Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
992/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JOÃO TRINDADE
Descritores: CRIME DE AMEAÇAS
CONDIÇÃO DEPENDENTE DA VONTADE DO AMEAÇADO
Data do Acordão: 05/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 153º DO CÓDIGO PENAL
Sumário:

Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante, para que se verifique o crime do artº 153º do CP, é a possibilidade da “mensagem”, do “anúncio” que é transmitido pela ameaça provoque ou seja susceptível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afecte ou prejudique a sua liberdade de determinação e acção, nem que seja numa restrita ,como é o caso (fresar determinada terra), ou pequena parte da actividade do visado, mesmo, quando existe um direito em litígio.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal desta Relação:

O Digno Magistrado do Ministério Público e o assistente CC acusou o arguido BB , melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de

- um crime de injúrias p. p. pelo art.º 181º do Código Penal (CP) e um crime de ameaças p. e p. pelo artº 153º do mesmo diploma

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Requereu, então, o arguido a abertura da instrução nos termos do artº 287º, nº 1 a) do CPP com vista à não pronúncia .

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Realizadas as diligências consideradas pertinentes e após o respectivo debate instrutório foi proferido despacho de não pronúncia no que respeita ao crime de ameaças.

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Inconformado, recorreu o assistente, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
1. O Mº Juiz de instrução não pronunciou o arguido, aqui recorrido, pelo crime de ameaças de que vinha acusado, nem pelo crime de coacção, por entender que não haviam indícios suficientes da prática do crime.
2. Da valoração das provas existentes nos autos e da realização do debate instrutório, resultou que ,o recorrido proferiu as seguintes expressões contra o recorrente : “É um ladrão! Não voltes a fazer aquilo , senão dou-te um tiro!”- Estes factos têm apoio nas declarações das testemunhas : DD, EE e FF, cfr. douto despacho, que aqui se dá por reproduzido.
3. O Mº Juiz não atribuiu à referenciada expressão : “ Eu arranco as portas, e se for preciso dou-te um tiro !” a existência de sinais da ocorrência de um ilícito.
4. Esta expressão integra o tipo objectivo e subjectivo de ilícito p. e p. pelo artº 153º, nº 2 do CP.
5. Este crime é um crime autónomo, isto é, não depende da vontade do ameaçado.
6. A ameaça do recorrido com um crime contra a vida do recorrente só dependia e dependa da vontade daquele – “….se for preciso ( se assim o entender ) dou-te um tiro !”.
7. O tipo objectivo de ilícito encontra-se preenchido: há ameaça de um mal futuro ( crime contra a vida) , que depende da vontade do recorrido, e que é adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
8. Não é necessário que, em concreto , lhe tenha provocado medo ou inquietação , isto é, tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que,
9. A ameaça, tendo em conta as circunstâncias concretas em que é proferida e a personalidade do recorrido , seja susceptível de intimidar qualquer pessoa , inclusive o recorrente.
10. Sendo certo que, o recorrente se sentiu ameaçado.
11. Contido , a partir do momento em que foi ameaçado , começou a temer que o recorrido tentasse , em algum momento menos lúcido, resolver esta situação pelas suas próprias mãos.
12. O recorrido tinha consciência que ao ameaçar o recorrente iria provocar-lhe medo e intranquilidade , como provocou (sendo irrelevante que o recorrido tenha, ou não , a intenção de concretizar a ameaça), agindo , portanto, com dolo.
13. Perante o exposto , deve-se considerar que existem indícios suficientes da prática do crime de ameaças pelo recorrido p. e p. pelo artº 153º, nº 2 do CP.
14. Pelo que se deve revogar o douto despacho , na parte em que não pronuncia o recorrido pelo crime de ameaças e substituído por outro que pronuncie o arguido por esse crime.
15. Deve ainda ser revogado na parte em que o Mº Juiz entende que da expressão proferida pelo recorrido : “És um ladrão! Não voltes a fazer aquilo (lavrar a terra) senão dou-te um tiro”, não resultou o constrangimento do recorrente a uma omissão.
16. Efectivamente, a conduta do recorrido prejudicou a liberdade de decisão e de acção do recorrente, pelos fundamentos já expostos anteriormente, quanto ao criem de ameaças.
17. O mal ameaçado – “ dou-te um tiro” “ – era adequado a constranger o recorrente a comporta-se de acordo com a exigência do ameaçante, tendo em conta o recorrido estar completamente descontrolado , e atendendo também ao ambiente de tensão em que ambos vivem , e conformou-se com essa situação.
18. A consumação do crime de coação basta-se com o simples início da execução da conduta coagida.
19. O requerente foi efectivamente constrangido de lavrar a terra , contra a sua vontade.
20. Termos em que se deve dar provimento ao recurso revogando-se o despacho em que não pronuncia o arguido pelo crime de ameaças e na parte em que entende não haverem indícios suficientes da prática do crime de coacção pelo recorrido contra o recorrente e substituir-se por outro que pronuncie o arguido por esses dois ilícitos.

O Mº Pº na comarca respondeu pugnando pela improcedência do recurso para tal concluindo:
1. A questão colocada, através do presente recurso, pelo assistente é a de saber se a actuação do arguido, na parte em que se dirigiu ao assistente e lhe disse que “não voltasse a fresar a terra senão que lhe dava um tiro” a prática de um ilícito penal de ameaças ou de coacção.
2. A conduta praticada pelo arguido não consubstancia , de facto , uma ameaça que preencha os requisitos do tipo legal p. e p. pelo disposto no artº 153º do CP, a própria expressão utilizada é condicional e parece visar impedir o assistente de voltar a fresar o terreno que o arguido entende ser seu.
3. Como refere o Mº Juiz de instrução, na fundamentação do despacho de encerramento da instrução , em parte cuja argumentação se subscreve, essa expressão “não integra um crime de ameaças, dado que a concretização do mal anunciado está dependente da prática de um acto pelo assistente, que é o voltar a fresar do dito terreno… Para a verificação desse ilícito torna-se necessária a caracterização clara e inequívoca do mal a fazer , bem como a predisposição do agente que, na realidade, o mal pode efectivar-se …nada justificava que o assistente, ou qualquer pessoa colocada no seu lugar, ficasse com medo e inquietação, já que o perigo de levar um tiro só existiria se voltasse a lavrar o terreno que o arguido considera seu… o que o arguido pretendeu ao proferir tal expressão foi , como dela se deduz, impedir que o assistente se apoderasse do terreno, dessa forma o coagindo a abster-se o voltar a fresar e cultivar.
4. No crime de coacção o bem jurídico protegido é a liberdade de acção, trata-se de um crime de resultado, não basta a adequação da acção do agente (adequação do meio utilizado) é necessário que o visado tenha sido constrangido a praticar/omitir/tolerar a acção , de acordo com a vontade de quem o coage e contra sua , que adopte esse comportamento e que exista uma relação de efectiva causalidade entre o comportamento de quem coage e de que é coagido.
5. O arguido, ao dizer ao assistente que “não voltasse a mandar fresar a terra senão que lhe dava um tiro”, poderia incorrer na prática de um ilícito penal de coação (tipificado no artº 154º do CP), caso o assistente tivesse alterado o seu comportamento , abstendo-se de mandar fresar o terreno , contudo a prova recolhida não permitia considerar tal indiciado.
6. Como refere o Mº Juiz a quo , na fundamentação do despacho de encerramento da instrução , “ além de não resultar dos autos nem das próprias declarações do assistente, que este ficou efectivamente constrangido e receoso de voltar ao terreno e que nunca mais o fez, até é referido pela testemunha Maria Isabel que desde então o assistente já voltou a lavrar a terra sem que o arguido algo que tenha feito “ (fls. 122)

Também o arguido/recorrido veio responder manifestando o entendimento de que o recurso não deve proceder, já que os factos constantes dos autos e dados como provados não integram os elementos objectivos e subjectivos imputados ao recorrido.

Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto nos termos das considerações constantes da resposta do Sr. Procurador na comarca conclui pelo insucesso do recurso.

Parecer que notificado não mereceu resposta.

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Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir :

O âmbito dos recursos afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas na respectiva motivação conforme jurisprudência constante e pacífica desta Relação,bem como dos demais tribunais superiores, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O crime de ameaça encontra-se inserido no Capítulo IV, do Título I, da parte especial , sob a epígrafe de Crimes Contra a Liberdade Pessoal – Ameaça, sendo certo que tutela a liberdade individual de decisão e de acção . Com o mesmo pretende-se evitar os comportamentos geradores de sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo, isto é, que afectam a paz individual e, consequentemente, a liberdade de autodeterminação.

É seu elemento material a promessa ou anúncio de um mal futuro, que configure um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, em ordem a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, isto é susceptíveis de afectar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, pelo que não é necessário que, em concreto, se provoque medo ou inquietação, ou seja, que o visado tenha ficado afectado ou lesado( - Vide Figueiredo Dias e outros , Comentário Conimbricence do Código penal (1999), I, 340 e segs.)

Deste modo, não exigindo a lei a ocorrência de dano(efectiva perturbação da liberdade ou causação de medo ou inquietação no ameaçado) , bastando-se com a simples ameaça , desde que adequada a provocar medo ou inquietação , ou a perturbar a liberdade , temos que a ameaça é um crime de perigo concreto.

Quanto ao elemento de índole subjectiva a lei exige o dolo em qualquer das suas modalidades , que aqui se caracteriza pela consciência de que o comportamento assumido é susceptível de causar medo ou inquietação ou de perturbar a liberdade do visado.

Neste âmbito, considerando estarem verificados os restantes elementos constitutivos, e estando as partes de acordo quanto a considerar como indiciado que o arguido disse, dirigindo-se ao assistente, que “não voltasse a fresar a terra senão que lhe dava um tiro” a questão que nos é posta à apreciação prende-se com a subsunção jurídica desta factualidade.

Considerou o tribunal a quo que ela “não integra um crime de ameaças, dado que a concretização do mal anunciado está dependente da prática de um acto pelo assistente, que é o voltar a fresar o dito terreno. Em função do afirmado pelo arguido se o assistente não voltasse a fresar o terreno nada lhe faria. O mal anunciado ficou, assim , dependente da verificação de uma condição, pelo que seria uma “ameaça condicional” . Deste modo, a efectivação da ameaça ficava dependente de uma acção futura do assistente e se este nada fizesse nada lhe aconteceria.

Não concordamos.

Na verdade a tese do despacho recorrido violaria frontalmente o espírito e o bem jurídico que subjaz ao artº 153º, qual seja a tutela penal da liberdade pessoal.

Independentemente de ser condicional ou não, o que é determinante é a possibilidade da “mensagem”, do “anúncio” que é transmitido pela ameaça provoque ou seja susceptível de provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afecte ou prejudique a sua liberdade de determinação e acção, nem que seja numa restrita ,como é o caso (fresar determinada terra),pequena parte da actividade do visado, mesmo, quando existe um direito em litígio.

Se assim não fosse teríamos de considerar como não violadora da liberdade do visado e como tal não puníveis, as ameaças de que “se sais de casa , dou-te um tiro”, “ ou se vais para o trabalho dou-te um tiro” e outras que tais ,já que a concretização do mal anunciado estaria dependente de um acto do visado, sublinhe-se de um acto normal e legítimo de qualquer cidadão, sair de casa ou ir trabalhar.

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Nestes termos se decide:
- Julgar por provido o recurso revogando-se o despacho recorrido na parte em que se decidiu não pronunciar o arguido pelo crime de ameaças p. e p. pelo artº 153º nºs 1 e 2 do CP que será substituído por outro que pronuncie pela prática desse mesmo crime

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Sem tributação.

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Coimbra, 2004-05-