumir as consequências dos mesmos, embora não se reveja na forma como vem acusada. Não revela hábitos ou condutas de risco, estruturando o seu quotidiano de forma equilibrada, em torno das suas responsabilidades profissionais e familiares. 50) A arguida EE não apresenta qualquer registo criminal. Das Condições de Vida e Antecedentes Criminais do arguido CC 51) O arguido CC: CC é o segundo de dois irmãos. A sua família de origem residia em ... e sempre vivenciou algumas dificuldades, designadamente económicas. Os pais eram agricultores, resultando os rendimentos da família do trabalho nesse sector, de uma forma sazonal. Ao nível da dinâmica familiar, o arguido não apresenta problemas, cresceu num ambiente familiar em que lhe foi proporcionado um correto acompanhamento afetivo e educativo, havendo da parte dos progenitores a preocupação no sentido de lhe serem transmitidas regras de educação e de comportamento. Iniciou o percurso escolar em idade própria, tendo completado o 6º ano de escolaridade, ainda na vila de ... onde residia com os pais. Posteriormente, e a fim de obter um nível de ensino superior e mais especializado, CC veio estudar para ..., para a então designada Escola Comercial e Industrial, tendo concluído o curso industrial com dezassete anos de idade. Um ano depois, alistou-se como voluntário para a Força Aérea, sector das Forças Armadas onde se manteve, como contratado, durante três anos. Casou em 1964, de cujo casamente teve três filhos. Em 1993 a esposa morre, tendo o arguido passado a viver sozinho, pese embora o apoio significativo recebido por parte dos filhos, residentes em .... Posteriormente estabeleceu uma união de facto com TT. Trabalhou desde os vinte anos. Iniciou-se numa empresa de fabrico de estruturas para a construção civil, de azulejos e de mosaicos. Mais tarde exerceu funções no setor de vendas em outras empresas. As mudanças de entidade empregadora tinham a ver com a sua necessidade em melhorar a situação económica e com a própria realização pessoal. A última firma em que trabalhou, antes de se reformar, foi na “A...”, empresado sector da comercialização de veículos automóveis. CC reformou-se em 2005. Porque a reforma era insuficiente para fazer face às suas despesas essenciais, e porque também considerava que se encontrava minimamente ativo para o trabalho, o arguido procurou estar ocupado. Exerceu a atividade de vendedor da imobiliária B... e de Outubro de 2005 a Abril de 2006 trabalhou para as empresas de que o coarguido BB era sócio. Atualmente, CC não exerce qualquer tipo de atividade laboral e reside sozinho, num quarto alugado. O relacionamento marital que mantinha com a sua companheira, UU, entrou em rotura há cerca de 2 anos. O quarto onde vive encontra-se integrado numa moradia que dispõe de concisões de habitabilidade. Paga de renda 225€. As refeições são-lhe servidas pelo Centro de Dia, não acarretando para o arguido qualquer tipo de encargos. Economicamente depende da sua reforma no montante de 400€. Os dois filhos que residem em ... têm-no apoiado. 52) O arguido CC não apresenta qualquer registo criminal. * 2.2 FACTOS NÃO PROVADOS Com interesse para a decisão a proferir, ficou por provar que: 1) As transferências descritas nos factos provados eram por conta de pagamentos relacionados com um contrato celebrado entre o arguido BB e JJ, que tinha por objeto a “Quinta ...”, situada em .... * CONVICÇÃO DO TRIBUNAL Para a formação da respetiva convicção, o Tribunal para a prova dos factos provados atendeu às declarações prestadas pelos arguidos BB, DD, EE e CC (o arguido AA não prestou declarações), aos depoimentos das testemunhas inquiridas (VV, LL, MM, HH, WW, FF, GG, XX, II, YY, ZZ, AAA) e bem assim aos restantes meios de prova que constam dos autos. Ora, começando justamente pelo contrato promessa a que o arguido BB se reportou para explicar as “transações” em análise neste processo, importa desde logo lembrar que o único contrato-promessa comprovado nos autos, no valor de €1.050.000,00, está datado de 16.01.2008, sendo que as transferências são todas anteriores. De forma que, diferentemente do que o arguido BB e as suas filhas DD e EE pretenderam veicular, isto é, que aqueles valores estavam todos relacionados com o dito contrato promessa para a compra de uma Quinta de aquele era titular na zona de ..., não se apresenta, com o devido respeito, verosímil à luz das regras da experiência comum. Desde logo, por não se mostrar crível que o valor acordado fosse ser pago naqueles termos, isto é, mediante transferências esporádicas, de baixo valor (face ao valor da venda) e, aparentemente, sem qualquer critério, ao longo do tempo. Na verdade, note-se que quase todos os valores transferidos são diferentes, por exemplo: no dia 16.08.2007 foram feitas, com sucesso, três transferências, uma no valor de 1.889,95€, outra no valor de 1.890,02€ e outra no valor de 1.957,45€. Já as transferências do dia 13.12.2007, duas são no valor de 1.400€, uma no valor de 1.500,00€ e outras no valor de 1.700,00€, 1.800,00€ e 1.900,00€. No dia 27.12.2007 a mesma coisa: todos os valores transferidos são diferentes, conforme resulta da simples leitura da tabela constante do facto provado sob n.º37. A tudo isto acrescem ainda outros pormenores a reforçar a inverosimilhança da versão dos arguidos BB, DD e EE: a diversidade dos remetentes, os destinatários das transferências, os locais de envio e destino, sendo certo que, em nenhuma delas aparece como remetente o alegado comprador JJ. Acresce que, mesmo as transferências feitas nos mesmos dias tinham, por vezes, destinatários diferentes e locais de levantamento diferentes, o que faz com que nenhuma credibilidade nos tenha merecido a versão dos arguidos que aqueles valores eram por conta de pagamentos de um qualquer contrato, pois se o fosse não se vislumbra qualquer razão para que as transferências tivessem sido feitas nos termos em que o foram e com a intervenção de todos os arguidos, aliás, note-se, por exemplo, que no dia 16.08.2007, foram tentadas cinco transferências, quatro delas para o arguido CC e uma para o arguido BB, o que deixa por entender, à luz das regras da experiência comum, porque é que não foram todas remetidas para a mesma pessoa. E também as transferências do dia 13.12.2007, embora tenham todas como destinatário a arguida DD não se consegue inteligir as razões pelas quais algumas dessas transferências foram para levantar nos CTT – ... e outras no BCP. E o mesmo se refira quanto ao dia 27.12.2007, em que surgem como destinatários a arguida EE e o arguido CC, a primeira para levantar no BCP e o segundo para levantar nos CTT – ..., sendo que, neste dia, os remetentes são todos diferentes. Não colhe, pois, a versão dos arguidos quando tentaram veicular que todas estas transferências foram realizadas por conta de um contrato promessa, pois, como se disse, não é crível e muito menos consentâneo com as regras da experiência comum que o cumprimento de um contrato se concretize daquela forma, em que quer o putativo promitente comprador nunca surge como remetente e, segundo os identificados arguidos, recorria a diferentes pessoas para remeter os valores, como o putativo promitente-vendedor fazia exatamente a mesma coisa e, repita-se, transferências que eram feitas a partir de locais e países distintos. Na verdade, aquilo que os arguidos BB, DD e EE pretenderam infrutiferamente convencer este Tribunal é que, por exemplo, o dito promitente comprador se socorreu no dia 27.12.2007 de cinco pessoas diferentes para proceder às transferências, todas, repita-se, com valores diferentes. A inverosimilhança é de tal forma ostensiva que nenhuma credibilidade nos mereceram os identificados arguidos, tanto mais que o arguido CC, nas declarações que prestou, afirmou que, a dada altura, interpelou o arguido BB para a estranheza do procedimento, sobretudo porque “para pagar atotalidade do preço demoraria a pagar”, acrescentando ainda que “toda a gente levantava” e que “a uma certa altura começou a estranhar por ser dinheiro a mais, disse ao Sr. AA que o valor já era exagerado e que não levantaria mais dinheiro”. Na verdade, em resultado dos laços familiares e/ou proximidade de todos os arguidos (à exceção do arguido CC que era apenas funcionário de uma das empresas do arguido BB) é crível que a existência destas transferências, atenta a sua quantidade e particularidades, fosse discutida entre si, como não seria de crer para os arguidos que os alegados promitentes comprador e vendedor da Quinta se propusessem realizar o preço da compra e venda através de numerosas transferências realizadas de lugares e para lugares tão distintos, em montantes que variavam entre os 1.316,57€ (valor mais baixo) e os 2.227,44€ (valor mais alto), sem nunca ignorar o comprometimento e ansiedade manifestadas pelo arguido BB nas conversações telefónicas para obter o rápido levantamento e/ou depósito dos valores transferidos. É o que resulta das conversações telefónicas, revelando o controlo de BB sobre as transferências realizadas e a realizar em cada momento, circunstância que os arguidos não podiam deixar de estranhar quando, se assim fosse, o remetente seria JJ. Assim, entre outras, revelando a dinâmica do grupo destacam-se as seguintes sessões de escutas telefónicas: - 383, alvo 34508M (BB), dia 10.12.2007, com informação de uma transferência de 1.500,00€ para a conta do alvo por parte da arguida EE (fls. 968 – volume 4.º); - 652, alvo 34508M (BB), dia 27.12.2007, às 21h40, com informação de uma transferência de 5.000,00€ para a conta do alvo por parte da arguida EE (fls. 968 – volume 4.º). - 425, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h35, com o arguido BB a ligar para a arguida DD e a dizer-lhe para levantar o de 1.400 (…) o outro já descarregaram e a dada altura a arguida DD responde ao pai “sim, olha, mas o banco já não (…) mas já não está fechado são três e quarenta?” e onde lhe fornece o número para proceder ao levantamento, referindo a este propósito que “(…) começa em 985 e termina em 98”, isto é, a última transferência constante da tabela do dia 13.12.2007 – artigo 28) dos factos provados. Sessão que consta do apenso V, a fls. 119. - 431, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h47, mensagem com o seguinte teor: ...93 rothers union, corresponde à quarta transferência constante da tabela do dia 13.12.2007, no valor de 1.700€ – artigo 28) dos factos provados. Sessão que consta do apenso V, a fls. 120. - 436, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h50, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe que “ele” vai-te mandar outra mensagem, vai lá acima aos correios da …ao centro, ao outro lado tá bem?” – sessão que consta do apenso V, a fls. 121. - 438, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h57, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe o número – sessão que consta do apenso V, a fls. 121. - 444, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 16h06, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a ditar-lhe o número: “...61”, isto é, corresponde à terceira transferência constante da tabela do dia 13.12.2007, no valor de 1.900€ – sessão que consta do apenso V, a fls. 122. - 451, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 16h27, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe para ir ao Fórum (um centro comercial em ...) e a ditar-lhe um novo número – sessão que consta do apenso V, a fls. 122. Naquele mesmo dia 13.12.2007, o arguido BB também ligou para o seu filho OO – cf. sessão 461, às 20h52, e sessão 464, às 20h59, e das quais ressuma que ambos apercebendo-se que não estavam a conseguir realizar outra operação, o arguido diz ao filho “(…) pronto, mas está bem, se vires que coisa, vem-te embora, não há perigo, deixa ficar…” e já na sessão 464 o filho esclarece o pai porque é que não estava a conseguir: “é que aquilo não está com o nome da pessoa, tá com o nome de empresa, tás a perceber? (…) e não dá (…) a senhora por acaso era uma senhora que já me conhecia e ela disse-me, olhe, pois, realmente é que está com o nome de empresa e isto não dá (…) que não há, cá em Portugal não se consegue fazer transferências assim” – sessão que consta do apenso V, a fls. 126. Além das sessões, também as informações constantes de fls. 1244 a 1248, 2099 a 2103 e 2110 a 2113 (com contactos, números de vezes que contactaram, horas dos contactos e contas bancárias onde posteriormente depositaram o dinheiro) permitem perceber o sucedido nos dias 16.08.2024, 13.12.2007 e 27.12.2007 e a forma como os arguidos interagiram entre si, por forma a lograrem a obtenção das quantias a que se alude nos factos provados. Também as sessões identificadas e extratadas de fls. 679 a 682, 685, 1010, 1011, 1012, 1292, 1293, 1303, 1304, 1313, 1314 a 1317, 1639 a 1644 permitiram dos arguidos e bem assim os valores e gastos do arguido AA (das quais se destacam as sessões: 203 [fls.679, o arguido AA a contactar o arguido BB e a dizer-lhe para avançar rapidamente, “senão fode tudo”]; 205, 211, 212, 214, 220, 305, estas últimas constantes a fls. 679/680; 66, 68, 85, 86 e 87, extratadas a fls. 685; 1566, 1722, 1811, 1814, 1936, 704, 705, 706, 740, 895, 910, 911, 914, 918, 921, extratadas a fls. 764/765; 7358, 7387, 7498, todas a fls. 1011 e 1012; 8593 [fls. 1048, com o arguido a referir ao seu pai que já lhe enviou dois milhões em dinheiro; comprou um apartamento duplex em ...], 8675 [fls. 1048, com o arguido AA a dizer ao pai que tinha consigo, no carro, a quantia de 500 mil euros], 214 [fl. 1292; arguido AA a informar o arguido BB que precisa da DD “senão estraga tudo”], 957, 958, 984, 985 [fls. 1294, com o arguido AA a telefonar ao arguido BB e a perguntar-lhe se a DD “já está”], 1155, 1229). Embora estas sessões não respeitem diretamente aos dias das transferências em análise neste processo, ocorreram no mesmo hiato temporal e, nessa medida, auxiliaram o Tribunal a compreender a dinâmica e as diligências empreendidas pelos arguidos com vista à obtenção daqueles valores. Igualmente os autos de busca e apreensão e de revista a apreensão de fls. 1828 a 1863 (referentes ao arguido AA) e fls. 1890 a 1912 (referentes ao arguido BB) permitiram ao Tribunal inteirar-se dos bens que estes arguidos tinham na sua posse e parte dos equipamentos que utilizavam para a concretização das transferências. Também o auto de busca e apreensão de fls. 1993 a 1999 (referente ao arguido CC). A fls. 1285/1286 consta uma tabela com o valor total dos valores obtidos entre agosto de 2007 e janeiro de 2008, num total de 70.703,74€. De fls. 1761 a 1765, consta uma informação da Western Union e onde são juntos diversos documentos respeitantes às transferências e levantamentos, mais concretamente os levantamentos feitos pela arguida DD no dia 13.12.2007 (fls. 1763, 1764, 2205, 2206, 2207, 2208, 2209, 2210, 2211 a 2215) e as ocorridas no dia 27.12.2007 (fls. 1765, 2216 a 2219). De fls. 1810 a 1825 resulta, além do mais, informação relativamente aos episódios de 13.12.2007 e 27.12.2007, sobretudo a constante a fls. 1813, com uma descrição pormenorizada do sucedido no dia 13.12.2007 e que permite compreender a forma como o arguido AA procedeu para obter os valores que obteve naquele dia. De fls. 2462 a 2477 e 2484 a 2486, 2620, 2621, 2622, 3037 e 3042 constam diversos documentos respeitantes aos episódios ocorridos nos dias 16.08.2007, 13.12.2007 e 27.12.2007 e que comprovam, além do mais, os levantamentos junto dos CTT e as transferências realizadas naqueles dias e onde é igualmente possível verificar a identificação dos remetentes, dos destinatários e os montantes obtidos em cada uma daquelas datas. A fls. 2821 consta informação bancária referente aos dias 13.12.2007 (arguida DD) e 27.12.2007 (arguida EE) e onde além dos valores, dos MTCN, destinatários, figuram também o nome dos ordenantes das transferências. Além disso, considerou-se a informação constante dos apensos, embora o apenso I contenha essencialmente os acórdãos proferidos no Processo Comum Coletivo n.º 104/07.... do Juízo Criminal de Viseu – Juiz 2. Maior relevância assumiram os apensos II e III (com dados de tráfego), mas sobretudo o apenso IV que, por sua vez, contém a análise feita àqueles mesmos dados de tráfego pela Unidade Nacional Contra-Terrorismo da Polícia Judiciária (análise essa que incidiu sobre 34 números de telefone e respetivas listagens detalhadas e que teve em consideração um lapso temporal de julho de 2007 a março de 2008, cf. página 1 do identificado apenso). Neste apenso IV (e para o que aqui releva), atentou-se sobretudo nas informações registadas da página 28 à página 32 (respeitante ao dia 16.08.2007), página 80 à página 81 (respeitante ao dia 13.12.2007) e, por fim, da página 84 à página 86 (respeitante ao dia 27.12.2007) e onde consta, além do mais, informação detalhada quer quanto às horas das chamadas, arguidos envolvidos e números de telefones usados, tudo a corroborar a factualidade dada como provada. Ora, todos os descritos factos foram, em parte, corroborados pela testemunha VV, funcionária dos CTT há 22 anos, ao afirmar que conhecia os arguidos do exercício das respetivas funções e descreveu o procedimento normal com as transferências feitas com a WU. A este propósito disse que os clientes tinham de dizer qual o serviço que pretendiam e depois entregava-lhes um formulário com campos obrigatórios, como a identificação do remetente, do destinatário e do montante. Se o que “estivesse” no papel estivesse correto com o que constava no sistema “procediam ao pagamento”. Esclareceu ainda que havia um código MTCN, necessário ao levantamento e que só era possível levantar com este código. Mais esclareceu que quem se apresentava para levantar estes valores tinha de apresentar um documento de identificação, cartão de cidadão e/ou bilhete de identidade. Instada, disse que todos os arguidos se apresentaram nos CTT para levantar dinheiro, por vezes, mais do que uma vez por dia. Confrontada com fls. 2224 a 2228, reconheceu os documentos em causa como sendo os formulários preenchidos nos CTT pelo destinatário das transferências. As entregas eram feitas em numerário. Relatou ainda uma situação em que recusou um pagamento ao arguido AA por não estar tudo correto, neste caso, o nome do beneficiário, e passado pouco tempo (minutos), os dados foram corrigidos, o que a surpreendeu, porque, normalmente, não era possível proceder a alterações de uma forma tão rápida, além de que a regra era que a correção tinha de ser efetuada por quem enviava, por ser quem pagava o serviço. A testemunha LL, inspetor da PJ desde 1989, inspetor chefe, departamento Unidade Nacional contra terrorismo desde 2005. Disse conhecer os arguidos apenas do processo e que teve pouca intervenção, esclarecendo que as diligências de investigação passaram mais pelo colega MM. E foi justamente esta testemunha MM, também inspetor chefe da PJ, há 19 anos, na Diretoria de Lisboa, que elucidou o Tribunal quanto àquilo que, em verdade, resulta da documentação junta ao processo, isto é, que as “burlas” aqui em causa perduraram ao longo de meses e que aquilo que se apurou é que na altura o arguido AA, através de utilização de telemóvel, contactava várias agências da Western Union e “ia fazendo operações monetárias”, simulando que se tratava de operações de rotina, alegando depois que essas operações eram eliminadas, por forma a obter seguidamente as transferências. Esclareceu igualmente que o AA procedia de duas formas: ou fazia-se passar por um funcionário ou recorria a ameaças de bomba. Não hesitou também em afirmar que das escutas realizadas resultou demonstrado, na sua perspetiva, que os familiares tinham conhecimento do que se estava a passar. Pela forma como as identificadas testemunhas se apresentaram, de modo conhecedor, detalhado e objetivo mereceram a credibilidade do Tribunal. Já as testemunhas HH, WW, FF, GG, XX, II, YY, ZZ, AAA não assumiram relevância para a prova dos factos, pois que, com exceção das últimas três, que foram essencialmente abonatórias, as restantes reportaram-se a um contrato e à realização de um projeto e obras que, pelas razões já analisadas anteriormente, não encontram convictamente qualquer ligação lógica com as transferências aqui em causa, não só porque são anteriores ao alegado contrato, como a sua proveniência ilícita está cabalmente comprovada pelo que já se assinalou precedentemente. Por tudo quanto se mencionou é, pois, convicção deste tribunal que todos os demais arguidos sabiam e queriam o meio fraudulento (burlas) empreendido por AA para obter cada uma das transferências que levantavam e/ou cujo depósito em conta bancária viabilizavam, atuando em comunhão de esforços e intenções com aquele e o arguido BB. Conhecimento e vontade que, ademais, é evidente em relação ao arguido BB, dado o seu contacto direto com AA percetível nas inúmeras conversações telefónicas intercetadas a respeito da discussão entre ambos sobre as vicissitudes das transferências. As arguidas EE e DD reconheceram ter disponibilizado as suas contas do Millenium BCP para efeitos de viabilizarem a realização de transferências diretas da WU a creditar nas mesmas, o que fizeram a pedido do seu pai, BB, embora, dissessem, a pretexto de se tratar do pagamento do preço da venda da dita Quinta ..., o que, nesta parte, não convenceu minimamente o Tribunal, não só pelo que já se anotou, mas também porque aquilo que evola diretamente de todas as escutas (e que, uma simples leitura das transcrições, permite perceber de imediato) é que todos sabiam exatamente o que estava em causa e que nenhuma relação tinha com a dita compra e venda, dado o receio, cuidado e rapidez que os arguidos imprimiam na realização dos atos, o que, também segundo as regras da experiência comum, não teria qualquer sentido se o que estivessem a fazer fosse algo de lícito, neste concreto caso, o de receber o preço da venda da dita Quinta, como os arguidos BB, DD e EE inutilmente pretenderam convencer este Tribunal. Tudo, pois, para reiterar que o receio, apreensão e rapidez patenteadas pelos arguidos nas escutas é, com o devido respeito por opinião contrária, um sinal inequívoco que aquelas transferências nada tinham a ver com um qualquercontrato, mas antes, e apenas, um sinal evidente que os arguidos bem sabiam o que estavam a fazer e que conheciam a ilicitude da obtenção daquelas quantias. Os factos dados como provados de 1) a 16) ficam a dever a sua resposta a tudo quanto se registou anteriormente, mas também às informações constantes dos relatórios sociais dos arguidos (em particular ao do arguido AA e onde se mostra espelhado o seu percurso de vida e as razões que o levaram a vir para Portugal), mas também ao que resultou provado no âmbito do processo Comum Coletivo n.º 104/07.... do Juízo Criminal de Viseu – Juiz 2, transitado em julgado no dia 16-04-2014. Os factos pelos quais os arguidos foram condenados neste acórdão foram praticados no mesmo período temporal. Nestes autos, estão em causa factos praticados nos dias 16.08.2007, 13.12.2007 e 27.12.2007 e no processo n.º104/07.... foram os arguidos julgados e condenados, além do mais, por factos praticados entre os dias 7 e 11 de agosto de 2007 e nos dias 13.08.2007, 14.08.2007 e 16.08.2007[1], 17.08.2007, 18.08.2007, 20.08.2007, 21.08.2007, 22.08.2007, 23.08.2007, 24.08.2007, 27.08.2007, 28.08.2007, 29.08.2007, 31.08.2007, 17.09.2007, 18.09.2007, 20.11.2007, 21.11.2007, 30.11.2007, 07.12.2007 e 19.12.2007. Isto é, tudo no mesmo hiato temporal, o que permitiu ao Tribunal perceber que os factos em apreciação neste processo não foram atos isolados na vida dos arguidos, mas antes, e ao invés, condutas reiteradas entre agosto e dezembro de 2007, corroborando, na verdade, toda a prova produzida em julgamento e toda a restante prova junta aos autos. Isto no que concerne aos factos provados * Relativamente ao facto não provado, a sua resposta fica-se a dever a tudo quanto se escreveu anteriormente a propósito dos factos provados. * Para a prova dos elementos subjetivos foram consideradas as regras da experiência comum, em face de toda a restante prova, em particular as escutas e os relatados comportamentos dos arguidos e bem assim o contexto em que os factos foram praticados, tudo conjugado ainda com o teor dos depoimentos das primeiras testemunhas inquiridas na audiência de julgamento. Para a prova dos antecedentes criminais (ou ausência destes, quanto aos arguidos EE e CC), valorou o Tribunal o teor dos últimos certificados de registo criminal juntos aos autos. A respeito das condições pessoais de vida dos arguidos, nos seus aspetos familiares, profissionais, económicos e sociais, sopesaram na convicção do tribunal, os relatórios sociais da DGRSP. Para além dos factos meramente conclusivos e que não constem do elenco dos factos provados, ou que estejam em contradição com os que resultaram provados, nenhum outro facto se provou com relevância para a decisão da causa. E esta é, em conformidade, a convicção do Tribunal quanto à matéria de facto. * 2.3 DO DIREITO DOS CRIMES DE BURLA Dispõe o artigo 217.º, n.º1 do Código Penal que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Flui, assim, do citado inciso legal que comete um crime de burla quem, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que esta última, por esse motivo, pratique atos que causam a si mesma ou a terceiro prejuízos de carácter patrimonial[2]. Constituem, por conseguinte, elementos objetivos do tipo: quem, através de astúcia provoque erro ou engano a outrem, levando-o através desse erro a que pratique atos que causem prejuízo patrimonial à vítima ou a terceiro. O bem jurídico é o património globalmente considerado. Trata-se, por isso, de um crime de dano e material ou de resultado, isto é, que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro, sendo relevante a existência de um duplo nexo de causalidade adequada: - Entre o ato astucioso do agente e o ato de disposição da vítima; - Esse ato de disposição e provocação de um efetivo prejuízo no património alheio. Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes à diminuição do seu património ou de terceiro e depois entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo, sem que haja necessidade de recorrer à figura de “sub-nexos causais”[3]. No tocante à conduta típica, o crime de burla caracteriza-se como um delito de execução vinculada, já que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de um comportamento enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro (que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios). Esse comportamento enganoso tem de revelar «astúcia»; não basta qualquer erro, o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente. Não basta que a atitude psicológica do agente seja astuciosa: a conduta exterior deverá revelar astúcia para efeito do preenchimento do tipo. Astúcia significa, neste contexto, habilidade em enganar, ardil, manha, esperteza, sagacidade, engenhosidade, enredo subtil, trapaça, mistificação, embuste, logro, etc. O falso convencimento da realidade por parte do burlado não nasce de uma qualquer mentira, erro ou engano, mas antes da particular maneira como lhe é dada a conhecer, provocada, pelo burlão5. [4] De sublinhar quanto ao sujeito passivo que nem sempre se verifica coincidência entre a pessoa induzida em erro ou enganada e a pessoa titular do património lesado; sujeito passivo é o que vem a sofrer - realmente - o prejuízo[5]. Mas não se exige para preenchimento do tipo que o enganado seja titular de direito real sobre a res captada[6]. O crime de burla é qualificado nos termos do artigo 218º do Código Penal. De acordo com este artigo, quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo 217º é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias. Se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a moldura penal do crime é de 2 a 8 anos (n.º 2, alínea a)). Se o agente fizer da burla modo de vida (alínea b) do n.º 2), o crime é também agravado nos termos do n.º 2 do citado artigo 218º. O modo de vida é a atividade com que o agente se sustenta, não sendo necessário para que opere esta qualificativa que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente[7]. De qualquer modo, esta agravante qualificativa (fazer da prática da burla modo de vida) exige a demonstração de factos que tipifiquem uma certa regularidade ou reiteração, uma série mínima de atos da mesma natureza[8]. Aqui chegados dir-se-á que, usando a mentira e valendo-se do conhecimento que possuía sobre o processo de transferências monetárias, o arguido AA, em comunhão de esforços e intentos, com o arguido BB, fazendo-se passar por elemento técnico da empresa, atuou engenhosa e fraudulentamente sobre o(a)s diverso(a)s funcionário(a)s das agências que o atenderam, induzindo-o(a)s em erro ou falso convencimento quanto à encenada verificação e/ou reparação de anomalias do sistema informático de transferências. Acreditando na veracidade dos mencionados problemas do sistema de transferências, o(a)s funcionário(a)s das agências procederam à realização de váriastransferências monetárias, que os arguidos fizeram suas, nessa medida enriquecendo, em prejuízo da(s) entidade(s) lesada(s) que se viram despojadas dos valores correspondentes. Atuaram aqueles funcionários no ilusório convencimento de que tais montantes não seriam, como foram, efetivamente transferidos, antes convictos que as operações determinadas pelo arguido AA se destinavam à mera verificação e/ou regularização do sistema de transferências monetárias. Temos, pois, firmada a relação causa/efeito, entre a astúcia e o erro, entre o erro e a prática de factos pelas próprias vítimas e entre esses atos das vítimas e o prejuízo das entidades lesadas. De resto, o arguido AA, atuando habitualmente em comunhão de esforços e intentos com o arguido BB, estava ciente de que assim atuando empreendia um estratagema enganador adequado a iludir e ludibriar as agências visadas de quem recebiam as quantias transferidas, tudo por forma a fazer-lhes crer na verificação e/ou reparação das anomalias do sistema e que, assim, logravam um benefício a que sabiam não ter direito, em prejuízo de outrem. Demonstrado ficou também que os arguidos AA e BB atuaram em comunhão de esforços e intenções com os arguidos CC (factos do dia 16.08.2007), DD (factos do dia 13.12.2007) e EE (factos do dia 27.12.2007), que procederam ao levantamento das transferências e/ou autorizaram o respetivo crédito em conta bancária, bem sabendo e querendo estes últimos conseguir, da forma sobredita, a execução e o valor das transferências monetárias assim conseguidas, suscetíveis de causar, como causaram, o correspondente prejuízo patrimonial. Por conseguinte, estão verificados todos os elementos objetivos do crime de burla. Pelo exposto, os arguidos, representando o tipo de ilícito em todos os seus contornos descritivos (elemento intelectual do dolo), atuaram com intenção de conseguir o resultado típico (elemento volitivo do dolo), cometendo tantos crimes de burla quanto o número de agências individualmente visadas com a atuação de cada um deles. Assinale-se, porém, que relativamente aos arguidos CC, DD e EE apenas atuaram em comunhão de esforços e intentos com os arguidos AA e BB, com conhecimento e vontade destes, na execução e obtenção das transferências a cujo crédito em sua conta e/ou levantamento procederam (e não também relativamente àquelas em cuja obtenção não participaram). Quanto à qualificativa da burla referente ao modo de vida, os factos documentam a prática reiterada de crimes de burla por parte do arguido AA, cujo produto servia ao seu sustento. Com efeito, ficou demonstrado que este arguido, na sequência de factos ilícitos praticados nos Estados Unidos da América, fugiu para Portugal em 2003 para evitar ser capturado pelas autoridades norte-americanas e cumprir pena criminal. Por força da prática desses atos, o mesmo conhecia o sistema de processamento de transferências monetárias realizado por empresas como a Western Union (WU) e a MoneyGram (MG). Após a sua chegada ao nosso país, como a ocupação profissional aqui encontrada não lhe proporcionasse, todavia, o estilo de vida e os meios materiais que para si ambicionava e a que estava habituado, a partir de certa altura, anterior a finais de 2006, o arguido AA formulou repetidamente a intenção de passar a captar fraudulenta e ilicitamente valores monetários através do sistema de transferências utilizado pela Western Union (WU) e MoneyGram (MG), conseguindo também por essa via prover ao seu sustento. Verificada está, pois, tal agravante relativamente ao arguido AA, atenta a quantidade de atos ilícitos praticados, de que retirou efetivo proveito, vivendo do produto das burlas com que fazia face às suas despesas do dia a dia e de que inúmeras escutas identificadas na motivação da matéria de facto são bem ilustrativas. Outra questão que aqui se coloca prende-se com o facto de considerar que a habitualidade (pluralidade de crimes) não se confunde (nem pode confundir) com modo de vida, não se tratando do mesmo conteúdo fáctico. Embora ambos pressuponham a prática de uma pluralidade de crimes (elemento comum traduzido numa série reiterada de modelos de comportamento), o modo de vida parte do principio de que o agente satisfaz as suas necessidades quotidianas através dos proventos obtidos na prática de atividades ilícitas, enquanto a habitualidade pressupõe uma prática reiterada de crimes pelo agente que projeta, no modo como eles são cometidos, a sua predisposição para aquele tipo de atividade[9]. Tratando da diferenciação entre a habitualidade (redação originária do Código Penal de 1982) e o “modo de vida” (reforma de 1995), Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 16.ª edição, p. 746, recorda que a expressão “o agente fizer da burla modo de vida” tem um conteúdo menos abrangente que a “entrega habitual do agente à burla”. Também já o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2003 (Silva Flor) www.dgsi.pt, focado na dicotomia da habitualidade e do modo de vida, concluiu que a primeira, só por si, atualmente não integra a referida circunstância qualificativa. Vale isto dizer que, à semelhança do que sucede com a reincidência, a circunstância agravante do modo de vida não pune essa prática reiterada de crimes[10], caso em que estaríamos perante uma dupla valoração[11], antes se centra na especial ilicitude resultante do agente fazer disso a fonte dos proventos para a sua sustentação. Mas, ainda que assim não fosse, o que não se aceita, no caso, conforme demonstrado, os atos de burla cometidos pelo arguido e que serviam ao respetivo sustento vão muito além dos crimes autónomos aqui considerados, razão pela qual independentemente da punição destes sempre ocorreria a verificação daquela circunstância agravante sem risco de dupla valoração do mesmo facto. Já no que toca aos demais arguidos, não ficou demonstrado esse especifico modo de vida, cumpre recordar que tão-pouco vem concretizado, nem resultou provado o conhecimento e conformação dos mesmos sobre essa especial circunstância qualificativa em torno da atuação do arguido AA (artigo 28º do Código Penal)[12]. De resto, sempre poderá contrapor-se que o “modo de vida” não constitui uma “qualidade ou relação especial do agente” (artigo 28.º, n.º1 do Código Penal), mas antes um específico “modo de atuação” que só o próprio, em princípio, domina e de que os comparticipantes em parte dos atos que constituem o modo de vida, dificilmente conhecerão o alcance global[13]. De referir ainda não ter ficado provado que os arguidos CC, DD e EE tivessem atuado em comunhão de esforços e intentos com os demais arguidos – AA e BB –, com conhecimento e vontade daqueles, na execução e obtenção das transferências a cujo crédito em sua conta e/ou levantamento não beneficiaram e/ou não procederam. Ora, não se aplicando a agravante “modo de vida” quanto a estes arguidos, fica assim excluído o n.º2 do artigo 218.º do Código Penal, pelo que apenas poderão ser punidos pelo n.º1 da referida norma legal. Posto isto, e comprovado que ficou também que os arguidos, nos precisos termos e ocasiões sobreditas, agiram de comum acordo e em comunhão de esforços, com conhecimento do que faziam no modo referido e animados de dolo direto em consonância com o plano e o modo de execução estabelecidos (co-autoria). Assim, os arguidos cometeram os seguintes crimes de burla: O arguido AA, em coautoria e na forma consumada, três crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1 e 2, alínea b), todos do Código Penal; O arguido BB, em coautoria e na forma consumada, a prática de três crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal; A arguida DD, em coautoria e na forma consumada, a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal; A arguida EE, em coautoria e na forma consumada, a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1, 218.º, n.º1, todos do Código Penal; O arguido CC, em coautoria e na forma consumada, a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 26.º, 217.º, n.º1 e 218.º, n.º1, todos do Código Penal. * DA UNIDADE À PLURALIDADE DE CRIMES Aqui chegados, importa dilucidar se estamos perante uma unidade criminosa, um concurso real de crimes ou uma continuação criminosa. Concretamente, questiona-se a respeito das burlas se estamos perante um só crime ou tantos crimes quantas as agências lesadas. O problema levanta-se, desde logo, quanto à distinção entre unidade e pluralidade de resolução criminosa, devendo o respetivo enquadramento ser equacionado perante o caso concreto. A dificuldade reside em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas (caso configurável como concurso real de crimes ou como crime continuado) ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa. Essencial será, sempre, aferir da conexão temporal que liga as várias condutas do agente, pois como afirma Eduardo Correia, in Direito Criminal II, 1971, pg.202: "para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação". De acordo com o disposto no artigo 30º do código Penal, em matéria de unidade e pluralidade de infrações, a lei admite três modalidades: - Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial, ou seja, se tiver havido um só desígnio criminoso; - Um só crime continuado, se toda a atuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligada por fatores externos que arrastam o agente para a reiteraçãodas condutas, ou seja persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminuí consideravelmente a culpa do agente. - Um concurso de infrações, se não se verificar qualquer um dos casos anteriores. O critério de distinção entre unidade e pluralidade de infrações não é um critério naturalístico mas, antes, um critério normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais violados, expressos nos tipos legais de crimes, correspondendo à unidade ou pluralidade de juízos de censura tendo na base a unidade ou pluralidade de resoluções criminosas[14]. Assim, importa aferir do número de resoluções criminosas do agente, as quais, atenta a natureza e forma de execução dos crimes em questão, se encontram ligadas ao número de vítimas. Ora, demonstrado ficou que o arguido AA formulou repetidamente a intenção de passar a captar fraudulenta e ilicitamente valores monetários através do sistema de transferências monetárias, organizando-se conscientemente com BB e com os demais arguidos para assegurar o efetivo e rápido recebimento dos valores transferidos, bem como a posterior dissimulação da sua origem. Para cada uma dessas atuações, os arguidos, atuando de forma concertada, tiveram uma resolução criminosa, tendo formado uma nova resolução criminosa ao se decidir em momentos distintos praticar os factos contra outra vítima, previamente selecionada, sendo diferentes as agências visadas, seus contactos e localizações, alterando a cada passo os beneficiários, locais e forma de obtenção das transferências. Ora, salvo melhor opinião, investindo a cada momento contra agências distintas, no âmbito de processos diferentes e condicionalismos específicos de cada atuação, não é de aceitar que todo o relatado comportamento dos arguidos se fundasse numa decisão assumida, deliberada e pensada uma única vez, antes obedeceu nas condutas parcelares a uma renovação sucessiva do desígnio criminoso. Em cada uma das situações descritas, após vencerem obstáculos variáveis e imponderáveis, os arguidos resolveram atuar sobre novas e sucessivas agências para conseguir integrar no seu património o dinheiro que logravam, reiterando a cada passo a concretizada opção criminosa de assim o conseguir. Existiu então uma pluralidade de resoluções autónomas, uma pluralidade de juízos de censura, e uma consequente violação plúrima do mesmo bem jurídico, consubstanciadora da prática de tantos crimes de burla e extorsões quanto o número de agências respetivamente burladas e extorquidas. Perante tal pluralidade de resoluções criminosas resta indagar da verificação de um crime continuado ou concurso real de crimes. Relativamente a uma mesma agência, não obstante algumas delas terem procedido a diversas transferências que os arguidos obtiveram, afigura-se estarmos perante uma unidade criminosa. Naquele mesmo contexto e conexão temporal tudo indica que sobre cada uma delas os arguidos atuaram no desenvolvimento de uma única e idêntica motivação criminosa, sem necessidade de renovar o seu desígnio criminoso perante a mesma vítima[15]. E quanto ao crime continuado, são pressupostos cumulativos do crime continuado[16]: - Realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); - Homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objetivo da ação); - Unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da ação) em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada"; - Lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado); - Persistência de uma situação exterior: - Que facilite a execução; e - Que diminua consideravelmente a culpa do agente. No caso dos autos torna-se claro que a prática dos diferentes crimes resulta de uma execução essencialmente homogénea, com uma sucessão temporal próxima. O que não ressuma da matéria de facto provada é uma situação exterior que tivesse facilitado a execução dos crimes e menos ainda que diminua e consideravelmente a culpa da arguida (art.30º, nº2 do Código Penal). Escreve Teresa Beleza, in Direito Penal, II, 613, que o traço essencial da continuação ou repetição criminosa “deriva não tanto de a pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas, mas do facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro ato favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, porque há um certo circunstancialismo externo que facilitou essa sucessiva reiteração de uma ação idêntica. Esse circunstancialismo externo, na medida em que facilita o sucessivo "cair em tentação", se quiserem, do agente dos crimes, significa que na medida em que há essa facilitação, a pessoa é menos censurável por ter ido sucessivamente sucumbindo à tentação”[17]. Ora, no caso dos autos, não se vê qualquer situação externa aos arguidos que lhes tenha proporcionado a repetição das ações. Não o será por certo a mera circunstância de reiteradamente se verem bem sucedidos, quando para tal só eles criaram as condições favoráveis à obtenção desse resultado numa dinâmica funcional de carácter endógeno que lhes facilitou a repetição do facto criminoso[18]. De qualquer modo, tal como a impunidade sentida ao longo da atuação, não se vê como o sucessivo êxito da mesma possa sugerir sem mais uma considerável menor censurabilidade. Na verdade, para efeitos de crime continuado, a diminuição considerável da culpa assenta em solicitações de uma situação exterior, que tendencialmente conduzem à violação repetida do mesmo tipo legal, ou à violação plúrima de vários tipos protetores do mesmo bem jurídico. Não basta a repetição de um mesmo estado de coisa. É necessário que dele resulte uma pressão externa sobre o agente que, preparando ou facilitando a execução do facto, o arrasta para o crime, diminuindo a sua liberdade de determinação e, por essa via, a exigibilidade de comportamento diferente[19]. No caso, o que sucede é que de todas as vezes que atuaram os arguidos tiveram de vencer obstáculos, que embora semelhantes, tiveram grau de dificuldade variável e que, à partida, eram para si de todo incontroláveis, não lhes permitindo antever sequer uma maior facilidade na execução. O que ressuma dos factos provados é que foram sempre os arguidos quem criaram as condições necessárias para a prática dos crimes, adaptando o seu “modus operandi” às circunstâncias específicas que lhes surgiam em cada contacto telefónico e em função dos seus desígnios, sem que qualquer elemento ou fator exterior ou exógeno diminua ou mitigue a sua culpa. Pelo menos não resulta dos factos provados a existência de um condicionalismo exterior aos arguidos que facilitou a sua atuação, que facilitou a repetição da atividade criminosa e que, por isso, lhes diminua a culpa. Afigura-se-nos, por conseguinte, estarmos perante uma pluralidade de crimes, sob a forma de concurso efetivo. * DA ESCOLHA E MEDIDA CONCRETA DAS PENAS Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos importa, agora, determinar a natureza e medida das sanções a aplicar. Porque os ilícitos criminais previstos pelo artigo 218.º, n.º1 do Código Penal são puníveis com pena de prisão ou multa, impõe-se, desde já, proceder à escolha da pena principal, sendo certo que, nos termos do preceituado no artigo 70º, do mesmo diploma, o tribunal deve dar preferência a uma pena não privativa de liberdade, mas sempre e só quando esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. O Código Penal não deixa, hoje, margem para dúvidas de que o critério geral de escolha da pena radica exclusivamente em exigências de prevenção geral ou especial, centrando-se, agora, a função da culpa na determinação da medida da pena. No caso, sendo elevadas as exigências de prevenção geral resultantes do elevado cometimento dos crimes de burla, também o especial desvalor da ação associado à forma de cometimento das transferências fraudulentas em causa impõe a aplicação da pena privativa de liberdade, por se considerar que a pena de multa não é suficiente nem adequada aos interesses a que alude o citado artigo 70.º do Código Penal. No caso dos arguidos AA e BB também a reiteração do mesmo tipo de conduta reforça, neste caso, as necessidades de prevenção especial, sendo certo que ambos têm antecedentes criminais. Passando à dosimetria das penas, nos termos do artigo 71º, importa considerar, fundamentalmente, a culpa, mas também as necessidades de prevenção especial e geral e as demais circunstâncias atípicas que deponham a favor e contra os arguidos. Por se refletir na pena, através da culpa, antes de mais, há que considerar como fator de graduação daquela, a ilicitude típica que em cada caso, no quadro da moldura legal correspondente, se afigura grave em relação aos arguidos AA e BB, embora seja superior o desvalor da ação do primeiro pela maior participação e domínio deste na execução das disposições patrimoniais pretendidas. Quanto aos demais arguidos o grau de ilicitude é médio, considerando a menor importância da sua conduta no plano global da atuação dos agentes, sendo também inferior o desvalor do resultado em consequência do menor ou inexistente proveito daí decorrente. Na verdade, enquanto os arguidos AA e BB eram os responsáveis diretos pela execução das transferências e organização dos levantamentos, os demais arguidos, embora com responsabilidades importantes na obtenção do dinheiro, limitavam-se a cumprir as tarefas instruídas pelos primeiros. De sublinhar que após o recebimento das quantias transferidas, o dinheiro tinha o destino que os arguidos AA e BB determinassem, circunstância que comparativamente com os restantes servirá de agravante geral, pois que não é conhecida qualquer reparação do prejuízo ocasionado, nem foi veiculada qualquer vontade de o fazer. De referir que o valor diferenciado das transferências em cuja execução e/ou obtenção os arguidos participaram justifica, numa mesma moldura, uma gradação das penas correspondentes à sua atuação, diferenciação que se evidencia com o progressivo afastamento do limiar mínimo do valor qualificativo da burla e, na medida da pena do arguido AA, no caso em que ocorre uma agravante (modo de vida). Também a forma de participação, co-autoria material, surge como agravante. O dolo dos arguidos, sendo direto, foi particularmente intenso, bem evidenciado na forma calculista e engenhosa como ludibriaram os ofendidos, o que significa um maior juízo ético-social de desvalor. Acresce que, com exceção do arguido CC, os restantes arguidos não colaboraram para a descoberta da verdade, limitando-se, em rigor, a confirmar aquilo que já ressumava da prova junta aos autos, circunstância que naturalmente não os pode beneficiar, antes comprova a falta de colaboração prestada e a ausência de arrependimento, sobretudo quando procuraram associar as ditas transferências ao cumprimento de um contrato promessa de compra e venda, quando bem sabiam que não tinha qualquer correspondência com a realidade – isto quanto aos arguidos BB, DD e EE, pois que, como se viu, o arguido AA não prestou declarações. Em todo o caso, a favor dos arguidos EE e CC depõe a ausência de antecedentes criminais e o mesmo se refira em relação à arguida DD, a qual, pese embora mostre averbada uma condenação por crimes de idêntica natureza, a realidade é que aquando da prática dos factos aqui em causa não tinha qualquer condenação, porquanto a dita decisão apenas transitou em julgado no dia 05.07.2013. E o mesmo se refira quanto aos arguidos AA e BB, os quais apesar de apresentarem diversas condenações em juízo, certo é que, com exceção de uma condenação do arguido AA pela prática de dois crimes de falsificação por factos praticados em 2003, as restantes respeitam a decisões transitadas em julgado em momento posterior aos factos aqui em apreço. Já no que concerne às condições de vida social, familiar e ocupacional do arguido AA, estas não depõem a seu favor, diferentemente dos demais arguidos que, neste particular, beneficiam de bons níveis de integração, social e familiar. Todavia, o tipo de crimes em causa normalmente tem como agentes indivíduos socialmente integrados e, por vezes, com elevado estatuto social e económico. Porém, tal circunstância não constitui fundamento para uma particular diminuição da pena, “pois a desnecessidade de intervenção, por meio da pena, no âmbito da reinserção social do agente do ponto de vista cultural, económico e familiar, é compensada pela necessidade dessa intervenção no que se conexiona com o asseguramento do respeito pelos valores de ordem económica e social que estão na base de direitos fundamentais constitucionais e em relação aos quais o tipo de agentes implicados nestes crimes se mostra particularmente insensível e com um acentuado grau de dessocialização. Mostra-o a indiferença que revelam por esses valores comunitários, que subalternizam totalmente ao reino dos seus interesses egoísticos, onde só procuram colher benefícios, ainda que à custa do sacrifício do património coletivo”. A favor arguido CC depõe também a idade já avançada do mesmo. O caso reclama particulares exigências de prevenção geral, na medida em que estes crimes põem em causa os sentimentos de segurança associados a este tipo de atividade e ao mercado económico-financeiro e bancário. De modo que, atendendo à intensidade do dolo e à necessidade de a comunidade ver reforçado o seu sentimento de segurança na estabilização dos valores e na erradicação das violações em matéria de fraudes, entende-se que a pena de prisão, embora adequada e proporcional à culpa e aos factos, não pode se situar muito próxima do seu mínimo e, nessa medida, tem-se por ajustada aos critérios do artigo 71.º e às finalidades da punição: CASO "SOBEYS #871" – 16.08.2007 I) A condenação do arguido AA numa pena de prisão de três anos; II) A condenação do arguido BB numa pena de um ano de prisão; III) A condenação do arguido CC numa pena de oito meses prisão. CASO "CHANGE BD" – 13.12.2007 I) A condenação do arguido AA numa pena de três anos e seis meses de prisão; II) A condenação do arguido BB numa pena de um ano e quatro meses de prisão; III) A condenação da arguida DD numa pena de um ano de prisão; CASO “THE MONEY SHOP" – 27.12.2007 I) A condenação do arguido AA numa pena de prisão de três anos e quatro meses de prisão; II) A condenação do arguido BB numa pena de um ano e dois meses de prisão; III) A condenação da arguida EE numa pena de dez meses de prisão; * CONCURSO DE CRIMES Determina o artigo 77º, nº 1, do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Acrescenta o nº 2 que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Por fim, refere o nº 3 que “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém -se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”. Destarte, e tendo em conta os pressupostos ditados pelo artigo 77º, nº 1, do Código Penal, dúvidas não restam quanto ao facto de se estar perante uma situação de concurso de crimes relativamente aos arguidos AA e BB. Com tal desiderato, importa assim considerar o seguinte: - O grau de ilicitude dos factos e culpa dos arguidos AA e BB foram globalmente acentuados; - O arguido BB não apresentou uma colaboração aberta e particularmente relevante dos factos, na verdade, procurou veicular uma versão completamente inverosímil, pelas razões já bastamente referidas; - Não repararam os prejuízos causados; - Os factos pelos quais vão condenados situam-se num período temporal reduzido (agosto e dezembro de 2007); - Os antecedentes criminais e as condições de vida do arguido AA depõem sobremaneira contra si, apontando para uma acentuada propensão para a prática de crimes; - Já o arguido BB beneficia de estabilidade e inserção sócio familiar. De forma que, considerando neste quadro a conjugação dos factos e a personalidade dos arguidos, nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, afigura-se-nos equilibrada em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares a condenação: a) Do arguido AA, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (considerando que a pena mínima era de 3 anos e 6 meses e a máxima [correspondente à soma de todas as penas parcelares aplicadas] de 9 (nove) anos e 10 (dez) meses de prisão; b) Do arguido BB, na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão (considerando que a pena mínima era de 1 ano e 4 meses e a máxima [correspondente à soma de todas as penas parcelares aplicadas] de 3 anos e 6 meses de prisão. Determinada a pena concreta a aplicar aos arguidos, cumpre ao tribunal neste momento determinar se é caso de as substituir por penas não detentivas ou penas detentivas previstas na lei, isto em relação aos arguidos BB, DD, EE e CC, na medida em que a pena aplicada ao arguido AA não é passível de ser substituída por nenhuma outra pena. Com efeito as penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) são penas que são aplicadas e executadas em vez da pena principal”.[20] À luz do Código Penal, importa ponderar se estão reunidas as condições para substituir as penas aplicadas aos arguidos DD, EE e CC (1 ano de prisão, 10 meses de prisão e 8 meses de prisão, respetivamente) por medidas não detentivas ou detentivas, pois que a pena aplicada ao arguido BB (2 anos e 4 meses) apenas é passível de ser suspensa na sua execução. Não se pode olvidar que as penas de substituição radicam no movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente de penas curtas de prisão. Em termos abstratos, uma pena de prisão não superior a um ano pode ser substituída por multa (artigo 45º do Código Penal) e ser suspensa na sua execução (artigo 50º do Código Penal) e quando não superior a dois anos pode ser substituída por proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46º do Código Penal) e executada em regime de permanência na habitação (artigo 43º do Código Penal). No entanto, perante o acervo de penas de substituição previstas e a sua categorização entre penas não detentivas e detentivas, desde logo se adiante que valoradas as condições pessoais dos arguidos DD, EE e CC, e convocando o pensamento que perpassa todo o ordenamento jurídico-criminal, no que respeita à preferência por soluções não detentivas, será de aplicar aos identificados arguidos penas de substituição de natureza não detentiva. Ou seja, é possível realizar um juízo de prognose favorável à substituição das penas aplicadas àqueles arguidos por medidas não detentivas. Ora, no caso dos autos não logra o tribunal justificar a substituição da pena única de prisão por multa, ao abrigo do disposto no artigo 43º, nº 1 do Código Penal, atentas as razões pelas quais optou pelas penas de prisão, sendo que também a pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade prevista no artigo 46.º do Código Penal, não se afigura que realize de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, desde logo porque não resultou provado que os crimes tenham sido praticados no exercício das respetivas profissões, pelo que a única pena de substituição de natureza não detentiva que resta é a suspensão da execução das penas de prisão aplicadas. Porém, vejamos se se verificam os pressupostos que presidem à sua aplicação. * DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DAS PENAS DE PRISÃO De acordo com o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Tal como bem refere Figueiredo Dias, “pressuposto material da aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (…), sendo que, (…) na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto (…)”. Para a sua aplicação, exige-se aquele juízo relativo à capacidade de o agente se reintegrar socialmente e ao seu consequente afastamento da prática de novos crimes, e um requisito objetivo que se traduz em que não lhe tenha sido aplicado pena de prisão superior a determinada medida. Relativamente a esse requisito objetivo, o artigo 50º, nº1, do Código Penal, determina que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos. Ora, tendo em conta o período temporal concentrado em que ocorreram os crimes, beneficiando todos eles de integração sócio-familiar e profissional (com exceção do arguido CC que se encontra reformado) e não haver notícia recente da prática de outros factos de semelhante natureza, afigura-se-nos que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão respondem eficazmente a imposições de prevenção geral e especial relativamente aos arguidos DD, EE e CC, tendo igualmente em consideração que os factos em discussão remontam ao ano de 2007 e, desde então, como se disse, não há notícia dos identificados arguidos terem incorrido na prática de outros crimes de semelhante natureza, pelo que suspende as penas aplicadas pelo período mínimo fixado por lei, isto é, um ano. * Todavia, já o mesmo não se consegue, porém, sustentar quanto ao arguido BB, pois se é certo que do relatório social evola que este arguido sempre contou com o apoio da família, a realidade é que esse apoio não foi suficiente para o inteirar e sensibilizar para o desvalor das suas condutas, porquanto aquilo que ressuma do seu certificado de registo criminal é que este arguido incorreu na prática de outros crimes, pelos quais foi condenado, posteriormente aos factos em apreço neste processo, a saber: num crime de falsificação de boletins, atas e documentos, por factos praticados em 08.03.2010 e num crime de abuso de confiança fiscal, por factos praticados em 11.07.2011, ao que acresce a circunstância do referido arguido nunca ter apresentado consciência crítica para os seus atos, os quais não permitem, assim, formular um juízo de prognose favorável quanto a este arguido, tendo sobretudo em consideração que o mesmo não teve sequer a capacidade e humildade de reconhecer a censurabilidade das suas condutas. Tudo, pois, para concluir que o modo como o arguido BB procurou desresponsabilizar-se das condutas perpetradas, denuncia uma total ausência de consciência crítica quanto aos seus comportamentos, que obstam, com o devido respeito, a que se consiga formular um juízo de prognose favorável, entendendo-se, pois, que uma eventual suspensão da pena aplicada, além de não satisfazer as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir, serviria, na realidade, para ferir a crença da comunidade na validade da norma jurídica violada e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais que veriam na suspensão desta pena uma medida de injustificada condescendência perante a gravidade dos factos e perante a ausência de qualquer sentido crítico e de autorresponsabilização da parte do arguido pelos factos que praticou. Daí se considerar que o mero aviso ínsito na suspensão da execução da pena de prisão não seria suficiente para acautelar as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir quanto ao arguido BB. Deverá, pois, o arguido BB cumprir a pena de prisão que lhe foi aplicada. * PERDA DE VANTAGENS A FAVOR DO ESTADO Nos termos do artigo 111.º, nº2, do Código Penal, são declarados perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido diretamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. E acrescenta o seu nº3 que se essas coisas ou vantagens não puderem ser apropriadas em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor. Importa nesta sede recordar que o confisco aqui tratado, exigindo a prática pelo autor e/ou coautor de um facto ilícito típico, pressupõe o preenchimento do tipo de ilícito objetivo e subjetivo, mas já não da culpa. Mas, verificados esses requisitos materiais, a perda de vantagens pode ser declarada mesmo que falte algum dos pressupostos de punibilidade designadamente a apresentação de queixa. Posto isto, percorrida a matéria de facto provada resulta que em consequência da sua atuação ilícita e típica objetiva e subjetivamente, os arguidos obtiveram diretamente, para si ou para outrem, os valores referidos nos factos provados. De modo que, assim sendo, e nos termos do já citado artigo 111.º, nº2 e 4, do Código Penal, deverá cada um dos arguidos ser condenado a pagar ao Estado Português, solidariamente entre si, o valor correspondente às vantagens que obtiveram até ao limite da quantia supra liquidada relativamente a cada um deles, a saber: os arguidos AA e BB a quantia global de 22.087,45€ (correspondente à soma de todos os valores obtidos nos três episódios descritos nos factos provados), a arguida DD a quantia global de 9.700,00€, a arguida EE a quantia global de 5.306,59€ e o arguido CC a quantia global de 3.779,97€». Proferidos o despacho datado de 14.11.2024 de não reagendamento da audiência designada para o dia 15.11.2024, bem como o despacho datado de 15.11.2024, indeferindo a arguição de nulidade suscitada nessa audiência por ter sido encerrada a produção de prova, sem que os arguidos estivessem presentes e pudessem completar as suas declarações, recorreram os arguidos BBB e DD, alegando que se justificava o reagendamento da audiência para prestação de declarações dos arguidos recorrentes. Insurgiram-se, ainda os arguidos recorrentes BB, DD e EE contra o Acórdão condenatório alegando que o Tribunal recorrido violou o caso julgado e o princípio ne bis in idem, valorou prova proibida e incorreu em erro de julgamento, pretendendo a alteração da factualidade provada, em termos que não permitem o preenchimento típico dos crimes pelos quais foram condenados. Apreciemos as questões suscitadas pelos recursos.
1. Recurso dos despachos datados de 14.11.2024 e 15.11.2024:
Justifica-se o não reagendamento da audiência para prestação de declarações dos arguidos?
Insurgem-se os arguidos recorrentes BBB e DD contra o não reagendamento da audiência de julgamento para poderem prestar declarações. Alegam os recorrentes, em síntese, que, contrariamente ao entendimento plasmado nos despachos quanto: - ao risco eminente de prescrição - «Não nos parece que esse risco fosse iminente, se o julgamento fosse concluído em janeiro de 2025, como pedido», nem as medidas a adotar pelo Tribunal para o acautelar, podem ser feitas «à custa de direitos fundamentais do arguido», até porque «in casu, aquilo que fundamentalmente contribuiu para esse risco foram circunstâncias completamente alheias aos Arguidos, como decorre do facto de esta audiência de julgamento ter estado interrompida durante seis anos (!)»; - ao protelar ad aeternum do julgamento - «pedir que uma audiência marcada para novembro passasse para janeiro não tem nada a ver com uma tramitação ad eternum»; sempre poderia o Tribunal ultrapassar a questão lançando mão dos mecanismos legais previstos quanto a demoras abusivas, designadamente os previstos nos arts. 6.º, n.º 1, 618.º e 670.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 4.º do CPP»; - à possibilidade/exigibilidade do arguido pedir ou sugerir a alteração da data da consulta para poder comparecer em julgamento - «não é exigível ao arguido doente que peça ou sugira uma alteração de data para poder estar presente na audiência de julgamento», ademais quando «o seu estado de convalescença, que desaconselhava quaisquer deslocações que não fossem para realizar os tratamentos»; - à possibilidade dos arguidos apresentarem memoriais ou prestarem últimas declarações - «Os memoriais são uma faculdade do arguido», «de resto, o Arguido BB nem tem atualmente condições intelectuais para se exprimir adequadamente através de memoriais»; e as últimas declarações, a prestar ao abrigo do art. 348.º, n.º 1, do CPP, «ocorrem já após o encerramento da produção de prova e a prolação das alegações finais do defensor, não substituindo as declarações prestadas durante a fase de produção de prova, devidamente escrutinadas pelo seu defensor, que, a partir delas, até pode ter necessidade de requerer outras diligências de prova»; - à dispensabilidade de presença dos arguidos em audiência de julgamento - «mesmo que o Tribunal considerasse não indispensável a presença dos Arguidos, o certo é que os mesmos ainda não haviam completado as suas declarações, as quais haviam sido interrompidas em 12/07/2018 por motivo a que foram alheios. Assim sendo, faltaria sempre um dos requisitos que a lei exige para que o processo pudesse continuar até final sem a presença dos arguidos». Concluem os arguidos recorrentes que os despachos recorridos «violaram o regime do art. 332.º, n.º 5, do CPP, na medida em que determinaram o prosseguimento do processo até final sem dar aos Arguidos a possibilidade de completarem as suas declarações (que tinham sido interrompidas e que eles não prescindiram de prestar), bem como, na ponderação dos vários direitos e interesses em presença, as garantias de defesa, o princípio da proporcionalidade e o direito a um processo equitativo, salvaguardados pelos arts. 32.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 4, todos da CRP». Consideram os recorrentes que relativamente: - «ao despacho de 14/11, estamos perante uma violação direta do art. 332.º, n.º 5, do CPP, bem como dos princípios constitucionais supra referidos»; - «ao despacho de 15/11, para além das violações do art. 332.º, n.º 5, do CPP e dos princípios constitucionais supra convocados, ocorre ainda violação do art. 119.º, al. c), do CPP, porque não foi declarada a nulidade insanável que ocorreu (faltas dos Arguidos em caso em que a lei exige a sua comparência), bem como violação do art. 120.º, n.º 1, al. d), do CPP, porque não foi declarada a nulidade decorrente de não ter sido dada a possibilidade aos Arguidos de, durante a fase de produção de prova, continuarem a prestar declarações, que haviam sido interrompidas por motivo a que os mesmos eram alheios»; - «o entendimento normativo adotado pelo Tribunal, quanto ao art. 332.º, n.º 5, do CPP, no sentido de que o tribunal pode determinar a continuação da audiência de julgamento até ao encerramento da produção da prova ou até ao final da audiência de julgamento sem o arguido estar presente, quando o mesmo, não podendo estar presente por motivo de doença ou outro motivo justificado, manifestou a vontade de continuar a prestar declarações (que haviam sido interrompidas por motivo a que era alheio), «é inconstitucional, por violação das garantias de defesa, previstas no art. 32.º, n.º 1, do CRP, bem como do direito a um processo equitativo, nos termos previstos no art. 20.º da CRP e no art. 6.º da CEDH, considerando ainda o princípio da proporcionalidade ínsito aos arts. 2.º e 18.º da CRP». Vejamos. Como é sabido, o direito de defesa e o direito ao contraditório – art.º 32.º n.º 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) - traduzem-se, designadamente, na possibilidade de o arguido intervir no processo, invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar e contraditar todas as provas e argumentos jurídicos trazidos ao processo. O legislador ordinário deu corpo a esta garantia constitucional através da aprovação de várias normas do Código de Processo Penal (doravante CPP) atinentes à estrutura contraditória da audiência de julgamento, entre as quais avultam: - A regra geral da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência (artigo 332.º, n.º 1); - A regra geral da submissão de todos os meios de prova apresentados ou produzidos no decurso da audiência ao princípio do contraditório (artigo 327.º, n.º 2); - O direito de o arguido prestar declarações em qualquer momento da audiência, em especial, no início e no final da audiência de julgamento (artigos 341.º, alínea a) e 361.º). Encontramo-nos perante regras do Processo Penal que consagram a garantia constitucional de um processo penal equitativo (artigo 20.º, n.º 4), que obrigatoriamente deve assegurar todas as garantias de defesa ao arguido (artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP). No entanto, o respeito pela garantia dos direitos de defesa do arguido não impede que o mesmo deva ser criteriosamente combinado com aquele outro que também deve merecer o princípio da celeridade processual, impondo uma avaliação casuística sobre a real e efetiva afetação. Não pode, ainda, deixar de se ponderar o respeito pela pretensão punitiva do Estado e a necessidade de evitar ou de minorar os incómodos das testemunhas, declarantes e sujeitos processuais com sucessivas deslocações e perdas de tempo, pelos sucessivos adiamentos de audiências de julgamento com fundamento na falta de comparência do arguido. Com a revisão do Código do Processo Penal, operada com o Decreto-Lei nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, o legislador evidenciou a preocupação de ultrapassar o bloqueio provocado pela regra da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência, procurando conciliar o interesse público da administração célere e eficiente da justiça, com a necessária salvaguarda dos interesses da defesa no caso de o arguido estar ausente do julgamento. Lê-se no Preâmbulo do referido Decreto-Lei: «Atendendo ao facto de uma das principais causas de morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado. Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, prevista no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação. Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples, nos termos acima expostos, e, por outro, permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material. (…) Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º Nestes casos, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz nos termos do n.º 2 do artigo 312.º A limitação da possibilidade de adiamento da audiência estende-se também aos casos de falta de comparência de qualquer pessoa cuja presença seja indispensável à boa decisão da causa ou seja imposta por força da lei ou de despacho do tribunal, caso em que igualmente se permite a inquirição ou audição das pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração da ordem que seja necessário efectuar dentro do respectivo rol, procedendo-se no entanto à documentação dos depoimentos ou esclarecimentos prestados». Diz-nos o art.º 332.º do CPP: «1 - É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 334.º 2 - O arguido que deva responder perante determinado tribunal, segundo as normas gerais da competência, e estiver preso em comarca diferente pela prática de outro crime, é requisitado à entidade que o tiver à sua ordem. 3 - A requerimento fundamentado do arguido, cabe ao tribunal proporcionar àquele as condições para a sua deslocação. 4 - O arguido que tiver comparecido à audiência não pode afastar-se dela até ao seu termo. O presidente toma as medidas necessárias e adequadas para evitar o afastamento, incluída a detenção durante as interrupções da audiência, se isso parecer indispensável. 5 - Se, não obstante o disposto no número anterior, o arguido se afastar da sala de audiência, pode esta prosseguir até final se o arguido já tiver sido interrogado e o tribunal não considerar indispensável a sua presença, sendo para todos os efeitos representado pelo defensor. 6 - O disposto no número anterior vale correspondentemente para o caso em que o arguido, por dolo ou negligência, se tiver colocado numa situação de incapacidade para continuar a participar na audiência. 7 - Nos casos previstos nos n.ºs 5 e 6 deste artigo, bem como no n.º 4 do artigo 325.º, voltando o arguido à sala de audiência é, sob pena de nulidade, resumidamente instruído pelo presidente do que se tiver passado na sua ausência. 8 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º».
Portanto, o artigo 332º nº 1 do CPP, consagrando o princípio geral da obrigatoriedade da presença do arguido, logo depois acrescenta: «sem prejuízo do disposto nos artigos 333º, nºs 1 e 2, 334º, nºs 1 e 2». O art.º 334.º rege os casos de audiência na ausência do arguido em casos especiais e de notificação edital. Já o art.º 333.º diz-nos o seguinte: «1- Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência. 2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º 3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º». Ou seja. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde início da audiência (art.º 333.º n.º 1). Para tanto, no despacho que designa a data da audiência, é igualmente designada data para a realização da audiência em caso de adiamento nos termos do artigo 333.º, n.º 1, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do artigo 333.º, n.º 3. Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efetuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º Nestes casos, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz nos termos do n.º 2 do artigo 312.º Assim, nada impede que a audiência se inicie sem a presença do arguido, «reservando-se a segunda data para a eventualidade de se tornar possível a comparência do arguido»[21]. No caso sub judicie, após haver sido adiada a sessão da audiência de julgamento designada para o dia 24.10.2024 por motivo de doença que impossibilitou o comparecimento do arguido recorrente (e da arguida recorrente que o acompanhava), não faz sentido censurar o tribunal por não ter novamente adiado a continuação da audiência com a mesma justificação. Como vimos, mesmo em caso de início da audiência de julgamento, a «segunda data» designada pelo juiz constitui o limite para a audição do arguido que até aí não tenha comparecido, ainda que justificadamente. Este foi um termo fixado pelo legislador, para agilizar a tramitação processual e acelerar a justiça penal, desde que garantido o núcleo essencial dos direitos e instrumentos de defesa do arguido[22]. No nosso caso, nem sequer nos encontramos perante uma situação em que a audiência se iniciou e decorreu sem a presença dos arguidos. Os arguidos recorrentes estiveram presentes em anteriores sessões da audiência de julgamento, tendo prestado declarações, reservando-se, embora o direito de sobre parte do objeto do processo apenas se pronunciarem após a realização de outras diligências de prova. Acontece que na sessão designada para a continuação da audiência de julgamento, o arguido recorrente invocou impossibilidade de comparência por motivo de doença /impedimento em consulta, e arguida recorrente alegou que o acompanhava aos tratamentos. Levando em consideração os motivos invocados, foi adiada a continuação da audiência e foram advertidos os requerentes que não se procederia a novo adiamento. Requerido de novo o adiamento – essencialmente pelos mesmos motivos – na segunda data agendada, foi o mesmo indeferido. Ora como vimos, mesmo em caso de falta justificada, e posto que o Tribunal o não considere absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, a audiência de julgamento pode iniciar-se e concluir-se sem a presença do arguido, constituindo a segunda data o limite para a sua audição. Desconhece-se quando afinal é que o(s) arguido(s) recorrentes poderia(m) voltar a comparecer em Tribunal. Entendemos ainda,[23] na ponderação prática de todos os interesses em presença relevantes o risco de prescrição[24]; o protelar do julgamento[25]; a possibilidade de os arguidos apresentarem memoriais ou prestarem últimas declarações[26]. Tudo visto, julgamos que não se verifica uma compressão ou limitação desproporcionada do núcleo essencial dos direitos de audição, de defesa e de contraditório. Como assim é, relativamente a ambos os despachos recorridos não se deteta nem a inobservância do art.º 332.º, n.º 5, do CPP, nem o desrespeito das garantias de defesa, do princípio da proporcionalidade do direito e a um processo equitativo, salvaguardados pelos arts. 2.º e 18.º, 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, todos da CRP, e no art. 6.º da CEDH, nem tão-pouco o despacho de 15/11, violou os art.ºs 119.º, al. c), e 120.º n.º 1 al. d) do CPP. Face ao exposto, improcede o recurso dos despachos proferidos nos dias 14.11 e 15.11.2024. * 2. Recurso do Acórdão condenatório:
2.1 - Violação do princípio ne bis in idem e do caso julgado?
Alegam os arguidos recorrentes que «grande parte da factualidade em causa nestes autos – tudo aquilo que tem a ver com o plano e resolução criminosa – já foi ponderada no processo n.º 104/07....», «as situações concretas em que se traduziram as burlas objeto destes autos ocorreram no mesmo hiato e enquadramento espácio-temporal das anteriores», «as situações em pauta eram já conhecidas no âmbito do inquérito do processo 104/07...., existindo manifesta conexão com as anteriores, pelo que deveria ter sido garantida a unidade do processo, evitando-se uma fragmentação desnecessária e infundada, como exigia o adequado cumprimento das regras constantes nos arts. 24.º, 29.º e 30.º do CPP», «o caso julgado formado pela decisão do processo n.º 104/... abrange os factos reais que nele foram apurados, bem como os factos hipotéticos que nele deviam e podiam ter sido julgados, por estarem em unidade sequencial com aqueles, o qual foi assim violado», «a inobservância desse caso julgado não só prolongou arbitrariamente o processo de punição dos Arguidos, como prejudicou a consideração global de todos os factos abrangidos na determinação da medida da pena, de acordo com os critérios previstos no art. 71.º do CP». Concluem os Arguidos, ora Recorrentes, que foram julgados pela prática do mesmo crime que lhes era imputado no processo 104/... – considerada a extensão do caso julgado material às situações que podiam e deviam ter sido julgadas no seu âmbito –, o que se consubstancia na violação do princípio do ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP, razão pela qual o acórdão condenatório deve ser anulado, com a consequente extinção do procedimento criminal em causa nestes autos. Por cautela, vêm, ainda, os recorrentes arguir, a inconstitucionalidade do entendimento normativo adotado pelo acórdão recorrido quanto ao art.º 30.º do CP, no sentido de que, havendo concurso de infrações, com identidade de arguidos, podem ser julgados em processo autónomo factos ocorridos no mesmo hiato, sequência e enquadramento espácio-temporal de factos já julgados, que, assim, alegam os recorrentes, de acordo com as regras de conexão, podiam e deviam ter sido objeto do mesmo processo, por serem conhecidos à data do inquérito do primitivo processo, por violação do caso julgado penal, ínsito à construção do Estado de Direito, tal como consagrado no art. 2.º da CRP, bem como do princípio ne bis in idem, assegurado no art.º 29.º da CRP. Importa, apreciar a questão de saber se, como entendem os arguidos recorrentes, ao proferir o Acórdão condenatório o Tribunal recorrido violou o princípio ne bis in idem e o caso julgado. Vejamos. Como é sabido, o princípio ne bis in idem encerra um direito fundamental de defesa dos cidadãos contra o ius puniendi do Estado, encontrando entre nós consagração expressa no art.º 29.º n.º 5 da CRP, segundo o qual «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». A proibição de que os mesmos factos sejam objeto de apreciação jurídico-processual de forma repetida tem como fundamento a proteção da liberdade individual e, simultaneamente, a manutenção da paz social. O princípio constitucional ne bis in idem, comporta, assim duas dimensões: a) a de direito subjetivo fundamental que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo). O que importa é que tenha recaído sobre a atuação do arguido uma valoração dos factos e da prova; b) a de princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental) que obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto[27]. Enquanto direito subjetivo, o ne bis in idem abrange e abarca os julgamentos, quer condenatórios, quer absolutórios, sejam eles derivados de (algumas) razões processuais ou materiais. O que importa é que tenha recaído sobre a atuação do arguido uma valoração dos factos e da prova. Por seu turno, o caso julgado refere-se, essencialmente, à força da decisão/sentença em si mesma, dentro do processo ou fora dele, a que subjazem razões de segurança jurídica e confiança no poder judicial, porquanto um dos fundamentos deste instituto é a de evitar a existência de julgamentos contraditórios sobre o mesmo pedido, com a mesma causa de pedir e envolvendo as mesmas pessoas. São, assim, razões de ordem pública intimamente relacionadas com a segurança jurídica e judiciária as que justificam, de forma imediata, a proteção do caso julgado aparecendo a proteção individual como derivada daquela. O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir um novo julgamento sobre a mesma questão. O que se proíbe é que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal[28]. O objeto do processo será um recorte, um pedaço da vida, um conjunto de factos em conexão natural analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes. Num processo penal de estrutura acusatória, como o nosso, é a acusação é que define o objeto do processo. São os factos narrados na acusação, imputados a um concreto arguido e que constituem o crime, a fixar o campo no interior do qual se tem de mover a investigação do tribunal, não apenas a sua atividade cognitiva, como também a a sua atividade decisória, e, por esta via a extensão do caso julgado. É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, (segundo o qual o objeto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo), É dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, visto que o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objeto (aos factos que dela constam e são imputados ao arguido) de uma forma esgotante, sendo certo que, se o não tiver apurado, tudo deve passar-se como se o tivesse sido, segundo o designado princípio da consunção[29] . Na observância do princípio do acusatório, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação de um tribunal. E, não existe qualquer obstáculo legal ou constitucional a que o Ministério Público deduza acusações em processos distintos, com objetos diversos, ainda os arguidos acusados sejam os mesmos, e tenham atuado no mesmo período temporal, e segundo idêntico modus operandi, mesmo que os factos que deem origem ao segundo processo já fossem conhecidas ao tempo do primeiro inquérito. No que respeita à conexão de processos, o princípio geral é o de que a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal definido em função das regras da competência material, funcional e territorial. A lei, permite, porém, que esta regra seja alterada, organizando-se um só processo para uma pluralidade de crimes, desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados conjuntamente. A separação de processos é justificada pela procura de maior justiça, quando da junção puder resultar maior dano do que benefício para a realização daquela. Relativamente à separação de processos é a própria lei processual penal que confere ao Ministério Público o poder de a determinar (art.º 264º n.º 5 do CPP). Se na primeira acusação o Ministério Público não imputou ao arguido a pertinente factualidade integradora de determinado crime, e se o Ministério Público lhe imputar essa factualidade numa subsequente acusação deduzida noutro processo, o Tribunal tem que a conhecer, estando-lhe vedada a possibilidade de sindicar que a oportunidade dessa imputação podia ter sido feita naquela primeira acusação. Dito isto. No nosso caso, não logram os recorrentes comprovar que foram julgados mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, pese embora a similitude da metodologia e meios utilizados e a proximidade temporal dos factos (no mesmo dia ou período), pois não há identidade entre os factos pelos quais foram condenados por decisão transitada no processo n.º 104/07.... e aqueles que são objeto dos presentes autos. Tal como se lê na motivação da decisão de facto: «Os factos dados como provados de 1) a 16) ficam a dever a sua resposta a tudo quanto se registou anteriormente, mas também às informações constantes dos relatórios sociais dos arguidos (em particular ao do arguido AA e onde se mostra espelhado o seu percurso de vida e as razões que o levaram a vir para Portugal), mas também ao que resultou provado no âmbito do processo Comum Coletivo n.º 104/07.... do Juízo Criminal de Viseu – Juiz 2, transitado em julgado no dia 16-04-2014. Os factos pelos quais os arguidos foram condenados neste acórdão foram praticados no mesmo período temporal. Nestes autos, estão em causa factos praticados nos dias 16.08.2007, 13.12.2007 e 27.12.2007 e no processo n.º104/07.... foram os arguidos julgados e condenados, além do mais, por factos praticados entre os dias 7 e 11 de agosto de 2007 e nos dias 13.08.2007, 14.08.2007 e 16.08.2007[30], 17.08.2007, 18.08.2007, 20.08.2007, 21.08.2007, 22.08.2007, 23.08.2007, 24.08.2007, 27.08.2007, 28.08.2007, 29.08.2007, 31.08.2007, 17.09.2007, 18.09.2007, 20.11.2007, 21.11.2007, 30.11.2007, 07.12.2007 e 19.12.2007. Isto é, tudo no mesmo hiato temporal, o que permitiu ao Tribunal perceber que os factos em apreciação neste processo não foram atos isolados na vida dos arguidos, mas antes, e ao invés, condutas reiteradas entre agosto e dezembro de 2007, corroborando, na verdade, toda a prova produzida em julgamento e toda a restante prova junta aos autos». No processo 104/07.... os arguidos foram julgados e condenados pela prática de vários crimes de burla qualificada, crimes de extorsão e branqueamento. Nestes autos, os arguidos foram julgados e condenados pela prática de outros crimes de burla qualificada, todos eles reportados a situações e ofendidas diferentes, tendo na sua origem diferentes resoluções criminosas. Tal como alegam os recorrentes as burlas objeto destes autos ocorreram no mesmo hiato e enquadramento espácio-temporal das anteriores. São, no entanto, distintas em termos objetivos e subjetivos, não se tendo comprovado que às mesmas presidisse uma única resolução criminosa (ou sequer que os arguidos tivessem atuado no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminuísse consideravelmente a culpa do agente). A acusação proferida no processo n.º 104/07.... e a acusação deduzida nos presentes autos respeitam a facto históricos distintos e não formam um todo do ponto de vista jurídico, sendo distintas as resoluções criminosas e sendo os bens protegidos encabeçados por ofendidos distintos. Existe uma pluralidade de crimes que afasta o requisito do «todo do ponto de vista jurídico». Lê-se no Acórdão recorrido: «demonstrado ficou que o arguido AA formulou repetidamente a intenção de passar a captar fraudulenta e ilicitamente valores monetários através do sistema de transferências monetárias, organizando-se conscientemente com BB e com os demais arguidos para assegurar o efetivo e rápido recebimento dos valores transferidos, bem como a posterior dissimulação da sua origem. Para cada uma dessas atuações, os arguidos, atuando de forma concertada, tiveram uma resolução criminosa, tendo formado uma nova resolução criminosa ao se decidir em momentos distintos praticar os factos contra outra vítima, previamente selecionada, sendo diferentes as agências visadas, seus contactos e localizações, alterando a cada passo os beneficiários, locais e forma de obtenção das transferências. Ora, salvo melhor opinião, investindo a cada momento contra agências distintas, no âmbito de processos diferentes e condicionalismos específicos de cada atuação, não é de aceitar que todo o relatado comportamento dos arguidos se fundasse numa decisão assumida, deliberada e pensada uma única vez, antes obedeceu nas condutas parcelares a uma renovação sucessiva do desígnio criminoso. Em cada uma das situações descritas, após vencerem obstáculos variáveis e imponderáveis, os arguidos resolveram atuar sobre novas e sucessivas agências para conseguir integrar no seu património o dinheiro que logravam, reiterando a cada passo a concretizada opção criminosa de assim o conseguir. Existiu então uma pluralidade de resoluções autónomas, uma pluralidade de juízos de censura, e uma consequente violação plúrima do mesmo bem jurídico, consubstanciadora da prática de tantos crimes de burla e extorsões quanto o número de agências respetivamente burladas e extorquidas. Perante tal pluralidade de resoluções criminosas resta indagar da verificação de um crime continuado ou concurso real de crimes. Relativamente a uma mesma agência, não obstante algumas delas terem procedido a diversas transferências que os arguidos obtiveram, afigura-se estarmos perante uma unidade criminosa. Naquele mesmo contexto e conexão temporal tudo indica que sobre cada uma delas os arguidos atuaram no desenvolvimento de uma única e idêntica motivação criminosa, sem necessidade de renovar o seu desígnio criminoso perante a mesma vítima[31]. E quanto ao crime continuado, são pressupostos cumulativos do crime continuado[32]: - Realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); - Homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objetivo da ação); - Unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da ação) em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada"; - Lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado); - Persistência de uma situação exterior: - Que facilite a execução; e - Que diminua consideravelmente a culpa do agente. No caso dos autos torna-se claro que a prática dos diferentes crimes resulta de uma execução essencialmente homogénea, com uma sucessão temporal próxima. O que não ressuma da matéria de facto provada é uma situação exterior que tivesse facilitado a execução dos crimes e menos ainda que diminua e consideravelmente a culpa da arguida (art.30º, nº2 do Código Penal). (…) Ora, no caso dos autos, não se vê qualquer situação externa aos arguidos que lhes tenha proporcionado a repetição das ações. Não o será por certo a mera circunstância de reiteradamente se verem bem sucedidos, quando para tal só eles criaram as condições favoráveis à obtenção desse resultado numa dinâmica funcional de carácter endógeno que lhes facilitou a repetição do facto criminoso[33]. De qualquer modo, tal como a impunidade sentida ao longo da atuação, não se vê como o sucessivo êxito da mesma possa sugerir sem mais uma considerável menor censurabilidade. Na verdade, para efeitos de crime continuado, a diminuição considerável da culpa assenta em solicitações de uma situação exterior, que tendencialmente conduzem à violação repetida do mesmo tipo legal, ou à violação plúrima de vários tipos protetores do mesmo bem jurídico. Não basta a repetição de um mesmo estado de coisa. É necessário que dele resulte uma pressão externa sobre o agente que, preparando ou facilitando a execução do facto, o arrasta para o crime, diminuindo a sua liberdade de determinação e, por essa via, a exigibilidade de comportamento diferente[34]. No caso, o que sucede é que de todas as vezes que atuaram os arguidos tiveram de vencer obstáculos, que embora semelhantes, tiveram grau de dificuldade variável e que, à partida, eram para si de todo incontroláveis, não lhes permitindo antever sequer uma maior facilidade na execução. O que ressuma dos factos provados é que foram sempre os arguidos quem criaram as condições necessárias para a prática dos crimes, adaptando o seu “modus operandi” às circunstâncias específicas que lhes surgiam em cada contacto telefónico e em função dos seus desígnios, sem que qualquer elemento ou fator exterior ou exógeno diminua ou mitigue a sua culpa. Pelo menos não resulta dos factos provados a existência de um condicionalismo exterior aos arguidos que facilitou a sua atuação, que facilitou a repetição da atividade criminosa e que, por isso, lhes diminua a culpa. Afigura-se-nos, por conseguinte, estarmos perante uma pluralidade de crimes, sob a forma de concurso efetivo». Tudo isto como, aliás, foi também decidido por decisão proferida no processo 104/07...., transitada em julgado. E por assim ser, também nesta parte improcede a defesa recursiva. Na observância do princípio do acusatório e da vinculação temática do Tribunal: - O que transitou em julgado no processo n.º 104/07.... foi o acontecimento da vida que foi submetido, pela acusação, à apreciação do Tribunal; - Uma vez que na primeira acusação o Ministério Público não imputou ao arguido a factualidade integradora dos crimes objetos dos presentes autos, estes não poderiam ser conhecidos pelo Tribunal no processo n.º 104/07....; - No presente processo nunca poderia o Tribunal sindicar a oportunidade da imputação dos crimes a que se referem os nossos autos ser feita na primeira acusação, devendo, antes, conhecer todo o objeto do processo que foi sujeito à sua apreciação. Aliás, e como dissemos, no que respeita à conexão de processos, o princípio geral é o de que a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal definido em função das regras da competência material, funcional e territorial. E se a lei, permite que esta regra seja alterada, organizando-se um só processo para uma pluralidade de crimes, desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados conjuntamente, também a separação de processos é justificada pela procura de maior justiça, quando da junção puder resultar maior dano do que benefício para a realização daquela. No nosso caso, a separação de processos foi determinada na pendência do inquérito pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art.º 265.º do CPP, sem que os arguidos ora recorrentes tenham reagido a tal separação. Não obstante a invocação recursiva do disposto nos arts. 24.º, 29.º e 30.º do CPP, nem que o Acórdão condenatório tenha violado o disposto nos art.ºs 2.º[35] e 29.º n.º 5 da CRP, não se vislumbra qualquer obstáculo legal ou constitucional à separação em processos distintos dos crimes julgados nos autos 104/07.... e dos crimes objetos dos presentes autos, pese embora: - Os factos dos presentes autos serem que já conhecidos à data do inquérito do primitivo processo 104/07....; - Os crimes objeto dos presentes autos terem ocorrido no mesmo hiato, sequência e enquadramento espácio-temporal de factos e que, entretanto, já foram julgados, por Acórdão transitado em julgado no processo 104/07..... Enfim, e tudo visto, não pode concluir-se com os recorrentes que foram violados os princípios do ne bis in idem e do caso julgado, e, logicamente, afastamo-nos, da alegação recursiva de que a inobservância do caso «prolongou arbitrariamente o processo de punição dos arguidos» e «prejudicou a consideração global de todos os factos abrangidos na determinação da medida da pena, de acordo com os critérios previstos no art.º 71.º do CP». Assim, improcede, neste segmento o recurso. 2.2 - Valoração da prova proibida?
Tal como alegam os recorrentes: «A. O acórdão recorrido formulou a sua convicção, em parte relevante, nos dados de tráfego constantes dos apensos II, III e IV. B. Os dados de tráfego em apreço foram obtidos e valorados no âmbito do referido proc. n.º 104/07...., na sequência de despacho judicial de 12/10/2007, donde consta o seguinte: - Dispensar as operadoras de rede móvel “VODAFONE” e “OPTIMUS”, do segredo de telecomunicações, ordenando que tais operadoras forneçam na íntegra os elementos pretendidos e referidos na promoção de fls. 79 e 80 sob as alíneas B), C), D) e E) [trata-se dos pedidos a fazer à VODAFONE e OPTIMUS no sentido da obtenção das listagens que contenham todas as chamadas e sms’s recebidos e efetuados ainda que em roaming, bem como a respetiva localização celular (BTS) e outros dados que permitam a identificação de cartões bancários utilizados para proceder ao carregamento de vários cartões telefónicos] – cfr. fls. 423 a 426 destes autos». Compulsados os autos, verifica-se que a recolha de tal informação foi deferida pelo despacho supra referido de fls. 423/426, que convocou para o efeito os arts. 187.º 188.º e 269.º, n.º 1, al. e), todos do CPP. No nosso caso, - face às datas do despacho que determinou a prestação de informação e da sua recolha - a obtenção, no processo penal, de dados em posse de fornecedores de serviços de comunicações é regulada por outras disposições legais: pelos artigos 187.º a 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do CPP, ao abrigo dos quais foram valorados dados obtidos e tratados para efeitos de faturação entre cliente e operadora, ao abrigo Lei nº 41/2004, de 18 de agosto, que, nos termos do seu art.º 6º da Lei nº 41/2004, nos nºs 2 e 3, em conjugação com o art.º 10.º da Lei nº 23/96, de 26 de Julho permite a conservação de dados pessoais para efeitos de faturação e pagamentos pelo período de 6 meses. À data de tal despacho judicial (e da obtenção da prova) não vigorava a Lei n.º 32/2008, de 17/07. Assim, claramente não tem aqui aplicação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral das normas da Lei n.º 32/2008, de 17.06 sob os art.ºs 4.º e 6 (que determinam a conservação, pelos fornecedores de serviços de telecomunicações e comunicações eletrónicas, de todos os dados de tráfego e de localização relativos a todas as comunicações ou sua tentativa, pelo período de um ano, com vista à sua eventual futura utilização para prevenção, investigação e repressão de crimes graves) e 9º (na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiro), cuja fundamentação é convocada por identidade de razões pelos recorrentes. Defendem os recorrentes que «o entendimento dado aos arts. 187.º, 188.º e 269.º, n.º 1, al. e), todos do CPP, no sentido de permitir que o juiz pode autorizar que as operadoras de telemóvel facultem aos autos os elementos relativos aos dados de tráfego das comunicações em pauta e respetiva localização celular, por elas conservados, dispensando-as do segredo de telecomunicações e sem que os visados tivessem sido notificados de que os seus dados foram conservados e acedidos pelas autoridades, é inconstitucional, por violação, de forma desproporcionada, do direito à autodeterminação informativa, nos termos consagrados no art. 35.º, nºs 1 a 4, e 26.º, n.º 1, da CRP, devidamente conjugado com o art. 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP. F. Sendo inconstitucional a utilização de tais dados de tráfego, nos termos em que foram conservados e obtidos, o acórdão recorrido sustentou a decisão recorrida em meio de obtenção de prova proibido, o que acarreta a nulidade dessa utilização, nos termos previstos no art. 126.º, n.º 3, do CPP, o que se deixa arguido. Declarada tal nulidade, decorrente da utilização de prova proveniente de meio de obtenção de prova proibido, deve declarar-se a nulidade do acórdão recorrido, ordenando-se a sua reformulação expurgada de tais meios de prova». Da leitura do Acórdão recorrido emerge, tal como se lê na resposta ao recurso que «os dados de tráfego existentes no processo e em concreto valorados pelo Tribunal recorrido foram sobretudo disponibilizados à investigação porque inerentes a escutas em tempo real, as quais foram devidamente autorizadas e oportunamente validadas por despacho judicial». Sem prejuízo, na motivação da decisão de facto lê-se, ainda, o seguinte: «Maior relevância assumiram os apensos II e III (com dados de tráfego), mas sobretudo o apenso IV que, por sua vez, contém a análise feita àqueles mesmos dados de tráfego pela Unidade Nacional Contra-Terrorismo da Polícia Judiciária (análise essa que incidiu sobre 34 números de telefone e respetivas listagens detalhadas e que teve em consideração um lapso temporal de julho de 2007 a março de 2008, cf. página 1 do identificado apenso). Neste apenso IV (e para o que aqui releva), atentou-se sobretudo nas informações registadas da página 28 à página 32 (respeitante ao dia 16.08.2007), página 80 à página 81 (respeitante ao dia 13.12.2007) e, por fim, da página 84 à página 86 (respeitante ao dia 27.12.2007) e onde consta, além do mais, informação detalhada quer quanto às horas das chamadas, arguidos envolvidos e números de telefones usados, tudo a corroborar a factualidade dada como provada». No nosso caso, foi através dos contactos telefónicos estabelecidos para as vítimas que os arguidos lograram a realização das transferências bancárias nos termos gizados nos factos provados n.ºs 17 a 39. Em causa encontram-se crimes de burlas cometidos nos dias 16.08.2007, 13.12.2007 e 27.12.2007, com recurso a contactos telefónicos, integrando estes atos de execução dos crimes objeto dos autos. As informações valoradas pelo Tribunal recorrido, que são relevantes e que respeitam aos dias 13.12.2007 e 27.12.2007 são posteriores ao despacho que determinou a sua prestação de tais informações pelas operadoras telefónicas. Nesse sentido não se trata dados pretéritos nada impedindo que se determinasse que as operadoras telefónicas prestassem a correspondente informação detalhada, não havendo razões para estabelecer maiores garantias do que as previstas para a interceção de dados de conteúdo, nos termos dos art.ºs 187.º e 188.º do CPP. Foram ainda valorados e julgados relevantes para a formação da convicção do Tribunal os dados referentes ao dia 6 de agosto de 2007, os quais são anteriores ao despacho judicial que determinou a prestação de informações pelas operadoras, tendo sido valorada ‘informação detalhada quer quanto às horas das chamadas, arguidos envolvidos e números de telefones usados, tudo a corroborar a factualidade dada como provada». Temos por certo que, na medida em que a vítima é a interlocutora e destinatária da comunicação telefónica ou outra, considera-se justificada a divulgação de todos os dados da comunicação, precisamente, porque é a própria comunicação o meio utilizado para cometer um crime. Não se trata de uma qualquer intromissão ilícita nas telecomunicações que necessite de salvaguarda, porque não há sequer intromissão, não há violação à reserva constitucional da privacidade, mas um telefonema, visando o cometimento do crime, acessível a quem quer que antedesse o telefone, não podendo, sequer, falar-se de uma conversa privada, tutelada pelo direito. Os restantes dados foram valorados na medida em que comprovam a execução dos factos criminosos - que incluem contactos entre os arguidos, visando a captação das quantias ilicitamente transferidas - para os quais foi determinante, relembre-se a utilização de telemóvel. Ora relativamente aos métodos proibidos de prova diz-nos o art.º 126.º do CPP que «Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular». Mas logo se acrescenta no n.º 4 do mesmo artigo: «Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo». Como assim é, e levando-se ainda em linha de conta os valores constitucionais da descoberta da verdade material e da realização da justiça, entendemos que a valoração dos dados em crise, não afeta de forma desproporcionada, do direito à autodeterminação informativa, nos termos consagrados no art.º 35.º, n.ºs 1 a 4, e 26.º, n.º 1, da CRP, devidamente conjugado com o art.º 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da CRP. Concluímos, assim, que, também nesta parte, improcede a defesa.
2.3 - Erro de Julgamento?
Impugnam os recorrentes os factos provados sob os n.ºs 12, 13, 14, 15, 16, 25, 29, 30, 31, 38, 40 e 42, que, no seu entender devem ser dados como não provados, pelo menos no que diz respeito à participação dos Recorrentes na factualidade aí descrita, devendo, por outro lado, passar a provado o facto não provado n.º 1. Na defesa que apresentam os recorrentes apelam ao conteúdo da prova que não se encontra plasmado no texto da decisão recorrida, remetendo, portanto, para o denominado regime de impugnação ampla da matéria de facto que se encontra previsto no art.º 412.º n.º 3 e 4 do CPP. Acontece que a intromissão da Relação no domínio factual, nos termos do art.º 412.º, cinge-se a uma intervenção pontual, não sendo um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Efetivamente, não sofre qualquer dúvida jurisprudencial ou doutrinal, que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos, destinados a colmatar erros de julgamento na forma como o Tribunal recorrido apreciou a prova indicada pelo recorrente, por referência aos concretos pontos de facto por este identificados. Por isso mesmo, impõe-se o cumprimento do ónus, estabelecido no artigo 412º n.º 3 do CPP. A especificação dos «concretos pontos de facto», a que se refere a alínea a) do referido n.º 3, traduz-se na indicação necessária dos factos individualizados, que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas», nos termos da al. b) do mesmo n.º 3, satisfaz-se com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Para o efeito, o recorrente deve explicar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida, relacionando o específico meio de prova com o facto individualizado que considera incorretamente julgado. A especificação das provas que devem ser renovadas, nos termos da al. c) do mesmo n.º 3, implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em primeira instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no art.º 410º n.º 2 do CPP que inquinam a decisão recorrida, e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo, em conformidade com o disposto no art.º 430º do mesmo Código)[36]. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens[37] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo de outras que forem consideradas relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412º do CPP)[38]. As exigências previstas no preceito que se analisa – art.º 412º n.º 3 e 4 do CPP – configuram um dever de primordial importância conexionado com a própria inteligibilidade e concludência do recurso sobre a matéria de facto, e não apenas um ónus meramente formal, de relevo meramente secundário. É que «o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afeta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law»[39]. Por seu lado, as conclusões servem, entre outras finalidades, para a delimitação do objeto do recurso, operando a vinculação temática do tribunal superior, e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se lhe impõe. Ora, nos termos da primeira parte do n.º 3 do art.º 417º do CPP: «Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada». Acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo que «O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação». E como assim é, o incumprimento do ónus da especificação seja na motivação, seja nas conclusões implica a rejeição do recurso em matéria de facto sem convite ao aperfeiçoamento (art.º 417.º n.º 4 do CPP). Por outro lado, sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (de impugnação ampla), o Tribunal da Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal a quo[40]. Acontece, ainda que, sob pena de inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que acusam ou dos que esperam a decisão, a crítica à convicção do Tribunal a quo, assente na imediação e oralidade e sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência (art.º 127.º do CPP) não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida. «Acreditar ou não num depoente ou acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica. E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova»[41]. Sem olvidar, ainda, que a convicção do tribunal é formada não só através dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, não menos importante, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, ansiedade, serenidade, olhares, postura corporal, tom de voz, coerência de raciocínio e de atitude, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos. O juízo de credibilidade (das provas oralmente produzidas) depende logicamente do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta e não sendo tais qualidades apreensíveis mediante leitura, exame e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, nem o sendo do mesmo modo, pela audição de prova oral que se encontre gravada, mas sim através do contacto com as pessoas, é notório e evidente que o tribunal superior, salvo algumas exceções, adotará o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo; esta linha orientadora de pensamento encontra eco e está hoje traduzida de forma duradoura na jurisprudência dos tribunais superiores. Por essa razão se diz que, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. Assim, para que obtenha sucesso, não basta, ao recorrente que pretenda fazer uma «revisão» da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção «era possível». Exige-se-lhe que «imponha» uma outra convicção. É, assim, imperativo que o recorrente demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido decorre de uma impossibilidade lógica, de uma impossibilidade probatória, de uma manifesta violação de regras de experiência comum, de uma patentemente errada utilização de presunções naturais. E por isso se diz que o erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º n.º 3, do CPP, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes: - O Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que sobre o mesmo nada declarou; - Ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado; - Prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência que o permita; - Prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova; - Todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso, seja possível concluir, por tal resultar da audição do registo áudio, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas. Daí que seja considerar que o erro de julgamento, reconduz-se, afinal, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374.º, n.º 2 do CPP[42]. Dito isto. São os seguintes os factos impugnados pelos recorrentes: - Factos provados sob os pontos 12, 13, 14, 15, 16, 25, 29, 30, 31, 38, 40 e 42, que entendem os requerentes que tais factos devem ser dados como não provados, pelo menos no que diz respeito à participação dos Recorrentes na factualidade aí descrita; - Facto não provado n.º 1, (ou seja, que «As transferências descritas nos factos provados eram por conta de pagamentos relacionados com um contrato celebrado entre o arguido BB e JJ, que tinha por objeto a “Quinta ...”, situada em ...»). Pese embora os recorrentes tenham impugnado «em bloco» factos objetivos e subjetivos distintos, levando em consideração que a defesa é unitária[43] e foi apresentada em termos claros e percetíveis seja para o recorrido, seja para o Tribunal da Relação, admite-se o recurso ema matéria de facto. Os recorrentes fundam a impugnação em: a) Prova pessoal: - Declarações prestadas pelos arguidos recorrentes (BB, DD e EE); - Depoimentos das testemunhas (FF, GG, HH, II). b) Prova documental: - Certidão junta aos autos em 06/07/2018, proveniente do proc. n.º 104/07...., que, a seu ver, incorpora uma minuta manuscrita de um contrato- promessa de compra e venda entre o arguido BB e JJ; - Certidão junta aos autos em 12/07/2018, proveniente do proc. n.º 104/07...., que incorpora o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o arguido BB e JJ, em 16/01/2008; - Caderneta predial junta aos autos em 12/06/2018, pela testemunha HH, a fls. 4085 e 4086; - Auto de busca e apreensão de 18/06/2008, que teve lugar no âmbito do proc. n.º 104/07...., a fls. 1890 a 1912; - Despacho judicial de 18/02/2010, proferido no proc. n.º 104/07..... No entender dos recorrentes, permitem tais meios de prova estabelecer a existência de: a) Um contrato-promessa assinado em janeiro de 2008; b) Uma minuta de um anterior contrato-promessa celebrado no verão de 2007, que estaria na pasta preta identificada no auto de busca de 18/06/2008, a fls. 1890 a 1912, a qual terá desaparecido/extraviado, como está expressamente admitido no despacho judicial de 18/12/2010 junto como doc. 1[44]; c) Contactos no ano de 2007 das testemunhas FF, então Presidente da Junta de Freguesia ..., bem como HH, proprietário de um terreno na referida freguesia realizados por um arquitecto e por um senhor estrangeiro, que estariam interessados na aquisição de terrenos com uma certa dimensão, os quais também teriam vindo a contactar BB para o mesmo efeito; d) Obras de terraplanagem acompanhadas por GG e que foram efetuadas por altura do negócio que o arguido BB tinha feito sobre a Quinta ...; medições e orçamentos feitos por II para essas obras que depois acabaram por ser adjudicadas a outro empreiteiro. Da apreciação conjunta de tais elementos resultaria, assim o entendem os recorrentes, que: 1. As transferências se destinavam a pagamentos por conta do preço do negócio da Quinta ... (nos termos comunicados ao arguido recorrente pelo sobrinho AA, que teria sido, de resto, a pessoa que envolveu o alegado JJ na operação), ou pelo menos, assim o supunha o arguido BB, por ter sido ludibriado pelo sobrinho; 2. As arguidas DD e EE, então com pouco mais de 20 anos, não tinham consciência de participarem numa burla, limitando-se a aceder aos pedidos do pai no sentido de se deslocarem aos balcões para efetuar os levantamentos, como beneficiárias das transferências, do dinheiro que lhes era entregue em numerário e que entregavam ao pai, o arguido BB. Ainda, no entender dos recorrentes, a argumentação do Tribunal a quo, no sentido de justificar os factos impugnados, não convence, porquanto: i. A circunstância de só existir um contrato-promessa assinado em 2008, não afasta que as negociações para a compra e venda se tivessem iniciado no verão de 2007, o que legitima a existência de pagamentos com vista ao pagamento de parte do seu preço; ii. A assinalada falta de ligação do projeto e das obras às transferências padece de qualquer lógica, porque a sua existência, a ser comprovada, corrobora a versão dos recorrentes; iii. as conversas telefónicas cruzadas entre os arguidos, com vista a assegurar o recebimento das transferências fraudulentamente asseguradas por AA, não podem fazer presumir (pelo menos sem margem para dúvida) que os Recorrentes – particularmente quanto às Recorrentes DD e EE – estavam a par dos artifícios fraudulentos utilizados por AA, em que eles não tiveram participação direta, como resulta dos factos provados 17 a 24, 26 a 28, 32 a 37 e 39; iv. a circunstância de os pagamentos serem feitos em pequenas prestações e ordenadas por vários remetentes não pode fazer presumir que os Recorrentes tinham conhecimento dos artifícios fraudulentos utilizados– particularmente quanto às Recorrentes DD e EE, porque BB se limitou a seguir aquilo que o AA lhe dizia e DD e EE limitaram-se a seguir as instruções do pai, sem nenhum deles ter qualquer consciência dos artifícios utilizados pelo arguido AA, cuja capacidade de ludibriar é notável; - KK, funcionária dos CTT, confirmou que os Arguidos fizeram levantamentos, mas nada sabia sobre o que conhecimento que eles teriam (ou não) do plano traçado; LL e MM são inspetores da PJ, que obviamente não têm conhecimento dos factos. Concluem os recorrentes que não há prova consistente no sentido de que os Recorrentes estivessem a par dos artifícios fraudulentos de AA devendo ser deferida a impugnação da matéria de facto, dando como não provados os concretos pontos de facto constantes do probatório sob os n.ºs 12, 13, 14, 15, 16, 25, 29, 30, 31, 38, 40 e 42, no que diz respeito à participação dos Recorrentes nessa factualidade, bem como transitar ponto 1. da factualidade não provada para a factualidade provada. Vejamos. Na ausência de confissão, e, pese embora a prova pessoal e documental produzida, determinante para a formação da convicção foi no nosso caso, como, em tantos outros, o recurso a presunções judiciais. A presunção judicial permite que perante um ou mais factos conhecidos, por um procedimento lógico de indução, se adquira ou se admita a realidade de um facto não diretamente demonstrado, na convicção, apoiada nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que certos factos são a consequência de outros. A utilização de presunções é permitida nos termos do art.º 125.º do CPP, estabelecendo o artigo 127.º do mesmo Código que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente», devendo ser, em cumprimento do dever de fundamentação, explicitado do processo lógico que lhe é inerente. Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta, está dependente da convicção do julgador a qual, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objetivável e motivável. Pretendendo desenhar alguns dos princípios a que se refere a prova indiciária na mesma devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; à combinação ou síntese dos indícios; à indiciária combinação das inferências indiciárias; e à conclusão das mesmas, aponta-se o seguinte: 1) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova direta, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se para o efeito provas diretas imperfeitas ou seja, insuficientes para produzir, cada uma em separado, prova plena; 2) Os factos indiciadores devem ser objeto de análise crítica dirigida à sua verificação, precisão e avaliação, o que permitirá a sua interpretação como graves, médios ou ligeiros; 3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto; 4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem exceção os indícios devem ser vários, porém quando o indício mesmo isolado é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto; 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respetiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstâncias; 6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas e a ligação entre o facto base e a consequência que dele se extrai deve ajustar-se às regras da lógica e às máximas da experiência; 7) Por igual forma deve estar afastada a existência de contra-indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária[45]. Verificados os respetivos requisitos pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento[46]. A considerar ainda que, tal como se escreve no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015 (cuja jurisprudência veio a ser reiterada nos Acórdãos n.ºs 578/2016, 197/2017, 149/2018, 541/2018, 717/2019 e 175/2022) «Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu». Dito isto. Não sofre dúvida a origem ilícita das transferências de agências visadas, ludibriadas por um estratagema apto a fazer-lhes crer da verificação e/ou reparação das anomalias do sistema, prejudicando-as e logrando benefício patrimonial de pessoas que às mesmas não tinham direito. Inquestionável, ainda, desde logo pelas respetivas declarações, foi o contributo (objetivo) dos coarguidos recorrentes para o cometimento das burlas em causa. Efetivamente, resulta das declarações dos arguidos recorrentes que: - EE e DD, a pedido de seu pai, BB, disponibilizaram as suas contas do Millenium BCP para efeitos de viabilizarem a realização de transferências diretas da WU a creditar nas mesmas; - Na sequência de contacto prévio/instruções do arguido recorrente, as arguidas deslocaram-se a diversos balcões para recolherem os valores captados (procedendo ao levantamento das transferências e/ou autorizando o respetivo crédito em conta bancária que lhes eram indicadas). Será no entanto que, tal como alegam os recorrentes, ludibriado pelo sobrinho AA, BB estava convicto de que as quantias transferidas se destinavam ao pagamento do preço de uma Quinta sua propriedade que havia prometido vender a um terceiro, JJ, bem como de trabalhos de medição e terraplanagem, com este acordados, e que, entretanto, nela realizados? E será que, por sua vez, as arguidas recorrentes se limitaram a agir segundo instruções de seu pai, sendo alheias ao estratagema gizado para ludibriar as agências visadas? Vejamos. Em primeiro lugar, o único escrito nos autos a formalizar um contrato promessa, no valor de €1.050.000,00, encontra-se datado de 16.01.2008, sendo as transferências em causa – datadas de 16.08.2007, 13.12.2007, e 27.12.2007 – anteriores a tal formalização. Lido este escrito constata-se a ausência de menção a quaisquer pagamentos previamente efetuados. Alegam os arguidos recorrentes que existiu uma minuta de um contrato promessa que teria por objeto a Quinta ..., celebrado no Verão de 2007, e que se encontraria numa pasta preta apreendida nos autos, e, entretanto, desaparecida. Acresce que as testemunhas FF, então Presidente da Junta de Freguesia ..., e HH, proprietário de um terreno na referida freguesia referem a existência de contactos por um arquiteto e por um senhor estrangeiro, que estariam interessados na aquisição de terrenos com uma certa dimensão, os quais também teriam vindo a contactar BB para o mesmo efeito. Por sua vez, GG refere que acompanhou obras de terraplanagem, ainda em 2007, e II que fez medições e orçamentos para essas obras que depois acabaram por ser adjudicadas a outro empreiteiro. Será possível concluir que os arguidos recorrentes receberam os valores transferidos na convicção de que os mesmos se destinavam ao pagamento do preço da prometida venda da Quinta e dos trabalhos de terraplanagem e orçamentação acordados? Entendemos que não, tendo presente que, tal como assinalado pelo Tribunal recorrido: 1. As transferências são de baixo valor (face ao valor da pretensa venda) e quase todas em montantes diferentes. Assim: «no dia 16.08.2007 foram feitas, com sucesso, três transferências, uma no valor de 1.889,95€, outra no valor de 1.890,02€ e outra no valor de 1.957,45€»; «no dia 13.12.2007, duas são no valor de 1.400€, uma no valor de 1.500,00€ e outras no valor de 1.700,00€, 1.800,00€ e 1.900,00€»; «no dia 27.12.2007: todos os valores transferidos são diferentes, conforme resulta da simples leitura da tabela constante do facto provado sob n.º37»; 2. São diversos os remetentes, os destinatários, os locais de envio (inclusive de países destintos) e de destino; 3. Em nenhuma das transferências dos autos figura como remetente o pretenso promitente comprador (JJ); 4. Mesmo as transferências realizadas nos mesmos dias tinham, por vezes, destinatários diferentes e locais de levantamento diferentes. Assim: no dia 16.08.2007, foram tentadas cinco transferências, quatro delas para o arguido CC e uma para o arguido BB; as transferências do dia 13.12.2007, tinham como destinatário a arguida DD, mas algumas foram para levantar nos CTT – ... e outras no BCP; nas transferências do dia 27.12.2007, (todas com valores distintos) os remetentes são todos diferentes e surgem como destinatários a arguida EE e o arguido CC, a primeira para levantar no BCP e o segundo para levantar nos CTT – .... 5. Nas conversações telefónicas (sobre as transferências realizadas e a realizar em cada momento) é notório o comprometimento, a ansiedade, manifestados pelo arguido BB, bem como o controlo sobre as transferências realizadas. Assim, e tal como se escreve no Acórdão recorrido: «Assim, entre outras, revelando a dinâmica do grupo destacam-se as seguintes sessões de escutas telefónicas: - 383, alvo 34508M (BB), dia 10.12.2007, com informação de uma transferência de 1.500,00€ para a conta do alvo por parte da arguida EE (fls. 968 – volume 4.º); - 652, alvo 34508M (BB), dia 27.12.2007, às 21h40, com informação de uma transferência de 5.000,00€ para a conta do alvo por parte da arguida EE (fls. 968 – volume 4.º). - 425, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h35, com o arguido BB a ligar para a arguida DD e a dizer-lhe para levantar o de 1.400 (…) o outro já descarregaram e a dada altura a arguida DD responde ao pai “sim, olha, mas o banco já não (…) mas já não está fechado são três e quarenta?” e onde lhe fornece o número para proceder ao levantamento, referindo a este propósito que “(…) começa em 985 e termina em 98”, isto é, a última transferência constante da tabela do dia 13.12.2007 – artigo 28) dos factos provados. Sessão que consta do apenso V, a fls. 119. - 431, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h47, mensagem com o seguinte teor: ...93 rothers union, corresponde à quarta transferência constante da tabela do dia 13.12.2007, no valor de 1.700€ – artigo 28) dos factos provados. Sessão que consta do apenso V, a fls. 120. - 436, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h50, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe que “ele” vai-te mandar outra mensagem, vai lá acima aos correios da …ao centro, ao outro lado tá bem?” – sessão que consta do apenso V, a fls. 121. - 438, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 15h57, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe o número – sessão que consta do apenso V, a fls. 121. - 444, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 16h06, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a ditar-lhe o número: “...61”, isto é, corresponde à terceira transferência constante da tabela do dia 13.12.2007, no valor de 1.900€ – sessão que consta do apenso V, a fls. 122. - 451, alvo 34728M (BB), dia 13.12.2007, às 16h27, com o arguido BB a ligar para a arguida DD a dizer-lhe para ir ao Fórum (um centro comercial em ...) e a ditar-lhe um novo número – sessão que consta do apenso V, a fls. 122. Naquele mesmo dia 13.12.2007, o arguido BB também ligou para o seu filho OO – cf. sessão 461, às 20h52, e sessão 464, às 20h59, e das quais ressuma que ambos apercebendo-se que não estavam a conseguir realizar outra operação, o arguido diz ao filho “(…) pronto, mas está bem, se vires que coisa, vem-te embora, não há perigo, deixa ficar…” e já na sessão 464 o filho esclarece o pai porque é que não estava a conseguir: “é que aquilo não está com o nome da pessoa, tá com o nome de empresa, tás a perceber? (…) e não dá (…) a senhora por acaso era uma senhora que já me conhecia e ela disse-me, olhe, pois, realmente é que está com o nome de empresa e isto não dá (…) que não há, cá em Portugal não se consegue fazer transferências assim” – sessão que consta do apenso V, a fls. 126». 6. VV refere que todos os arguidos se apresentaram nos CTT para levantar dinheiro, por vezes, mais do que uma vez por dia, sendo as entregas eram feitas em numerário. Revemo-nos, ainda na seguinte apreciação do Tribunal recorrido: «Por tudo quanto se mencionou é, pois, convicção deste tribunal que todos os demais arguidos sabiam e queriam o meio fraudulento (burlas) empreendido por AA para obter cada uma das transferências que levantavam e/ou cujo depósito em conta bancária viabilizavam, atuando em comunhão de esforços e intenções com aquele e o arguido BB. Conhecimento e vontade que, ademais, é evidente em relação ao arguido BB, dado o seu contacto direto com AA percetível nas inúmeras conversações telefónicas intercetadas a respeito da discussão entre ambos sobre as vicissitudes das transferências. As arguidas EE e DD reconheceram ter disponibilizado as suas contas do Millenium BCP para efeitos de viabilizarem a realização de transferências diretas da WU a creditar nas mesmas, o que fizeram a pedido do seu pai, BB, embora, dissessem, a pretexto de se tratar do pagamento do preço da venda da dita Quinta ..., o que, nesta parte, não convenceu minimamente o Tribunal, não só pelo que já se anotou, mas também porque aquilo que evola diretamente de todas as escutas (e que, uma simples leitura das transcrições, permite perceber de imediato) é que todos sabiam exatamente o que estava em causa e que nenhuma relação tinha com a dita compra e venda, dado o receio, cuidado e rapidez que os arguidos imprimiam na realização dos atos, o que, também segundo as regras da experiência comum, não teria qualquer sentido se o que estivessem a fazer fosse algo de lícito, neste concreto caso, o de receber o preço da venda da dita Quinta, como os arguidos BB, DD e EE inutilmente pretenderam convencer este Tribunal. Tudo, pois, para reiterar que o receio, apreensão e rapidez patenteadas pelos arguidos nas escutas é, com o devido respeito por opinião contrária, um sinal inequívoco que aquelas transferências nada tinham a ver com um qualquer contrato, mas antes, e apenas, um sinal evidente que os arguidos bem sabiam o que estavam a fazer e que conheciam a ilicitude da obtenção daquelas quantias». Acresce que resulta da transcrição da sessão 425 (dia 13.12.2007), a fls. 119. entre BB e a filha DD (referente ao valor de 1400 €), que se ouve uma (outra) voz, claramente de AA a ditar parte dos números, a referir que se levante esse e rápido, e o arguido recorrente a instar a filha, «levanta já esse». Entendemos que, face aos elementos recolhidos nos autos, infere -se, para além de qualquer dúvida razoável, a participação de todos os arguidos recorrentes nos factos objetivos, e bem assim, a verificação dos elementos subjetivos que também resultaram provados. Temos por certo que os elementos probatórios especificados pela defesa – incluindo a prova pessoal e documental indicada para sustentar as negociações visando a aquisição da Quinta ... e os trabalhos nela realizados, bem como o contrato promessa nos autos – não fazem perder a clareza e o poder de convicção da provas que sustentam os factos provados que foram impugnados. Assim sendo, naturalmente que não se provou que «As transferências descritas nos factos provados eram por conta de pagamentos relacionados com um contrato celebrado entre o arguido BB e JJ, que tinha por objeto a “Quinta ...”, situada em ...». Desde logo porque, não é por ter havido negociações ou um contrato promessa visando a aquisição da Quinta ..., nem é por terem sido realizados trabalhos de medição e terraplanagem nesta propriedade, que é minimamente credível, face aos elementos probatórios nos autos, e por nós apreciados, que as transferências foram efetuadas por conta do preço acertado em tais negociações, num contrato promessa, ou relativo a trabalhos realizados, ou sequer que os arguidos agissem convictos que fosse essa a causa das transferências. Ou seja, não foram apresentados contraindícios suscetíveis de fazer abalar a prova dos factos impugnados. Não se diga, ainda que, pelo menos haveria de se ter suscitada a dúvida razoável relativamente à prova dos factos impugnados. Consabidamente, o princípio in dúbio pro reo é um princípio probatório, este, segundo o qual a dúvida (séria e insanável) em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido. Como se vê, o princípio in dubio pro reo «não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, sendo antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa»[47]. De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do CPP, o juiz é «livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível. O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada». E, somente «quando, após a discussão da causa e da reflexão, exaustiva, sobre toda a prova produzida, apreciada de forma crítica, objectiva e racional, devidamente traduzida na motivação, persistem várias soluções razoáveis, é legítimo convocar o princípio in dubio pro reo»[48]. No caso, lido o Acórdão recorrido verificamos que o Tribunal a quo não manifestou quaisquer dúvidas insanáveis sobre a factualidade que julgou provada. Do texto do Acórdão recorrido, o que emerge é que da conjugação e ponderação de toda a prova produzida, resultou para o Tribunal recorrido a certeza da prática pelos arguidos dos factos dados como assentes, pelo que não cabe falar em violação do princípio in dubio pro reo, que apenas é suscitado quando ocorram dúvidas insuperáveis de prova de determinados factos. O Tribunal a quo acreditou numa versão dos factos que tinha sustentação na prova produzida em audiência de julgamento e explicou as razões dessa opção, sem que lhe tenha restado qualquer dúvida inultrapassável que devesse conduzir ao funcionamento do princípio in dubio pro reo. A factualidade dada como provada serve de suporte a uma decisão de direito conscienciosa, não se vislumbrando a necessidade de encetar quaisquer diligências de prova adicionais. Não existe contradição entre os factos provados, nem entre estes e os não provados; bem assim, a fundamentação não é contraditória, tal como existe concordância entre a fundamentação e a decisão. Por fim, a convicção do tribunal a quo mostra-se consentânea com as regras da experiência comum e não viola qualquer critério legalmente fixado, nem se deu como provado o que não podia ter acontecido. Ou seja, não padece a decisão de qualquer dos vícios estruturais, de conhecimento oficioso, previstos no art.º 410.º n.º 2 do CPP. Como dissemos, não se divisa que os juízos presuntivos formados pelo Tribunal recorrido, em sede probatória, com apelo às regras da experiência tendo em consideração a restante prova produzida, com base nos factos dados como provados padeçam de irrazoabilidade. Pelo contrário, revemo-nos na decisão do Tribunal recorrido que temos por conforme aos juízos de experiência. Salvo o devido respeito, o que teríamos por irrazoável seria considerar que os arguidos recorrentes teriam sido ludibriados pelo coarguido AA sendo essa a razão de terem recebido as transferências dos autos. Ou seja, lido o Acórdão recorrido não se deteta a violação do princípio in dubio, que não resulta do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova [cfr al. c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P.). Do texto do Acórdão em crise, o que emerge é que da conjugação e ponderação de toda a prova produzida, resultou para o Tribunal recorrido a certeza da prática pela arguida dos factos dados como assentes, (em especial, dos impugnados), pelo que não cabe falar em violação do princípio in dubio pro reo, que apenas é suscitado quando ocorram dúvidas insuperáveis de prova de determinados factos. O Tribunal a quo acreditou numa versão dos factos que tinha sustentação na prova produzida em audiência de julgamento e explicou as razões dessa opção, sem que lhe tenha restado qualquer dúvida inultrapassável que devesse conduzir ao funcionamento do princípio in dubio pro reo. E, não se impõe, ainda, a este Tribunal de recurso a conclusão de que o Tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter tido, e que devia ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo, relativamente à matéria de facto. O Tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objetivo e motivado, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo a este tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal. Basta ler a decisão recorrida para perceber que o Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova, sem que no exame efetuado se detetem raciocínios ou juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios ou com desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada e dos princípios da prova, e, não havendo qualquer dúvida insanável sobre a verificação dos factos provados, não é, ainda, possível concluir pela violação do princípio in dubio pro reo. No fundo, o que os recorrentes questionam é a livre convicção do Tribunal recorrido, pretendendo ver a convicção formada pelo Tribunal substituída pela convicção que eles próprios entendem que deveria ter sido a retirada da prova produzida. No entanto, é o Tribunal a entidade competente para apreciar a prova segundo as regras da experiência e a livre convicção (art.º 127.º do CPP). Ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. No nosso caso, não apenas o juízo recorrido nos parece compatível com as regras de experiência e razoabilidade, como nos revemos na apreciação do Tribunal recorrido que temos por fundada na prova produzida e em inferências lógicas e presunções, conformes, como vimos a juízos de normalidade ligada às chamadas máximas da vida e regras da experiência, sem que, no caso, se detete a invocada violação do princípio in dúbio pro reo. Tudo considerado, não merece censura a decisão da matéria de facto, que se mostra consolidada nos termos definidos em primeira instância.
2.4 Não preenchimento típico Alegam os recorridos que não se preencheram todos os elementos do tipo de crime pelos quais foram condenados, no pressuposto de alteração da matéria de facto. Como vimos, a decisão respeitante à matéria de facto mostra-se consolidada nos termos decididos em primeira instância, pelo que falece, também nesta parte, a defesa.
III. Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízas que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em: 1- Julgar improcedente o recurso dos despachos recorridos; 2- Julgar improcedente o recurso do Acórdão condenatório. Custas crime do recurso dos despachos pelos arguidos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 3 UC´s (art.ºs 513º e 514º do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP). Custas crime do recurso do Acórdão condenatório pelos arguidos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UC´s (art.ºs 513º e 514º do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).
(Consigna-se que o Acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatárias – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)
Coimbra, 11.06.2025 Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora) Paulo Guerra (Juiz Desembargador 1.º adjunto) Alcina da Costa Ribeiro (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)
[2] O crime de burla desenha-se, como se refere no Ac. STJ de 12.12.2002 (relator Consº Simas Santos), www.dgsi.pt, “como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos: intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial”. [4] “É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta” – cit. Ac. STJ de 12.12.2002 (relator Consº Simas Santos), www.dgsi.pt. [7] Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código Penal", anot. art.204º, pg.560. [12] Exigindo o conhecimento e vontade dos demais co-arguidos para efeitos de comunicação da ilicitude na comparticipação (art.28º, nº1, do C.Penal) – cfr. RC 2.03.2005 (Belmiro Andrade) www.dgsi.pt. [14] Neste sentido Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 16ª edição, anotação ao art.30º, ensinando que a pluralidade de infracções resulta, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação, escreve : “As normas jurídico-penais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contramotivo no momento da resolução. Deste modo, haverá tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade. E o que indica quantas vezes se verifica essa ineficácia é a resolução. Quantas vezes o individuo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma, tantas vezes se verifica a sua ineficácia, ou seja, a sua violação”. [19] No dizer de Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal …, 1996, pg.251, “não basta qualquer solicitação, mas é necessário que ela seja tal que facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa” [40] Cf. Acórdão do TRG, datado de 06.11.2017, proc. 3671/13.4 TDLSB.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves) [41] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 27.06.2006, processo 2849/05-1 (Des. Martinho Cardoso). [46] Cf. vg., Ac. do STJ datado de 07.04.2011, proc. 936/08.0JAPRT.S1 [47] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 05.07.2007, processo 07P2279, rel. Cons. Simas Santos. [48] - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 27.02.2019, processo 107/17.5PBCVL.C1 (rel. Des. Belmiro Andrade). |