Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1322/20.0T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
CESSAÇÃO DO FORNECIMENTO
PEDIDO DE MUDANÇA DE COMERCIALIZADOR POR TERCEIRO
SUBSISTÊNCIA DO CONTRATO ORIGINÁRIO
DEVER DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 106.º-B, N.º 1, ALÍNEA C), 75.º, ALÍNEA K), E 143.º, DO REGULAMENTO DAS RELAÇÕES COMERCIAIS DO SETOR ELÉTRICO, APROVADO PELA ERSE PELO REGULAMENTO N.º 561/2014, DE 22/12/2014, ALTERADO PELO REGULAMENTO N.º 632/2017, DE 21/12, E 406.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Ocorre mudança de comercializador de energia elétrica se a parte consumidora celebrar, para o local em questão, um contrato de fornecimento com outro comercializador. Não assim, se o pedido de mudança de comercializador foi apresentado por um terceiro, ocasionando um novo comercializador e um novo cliente.

II – Neste último caso, o contrato de fornecimento de energia elétrica com o anterior fornecedor e com o anterior titular não se extingue, pelo que é de ter como indevida a respetiva cessação por aquele fornecedor, que fica, por isso, constituído no dever de indemnizar os danos assim causados.

Decisão Texto Integral:
Relator: Emídio Francisco Santos
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias

Processo n.º 1322/20.0T8CVL.C1

Acordam na 1.º Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Avenida ..., ..., ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra EDP Serviço Universal S.A., denominada actualmente SU Electricidade SA, com sede na Rua Camilo Castelo Branco, 43 – 1050-044 Lisboa, pedindo se condenasse a ré:
a) A reconhecer que cortou ilegalmente e sem qualquer fundamento o fornecimento de energia eléctrica, no prédio pertencente ao autor, a que estava vinculada através do contrato de fornecimento de energia eléctrica referido no artigo 2.º da petição;
b) A restabelecer de imediato, por sua conta, risco e responsabilidade, a ligação do contador do autor à rede de fornecimento de energia eléctrica;
c) A pagar ao autor a quantia de € 50,00 (cinquenta euros) a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no restabelecimento do fornecimento de energia eléctrica, a partir da data do trânsito em julgado da sentença;
d) A indemnizar o autor pelos danos patrimoniais que viessem a ser liquidados por via incidental em ulterior momento processual ou em execução de sentença;
e) A indemnizar o autor na quantia de € 5 000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais contados a partir da data do trânsito em julgado da sentença.

Para o efeito alegou em síntese:
· Que celebrou com a ré, há mais de trinta anos, o contrato de fornecimento de energia nº ...01, com Cód. Ident. Local ...97, por força do qual esta se obrigou a fornecer-lhe energia eléctrica no local de consumo sito na Rua ... – Ramal ... ... ..., mediante o pagamento da correspondente contrapartida pecuniária;
· Que, no dia 03.12.2019, a ré procedeu unilateralmente e sem aviso prévio ao “cancelamento” do supra referenciado contrato, suspendendo, desde então, o fornecimento de energia eléctrica ao autor no local atrás referido;
· Que o corte de energia eléctrica causou-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais.

A ré contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa alegou, em síntese, que procedeu efectivamente ao cancelamento do contrato de fornecimento de energia, mas fê-lo no cumprimento de instruções que lhe foram dadas no âmbito de um pedido de mudança de comercializador efectuado pelo autor; que era possível que, em consequência de tal pedido, o autor tenha visto a sua instalação cortada de energia; que esse facto era alheio à vontade da ré e apenas poderia ser imputado ao autor.

Mediante requerimento do autor, foi admitida a intervir nos autos, na posição de ré, EDP Distribuição Energia SA.

A interveniente, designada actualmente de E-REDES Distribuição de Eletricidade S.A., contestou a acção, mediante defesa por excepção e por impugnação. Em matéria de excepção, invocou a ilegitimidade dela para a acção. Em sede de impugnação, alegou que, para o local de consumo em questão nos autos, tinha havido um processo de alteração de titular do contrato de fornecimento de energia, mas que não se procedeu a qualquer interrupção ou fornecimento de energia eléctrica, sendo falso que a instalação do autor não estivesse a ser abastecida de energia eléctrica.

No despacho saneador, o tribunal a quo julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da interveniente.

O processo prosseguiu os seus termos. Na audiência final, o autor desistiu do pedido em relação à interveniente. A desistência foi homologada por sentença, já transitada em julgado.

Após a realização da audiência foi proferida sentença que decidiu:
1. Reconhecer que o corte de energia eléctrico referido no ponto n.º 5 da matéria de facto provada violava o contrato celebrado entre o autor e a ré “SU Eletricidade, S.A.”, mencionado nos pontos n.ºs 2) e 3) da matéria de facto provada;
2. Condenar a ré “SU Eletricidade, S.A.” a pagar ao autor os seguintes prejuízos sofridos por este, a título de indemnização por danos patrimoniais, cujo quantum deveria ser fixado em incidente de liquidação de sentença:
· Prejuízos correspondentes aos produtos alimentares que ficaram inutilizados em consequência do corte de energia;
· Prejuízos sofridos pelo autor, na Primavera e Verão de 2020, em consequência do impedimento de efectuar a rega de árvores, plantas e produtos hortícolas no terreno de que é proprietário sito a Rua ..., Ramal ..., ..., ...;
· Prejuízos sofridos pelo autor pela necessidade de contratar um advogado com vista a propor a presente acção e efectuar deslocações do ... ao ...;
3. Condenar a ré a pagar ao autor a quantia de 1 000,00 euros (mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal em vigor para as dívidas de natureza civil desde o trânsito da presente sentença até ao efectivo e integral pagamento;
4. Absolver a Ré “SU Eletricidade SA” do demais peticionado.

O recurso

A não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se substituísse a sentença recorrida por decisão que julgasse improcedente a acção.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A recorrente procedeu ao cancelamento do contrato de fornecimento de energia, o que fez no rigoroso cumprimento das instruções que lhe foram dadas atento o pedido de mudança de comercializador;
2. Quando ocorre pedido de mudança de comercializador, é transferida a responsabilidade por este processo para uma entidade externa – OLMC – Operador Logístico de Mudança de Comercializador – entidade responsável pela gestão do processo de mudança de comercializador, ao abrigo do artigo 3º, nº1, alínea q), da Directiva Nº15/2018;
3. O comercializador cessante (in casu EDP SU) apenas recebe a informação, por parte desta entidade, nos termos do artigo 59.º da Directiva N.º 15/2018, de que existiu este pedido de cessação do contrato;
4. E face a essa informação procede ao cancelamento do contrato;
5. Quem tem que aferir da legitimidade do pedido de mudança de comercializador é o novo comercializador, que envia para o cessante, no caso a ora recorrente, apenas uma notificação com pedido de cancelamento – o que foi feito;
6. É este o procedimento entre comercializadoras de energia;
7. Quem muda de comercializador e quer um novo contrato, terá que junto da comercializadora demonstrar a qualidade e a legitimidade a que vem;
8. A comercializadora cessante só é notificada do pedido de cessação, como nos autos, o que fez!
9. Face ao exposto, duvidas não podem subsistir que há contradição entre a matéria provada e não provada, devendo ser a mesma alterada;
10.Assim sendo, deverá ser retirado da matéria de facto provada o constante do ponto 5;
11.E retirado dos factos não provados o ponto b);
12.Dando–se por provado que a recorrente não violou o contrato e, no que diz respeito à cessação do mesmo, apenas interveio por intermédio de uma notificação que a informava que havia um pedido de cessação daquele contrato – o que fez!
13.Uma vez que a notificação vem da nova comercializadora de energia, na logica do mercado livre de comercialização da mesma;
14.Não há qualquer violação contratual da recorrente.

O autor não respondeu ao recurso.


*

Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

O recurso suscita questões de facto e de direito.

Em sede de facto suscita a questão de saber se a prova indicada pela recorrente impõe a alteração da decisão de julgar provada a matéria do ponto n.º 5 e a de julgar não provada a matéria da alínea b), no sentido de se julgar, respectivamente, não provada aquela matéria e provada esta.

Em sede de direito suscita a questão de saber se a sentença errou ao decidir que a ré, ora recorrente, violou o contrato de fornecimento de energia eléctrica e, em caso de resposta afirmativa, se a sentença é de revogar e de substituir por outra que julgue improcedente a acção.


*

Impugnação da decisão relativa à matéria de facto:

(…).


*

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Provados:
1. A “SU Eletricidade, S.A. tem como objecto social a compra e venda de energia, sob a forma de electricidade e outras, em conformidade com as licenças de que for titular e o exercício de actividades de prestação de servições afins e complementares daquelas.
2. Em 17.05.1991, o autor AA acordou com a Ré “EDP Serviço Universal, S.A.” o fornecimento por esta àquele de energia, acordo a que foi atribuído o n.º ...01, com o código de identificação local n.º ...97.
3. Mediante o acordo mencionado em 2), a ré ficou obrigada a fornecer energia ao Réu no local de consumo sito na Rua ..., Ramal ..., ..., ..., mediante o pagamento por este de uma contrapartida pecuniária.
4. O autor sempre pagou à ré a energia eléctrica fornecida por esta.
5. 5) No dia 03.12.2019, a ré procedeu, sem aviso prévio ao autor, ao “cancelamento” do acordo mencionado em 2) e 3), suspendendo desde essa data o fornecimento de energia eléctrica ao autor, no local referido em 3).
6. A ré “SU Eletricidade, S.A.” procedeu ao “cancelamento” do acordo mencionado em 2) e 3), atendendo que lhe foi apresentado um pedido de mudança de comercializador efectuado por BB.
7. A ré “SU Eletricidade, S.A.” teve conhecimento do aludido em 6).
8. Desde a data mencionada em 5), o autor ficou privado de energia eléctrica no local referido em 3).
9. A energia eléctrica acordada destinava-se a ser consumida num barracão e na utilização de um motor para extracção de água do poço existente num terreno confinante com um pertencente ao autor, sito no local mencionado em 3).
10.O autor, habitualmente e com regularidade quase diária, deslocava-se ao prédio referido em 9) logo de manhã, onde permanecia durante o dia, fazendo a lavoura, amanhando e cuidando do terreno e procedendo à rega de árvores e produtos hortícolas.
11.No interior do barracão referido em 9), o autor tinha um frigorífico que deixou de poder utilizar, uma vez que o mesmo funcionava apenas a electricidade.
12.Em consequência do aludido em 11), o autor deixou de consumir alimentos e bebidas frescas, uma vez que ficou privado da utilização do frigorifico onde as colocava e mantinha refrigerados.
13.Na sequência do corte de energia, alguns bens alimentares que se encontravam no frigorífico ficaram estragados e impróprios para consumo.
14.A rega do terreno pertencente ao autor era efectuada com água proveniente de um poço do terreno confinante, com a utilização de um motor eléctrico para extracção de água.
15.Para a água do poço chegar ao prédio pertencente ao autor é necessário fazer uso do motor, que não funciona sem energia eléctrica.
16.Na sequência do corte de energia, o autor não conseguiu assegurar o normal abastecimento de água ao seu prédio, ficando impedido de fazer a rega de arvores, plantas e produtos hortícolas.
17.Na sequência do aludido em 16), durante as estações da Primavera e Verão de 2020, o autor deixou de poder cultivar o terreno que lhe pertence, não tendo usufruído dos bens que nele cultivava e dele retirava, tais como tomate, feijão, batata, pepino e pimentos.
18.O autor nasceu em .../.../1940.
19.O autor tem limitações e dificuldades a nível de força física e de locomoção.
20.Durante o Inverno de 2019/2020, sempre que o autor se deslocava ao seu terreno tinha de regressar mais cedo a casa, uma vez que não tinha electricidade.
21.O autor gosta de se dedicar à agricultura e ao cultivo do terreno que lhe pertence, no que ocupa grande parte dos seus dias e o mantém distraído, fazendo-o sentir útil e feliz.
22.O facto de não poder utilizar energia no barracão e frigorífico, nem cultivar o seu prédio e praticar uma actividade causou abalo, perturbação, irritação, transtorno e incómodo ao autor, que teve noites mal dormidas sem compreender nem se conformar com o corte de energia.
23.O autor contactou a ré no sentido de obter uma solução para o corte de energia, por vezes não concretamente determinadas.
24.Não obstante o aludido em 23), a ré não restabeleceu o fornecimento de energia, nem apresentou qualquer justificação para tal.
25.O autor teve contactar e acordar com um advogado o patrocínio desta acção e fazer deslocações desde a sua residência, no ..., ao ..., com vista a fornecer àquele os elementos necessários ao patrocínio e tramitação do processo.
26.A “E-REDES – Distribuição de eletricidade, S.A.” tem como objecto social a distribuição de energia eléctrica, bem como a prestação de outros serviços acessórios ou complementares.

Não provados:
a) Que o pedido de mudança de utilizador mencionado em 6) foi efectuado pelo autor.
b) Que a ré “SU Eletricidade, S.A.” apenas teve conhecimento que existiu um pedido de cessação do acordo mencionado em 2).
c) Que o autor foi persuadido por agentes comerciais para celebrar acordo de fornecimento de energia com outra comercializadora, em troca de diferentes condições que lhe poderiam parecer mais apelativas.
d) Que o autor nunca procurou a colaboração ou informação da ré relativamente ao corte de fornecimento de energia.


*

Resolução das questões de direito

Como se escreveu acima, as principais questões de direito suscitadas pelo recurso são a de saber se a sentença errou ao decidir que a ré, ora recorrente, violou o contrato de fornecimento de energia eléctrica e a de saber, em caso de resposta afirmativa, se ela é de revogar e de substituir por decisão que julgue improcedente a acção, mais concretamente, o pedido de condenação da ré, ora recorrente, no pagamento de indemnização ao autor.

A sentença sob recurso entendeu que a ré violou o contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado entre ela e o autor porque interrompeu o fornecimento de energia ao local de consumo em questão nos autos. A fundamentação da decisão consistiu em síntese no seguinte:
· O contrato de fornecimento de energia eléctrica não cessou por vontade expressa do autor, pelo que se presumia a culpa da ré na interrupção do fornecimento de energia, presunção que não foi ilidida;
· A ré teria de avisar previamente o autor da suspensão do fornecimento de energia eléctrica, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e do artigo 137.º, do Regulamento de Relações Comerciais em vigor à data da interrupção (Regulamento n.º 561/2014, de 22 de Dezembro, alterado pelo Regulamento n.º 632/2017, de 21 de Dezembro);
· Incumbia à ré a prova de todos os factos relativos ao cumprimento deste regulamento (cf. artigo 7.º), mormente do preenchimento dos motivos de interrupção previstos no artigo 137.º e das causas de cessão do contrato previstas no artigo 106.º-B, do aludido regulamento.

A recorrente sustenta que não violou o contrato com base em síntese na seguinte linha argumentativa:
· Que procedeu ao cancelamento do contrato de fornecimento de energia celebrado com o réu no cumprimento das instruções que lhe foram dadas pelo operador logístico de mudança de comercializador, que é a entidade responsável pela gestão do processo de mudança de comercializador;
· Que ela, ré, apenas recebe a informação por parte dessa entidade de que existiu o pedido de cessação do contrato;
· Que face a essa informação procedeu ao cancelamento do contrato;
· Que quem tem o dever de aferir da legitimidade do pedido de mudança de comercializador é o novo comercializador que envia para o cessante, no caso, a ré, uma notificação com o pedido de cancelamento, o que foi feito.

Apreciação do tribunal:

Como se vê da exposição efectuada, a recorrente sustenta que o corte do fornecimento de energia eléctrica ao local de consumo em questão nos autos ocorreu em consequência do cancelamento do contrato que ela celebrou com o autor e que tal cancelamento não lhe é imputável porque ocorreu na sequência de um pedido de mudança de comercializador e o processo de mudança é gerido por uma entidade externa (operador logístico de mudança de comercializador), limitando-se ela, ré, a receber o pedido de notificação do pedido de cessação do contrato.

Salvo o devido respeito, a alegação da recorrente não procede.

Em primeiro lugar, não é exacto dizer-se que, para o local de consumo em questão nos autos, houve apenas um pedido de mudança de comercializador. A situação seria de considerar como mudança de comercializador se o autor celebrasse, para o local em questão, um contrato de fornecimento com outro comercializador. Esta realidade, embora alegada pela ora recorrente, não se provou. A realidade provada foi a seguinte (realidade não alegada por nenhuma das partes): o pedido de mudança de comercializador para o local em questão foi apresentado por um terceiro (BB).

Segue-se daqui que, para o local de consumo em questão, foi apresentado um novo comercializador e um novo cliente. Estava-se, pois, não apenas perante mudança de comercializador, mas também em face de mudança de cliente para o local de consumo em questão.

Se, nos casos de mera mudança de comercializador, o contrato de fornecimento de energia eléctrica com o anterior comercializador extingue-se, por aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 106.º-B do Regulamento das Relações Comerciais do Sector Eléctrico aprovado pela ERSE pelo Regulamento n.º 561/2014, de 22 de Dezembro de 2014, alterado pelo Regulamento n.º 632/2017, de 21 de Dezembro, já nos casos em que, para o local de consumo, ocorre mudança de comercializador e de titular tal não sucede. Com efeito, não decorre do Regulamento das Relações Comerciais do Sector Eléctrico nem das disposições gerais sobre a eficácia dos contratos, designadamente do artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil, que, em tais hipóteses, o contrato de fornecimento de energia eléctrica com o anterior fornecedor e com o anterior titular se extingue. Vejamos.

Segundo a já citada alínea c) do n.º 1 do artigo 106.º-B, do Regulamento acima citado, o que implica a cessação do contrato de fornecimento de energia eléctrica é a celebração pelo cliente de contrato de fornecimento com outro comercializador. Fora do alcance de tal alínea está a celebração, por um terceiro, de contrato de fornecimento para o local em questão com outro fornecedor. Por sua vez, de acordo com o n.º 2 do artigo 406.º do Código Civil, o contrato extingue-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei, hipóteses onde também não cabe a celebração de contrato de fornecimento com outro fornecedor por parte de um terceiro, estranho ao contrato anterior.

Em segundo lugar, é exacto que quem gere a mudança de comercializador é uma entidade externa, sendo que, à data dos factos, era a Agência para a Energia (ADENE), criada pelo Decreto-Lei n.º 223/2000, de 9 de Setembro (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 38/2017, de 31 de Março) e que essa mudança deve observar os procedimentos previstos na Directiva n.º 15/2018, de 10 de Dezembro emitida pela ERSE, em conformidade com o que que prevê o n.º 2 do artigo 143.º do Regulamento das Relações Comerciais do Sector Eléctrico.

Já não é, no entanto, exacta a alegação de que a ré procedeu ao cancelamento do contrato no cumprimento de instruções que lhe foram dadas na sequência do pedido de mudança de comercializador e que recebeu apenas um pedido de cancelamento do contrato. Com efeito, não está provado o concreto procedimento que levou a ré a cancelar o contrato de fornecimento celebrado com o autor. Não está demonstrado designadamente que a ré, ora recorrente, recebeu apenas uma notificação do chamado OLMC (operador logístico de mudança de comercializador) para cancelar o contrato com o autor.

A realidade apurada é a de que a ré procedeu ao “cancelamento” do contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado com o autor, atendendo que lhe foi apresentado um pedido de mudança de comercializador efectuado por BB. O que se infere daqui é que o pedido de mudança foi apresentado à ré, ora recorrente, e que esta soube logo que quem estava a pedir a mudança de comercializador para o local em questão não era o autor, mas um terceiro.

Sendo estas as circunstâncias conhecidas em que ocorreu o pedido de mudança de comercializador, a conclusão a retirar, face à alínea c) do n.º 1 do artigo 106.º-B, do Regulamento acima citado e ao n.º 2 do artigo 406.º do Código Civil é a de que a ré, ora recorrente fez cessar indevidamente o contrato de fornecimento de energia eléctrica que havia celebrado com o autor.

Não merece, assim, censura a decisão a recorrida quando entendeu que a ré, ora recorrente, fez cessar indevidamente o contrato de fornecimento de energia eléctrica em questão nos autos.

Como não merece censura na parte em que entendeu que foi indevida a suspensão do fornecimento de energia eléctrica. Vejamos.

Segundo a alínea k) do n.º 1 do artigo 75.º do Regulamento das Relações Comerciais do Sector Eléctrico acima citado, o fornecimento de energia eléctrica pode ser interrompido pelo operador de rede por facto imputável ao cliente quando, solicitada pelos comercializadores de último recurso, nas situações previstas no artigo 143.º. Estas situações são as de mudança de comercializador.

A ré, ora recorrente, não está, no entanto, em condições de se prevalecer da citada alínea K). Na verdade, a aplicação de tal alínea pressupõe a mudança de comercializador nos termos previstos no artigo 143.º do Regulamento acima citado. E a mudança de utilizador ocorre nos termos de tal preceito quando o cliente contrata o fornecimento de energia eléctrica com outro comercializador. Ora, como se escreveu mais acima, o caso presente não é de considerar como de mera mudança de comercializador, mas antes o de mudança de comercializador e de titular do contrato, sendo que esta última situação não é abrangida pela alínea K) acima referida.

Contra a pretensão da ora recorrente depõe ainda a seguinte razão de ordem processual retirada dos artigos 573.º e n.º 1 do artigo 627.º, ambos do CPC. Segundo o n.º 1 daquele preceito “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”. De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito “depois da contestação, só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhece oficiosamente”. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 627.º afirma que as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos.

Decorre destes preceitos que está vedado ao recorrente servir-se do recurso para invocar contra a pretensão do autor, meios de defesa que podia ter deduzido na contestação ou depois da contestação, ao abrigo do n.º 2 do artigo 573.º, salvo aqueles de que o tribunal deva conhecer oficiosamente.

Ao alegar em sede de recurso que procedeu ao cancelamento do contrato de fornecimento de energia no cumprimento de instruções que lhe foram dadas pelo Operador Logístico de Mudança de Comercializador [OLMC] atento o pedido de mudança de comercializador efectuado por um terceiro, quando na contestação justificou o cancelamento com o cumprimento de instruções que lhe foram dadas no âmbito de um pedido de mudança de comercializador efectuado pelo autor, a recorrente invoca uma realidade diferente como meio de defesa, que não é de conhecimento oficioso, o que lhe está vedado pelos preceitos acima citados.

Por todo o exposto, é de julgar improcedente o recurso.


*

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.


*

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.º parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a ré, ora recorrente, ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Coimbra, 30 de Maio de 2023