A – Relatório
1. … foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, os arguidos
AA … e
BB …
2. O ofendido CC deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos AA e BB, peticionando a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 1.955,62 euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais, contados desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
3. Em sede de julgamento, o tribunal desencadeou o mecanismo de alteração não substancial de factos, incluindo factos e qualificação jurídica, no sentido dos arguidos puderem ser condenados, em co-autoria, por um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas c) e j), do Código Penal.
4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 24.2.2022, decidindo-se nos seguintes termos:
“1. Condeno o arguido AA pela prática de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos art.ºs 143.º n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e j) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
2. Substituo a pena de prisão por 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros).
3. Condeno o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo disposto no art. 143.º, n.º 1 do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos).
4. Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente e, consequentemente, condeno solidariamente os arguidos e demandados … a pagar ao assistente e demandante a quantia de 25,07€ (vinte e cinco euros e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais a que acresce quantia relativa aos danos provocados na sua camisa, a liquidar em execução de sentença.
5. Mais condeno solidariamente os arguidos e demandados AA e BB a pagar ao assistente e demandante a quantia de 1.800,00€ (mil e oitocentos euros) a título de indemnização por danos morais.
…”.
5. Na sequência de recurso interposto pelo arguido AA, esta Relação proferiu acórdão, a 12.7.2022, em que declarou nula a sentença recorrida e ordenou a sua substituição por outra que suprisse a identificada nulidade.
6. Os autos baixaram, então, à 1.ª instância tendo em vista a prolação de nova sentença.
7. Após produção de prova, o Tribunal a quo, a 10.1.2023, proferiu nova sentença, decidindo-se, nos mesmos termos:
“1. Condeno o arguido AA pela prática de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos art.ºs 143.º n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e j) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
2. Substituo a pena de prisão por 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros).
3. Condeno o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo disposto no art. 143.º, n.º 1 do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos).
4. Julgo parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente e, consequentemente, condeno solidariamente os arguidos e demandados … a pagar ao assistente e demandante a quantia de 25,07€ (vinte e cinco euros e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais a que acresce quantia relativa aos danos provocados na sua camisa, a liquidar em execução de sentença.
5. Mais condeno solidariamente os arguidos e demandados … a pagar ao assistente e demandante a quantia de 1.800,00€ (mil e oitocentos euros) a título de indemnização por danos morais.
…”.
8. … veio o arguido AA interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:
“…
2. O Tribunal a quo manteve como facto provado, agora como facto 54, que – “Os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC”, mas continuando sem fundamentar as razões e os meios de prova que terão conduzido a esta conclusão e sem concretizar em que momento o ofendido sofreu o AVC e quando e como os arguidos tiveram conhecimento dessa situação;
3. Continuando a não se produzir qualquer prova nesse sentido …
4. A fundamentação da decisão condenatória assenta em factos que não constam dos factos provados, nomeadamente o referir-se à debilidade física do assistente decorrente do AVC que sofreu não se sabe quando, não consta nenhum facto, de entre os que o Tribunal considera provados, que se refira a qualquer debilidade do Assistente decorrente de um alegado AVC;
5. O Arguido AA … não se conforma com a qualificação das ofensas, porque da matéria de facto dada como provada não resultam factos susceptíveis de enquadrar circunstâncias qualificadoras, na medida em que a sentença não fundamenta que o arguido tenha actuado com especial censurabilidade e por a decisão assentar numa interpretação do art.º 132.º do CP que lhe confere inconstitucionalidade.
6. Na fundamentação das razões que configuram a qualificação das ofensas praticadas pelo arguido, o Tribunal a quo reporta-se a factos que não foram dados como provados …
7. O Tribunal a quo conclui que o arguido agiu com frieza de ânimo e premeditação, mas não faz constar dos factos provados qualquer facto que permita dar expressão a essa afirmação …
…
9. O Tribunal afirma ainda que o arguido agiu por vingança e raiva e para fazer justiça pelas suas mãos por estar descontente com o andamento da Justiça, mas sem explicar as razões dessa discordância e quais os factos que traduzem esse sentimento do arguido.
…
11. O Tribunal a quo considera relevante o facto de o assistente ter sofrido um AVC para considerar preenchido o efeito indiciador do art.º 132.º n.º 2 al. c) do CP, mas sem que dos factos provados conste quando é que o assistente sofreu o AVC, qual a debilidade que o mesmo lhe causou e muito menos que o arguido o tenha agredido tirando partido desse estado debilitado, não se podendo aceitar que seja considerada preenchida a referida alínea do 132.º.
12. Acresce que o Tribunal a quo faz uma interpretação do sentido do art.º 132.º n.º 2 do Código Penal que confere a este tipo de crime natureza Inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade e da legalidade, mormente ao considerar que a expressão “entre outras”, usada pelo legislador, permite integrar neste elenco situações, sem necessidade de mencionar quais sejam e sem ter de se reportar a nenhuma das que estão inseridas no texto da lei.
13. Ademais, o Tribunal a quo assenta a aplicação do art.º 132.º (por remissão do art.º 145.º) no funcionamento automático do tipo qualificador pelo preenchimento de uma circunstância indiciadora prevista no n.º2, sem motivar as razões pelas quais considera que o arguido tenha actuado com especial censurabilidade.
14. A douta sentença limita-se a concluir pela especial censurabilidade, por enquadrar a conduta do arguido num ou noutro conceito do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal …
…
9. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência …
10. Também o assistente CC respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência …
11. … a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido da sua improcedência …
12. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido AA respondido ao douto parecer …
13. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
14. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.
*
B - Fundamentação
1. …
2. … as questões a decidir são as seguintes:
- se o facto 54 deve ser retirado da factualidade provada, por ausência de provas e de fundamentação que o justifique;
- se estão verificados os pressupostos para a qualificação do crime sub judice;
- se a interpretação feita pelo tribunal recorrido do artigo 132º, nº 2, do Código Penal, no que respeita à expressão “entre outras” é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade;
- caso se entenda que a situação se enquadra no artigo 143º, nº 1, do Código Penal, se o arguido deve ser condenado numa pena de multa não superior a 30 dias e a um quantitativo diário máximo de 5,50 euros.
3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação da sentença recorrida.
“A) Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
Matéria criminal:
1. No dia 18.12.2018, cerca das 21:00H, os arguidos AA e BB encontravam-se na Rua ..., em ..., junto à residência do ofendido, aguardando que o mesmo chegasse ao local.
2. Nestas circunstâncias de tempo e lugar e visualizando que o ofendido se dirigia para a sua residência, na companhia do seu filho menor de idade, DD, os arguidos dirigiram-se ao ofendido CC e, enquanto o arguido BB o manietava, segurando-lhe os braços, o arguido AA desferiu murros na cara e na zona abdominal do ofendido.
3. De seguida, o arguido AA retirou do veículo no qual se havia feito transportar até àquele local, um pau de madeira, com cerca de 50 cm de comprimento e alguma robustez, mas de características não concretamente apuradas, e desferiu, com o mesmo, várias pancadas nas costas do ofendido, enquanto o arguido BB o manietava.
4. Em consequência das agressões, o ofendido CC caiu ao solo, tendo nestas circunstâncias o arguido AA prosseguido com as agressões, desferindo-lhe ainda número não concretamente apurado de pancadas nas suas costas.
5. Em consequência destes factos, o ofendido sentiu dores e foi transportado ao serviço de urgência do CHO.
6. Os arguidos AA e BB são, respetivamente, ex “sogro” e ex “cunhado” do ofendido CC e, bem assim, avô e tio do menor DD.
7. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, ao agredir o ofendido da forma acima descrita, querendo, com as suas condutas, molestar o corpo do mesmo, como fizeram.
8. Os arguidos agiram em comunhão de esforços e intentos, beneficiando da sua superioridade numérica relativamente ao ofendido e da circunstância de o aguardarem junto à sua residência, de noite, quando este não os esperava bem sabendo que, ao atuarem do modo acima descrito, dificultavam a reação daquele às ofensas perpetradas.
9. Os arguidos sabiam da relação de afinidade que mantinham com o ofendido e da relação familiar que têm com o filho deste e, bem assim, que este último se encontrava no local e que presenciava os factos.
10. Mais sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Condições pessoais:
…
Provou-se adicionalmente que:
…
Antecedentes criminais:
…
Pedido de indemnização civil
53. Quando avistaram o ofendido, os arguidos proferiram as seguintes expressões: “Ali vem o filho da puta que anda a drogar o menino” e “Um cabrão destes hoje vais ter o que mereces”.
54. Os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC.
55. Nem vendo o menor, filho do ofendido, se furtaram a proceder à agressão.
…
Contestação arguido AA
…
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B) Factos não provados
…
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C) Motivação da matéria de facto
…
Por fim, ficou igualmente demonstrado que o assistente é uma pessoa que padece de problemas de saúde e tem já alguma idade, pelo que a sua capacidade de defesa fica igualmente diminuída, quer em face do arguido BB, dada a sua idade jovem e constituição física robusta, quer em face do arguido AA que, não obstante ter igualmente idade (que é próxima da do assistente – cerca de 60 anos de idade, à data atual), estava munido de um pau, que lhe conferia a força e capacidade extra de agressão que, provavelmente, a sua condição física isoladamente não permitia.
…
*
*
4. Cumpre agora apreciar e decidir.
A primeira questão a apreciar é a de saber se o facto 54 deve ser retirado da factualidade provada, por ausência de provas e de fundamentação que o justifique.
…
No primeiro acórdão proferido por esta Relação, datado de 12.7.2022, neste particular, foi dito que:
“Da análise da motivação da decisão de facto da sentença recorrida, resulta que a matéria do ponto 52 não mereceu qualquer motivação por parte do tribunal a quo. Quanto a este, a motivação é completamente omissa.
Assim, não se percebe quais as razões ou as provas que levaram o julgador a convencer-se nesse sentido.
A sentença não contém os motivos de facto que fundamentaram tal matéria, o tribunal não expôs o seu raciocínio.
Neste particular, o julgador não deu cumprimento ao ónus de fundamentação, na vertente da motivação da decisão de facto, pelo que se verifica a mencionada nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal”.
Ordenou-se, então, que a sentença fosse substituída por outra que, se necessário com recurso a produção ou repetição de prova, suprisse a referida nulidade.
Os autos baixaram à 1ª instância, foi produzida prova e o julgador voltou a dar como provado que:
54. Os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC.
Na motivação da decisão de facto nada consta, mais uma vez, em relação a esta matéria.
Apenas perpassa que esse conhecimento poderia advir da proximidade de todos os intervenientes, já que os arguidos AA e BB são, respetivamente, ex “sogro” e ex “cunhado” do ofendido CC e, bem assim, avô e tio do menor DD.
Acontece que, após a nova produção de prova, nada resultou provado quanto à data da ocorrência do possível AVC, as suas consequências a nível da saúde do ofendido e se as mesmas ainda se manifestavam aquando da prática dos factos.
Matéria que o arguido entendia, e bem, ser relevante para a boa decisão da causa, face a um dos fundamentos para a qualificação do crime.
Assim, resultando apenas provado que os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC, sem que se saiba quando o mesmo terá ocorrido e quais as consequências daí advindas para a saúde do ofendido, o facto acaba por perder relevância para a boa decisão.
Pelo exposto, mesmo a manter-se a nulidade por falta de motivação, perante a irrelevância de tal facto, nada mais se ordena neste particular.
*
Passa-se agora a apreciar se estão verificados os pressupostos para a qualificação do crime sub judice.
…
Relembrando, o recorrente foi condenado por um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 132º, nºs 1 e 2, alíneas c) e j) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
Dispõe o artigo 143º, nº 1, do Código Penal que, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Nos termos do artigo 145º, nº 1, alínea a), do mesmo diploma legal, “se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido, com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º”.
Por sua vez, estipula o nº 2 da mesma norma legal que são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.
Por último, nos termos do artigo 132º, nº 2, alíneas c) e j) do mesmo diploma legal, “é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
As normas incriminadoras dos artigos 143º e 145º encontram-se inseridas, do ponto de vista sistemático, no Capítulo III, do Título I, Livro II do Código Penal, onde se encontram tipificados os crimes contra a integridade física.
Assim, fácil é perceber que, neste tipo de crime, o bem jurídico que se visa proteger é a integridade física e psíquica de outra pessoa. Objecto da acção é, assim, o corpo humano.
O tipo objectivo funda-se, pois, no ataque ao corpo ou à saúde de outra pessoa.
Ora, ofensa no corpo significa “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante” e ofensa na saúde consiste em “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a” - (cfr. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Volume I, págs. 205 e 207).
Deste modo, para preencher o tipo objectivo deste crime, é admissível qualquer meio de ofender o corpo ou a saúde desde que se verifique, como resultado, a lesão do corpo ou da saúde de alguém. Não se exige uma forma específica de actuação ou uma causalidade especial, o que significa que se trata de um crime de forma livre.
Acresce que se trata de um crime de realização instantânea, “bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado descrito (a gravidade dos efeitos ou a sua duração poderão conduzir à qualificação da lesão como ofensa à integridade física grave ou ser valorado no âmbito da determinação da medida da pena)” - (Paula Ribeiro de Faria, ob. citada, pág. 204).
Por conseguinte, não adquirem verdadeira dignidade penal, sob o ponto de vista do bem jurídico tutelado, as situações em que, atendendo à ausência de consequências da agressão, se possam considerar insignificantes. Por outras palavras, só terá relevância a lesão no corpo ou na saúde que tenha alguma expressão ou significado, isto é, é necessário que o dano produzido pela acção do agente seja juridicamente apreciável.
Por tudo o exposto, o crime de ofensa à integridade física configura-se um crime de dano, quanto ao bem jurídico tutelado – uma vez que o tipo exige a verificação de um resultado: a lesão do corpo ou da saúde de outrem. É, assim, necessário fazer a imputação objectiva desse resultado à conduta ou à omissão do agente (artigo 10º do Código Penal).
Como elemento subjectivo do crime exige-se a vontade de ofender corporalmente o lesado, o mesmo é dizer, uma imputação subjectiva fundada no dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal, sendo a motivação do agente irrelevante sob este ponto de vista, embora possa ser tida em conta para efeitos de determinação da medida da pena - (cfr. Paula Ribeiro De Faria, ob. citada, pág. 210).
No que respeita à qualificativa, o nº 2 do artigo 132º do Código Penal faz uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão significar a tal censurabilidade ou perversidade a que aquele se refere. Donde o poderem constituir crimes qualificados condutas que não se enquadrem em qualquer desses índices e o não possam constituir outras que, identificando-se com eles, não revelem a censurabilidade ou perversidade que qualificam a acção e realizam o tipo legal.
Trata-se, no fundo, de um expediente destinado a facilitar a tomada de juízos mais seguros, e que consiste, por um lado, na formulação genérica do tipo, e por outro, na inventariação de índices que, na perspectiva do legislador, são sintomaticamente susceptíveis de preencher esse mesmo tipo. Mas a verificação de tais índices, como meros indiciadores ou referenciais que são, não leva, só por si, ao agravamento da censura penal, sendo indispensável ainda apurar, no caso concreto, se o índice em causa tem a virtualidade de revelar força que justifique tal agravamento.
Como se refere no Ac. do STJ de 14.2.2003, in www.dgsi.pt, “a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n° l do artigo 132º da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n° 2 do artigo 132°.
O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos cláusula geral.
Porém, o que releva e está pressuposto na qualificação, é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa”.
Afirma-se no Ac. do STJ de 26.11.2015, in www.dgsi.pt, que “a especial censurabilidade a que alude o art. 132.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, é uma censurabilidade ou perversidade acrescida em relação à perversidade ou censurabilidade que já tem de estar presente no homicídio simples. É nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio.
A verificação de qualquer das circunstâncias exemplificadas no n.º 2 constitui só um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade, podendo negar-se este maior grau de culpa, apesar da presença de uma das referidas circunstâncias, e concluir-se pela especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, pela qualificação do homicídio, apesar de se negar a presença de qualquer dessas circunstâncias, se ocorrer outra valorativamente análoga.
Pessoa particularmente indefesa, no contexto da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CPP, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa”.
É a situação de desamparo da vítima em razão da idade, deficiência (física ou/e psíquica), doença ou gravidez, como refere o Prof. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense ao Código Penal, em anotação à norma legal em estudo.
Por sua vez, no que respeita à referida alínea j), pode ler-se no Ac. da RC de 3.8.2011, in www.dgsi.pt, que “Actua com frieza de ânimo quem forma a sua vontade de matar outrem de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução, persistente na resolução; trata-se, assim, de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução”.
Também no Ac. do STJ de 6.1.2010, in www.dgsi.pt, se afirmou que “as circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência; circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. …
A circunstância da frieza de ânimo traduz-se numa actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”.
Revertendo ao caso concreto, provou-se que:
- Os arguidos AA e BB encontravam-se na Rua ..., em ..., junto à residência do ofendido, aguardando que o mesmo chegasse ao local.
- Visualizando que o ofendido se dirigia para a sua residência, na companhia do seu filho menor de idade, DD, os arguidos dirigiram-se ao ofendido CC e, enquanto o arguido BB o manietava, segurando-lhe os braços, o arguido AA desferiu murros na cara e na zona abdominal do ofendido.
3. De seguida, o arguido AA retirou do veículo no qual se havia feito transportar até àquele local, um pau de madeira, com cerca de 50 cm de comprimento e alguma robustez, mas de características não concretamente apuradas, e desferiu, com o mesmo, várias pancadas nas costas do ofendido, enquanto o arguido BB o manietava.
…
53. Quando avistaram o ofendido, os arguidos proferiram as seguintes expressões: “Ali vem o filho da puta que anda a drogar o menino” e “Um cabrão destes hoje vais ter o que mereces”.
54. Os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC.
55. Nem vendo o menor, filho do ofendido, se furtaram a proceder à agressão.
…
Não se provou que:
b. Os arguidos sabiam que o ofendido se movimentava com dificuldade e que por ter idade avançada tinha dificuldades em se equilibrar, assim como não tinha força nem reflexos suficientes para se defender dos golpes destes.
No que respeita à qualificativa da alínea c) do nº 2 do artigo 132º, apenas resultou provado que os arguidos sabiam que o ofendido havia sofrido um AVC.
Desconhece-se quando terá ocorrido o dito AVC, que consequências físicas resultaram para o ofendido, se as mesmas se mantinham na data da prática dos factos e se, por isso, o ofendido não tinha capacidade, destreza ou discernimento para se defender.
Não resultou provado, de forma alguma, que o ofendido em razão da idade (que se desconhece), de doença ou deficiência se encontrasse numa situação de desamparo, à mercê dos arguidos, incapaz de se defender.
Aliás, resultou precisamente não provado que os arguidos sabiam que o ofendido se movimentava com dificuldade e que por ter idade avançada tinha dificuldades em se equilibrar, assim como não tinha força nem reflexos suficientes para se defender dos golpes destes.
Assim, da análise da factualidade provada, conclui-se que não se encontra verificada a qualificativa da alínea c), do nº 1, do artigo 132º do Código Penal.
No que respeita à qualificativa da alínea j) (agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas), atente-se que resultou provado que no dia e hora dos factos, os arguidos encontravam-se na Av. ... a circular de carro, tendo vindo até ao centro da cidade, após o jantar, para beber um café.
Quando já se encontravam junto à residência do ofendido, aguardaram que o mesmo chegasse ao local. Quando o avistaram, os arguidos afirmaram “Ali vem o filho da puta que anda a drogar o menino” e “Um cabrão destes hoje vais ter o que mereces.
Relembra-se o contexto dos factos: o ambiente e a estabilidade familiar do arguido AA encontravam-se condicionados pelos conflitos graves da filha mais velha com o ex companheiro (ofendido) e pela falta de entendimento quanto às questões decorrentes da regulação das responsabilidades parentais do neto com 9 anos (filho de ambos), à data aos cuidados do pai (ofendido).
A ausência de contactos com o neto era motivo de conversa diária e fonte de degaste e ansiedade constante.
Anteriormente à verificação dos factos existia um clima de elevada tensão entre a família dos arguidos e o assistente, motivado pela recente separação deste a filha do arguido AA (e cunhada do arguido BB) e pelas questões relacionadas com as responsabilidades parentais do filho comum.
Provou-se ainda que, entretanto, os ânimos acalmaram, não sem antes haver uma troca de palavras insultuosas entre todos.
Ora, desta factualidade não resulta que o recorrente tivesse agido com frieza de ânimo, que, de forma cauletosa e calma, tivesse preparado a execução dos factos, insensível e indiferente às consequências da sua actuação.
Pelo contrário, resulta um estado prévio de exaltação, de nervosismo, discussão aquando da prática dos factos, o que afasta inevitavelmente a qualificativa da referida alínea j) - agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
No que respeita às demais circunstâncias não elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 132º, da fundamentação do tribunal a quo, entende-se que seria o facto da agressão ter decorrido na presença do menor e que, por isso, o ofendido não iria reagir.
Acontece que não se provou que o ofendido não tivesse reagido às agressões dos arguidos em virtude do menor estar presente.
De qualquer forma, nunca a presença do menor poderia conduzir à qualificação do crime, por tal circunstância não ter qualquer similitude com as várias que se encontram elencadas nas alíneas do nº 1 do artigo 132º do Código Penal, nem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. A presença do menor não traduz uma situação valorativamente análoga a qualquer outra das elencadas na referida norma.
Em suma, o arguido AA não actuou em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, não se verificando os pressupostos das alíneas c) e j), do nº 1, do artigo 132º do Código Penal, ou qualquer outra circunstância valorativamente análoga às elencadas nessa norma legal.
A ser assim, por não se encontrarem verificados os pressupostos para a condenação do arguido pelo crime previsto e punido pelo artigo 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, do Código Penal, deve o mesmo ser punido pelo crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
Por assistir razão ao arguido, procede esta questão por si suscitada.
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Face ao supra exposto, fica prejudicada a questão de saber se a interpretação feita pelo tribunal recorrido do artigo 132º, nº 2, do Código Penal, no que respeita à expressão “entre outras” é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.
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Em suma, deve o arguido ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de 7 euros, o que perfaz o montante de 1.260,00 euros.
A ser assim, procede parcialmente esta questão suscitada pelo arguido.
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Procedendo parcialmente as questões suscitadas, deve ser concedido parcial provimento ao recurso.
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C – Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, decidem:
- Revogar a sentença recorrida na parte em que condena o arguido AA pela prática de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos art.ºs 143.º n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal, por referência ao disposto no art.º 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e j) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão e substitui a pena de prisão por 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de 7,00€ (sete euros);
- Condenar o arguido AA por um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de 7 euros, o que perfaz o montante de 1.260,00 euros.
No mais mantém-se a sentença recorrida.
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Sem custas – artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal (face ao provimento parcial do recurso).
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Notifique.
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Coimbra, 24 de Maio de 2023.
(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).
Rosa Pinto – Relatora
Luís Teixeira – 1º Adjunto
Vasques Osório – 2º Adjunto