Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/22.5T8CNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI PEDRO LIMA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLECTIVAS
ATIPICIDADE
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 7.º, N.º 2, DO RGCO
Sumário: I – No ordenamento jurídico vigente, perante o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, o ilícito contraordenacional não pode ser directamente imputado, objectiva e subjectivamente, a uma pessoa colectiva.

II – Efectivamente, para que as pessoas colectivas respondam pelas contraordenações “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, é indispensável a indicação da entidade singular perpetrante dos factos em causa e da determinação da sua relação com o ente colectivo ou da sua responsabilidade orgânica nele.

III – Tratando-se de pessoa física não incluída nos órgãos da pessoa colectiva (funcionários, prestadores de serviços, etc.), basta apurar que actuou sob instruções dos órgãos respectivos (de quem os integre) no exercício das correspondentes funções.

IV – A omissão, na decisão judicial recorrida e, em especial, na decisão administrativa impugnada, de identificação da concreta pessoa que praticou os factos e da indicação da sua relação com a pessoa colectiva ou da sua responsabilidade orgânica nela determina declaração de absolvição.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., e em impugnação judicial de decisão administrativa tomada em processo de contraordenação, deduzida pela arguida

“G... Unipessoal, Ld.ª”, pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ..., 

o Ministério Público (MP) tornou presente essa decisão administrativa a juiz em 14/01/2022, para valer como acusação, assim a acompanhando, na sequência do que a 15/07/2022 veio a ser o caso decidido por simples despacho, em cujos termos aquela impugnação foi no essencial desestimada, com isso a final se mantendo a impugnada decisão administrativa, que à arguida aplicara a coima de 24.000,00 € e uma sanção acessória, pela comissão, em 11/03/2019, da contraordenação p. e p. pelo art. 81.º, n.º 3, al. a), do DL 226-A/2007, de 31/05, que aprova o Regime de Utilização dos Recursos Hídricos (RURH), todavia nessa decisão se procedendo à atenuação especial da coima, com redução do montante respectivo a 12.000,00 €, suspendendo-se-lhe parcialmente e por período de um ano a execução (em 6.000,00 €), com condicionamento dessa suspensão ao pagamento do remanescente (6.000,00 €) e à demonstração do cumprimento da sanção acessória, e quanto a esta precisando-se-lhe os termos, no sentido de expressamente consistir em que, sendo-lhe pela autoridade competente comunicado o momento para repor o terreno, a arguida demonstre essa comunicação e que procedeu ou iniciou tal reposição em conformidade com os preceitos legais aplicáveis, com o prazo de um ano.

2. Desse despacho vem agora a arguida interpor recurso, pugnando pela sua absolvição, o que sustenta tanto com base em não ter sido apurado o concreto autor dos factos e a sua relação consigo, de modo a ser-lhe imputável o ilícito, quanto no entendimento de que os factos objectivos apurados não preenchem o tipo de ilícito contraordenacional em causa. Das respectivas motivações extrai a final as seguintes conclusões:

«ISalvaguardado o devido respeito pelo entendimento nele vertido, não pode a ora recorrente conformar-se com o douto despacho recorrido, que condenou a recorrente pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, consistente na “utilização de recursos hídricos sem o respectivo título” e prevista no artigo 81.º, n.º 3, al. a), do RURH.

II – Para poder afirmar-se que determinado agente cometeu uma contraordenação, e concretamente uma contraordenação ambiental, necessário se torna, desde logo, que tenha praticado um facto, ilícito e censurável, que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente, e, ainda, que o tipo no qual se submete a conduta do agente sancione com uma coima essa mesma conduta [art. 1.º do DL 433/82, de 27/10 (Regime Geral das Contraordenações e Coimas – adiante RGCO), e artigo 1.º, n.º 2, da Lei 50/2006, de 29/08 (Lei quadro das contraordenações ambientais – adiante LQCOA)].

III – No que especificamente respeita à responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, como é o caso da aqui recorrente, dispõe o n.º 2 do art. 7.º do RGCO que “as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.

IV – Na interpretação deste normativo perfilam-se, no essencial, duas orientações doutrinais e jurisprudenciais, pugnando uns por um conceito organicista, mais restritivo, e defendendo outros um conceito funcional, mais amplo.

V – As mencionadas orientações doutrinais e jurisprudenciais convergem, contudo, no entendimento de que para imputar a infracção praticada por uma pessoa singular à pessoa colectiva é necessário que o infractor tenha actuado em nome e/ou por conta e no interesse da pessoa colectiva.

VI – In casu, e conforme se retira do cotejo do elenco da matéria de facto provada constante do douto despacho recorrido, além de não estar adquirida nos autos a identidade das pessoas singulares que praticaram os factos, também nada foi apurado quanto à existência ou não de alguma ligação/relação entre aquelas e a ora recorrente, não se sabendo se agiram em nome próprio ou se agiram por conta, no interesse e em nome de outrem, designadamente da ora recorrente.

VII – É, assim, manifesto que a contraordenação dos autos não pode ser imputada à ora recorrente, impondo-se a respectiva absolvição – conforme cristalinamente se sumariou no douto Acórdão desse Venerando Tribunal de 18/03/2015, proferido no âmbito do Processo n.º 304/14.5TBCVL.C1, “não estando determinado o tipo de relação existente entre a sociedade constituída arguida e o ente singular, e se este agiu em nome próprio, ou por conta, no interesse e em nome daquela, impõe-se, sem mais, a absolvição da primeira, por não lhe poder ser imputada qualquer responsabilidade contraordenacional”.

VIII – Ao assim não decidir, o douto despacho recorrido incorreu em erro de interpretação dos factos e de aplicação da lei, tendo violado o disposto nos art. 1.º e 7.º do referido RGCO, e no art. 1.º, n.º 2, da referida LQCOA, não se podendo, pois, manter.

Sem prescindir,

IX – Nos presentes autos, foi a aqui recorrente condenada pela prática da contraordenação prevista na al. a) do n.º 3 do art. 81.º do RURH.

X – Sucede, contudo, que os factos adquiridos nos autos não são subsumíveis à norma tipificadora da mencionada infracção contraordenacional, não se podendo ter por preenchidos os respectivos elementos típicos, contrariamente ao decidido pela Mma. juiz a quo.

XI – Nos termos expressamente previstos no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 58/2005, de 29/12 (Lei da Água – adiante LA), os recursos hídricos a que esta lei se aplica abrangem, “além das águas, os respetivos leitos e margens, bem como as zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas”.

XII – Conforme consta do n.º 2 do art. 1.º da Lei 54/2005, de 15/11 (Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos – adiante LTRH), “em função da titularidade, os recursos hídricos compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, pertencentes a entidades públicas ou particulares”.

XIII – A supra referida LA, que estabelece o regime de utilização dos recursos hídricos, sujeita ao princípio da prévia obtenção de título determinadas utilizações privativas dos recursos hídricos do domínio público e determinadas utilizações de recursos hídricos particulares – cfr. art. 56.º e ss. da mencionada LA.

XIV – Nos termos do disposto na já referida al. a) do n.º 3 do art. 81.º do RURH, constitui contraordenação ambiental muito grave “a utilização dos recursos hídricos sem o respectivo título”, ou seja, a utilização de recursos hídricos do domínio público sem a licença ou concessão devida e/ou a utilização de recursos hídricos particulares sem a autorização ou licença devida, sendo esta a contraordenação em causa nos presentes autos.

XV – Analisada a facticidade dos autos, é, na realidade, manifesto que não se verificou a prática da apontada contraordenação, uma vez que não ocorreu qualquer utilização de recursos hídricos do domínio público ou de recursos hídricos particulares.

XVI – Efectivamente, compulsado o elenco da matéria de facto julgada provada pelo douto despacho recorrido, constata-se que do mesmo não resulta que o terreno objecto das intervenções descritas constituísse margem, zona adjacente, zona de infiltração máxima ou zona protegida, nos termos e para os efeitos do disposto na LA na LTRH, ou seja, considerados os precisos conceitos ali definidos e aplicáveis.

XVII – De facto, pese embora conste dos pontos 2. e 7. do elenco factual do douto despacho recorrido a menção a “margem” e pese embora no referido elenco também conste, nos pontos 14. e 15., a expressão “domínio hídrico”, importa notar que uma e outra assumem cariz normativo-conclusivo no contexto dos autos, tendo, pois, conforme uniforme e reiteradamente salientado pela doutrina e pela jurisprudência, de ser consideradas improfícuas, o que se imporá seja decidido por esse Venerando Tribunal, a tal não obstando o disposto no n.º 1 do artigo 75.º do RGCO, uma vez que, conforme jurisprudência firme e constante, tal constitui matéria jurídica.

XVIII – No douto despacho recorrido, a Mma. juiz a quo, depois de afirmar que “da matéria provada resultou que (…) a recorrente se encontrava a efectuar uma intervenção num prédio situado em zona definida como estrutura ecológica complementar e inserida em zona de protecção da área envolvente às albufeiras de salvaguarda”, vem a concluir que “a recorrente procedeu à intervenção em e à utilização de recursos hídricos”, ou seja, embora se não apresente claro o iter lógico seguido, aparentemente a Mma. juiz a quo terá considerado que o prédio dos autos constituiria “zona protegida”, na acepção do artigo 2.º, n.º 1, da LA, e, portanto, recurso hídrico.

XIX – É, na realidade, patente o equívoco em que laborou o douto despacho recorrido.

XX – O que se encontra adquirido nos autos é que o local do prédio em causa, que se situa “dentro do limite do Regulamento do Plano de Ordenamento das Albufeiras da ... e do ... («POARC»)”, “estava definido no Plano Diretor Municipal de ... como área integrada na Reserva Ecológica Nacional definida como Estrutura Ecológica Complementar”, estando “ainda definido como área de risco de erosão e encontra-se como zona de proteção da área envolvente às albufeiras de salvaguarda tipo VII” (pontos 3. e 4. da matéria de facto provada).

XXI – Conforme resulta do disposto no Regulamento do Plano de Ordenamento das Albufeiras da ... e do ... e do disposto no Regulamento do Plano Director Municipal de ..., as “Áreas de salvaguarda de tipo VII” integram a zona terrestre de protecção da área envolvente da albufeira do ..., que “tem como função principal a salvaguarda e protecção dos recursos hídricos a que se encontra associada” (art. 12º, n.º 1, do DL 107/2009, de 15/05), mas não constitui uma "zona protegida” integrante dos recursos hídricos, conforme o previsto na al. jjj) do referido art. 4º da LA.

XXII – “Trata-se, portanto, de um território envolvente com incidência em recursos hídricos e protegido, assumindo inequívoco interesse público”, como bem refere a Mma. juiz a quo em dado segmento do douto despacho recorrido, mas não se trata de recursos hídricos, públicos ou particulares.

XXIII – Em suma, ao decidir como decidiu, o douto despacho recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação da lei, tendo violado o disposto nos art. 2.º, n.º 1, da LA, 1.º da LTRH, 81.º, n.º 3, al. a), do RURH, 1.º e 2.º do RGCO, e 1º, n.º 2, da LQCOA, não se podendo, pois, manter. »

3. Admitido o recurso, o MP ofereceu resposta, em que sustenta ser a decisão recorrida isenta de reparo e por isso dever ser mantida, dessa resposta igualmente extraindo conclusões que são as seguintes:

« I – Por douta sentença, proferida no dia 15/07/2022, a Mma. juiz a quo decidiu julgar improcedente o recurso apresentado pela recorrente “G... Unipessoal, Ld.ª”, e, em consequência e, designadamente:

- condenar a mesma pela prática, em 11/03/2019, de uma contraordenação ambiental muito grave, no pagamento de uma coima, especialmente atenuada, no valor de 12.000,00 €;

- condenar a mesma na sanção acessória;

- determinar a suspensão parcial da coima, no montante de 6.000,00 €, pelo período de um ano, condicionada à obrigação de pagamento, nesse mesmo prazo, de 6.000.00 €, acrescida da demonstração nos autos do cumprimento da sanção acessória aplicada.

II – É com esta sentença que a recorrente não se conforma e da qual vem recorrer, por meio da interposição do presente recurso.

III – Discordamos da recorrente, e entendemos que a sentença proferida não padece de qualquer vício, tendo a mesma decidido em estrita consonância com os critérios legais estabelecidos na lei.

IV – Desde logo, da análise do auto de contraordenação, resulta que, na ocasião identificada nos autos, a movimentação de terras estava a ser efectuada por uma máquina escavadora, operada por AA, que disse ter sido contratado pela empresa “G... Unipessoal, Ld.ª”, através do representante legal BB.

V – Está determinado o tipo de relação (contratual) existente entre a recorrente e o ente singular, o trabalhador identificado.

VI – Foi também feita prova de que o facto tipicamente ilícito e culposo imputado à recorrente foi cometido por outrem (os trabalhadores identificados no local), no estrito cumprimento de instruções ou ordens de serviço determinadas pela recorrente, nomeadamente pelo seu representante legal, fossem elas de modo geral e abstracto ou individual e concretamente.

VII – Assim, no caso dos autos e para a infracção em causa, tão só era necessária a identificação concreta do agente singular que cometeu a infracção (como foi), para que a mesma seja imputável à recorrente, pessoa colectiva.

VIII – Por outro lado, a obra relativamente à qual se refere o procedimento de contraordenação e sentença em crise estava situada na margem esquerda do rio ..., dentro do limite do Regulamento do Plano de Ordenamento das Albufeiras da ... e do ... (POARC).

IX – Nessa medida, a matéria factual dada como provada é suficiente para fundamentar a condenação numa contraordenação ambiental muito grave, p. e p. pelo art. 81.º, n.º 3, al. a), do RURH, em conjugação com o art. 22.º, n.º 4, al. b), da LQCOA.

X – Não nos merece reparo a decisão recorrida e, com efeito, e abstendo-nos de reproduzir os argumentos vertidos na mesma quanto ao enquadramento jurídico-legal da factualidade indiciada nos autos, entendemos que os mesmos são pertinentes, pelo que tal decisão, enquanto corolário lógico da argumentação expendida, tem a nossa concordância e deve ser mantida, pelo que o recurso interposto pelo mesmo deve improceder.»

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, aderindo à argumentação da resposta do MP em primeira instância (sem prejuízo de na matéria do preenchimento do tipo contraordenacional objectivo a desenvolver extensamente), acompanha na conclusão essa resposta, a final igualmente se pronunciando no sentido de ao recurso não ser dado provimento algum.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou, após o que, ao exame preliminar não se patenteando dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente das que possam relevar do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), aqui aplicável por força do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, e a esta luz as matérias neste caso relevantes são em concreto as seguintes:

i. Saber se os factos apurados, deles não constando identificação da(s) pessoa(s) física(s) que praticou/praticaram a acção em causa, nem a relação que tivesse(m) com a sociedade arguida/recorrente e em cujo âmbito agisse(m), e a que título, consentem ainda assim, ou não, a imputação da infracção contraordenacional a essa sociedade – na negativa afirmando-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, a impor a determinação do reenvio do processo para novo julgamento, total ou parcial, se a decisão da causa for aqui e por via desse vício inviabilizada.

ii. Nenhum outro se perfilando, caso se não verifique aquele vício ou, verificando-o, em se mostrando ainda assim viável aqui decisão, então apreciar do preenchimento ou não do tipo de ilícito contraordenacional em causa, na negativa impondo-se a absolvição da recorrente, e na afirmativa cabendo simplesmente a manutenção do decidido, nada mais havendo a apreciar (visto que as questões atinentes à medida da coima e sua suspensão, bem como à sanção acessória, essas nem mesmo a título subsidiário foram objecto do recurso).

1.2. Não havendo lugar a conhecimento da matéria de facto pelo tribunal da relação, que nos termos do art. 75.º, n.º 1, do RGCO, e nada desse diploma aqui especificamente impondo o contrário, apenas decide em matéria de direito (sem prejuízo do disposto pelo já referido art. 410.º, n.º 2, do CPP, em sendo caso), e por outro lado não tendo sido requerida realização de audiência, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º, n.º 3, al. c), do CPP), como foi.   

2. A decisão recorrida

Transcreve-se aqui a decisão recorrida, apenas no que respeita ao elenco dos factos provados e à fundamentação de direito (limitada ao que tange à afirmação do preenchimento do tipo contraordenacional), por só isso bulir com as questões a apreciar. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo:

« (…)

3. Fundamentação de facto

3.1. Factos provados

1. No dia 11 de Março de 2019, pelas 16h10m, os militares da GNR ..., realizaram uma ação de fiscalização no prédio misto, com a matriz do prédio urbano n.º ...58... e matriz de prédio rústico n.º ...63, na localidade de ..., ..., ....

2. A obra situava-se na margem esquerda do rio ..., dentro do limite do Regulamento do Plano de Ordenamento das Albufeiras da ... e do ... («POARC»).

3. O espaço estava definido no Plano Diretor Municipal de ... como área integrada na Reserva Ecológica Nacional definida como Estrutura Ecológica Complementar.

4. O local estava ainda definido como área de risco de erosão e encontra-se como zona de proteção da área envolvente às albufeiras de salvaguarda tipo VII.

5. No dia, hora e local, os agentes autuantes verificaram que as movimentações de terras estavam a ser realizadas por uma máquina escavadora, vulgo giratória.

6. A referida máquina procedia à escavação do talude de suporte à Estrada Nacional ...22.

7. Os inertes extraídos eram colocados na cota mais baixa, na margem esquerda do rio ... com o objetivo de nivelar o terreno e ter um maior aproveitamento de área (numa extensão contabilizada de 4,700 m2).

8. Atendendo aos vestígios criados pelo corte da pá da máquina industrial nas paredes da escavação do talude, a intervenção correspondeu à retirada de inertes numa profundidade de cerca de nove metros em função da cota da EN ...22 e a cota final da escavação.

9. À data dos factos, no local, o forte declive e inclinação do terreno resultava no deslizamento de terras e pedras, algumas de grandes dimensões que percorriam toda a encosta (numa extensão de cerca de oitenta metros) e se introduziam na massa de água.

10. No local existia uma flora considerável com diversas espécies, nomeadamente sobreiros.

11. No dia, hora e local foram contabilizadas doze árvores da dita espécie abatidas com um comprimento médio de sete metros e um diâmetro de vinte centímetros.

12. Na mesma data estavam a ser realizados trabalhos de construção por dois operários de construção civil, nomeadamente "tecer" ferro para utilizar na construção de uma nova edificação.

13. Tais obras iniciaram-se em 4 de Março de 2019.

14. À data dos factos a recorrente não apresentou qualquer autorização emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente para a intervenção realizada em domínio hídrico.

15. Ao atuar da forma descrita, a recorrente não agiu com o cuidado e diligência com que podia e devia ter atuado no caso em concreto, uma vez que procedeu a uma intervenção em domínio hídrico, num local para o qual não estava devidamente autorizada pela autoridade competente.

16. A recorrente não possui antecedentes contraordenacionais na APA.

17. A recorrente não possui antecedentes contraordenacionais na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional ....

18. A recorrente não possui antecedentes contraordenacionais no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.

19. No exercício de 2021, a recorrente teve um prejuízo para efeitos fiscais de 1.044,71 €.

20. Por missiva expedida em 17 de Abril de 2019, dirigida à Câmara Municipal ..., a recorrente requereu que lhe fosse comunicado o momento a partir do qual pode ser efectuada a reposição do terreno e eventuais termos/condicionantes a observar.

(…)

4. Fundamentação de direito

4.1. Enquadramento jurídico contraordenacional

«Constitui contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima» (art. 1.º, n.º 2, da LQCOA, em complemento da definição vertida no art. 1.º do RGCO).

À recorrente vem imputada a prática de uma contraordenação ambiental muito grave prevista no art. 81.º, n.º 3, al. a), do RURH, a título de negligência, nos termos previstos no art. 22.º, n.º 4, al. b), da LQCOA, mais concretamente a utilização de recursos hídricos sem o respectivo título.

Tendo em consideração que a LA tem, como finalidade e além do mais, a promoção de uma utilização sustentável de água, baseada numa proteção a longo prazo dos recursos hídricos disponíveis (art. 1.º, al. b)), em concretização da organização desse desiderato, o o RURH veio introduzir no ordenamento jurídico um novo regime sobre as utilizações dos recursos hídricos e respectivos títulos.

Quer isto dizer que, atendendo a que a protecção da natureza e do ambiente é tarefa fundamental do Estado português (art. 9.º, al. e) da CRP) e direito fundamental dos cidadãos (art. 66.º, da CRP), a LA tem como objetivo primordial a gestão sustentável das águas e a sua proteção, pelo que é exigido, nos termos do art. 56.º do referido diploma, que as atividades que tenham impacto significativo no estado das águas só possam exercer-se mediante um título de utilização.

Assim, qualquer utilização dos recursos hídricos que não esteja incluída no art. 58.º da LA (uso e fruição comum), implica a submissão de um requerimento à entidade licenciadora que avaliará o respetivo impacte e qual o título mais adequado para o efeito, emitido nos termos e condições previstos no RURH.

Daqui decorre que o direito de utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público apenas poderá ser atribuído por licença ou por concessão, sendo que o procedimento que leva tanto a uma como a outra pode surgir da iniciativa pública ou da iniciativa particular.

Nos termos da LTRH, os recursos hídricos compreendem as águas, abrangendo ainda os respectivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas.

Na aplicação do diploma em causa, importa atentar que o art. 15.º da LA determina que:

«1 – As medidas de ordenamento e planeamento dos recursos hídricos têm como âmbito de intervenção, para além dos seus próprios limites geográficos, o território envolvente com incidência nesses recursos e as zonas objeto de medidas de proteção dos mesmos.

2 – Entende-se por «território envolvente com incidência nos recursos hídricos» as margens dos lagos e albufeiras de águas públicas e as orlas costeira e estuarina nas quais importa impor regras de harmonização das suas diversas utilizações com a preservação dos recursos e meios hídricos.

3 – As zonas objeto de medidas de proteção dos recursos hídricos compreendem os perímetros de proteção e as áreas adjacentes às captações de água para consumo humano, as áreas de infiltração máxima para recarga de aquíferos e as áreas vulneráveis à poluição por nitratos de origem agrícola.

4 – Podem também vir a ser objeto dessas medidas de proteção determinadas áreas, nomeadamente partes de bacias, aquíferos ou massas de água, que, pelas suas características naturais e valor ambiental, económico ou social, assumam especial interesse público».

Nos termos do art. 60.º da LA, estão sujeitas a licença (prévia) e são classificadas como utilizações privativas dos recursos hídricos do domínio público, a imersão de resíduos (alínea c)), a instalação de infraestruturas (alínea j)), o corte de árvores (alínea l)), a realização de aterros ou de escavações (alínea m)) e a extração de inertes (alínea o)).

Ora, da matéria provada resultou que, nas circunstâncias de tempo e lugar aí melhor descritas, a recorrente se encontrava a efectuar uma intervenção num prédio situado em zona definida como estrutura ecológica complementar e inserida em zona de protecção da área envolvente às albufeiras de salvaguarda.

Trata-se, portanto, de um território envolvente com incidência em recursos hídricos e protegido, assumindo inequívoco interesse público.

Mais se apurou que a recorrente se encontrava a realizar diversas intervenções referentes a obras que exigiam a detenção de licença para utilização de recursos hídricos, nomeadamente a imersão de resíduos (deslizamento de terras e pedras que percorriam a encosta e se introduziam na massa de água), a instalação de infraestruturas (a construção de uma nova edificação), o corte de árvores (mais concretamente de doze sobreiros autóctones), a realização de aterros ou de escavações (escavação do talude de suporte à EN ...22) e a extração de inertes (em decorrência da aludida escavação e atenta a colocação dos mesmos em cota inferior).

Apesar da realização dessa intervenção a recorrente não possuía qualquer autorização emitida pela autoridade competente para a intervenção em domínio hídrico.

Assim, mostram-se preenchidos os elementos objectivos do ilícito em causa, verificando-se que a recorrente procedeu à intervenção em e à utilização de recursos hídricos sem o respectivo título, que deveria obter previamente.

Mais se apurou que a recorrente não agiu com a diligência necessária ao cumprimento das obrigações legais a que estava adstrita e era capaz, o que se subsume ao conceito de negligência inconsciente previsto no art. 15.º, al. b) do Código Penal (CP), aplicável ex vi do art. 32.º do RGCO.

Constata-se, assim, que da matéria de facto provada resulta a prática, pela recorrente, de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. pelo art. 81.º, n.º 3, al. a), do RURH, pelo que se mantém integralmente a condenação.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Embora a recorrente centre argumentos na alegação de violação, com a decisão recorrida, dos art. 1.º e 7.º, n.º 2, do RGCO, e 1.º, n.º 2, da LQCOA, abstendo-se de com ela configurar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), certo é que ao apontar concretamente a omissão, naquela decisão, da identificação de qualquer pessoa singular que tivesse praticado os factos supostamente ilícitos e a relação que a mesma consigo tivesse, bem como se agiu por sua conta e sob sua instrução/vigilância, é isso mesmo o que materialmente está a fazer: a impugnação restrita da decisão em matéria de facto, desenvolvida nesse plano da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício que sempre seria aliás de conhecimento oficioso. Por outro lado, estando o conhecimento da causa pelo tribunal de recurso limitado à matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCO), este foco precisamente abrange uma tal impugnação, tendo-se em conta, como directamente decorre da lei e é doutrina e jurisprudência comum, que se trata de vícios apenas configuráveis em se patenteando da própria sentença, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, como algo de palmarmente alheio à razoabilidade, ao pensamento lógico e às regras do conhecimento, sem necessidade de apelo a elementos que àquela sejam extrínsecos e seu escrutínio directo, designadamente meios probatórios, ainda que produzidos em audiência – coisa que pelo contrário respeitaria em sentido próprio a recurso da matéria de facto, isto é, seria cabível somente no domínio da impugnação ampla, como prevista no art. 412.º, n.º 3, do CPP (que essa sim e neste domínio contraordenacional não seria sequer admissível). Este regime do CPP é, nos termos do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, subsidiariamente aplicável ao procedimento em matéria contraordenacional, sendo a este título que para a causa se mostra mobilizável a disciplina do dito art. 410.º, n.º 2, do CPP. É com este lapidar mas indisputável (e por isso suficiente) enquadramento em mente que se impõe considerar os concretos argumentos da recorrente.

3.2. Isto posto, diremos antes de mais que se verifica a insuficiência dos factos apurados para sustentar a decisão tomada (é o que significa “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, que não pode confundir-se com insuficiência da prova para a decisão de facto proferida), quando os pressupostos juridicamente necessários desta não sejam por aqueles preenchidos ou até mesmo sejam por aqueles afastados. Ora, mesmo pressupondo o preenchimento do tipo contraordenacional objectivo, isto é, a correspondência das acções apuradas às que a norma incriminadora sanciona, com a verificação de todos os correspondentes elementos objectivos (a dúvida sobre isso lançada é o segundo plano em que se desdobra o ataque à decisão recorrida, e ao menos por agora deixamo-lo de lado), resulta evidente, do cotejo do elenco de factos provados exarado na decisão, que a afirmação, no que ao tipo subjectivo tange, da negligência (inconsciente) da recorrente, não é com efeito sustentável – nesse sentido, e ressalvando o devido respeito, mostrando-se um erro manifesto da decisão, perceptível por qualquer seu destinatário logo a partir dos próprios termos (e assim relevante do citado art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), a imputação subjectiva da infracção à recorrente, que é uma sociedade. Mantendo aqui as coisas no devido enquadramento, mostra-se mesmo gerador de alguma perplexidade que a despeito daquela patente omissão de identificação da concreta pessoa que praticou os factos e de determinação da sua relação com a sociedade ou da sua responsabilidade orgânica nela, se tenha consignado como facto provado 15. que “ao atuar da forma descrita, a recorrente não agiu com o cuidado e diligência com que podia e devia ter atuado no caso em concreto, uma vez que procedeu a uma intervenção em domínio hídrico, num local para o qual não estava devidamente autorizada pela autoridade competente”. A ulterior conclusão pelo preenchimento da contraordenação a título negligente, ancorando naquele “facto” a verificação da negligência, consiste em contornar o estrito condicionamento da possibilidade de atribuição da responsabilidade contraordenacional à sociedade pela imputação do ilícito a alguma concreta pessoa física, questão a que por isso passamos.

3.3. Com efeito, o ilícito contraordenacional não pode, pela própria natureza das coisas, ser directamente imputado a uma sociedade, objectiva ou subjectivamente. As sociedades, pessoas jurídicas, não formam por si mesmas conhecimento, vontade, decisão e consciência de ilicitude, nem de resto agem ou omitem acções, sendo sempre através de concretas pessoas físicas que estas e aquelas se projectam no mundo. Isto presente, tenhamos desde logo em conta o teor do art. 7.º, n.º 1 e 2, do RGCO: (1) “as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica”; e (2) “as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”. Ora, apesar de no elenco dos factos provados nem sequer ser expressamente plasmada a natureza de pessoa colectiva (sociedade) da recorrente, esse dado é uma evidência e absolutamente nada consta daquele acervo fáctico quanto a quem são os membros dos seus órgãos e muito menos a que os integrasse quem quer que fosse a quem a acção/omissão relevante e correspondente atitude subjectiva pudesse atribuir-se (!), o que do mesmo modo não consta dos factos não provados, assim não havendo qualquer suporte para a responsabilização porque afinal se concluiu.

3.4. Por outro lado, mesmo concedendo que aqui, nesta matéria de delimitação dos termos da responsabilização contraordenacional das pessoas colectivas, cobrasse cabimento, nos termos do art. 32.º do RGCO (que determina aplicação subsidiária, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, das normas do CP), o regime extensivo do art. 11.º, n.º 2, als. a) e b), e n.º 4, do CP, as conclusões não poderiam ser diversas. Sem prejuízo de não subscrevermos sem mais essa aplicabilidade deste regime ao caso que nos ocupa, desde logo e decisivamente porque aquela extensão do art. 11.º, n.º 2, als. a) e b), e n.º 4, do CP, tem âmbito taxativamente circunscrito às infracções ali catalogadas), o que ali se prevê é a responsabilização das pessoas colectivas pelos actos cometidos: (n.º 2, al. a) “em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança”; ou (n.º 2, al. b) “por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem”; acrescendo, para integração dessas previsões, que (n.º 4) “entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade”. Ora, mais uma vez, absolutamente nada consta do elenco de factualidade apurada que pudesse configurar a identificação de fosse quem fosse que, como membro de órgão ou a qualquer título representante da recorrente, ou  apenas com a autoridade para exercer controlo da respectiva actividade, tivesse agido/omitido o que quer que fosse que relevasse do tipo contraordenacional, ou sequer que a de todo o modo não identificada pessoa que assim tivesse agido, estivesse por seu lado, a que título e/ou de que forma, sob autoridade de uma daquelas pessoas que violasse os seus deveres de vigilância e controlo.

3.5. Dito de outro jeito, também por aqui a imputação da infracção à recorrente seria na decisão recorrida destituída de suporte fáctico, o que não pode deixar de dar corpo ao referido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP). Note-se, aliás muito enfaticamente, que não cobra sucesso, nesta sede, a linha argumentativa ensaiada na resposta do MP ao recurso, segundo a qual na ocasião da acção inspectiva das autoridades em que a ilícita actuação foi detectada, se apurou a identidade de um certo trabalhador, operador de máquina escavadora (de seu nome AA), que disse então ter sido contratado pela recorrente e através do respectivo representante legal (BB), de sorte que teria sido feita prova da identidade dos autores do facto (os trabalhadores identificados no local), e de que nessa actuação estavam em estrito cumprimento de instruções dadas pela recorrente através do seu representante legal, “fossem elas de modo geral e abstracto ou individual e concretamente”; assim, e porque a expressão legal “órgão no exercício das suas funções” teria de ser extensivamente interpretada, de modo a incluir os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva, desde que actuando no exercício das suas funções ou por causa delas, não tendo a recorrente feito prova de que aqueles tivessem agido contra ordens expressas da recorrente ou no interesse deles mesmos, chegar-se-ia sem mais à responsabilização dela, em termos tais que “a responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas, sustentando-se numa imputação directa e autónoma, não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da acção típica e ilícita”.

3.6. Salvo o devido respeito, trata-se uma posição que de modo nenhum pode sufragar-se. Em primeiro lugar, se na acção inspectiva foi identificado o concreto agente da infracção e que este estava então ao serviço da recorrente, segundo instruções dadas pelo legal representante desta, o que então se impunha é que a partir daí, e desde logo com o testemunho desse identificado agente [e, já agora e para determinação dessa qualidade de legal representante (gerente?) de quem teria dado as instruções, com o pertinente registo comercial], se estabelecessem tais factos e deles se deixasse rasto na decisão, que foi precisamente o que se não fez – decerto não cabendo integrar a decisão com o que porventura resulte dos autos mas dela não consta e à luz de alegações agora feitas em resposta ao recurso. Só por si, isto afastaria já a pertinência daquela argumentação, mas sempre se dirá, em segundo lugar, que o art. 7.º, n.º 2, do RGCPO, não carece de interpretação extensiva alguma, posto que admissível fosse; para que as pessoas colectivas respondam pelas contraordenações cometidas por pessoas físicas que, não sendo seus órgãos, estejam ao respectivo serviço (funcionários, prestadores de serviço, etc.), basta que se apure que actuaram sob instruções dos órgãos respectivos (de quem os integre) no exercício das correspondentes funções, ou, quando menos, com omissão por estes da vigilância que fosse devida; e era isso que, para a responsabilização contraordenacional da sociedade recorrente, igualmente se impunha ter ficado provado, naturalmente não sendo a esta que competia provar o contrário para eximir-se daquela responsabilização! Enfim, não deixemos de dizê-lo, a afirmação de que a responsabilização contraordenacional das pessoas colectivas se sustenta “numa imputação directa e autónoma”, sobre abertamente alhear-se do teor e sentido do art. 7.º, n.º 2, do RGCO, desconsidera a própria realidade ontológica, posto que, insista-se, por natureza as pessoas colectivas nem agem senão através de pessoas físicas e nem formam vontade e decisão senão através dos seus órgãos.

3.7. Afirmar, assim, que a responsabilização contraordenacional delas (pessoas colectivas) não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da acção típica e ilícita, é, salvo o devido respeito, algo de manifestamente equivocado; pode até prescindir-se da individualização de um concreto agente de entre um determinado conjunto deles, conceda-se, mas não certamente de que em todo o caso os haja identificados e que se trate de membros de órgãos seus no exercício das respectivas funções ou de terceiros a actuar sob instruções/vigilância destes. Como vimos, da decisão da matéria de facto ínsita no despacho recorrido, nada disto consta como aproveitável, e certamente não poderia tal falta suprir-se, em perspectiva do enquadramento jurídico-contraordenacional subsequente, com elaborações argumentativas plasmadas na resposta do MP ao recurso da arguida. Desse modo, concluir a final pela imputação subjectiva da infracção à recorrente, a título de negligência inconsciente (ou consciente, ou dolo que fosse, em qualquer modalidade), que vem na decisão de facto afirmada, sim, mas em termos gerais, directamente reportado à pessoa colectiva (como se esta por sua natureza pudesse formular decisões à margem de concretas pessoas físicas seus órgãos ou de outro jeito seus representantes), sem alguma dessas pessoas identificar sequer (e muito menos lhes apurando a posição na estrutura funcional da recorrente e essas formação de vontade e consequente decisão), tudo vem a resultar em uma responsabilização contraordenacional objectiva, que nem por tratar-se de pessoa colectiva passa a ser aceitável e de todo o jeito não tem arrimo legal (é perfeitamente concebível a defesa, no plano teórico, de uma responsabilização contraordenacional objectiva das pessoas colectivas, e talvez até que do ponto de vista da política de ordenação social isso pudesse ser tido como desejável, mas manifestamente não foi essa a opção do legislador e não cabe aos tribunais como que corrigi-lo, decidindo como se o ordenamento vigente a comportasse).

3.8. Entendemos deixar claro, embora essa seja uma questão que aqui ficará prejudicada, que no outro plano em que se desdobra o ataque à decisão recorrida empreendido pela recorrente, o da alegada impertinência da acção objectiva em causa ao recorte legal do tipo contraordenacional, a argumentação expendida não mereceria acolhimento, mal se percebendo a sustentação de que objectivamente os factos não são subsumíveis à norma do art. 81.º, n.º 3, al. a), e 4, do RURH. São-no, e até elementarmente: o que ali se sanciona é a utilização dos recursos hídricos sem título (autorização), independentemente de nos termos da LTRH serem do domínio público ou particulares; o terreno intervencionado está na margem de albufeira (sendo do domínio da mera tergiversação procurar afastar essa evidência com alegação de que usado na decisão de facto o termo é conclusivo), e é portanto território envolvente com incidência no recurso hídrico, para os efeitos da LA; porém, e sem que para isso houvesse a necessária autorização, do que se tratou foi de ali levar a cabo intervenção com vista à edificação de estrutura nova e da qual resultou a imersão de resíduos (deslizamento de terras e pedras que percorriam a encosta e se introduziam na massa de água), o corte de árvores (mais concretamente de doze sobreiros autóctones), a realização de aterros/escavações (escavação do talude de suporte à EN ...22) e a extração de inertes (em decorrência da aludida escavação e atenta a colocação dos mesmos em cota inferior) – tudo como isso sim claramente consta dos factos provados, e no plano do enquadramento jurídico deles não se lobrigando reparo que a decisão recorrida merecesse.

3.9. Onde a decisão claudica, e como já vimos, é na completa ausência de descrição fáctica susceptível de suportar a conclusão pela imputação subjectiva (a título de negligência ou dolo que fosse), e vistas as coisas a essa luz, posta-se, incontornável, uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP); é afirmada a negligência (inconsciente); mas não de quem e muito menos de alguém que responsabilizasse a recorrente (em quem afinal e de forma impossível directamente é radicado). Ademais, trata-se de uma insuficiência que não é suprível, desde logo e admitindo que outras razões não houvesse, nem mesmo tendo sido para os efeitos do art. 430.º, n.º 1, do CPP, requerida a renovação de prova, nem se lobrigando qual a que oficiosamente pudesse determinar-se. E assim, ficando inviabilizada aqui a decisão da causa, impor-se-ia, em princípio e nos termos dos art. 426.º, n.º 1, e 426.º-A, do CPP, por força do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, o reenvio do processo para novo julgamento (em rigor: para julgamento, uma vez que a decisão recorrida foi tomada por mero despacho, prescindindo dele, nos termos do art. 64.º, n.º 1 e 2, do RGCO), restrito à determinação de quem a pessoa que concretamente agiu, praticando os factos, e quem como órgão ou membro de órgão da recorrente e no exercício das correspondentes funções lhe deu para isso instruções – tendo-se em consideração na sentença subsequente o que nessa matéria se apurasse ou não lograsse apurar.

1.10. Todavia, sucede no caso que nem isso é viável. O reenvio, total ou parcial, não pode implicar desvio às regras da vinculação temática do tribunal, isto é, não pode por via dele ser colocado o tribunal de primeira instância a indagar e estabelecer factos que logo à partida já nem da acusação constavam e sem os quais se não pode sequer afirmar o preenchimento do tipo. O que nos autos vale como acusação, mediante apresentação a juízo pelo MP e na sequência da impugnação, é a decisão administrativa impugnada (cfr. art. 62.º, n.º 1, do RGCO), e desta mesma não constando os elementos referidos, averiguá-los agora e eventualmente assentá-los como apurados em subsequente decisão judicial sobre a impugnação daquela administrativa, excederia largamente os limites da mera alteração não substancial dos factos ou simplesmente da qualificação jurídica (art. 358.º, do CPP, aplicável por força do art. 41.º, n.º 1, do RGCO), e até os da alteração substancial (art. 359.º, e 1.º, al. f), do CPP, aplicáveis sempre por força do art. 41.º, n.º 1, do RGCO), já que com eles se tornaria em perfectibilizados ilícitos-típicos contraordenacionais uma conduta cuja prévia descrição, mais do que corresponder a outros diversos ou menos graves, nenhum integrava! Breve, determinar, com o reenvio, novo julgamento parcial para apurar os elementos em falta para preenchimento do tipo, equivaleria a comandar ao tribunal recorrido que violasse os limites da vinculação temática e com isso menoscabasse os direitos de defesa da arguida e o princípio do acusatório.

1.11. Tiramos daqui, enfim, que o que se impõe é a absolvição da arguida (aliás em linha com o que, perante similar situação, foi decidido no Ac. deste TRC de 18/03/2015, proferido no processo 304/14.5TBCVL.C1 – ALCINA RIBEIRO). Breve, e já encerrando, ainda que se mostre do domínio do indiscutível a perfectibilização, com a actuação descrita, do tipo contraordenacional objectivo do art. 81.º, n.º 3, al. a), e 4, do RURH, não constando dessa descrição constante da decisão judicial aqui recorrida, e em especial nem sequer da decisão administrativa impugnada, os factos que seriam condição de responsabilização da recorrente enquanto pessoa colectiva (por actuação, directamente ou através de terceiros sob as correspondentes instruções, das pessoas que sejam seus órgãos, e com a necessária negligência ao menos, tudo nos termos acima já bastamente explanados), então a condenação dela, consoante decidida/mantida pelo tribunal recorrido, torna-se insustentável (por se não verificarem os pressupostos respectivos, segundo previstos pelos art. 1.º, 7.º, n.º 1 e 2, e 8.º, n.º 1, do RGCO, e 1.º, n.º 2, da LQCOA), insustentabilidade essa para mais irreparável através de reenvio para novo julgamento. E temos, assim, que se impõe conceder provimento ao recurso, absolvendo a recorrente.

III – Decisão

À luz do exposto e concedendo provimento ao recurso da arguida “G... Unipessoal, Ld.ª”, decide-se absolvê-la das infracções contraordenacionais por que na decisão recorrida vinha condenada.

Sem custas (art. 513º, n.º 1, a contrario, do CPP).



Coimbra, 13 de Dezembro de 2022

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Pedro Lima (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Maria Pilar Oliveira (2.ª adjunta)



Assinado eletronicamente