Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HELENA MELO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PESSOAS AFETADAS CONTAS DA SOCIEDADE PASSIVO RESPONSABILIDADE DOS GERENTES | ||
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Data do Acordão: | 07/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 186.º, N.ºS 1 E 2, DO CIRE | ||
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Sumário: | I – O n.º 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece presunções juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência. Há, assim, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas coletivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, e que podem ser aplicados às pessoas singulares, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumerados no n.º 2. Esses comportamentos são suscetíveis de afetar negativa e significativamente o património do devedor, e está-lhes subjacente a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, pelo que se presume que a insolvência é culposa. II – A problemática das provisões, passivos contingentes e ativos contingentes merece particular atenção no âmbito da contabilidade, dadas as incertezas e riscos que inevitavelmente rodeiam muitos dos acontecimentos e circunstâncias, envolvendo subjetividade perante conceitos passíveis de diversas interpretações, e fortemente dependentes do julgamento profissional. III – Uma entidade pode, normalmente, fazer uma estimativa da obrigação que seja suficientemente fiável para usar e reconhecer uma provisão. Quando tal não seja possível, existe um passivo que não pode ser reconhecido, sendo divulgado como um passivo contingente. IV – No caso da obrigação de pagamento se encontrar a ser discutida em sede de litígio judicial, para inscrever determinada quantia em sede de provisões há que fazer um juízo de prognose e concluir que o pagamento da quantia em questão, tinha probabilidade de vir a ocorrer em mais de 50% e poder estimar-se o montante a suportar. Esse juízo é solicitado pelo contabilista certificado ao advogado encarregue do processo, o qual, sendo externo à empresa, lhe oferecerá credibilidade. V – Se não for possível concluir-se a probabilidade de vir a ocorrer em mais de 50% e não for possível estimar-se o valor, então será divulgada informação como contingência. Só não deverá constar essa informação se a provável saída de recursos for considerada remota. VI – A exigência ao período de três anos aludido no n.º 1 do art.º 186.º, não faz assentar a causa da potencial condenação das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência, na data do vencimento das dívidas, mas antes na data da ocorrência dos factos que são suscetíveis de originar e produzir a apontada qualificação, consubstanciada no comportamento da apelante enquanto gerente, de infringir as obrigações contabilísticas a que está adstrita, não obstante o crédito já se encontrar vencido em data anterior aos três anos referidos no n.º 1 do art.º 186.º. VII – A obrigação da sócia gerente não se esgota na contratação de um contabilista certificado, sem prejuízo da responsabilidade dos contabilistas certificados pelas irregularidades contabilísticas. VIII – O gerente é responsável pela apresentação das contas da sociedade, assume com a aceitação do cargo de gestão que tem a competência e conhecimento para o exercício dessa função e deve exercê-la de acordo com o padrão da “diligência de um gestor criterioso e ordenado”. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | 1817/20.5T8CBR-A.C1
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório AA veio interpor recurso da sentença que qualificou como culposa a insolvência da sociedade V..., Lda e que a julgou afetada pela qualificação. O incidente de qualificação de insolvência teve início por iniciativa da credora BB que apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa e da afetação da gerente, AA, e da contabilista certificada da devedora, CC. O incidente foi aberto com caráter pleno. A credora invocou, em síntese, que a sócia gerente da insolvente registou a seu favor a marca composta do nome «V..., Lda» e sua formação gráfica, utilizada na impressão e imagem da publicação do semanário «V..., Lda», publicação que configurava a única atividade da insolvente, tendo efetuado este registo pouco tempo antes da apresentação à insolvência e em prejuízo dos credores. Mais invocou que as contas apresentadas não merecem qualquer credibilidade, e que as mesmas demonstram que houve violação do dever de apresentação à insolvência, concluindo pela verificação das previsões do art. 186.º, n.ºs 1, 2, als. a), b), d), f), g) e h), e 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. A Sra. Administradora da insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita. Justificou o seu parecer invocando que, de acordo com a gerente da insolvente, a marca não teria qualquer valor financeiro, mas apenas sentimental, e que de todo o modo esta se dispôs a ceder a marca para efeitos de apreensão a favor da massa insolvente. Mais referiu ter obtido esclarecimentos por parte da contabilista da sociedade quanto à razão de ser das irregularidades cometidas, concluindo que, apesar de não terem sido adotados os procedimentos mais rigorosos de acordo com as regras da contabilidade, esse facto não determinou a existência dos requisitos atinentes à qualificação da insolvência. Tendo tido vista nos autos, o Ministério Público pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa, por considerar que se verificam as hipóteses previstas no art. 186.º, n.º 2, als. a), d), e h), e no n.º 3, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e defendeu dever ser afetada pela qualificação a gerente da devedora, AA. Sumariamente, alegou que, pouco antes do início do processo de insolvência, a gerente da sociedade fez desaparecer a marca “V..., Lda” do património da sociedade, dispondo da mesma em proveito próprio, que a devedora incumpriu substancialmente a obrigação de manter contabilidade organizada e, por fim, que manteve dívidas fiscais e contributivas por mais de três meses, o que implica a presunção inilidível do conhecimento da situação de insolvência. Citadas as requeridas AA e CC, apenas a requerida AA deduziu oposição ao incidente. Invocou, no essencial, que o registo da marca nada teve a ver com edição do jornal ou com a insolvente, sendo que ambos existiam há décadas sem esse registo, que o registo não implicou qualquer prejuízo para a massa, visto o seu valor ser nulo, e ocorreu em momento em que não se colocava a hipótese de apresentação à insolvência. Defendeu ainda que sempre cumpriu todas as suas obrigações no que diz respeito à exigência de manter a contabilidade organizada e que não se verificou o incumprimento do dever de apresentação à insolvência, defendendo, a final, a qualificação da insolvência como fortuita. A credora BB respondeu à oposição, mantendo o alegado no seu parecer. Foi proferido despacho saneador e selecionada a matéria que constitui a base instrutória. Realizada audiência foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, decide-se: a) Qualificar a insolvência de V..., Lda. como culposa; b) Julgar afetadas pela qualificação a gerente AA e a técnica oficial de contas CC; c) Declarar AA e CC inibidas para o exercício do comércio pelo período de 2 (dois) anos, e inibidas, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas requeridas AA e CC, e condená-las na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) Condenar as requeridas AA e CC a indemnizar os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos que não forem satisfeitos na insolvência, na proporção em que a sua conduta culposa contribuiu para a insolvência, e em montante concreto que se vier a fixado em liquidação de sentença.” A requerida AA não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: 1. A decisão, posta em crise, é recorrível, por estarem em causa Direitos, Liberdades e Garantias ou direitos de natureza análoga (Vide neste sentido o Acórdão nº 280/2015 e o Acórdão n.º 328/2012 ambos do Tribunal Constitucional). 2. Analisados os factos provados, verificamos que os mesmos não preenchem os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa. 3. Ainda que se verificasse a situação prevista na última parte da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, a Recorrente nunca poderia ser responsabilizada por factos que são apenas e só imputáveis à contabilista certificada da insolvente. 4. Os pressupostos da qualificação de insolvência estão expressamente consagrados no artigo 186º do CIRE. São eles: uma atuação dos administradores de direito ou de facto da sociedade; a ilicitude desta conduta, que será violadora dos deveres inerentes à função do administrador; que a mesma seja praticada com dolo ou culpa grave; a existência de nexo de causalidade entre a conduta ilícita e a criação ou agravamento da situação de insolvência; e que tenha sido praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 5. A sentença recorrida fundamenta a qualificação da insolvência exclusivamente na existência de irregularidades na contabilidade da insolvente e refere ainda, quanto aos efeitos concretos dessa qualificação, que se desconhece qualquer prejuízo concreto decorrente das irregularidades detetadas na contabilidade da insolvente. 6. Está em causa uma sociedade familiar, com génese reportada ao ano de 1966, que foi passando de geração em geração, tendo a recorrente assumido a gerência da sociedade apenas em 14.03.2006, por conta do falecimento do seu pai. 7. A Recorrente, além da gerência, sempre foi Professora do Ensino Especial, profissão que apenas abandonou quando se reformou. 8. A própria sentença, ao referir que se desconhece qualquer prejuízo decorrente das irregularidades, afasta, desde logo, a criação da situação de insolvência e/ou o seu agravamento e a qualificação da insolvência como culposa, pois não se provou que as irregularidades detetadas tenham contribuído para a situação de insolvência ou agravado a mesma. 9. A Recorrente não violou os deveres de cuidado e lealdade previstos nos Código das Sociedades Comerciais, cumprindo com zelo a sua função de gerente, não falhando com nenhum dos deveres que lhe incumbiam, assim se afastando o dolo e a culpa, contratando um técnico especializado para tratar da contabilidade da sociedade. 10. Não decorre da prova que a Recorrente tivesse alguma vez falhado com as suas obrigações, estando em causa, apenas e tão só, irregularidades ao nível da contabilidade, que a Recorrente não conhecia e não ordenou. 11. A Recorrente não tinha os conhecimentos necessários para se aperceber de qualquer irregularidade nos documentos contabilísticos da sociedade. 12. A contabilista certificada assumiu ter lançado toda a contabilidade apenas em Dezembro de 2019 por falta de tempo e ter sido alvo de um ataque informático em janeiro de 2020 que lhe apagou as bases de dados, facto não imputável à Recorrente. 13. Um dos fundamentos da sentença recorrida é a existência de duas dívidas fiscais que não estavam refletidas na contabilidade - uma dívida de IRS, respeitante a retenções na fonte, reclamada em processo executivo instaurado em 08.11.2000 pela AT e uma dívida de IVA respeitante aos anos de 1995, 1966 e 1997, apurada através de métodos indiretos, que foi alvo de processo de impugnação iniciado em 18.11.2002 e ainda pendente à data da declaração de insolvência. 14. As dívidas fiscais não refletidas na contabilidade são anteriores à gerência da Recorrente. Sendo dívidas tão antigas, e olhando ao argumento constante da sentença a quo as mesmas teriam de estar refletidas na contabilidade desde, pelo menos, a data de instauração dos processos. Ou seja, deveriam constar dos elementos contabilísticos desde 2000 e 2002, data em que o facto gerador nasceu. 15. Nestas datas não era a Recorrente a gerente da sociedade. E quando assume a gerência não sabia das dívidas em causa e ainda que as viesse a conhecer não estava a sociedade obrigada ao seu provisionamento contabilístico (se existisse parecer no sentido da sua improcedência), além de que – diga-se uma vez mais – não foi essa falta de provisionamento contabilístico das dívidas fiscais que contribui ou agravou a insolvência. 16. A sociedade concorreu a apoios e prestou serviços ao Município durante anos, e para que os mesmos lhe fossem concedidos era necessário a junção da certidão de não dívida à Autoridade Tributária. Estas certidões foram sempre emitidas, gerando a convicção num homem médio e diligente de que não existiam dividas fiscais! 17. Será, por isso, forçoso concluir pela inexistência de culpa da Recorrente na ausência destas dívidas na contabilidade, partindo do entendimento constante da sentença de que estas duas dívidas deveriam já constar dos elementos contabilísticos desde 2000 e 2002, tal significa que o “comportamento censurável”, foi cometido em 2000 e 2002, estando assim ultrapassado o prazo de 3 anos previsto na norma legal em causa. 18. Assim se conclui que não se mostram verificados os requisitos da qualificação da insolvência como culposa, uma vez que as irregularidades detetadas não criaram ou agravaram a situação de insolvência da sociedade. 19. Mas ainda que assim não fosse, as irregularidades identificadas não ocorreram devido a uma conduta da Recorrente, não tendo a mesma qualquer grau de culpa na situação em concreto, nem sequer nas dívidas fiscais referidas, falhando assim os pressupostos da aplicação do artigo 186º do CIRE, pelo que a mesma não poderia ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa. 20. Por tudo o exposto, não há como não revogar a sentença recorrida, alterando-se a qualificação de insolvência para fortuita ou, subsidiariamente, abstendo-se de afetar a ora Recorrente, atentos os fundamentos da qualificação. Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, em conformidade com as conclusões formuladas.
O Ministério Público contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões: (…). Também a requerida CC contra-alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões: (…). E também a credora BB contra-alegou, concluindo as suas contra-alegações da seguinte forma: (…). A credora interpôs ainda recurso subordinado, o qual não foi admitido por despacho de 21.04.2022. II – Objeto do recurso Considerando que: . o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e, . os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu ato, em princípio delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, as questões a decidir são as seguintes: .se para a qualificação da insolvência como culposa, nas situações que preencham a previsão da alínea h) do nº 2 do artº 186º do CIRE, é necessário que se prove a culpa e o nexo de causalidade entre os factos praticados e a criação ou agravamento da situação de insolvência; . se as dívidas de IRS e IVA deveriam constar do passivo da insolvente; e, . caso se conclua pela qualificação da insolvência como culposa, se apenas a TOC deveria ser afetada pela qualificação e não também a apelante que foi sócia-gerente da insolvente. III – Fundamentação Na 1ª instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos: 1.1. Factos provados Encontram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir: 1. V..., Lda. é uma sociedade por quotas com o NIPC ..., o capital social de € 10.000,00 e sede na Rua ... F.... 2. A sociedade tem como objeto o exercício da indústria de tipografia e do comércio de papelaria e livraria. 3. Trata-se de uma sociedade familiar, constituída em 6 de janeiro de 1966, que desde há várias décadas se dedicou exclusivamente à edição do jornal «V..., Lda». 4. São sócios da sociedade AA, DD, EE, FF e GG. 5. Sendo titulares de uma quota do valor nominal de € 7.500,00, em comum e sem determinação de parte ou direito, da herança de HH, e de uma quota de 2.500,00, em comum e sem determinação de parte ou direito, da herança de II. 6. Em 14.03.2006, AA assumiu o cargo de gerente da sociedade, cargo que mantém até à atualidade. 7. A sociedade obriga-se pela assinatura da gerente. 8. No dia 18 de maio de 2020, a sociedade apresentou-se à insolvência. 9. À data, os quadros de pessoal da sociedade eram integrados pelos seguintes trabalhadores: JJ, KK e LL. 10. A insolvência da sociedade foi declarada por sentença proferida em 4 de junho de 2020. 11. Até à data da declaração da insolvência, a contabilidade estava a cargo da Dra. CC. 12. No processo de insolvência foram apreendidos, por auto de apreensão de 29 de junho de 2020, bens móveis avaliados pela administradora da insolvência em € 2.140,00. 13. Em 12.02.2020, AA procedeu ao pedido de registo da marca «V..., Lda» (V..., Lda Semanário Regionalista Literário e Noticioso) junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, registo com o n.º ...19 e que ficou concluído a 8 de junho de 2020. 14. Esta marca, composta do nome e sua formação gráfica, era utilizada na impressão, designação e imagem da publicação do semanário «V..., Lda». 15. Por carta registada com data de 28 de setembro de 2020, a administradora da insolvência comunicou a AA a resolução em benefício da massa insolvente do registo nacional n.º ...19 «V..., Lda» (V..., Lda Semanário Regionalista Literário e Noticioso) junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial. 16. O passivo reclamado e reconhecido no processo de insolvência ascende aos € 204.060,43. 17. A Autoridade Tributária e Aduaneira reclamou créditos no valor total de € 127.241,02, sendo € 25.114,15 a título de IVA, € 101.817,61 a título de IRS e € 309,26 a título de custas. 18. Os créditos reclamados e reconhecidos dos trabalhadores BB – no total de € 14.818.13, JJ – no total de € 17.281,04, LL – no total de € 6.274,70 e KK – no total de € 13.446,94, foram graduados como privilegiados. 19. Os créditos da trabalhadora JJ respeitam a retribuição dos meses de abril a junho de 2020, a horas de formação nos últimos dois anos, férias não gozadas relativas ao ano de cessação, férias e subsídio de férias vencidas a 01.01.2020 e a compensação correspondente a um mês por cada ano de antiguidade. 20. O Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra reclamou créditos provenientes de contribuições relativas aos doze meses anteriores à data do início do processo no montante de € 2.265,55 (junho e julho de 2019 e abril de 2020), acrescidos de € 95,81 de juros, e de € 4.978,19 constituídos mais de doze meses antes da data do início do processo de insolvência (abril a agosto de 2018), acrescidos de juros de € 551,53, num total de € 7.891,08. 21. A gerente da insolvente propôs-se adquirir a marca «V..., Lda» pelo valor de € 1.000,00, o que foi aceite pela administradora da insolvência. 22. Os bens móveis (equipamento) apreendidos para a massa insolvente foram vendidos pelo montante de € 850,00. 23. Tendo sido apreendida a quantia de € 449,01 proveniente de penhora em processo executiva, e um crédito de € 16,80, a liquidação da massa insolvente, acrescida de juros, permitiu apurar o valor global de € 2.315,81. 24. Toda a contabilidade de 2019 foi lançada no mês de dezembro de 2019, tendo os movimentos verificados no período de 1 de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2019 sido, na sua globalidade, registados no mês de dezembro de 2019. 25. As demonstrações financeiras de 2018 e 2018 não registam qualquer alteração dos saldos de Caixa e seus equivalentes entre os anos de 2017 e 2018, considerando a existência de um fluxo de negócios de € 104.190,22 e € 104.557,01. 26. Comparando os quadros do campo 0504-A – Fluxos de Caixa constantes da Declaração Anual/informação Empresarial Simplifica de 2018 e 2019, verifica-se uma incoerência entre os saldos finais de 2018, de € 1.750,33, e os saldos iniciais de 2019, de € 8.759,50. 27. Existe ainda uma incongruência entre os quadros de campo 0504-A – Fluxos de Caixa de 2019 e 2017, na medida em que são declarados precisamente os mesmos valores. 28. Em 2019, de acordo com o balancete, os recebimentos foram de € 49.224,29, sem que tal se encontre refletido nas disponibilidades. 29. No Balancete geral de 2019 não se verifica a mensuração de quaisquer valores a crédito ou a débito relativos a pagamentos a trabalhadores. 30. A informação contabilística revela a existência de um passivo de remunerações a pagar aos Órgãos Sociais no montante de € 35.746,50, não apresentado qualquer montante de passivo de remunerações a pagar ao Pessoal. 31. A informação prestada à Autoridade Tributária e Aduaneira relativa às remunerações dos Órgãos Sociais e pessoal apresenta algumas divergências, sendo o montante constante da rubrica de Gastos com Pessoal apresentada na Demonstração de Resultados por Natureza, aprovada em Assembleia Geral, de € 39.458,23 e a constante do quadro 03-A – Demonstração de Resultados por Natureza da Declaração Anual/Informação Empresarial Simplificada de € 43.452,86. 32. Esta diferença provoca uma diferença nos resultados do ano de 2019 e de um prejuízo de € 9.652,78 nas contas de 2019 aprovadas em Assembleia Geral para um prejuízo de € 13.737,41 na Declaração Anual/Informação Empresarial Simplificada. 33. A insolvente encontrava-se enquadrada em sede Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime mensal por opção. 34. A dívida de IVA apresentada no Balancete geral analítico do mês de dezembro de 2019 respeita ao apuramento do imposto do mês de dezembro de 2019, e é de € 910,20. 35. No ano de 2020, os apuramentos de IVA efetuados, relativos ao período de janeiro a março de 2020, foram de € 2.315,00. 36. O IVA declarado nas faturas comunicadas pela insolvente à Autoridade Tributária e Aduaneira no referido período foi de € 3.088,92. 37. A partir desse período a insolvente não realizou qualquer operação ativa ou passiva que devesse constar das respetivas declarações periódicas. 38. Na lista de créditos reconhecidos é relacionada uma dívida de IVA de € 14.532,85, a que acresce juros de € 10.581,30, num total de reconhecido de € 25.114,25. 39. De acordo com a informação contabilística, teriam existido suprimentos de € 37.000,00 em 2019, valor este que não está refletido nas disponibilidades. 40. No Balancete geral analítico de dezembro de 2019 é relevado a débito nos movimentos do mês o valor de € 135.949,78, a título de prestações suplementares, sem que exista qualquer movimento reflexo em contas de caixa ou depósitos à ordem. 41. Da ata da assembleia geral de sócios da insolvente n.º 49, datada de 31.12.1996, e então denominada J... Lda., consta ter sido deliberada a incorporação de suprimentos realizados pelos sócios em prestações suplementares de capital no montante de 45.189.663,00$00, correspondentes à quantia de € 225.405,09. 42. Não foi deliberada a restituição das prestações suplementares de capital aos sócios da sociedade. 43. De acordo com as Demonstrações Financeiras, em 2017 o ativo da sociedade era de € 61.984,82, o capital próprio de € 58.534,82 e o passivo de € 3.450,00, em 2018 o ativo era de € 61.965,62, o capital próprio de € 52.097,15 e o passivo de € 9.868,47, e em 2019 o ativo de € 11.346,72, o capital próprio de – 93.505,41 e o passivo de 104.852,14. 44. A partir do ano de 2017, a devedora registou uma deterioração da sua autonomia financeira, tendo continuado a apresentar condições no seu ativo de satisfazer o seu passivo nos anos anteriores a 2019, deixando no ano de 2019 de ter tais condições. 45. De acordo com o balancete a 31 de dezembro de 2019 a dívida à Segurança Social era de € 14.645,70. 46. A dívida reconhecida de IRS, no valor de € 59.921,22, acrescida de juros moratórios no valor de € 43.205,66 não está evidenciada nas demonstrações de resultados de 2017 e 2018, nem consta das Demonstrações Financeiras do ano de 2019. 47. Esta dívida respeita a retenções na fonte e foi reclamada no processo n.º ...78, instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 08.11.2000. 48. A insolvente durante décadas, foi associada da API – Associação Portuguesa de Imprensa, com registo de publicação periódica na ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, sem nunca proceder ao registo da marca «V..., Lda». 49. A partir de 2010, a API passou a aconselhar os seus associados a registar os títulos das suas publicações no INPI, na categoria de publicações periódicas, por forma a impedir a sua utilização na internet, e a fazê-lo em nome do responsável editorial da publicação. 50. Seguindo estas indicações, a insolvente procedeu ao registo da marca e pediu que o mesmo fosse feito em nome da gerente. 51. Nesse momento, V..., Lda. apresentava já dificuldades económicas. 52. Ao pedir o registo em seu nome pessoal, a gerente teve também a intenção de reservar para si a marca, e garantir que, futuramente, poderia por si ou terceiro voltar a publicar o semanário. 53. A marca «V..., Lda» não tem praticamente valor comercial. 54. A dívida de IVA reconhecida respeita aos anos de 1995, 1996 e 1997, tendo sido apurada através de métodos indiretos em processo de inspeção. 55. Este apuramento foi alvo de processo de impugnação fiscal pela insolvente, que deu entrada a 18.11.2002 no ..., hoje Tribunal Administrativo e Fiscal ..., cuja decisão foi objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo ..., onde se encontrava pendente à data da declaração de insolvência. 56. Esta dívida nunca foi refletida na contabilidade. 57. A gerente da insolvente assumiu pessoalmente a dívida à Segurança Social em processo de reversão, tendo celebrado um acordo de pagamento no âmbito do Processo n.º ...96 que está a cumprir. 58. Tendo o montante da dívida à Segurança Social sido reduzido por meio de pagamentos efetuados pela gerente e com dinheiro próprio. 59. O jornal «V..., Lda» é conhecido em todo o concelho, bem como no distrito .... 60. No mês de março de 2020, na sequência do confinamento, o estabelecimento da insolvente encerrou. 61. Em janeiro de 2020 a contabilista da insolvente foi alvo de um ataque informático que apagou as bases de dados do programa de contabilidade, causando o desaparecimento de todos os ficheiros de seu programa contabilístico. 62. Por esse motivo, não detendo cópias de segurança, quando lhe foi solicitado o balancete de 2019, precisou de repor toda a informação perdida. 63. Nessa altura, estando a decorrer o primeiro confinamento, teve um acréscimo de trabalho relacionado com as candidaturas das empresas aos diversos programas de apoio nas plataformas do IEFP, Segurança Social e Balcão 2020. 64. Por falta de tempo, optou por lançar toda a contabilidade da insolvente no mês de dezembro de 2019, introduzindo os saldos que vinham dos anos anteriores. 65. Os recebimentos do ano de 2019 foram utilizados no pagamento de dívidas correntes da empresa e lançados, por uma questão de simplificação de procedimentos, diretamente por contrapartida dos gastos. 66. A obrigações declarativas/fiscais relativas a esse ano foram cumpridas, faltando somente o Modelo 22 e a Informação Empresarial Simplificada (IES). * 1.2. Factos não provados Dos factos alegados, com relevo para a decisão, não se provaram os seguintes: a) Que o lançamento de toda a contabilidade de 2019 no mês de dezembro teve como objetivo evitar que na apresentação à insolvência se apurasse qualquer responsabilidade. b) Que a manutenção da atividade da sociedade visou apenas manter o posto de trabalho da filha da gerente e o interesse familiar em manter por vaidade pessoal a publicação do jornal. c) Que a marca foi registada em nome da gerente num momento em que se não colocava a hipótese de apresentação à insolvência.
Apreciando: A questão suscitada na conclusão 1 relativa à admissibilidade do recurso, mostra-se ultrapassada, uma vez que o recurso interposto pela apelante foi submetido à conferência com vista à sua apreciação. A sentença recorrida qualificou a insolvência de culposa, por ter entendido que os factos provados preenchiam a previsão da alínea h) do nº 2 do artº 186º do CIRE. Estabelece este preceito legal que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Entende a apelante que a insolvência não pode ser considerada culposa. Desde logo porque a sentença refere que a qualificação assenta apenas na existência de irregularidades contabilísticas e que se desconhece qualquer prejuízo delas decorrente, pelo que não se tendo provado que as irregularidades detetadas causaram prejuízo, fica, desde logo, afastada a conclusão de que contribuíram para a criação da situação de insolvência e/ou o seu agravamento. Não havendo prejuízo decorrente destas irregularidades, não pode a insolvência ser qualificada como culposa, por não preencher o requisito do nexo de causalidade entre a atuação/omissão e a situação de insolvência. Mas não tem razão. Com o incidente de qualificação da insolvência visa-se apurar “se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa.” (n.º40 do preâmbulo do Código). O nº 2 do artº 186º estabelece os casos em que a insolvência se considera sempre culposa. Por sua vez, o nº 3 do mesmo preceito prevê os casos em que se presume a existência de culpa grave. O nº 2 do artº 186º estabelece presunções juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência (cfr. se defende no Ac. do STJ de 15/02/2018-proc. nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1); por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum, pelo menos, de culpa grave desses administradores, tendo vindo a ser discutido se a presunção abrange (ou não) também o nexo de causalidade. Atualmente, face às alterações ao artº 186º, nº 3, introduzidas pela Lei 9/2022, de 11/01, com a inserção no nº 3 da expressão “unicamente”, afigura-se que o legislador quis limitar a presunção apenas à culpa. Há, assim, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas coletivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, e que podem ser aplicados às pessoas singulares, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumerados no nº 2. Esses comportamentos são suscetíveis de afetar negativa e significativamente o património do devedor, e está-lhes subjacente, a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, pelo que se presume que a insolvência é culposa. Nas presunções “juris et de jure”, não existe a possibilidade de prova em contrário, como é permitido nas presunções juris tantum (artº 350º, nº 2 do CC). Ficando dispensada a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficciona a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas (taxativamente) no n.º 2 do art. 186º, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa. E estabelece-se, assim, de forma automática, o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento. A lei prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de conduta culposa e da sua adequação para a insolvência ou para o seu agravamento (cfr. se defende no Ac. do TRG de 01.06.2017, proc. 1046/16.2T8GMR-B.G1, onde é citada abundante jurisprudência e doutrina e, Acs. do TRC, designadamente, de 01.06.2020, proc. 5831/18.2T8VIS-A.C1 e de 26.10.2021, proc. 4422/17.0T8VIS-A.C1). Aliás, no caso particular da alínea h) do nº 2 do artº 186º que é a que está em causa nestes autos, “os atos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal entre eles e a criação ou o agravamento da situação de insolvência; estando em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE), sendo em função da violação de tais deveres legais que a lei supõe que foram praticados atos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, o que determina a aplicação do regime da insolvência culposa a estas situações” (cfr. se defende no Ac. desta Relação de 07.09.2020, proc. 4366/11.9TBLRA-D.C[1], de onde foi retirado o texto em itálico, destituído das notas de rodapé). No artº 186º, nº 2, alínea h) estão tipificadas três situações: o incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manutenção de contabilidade organizada (i), a manutenção de contabilidade fictícia ou dupla contabilidade (ii) e a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (iii). Para preenchimento da citada alínea o legislador faz apelo, como acontece em outras alíneas do preceito (art. 186º, nº2), a conceitos indeterminados, a carecer de preenchimento valorativo. O preenchimento da alínea h) do nº 2 do art.186 CIRE, exige alguma densidade factual, nomeadamente quanto à previsão normativa de “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” (cfr. se defende no Ac. do TRC de 10.12.2019, proc. 5888/17. 3T8VIS-D.C1[2]). Na sentença recorrida são referidas diversas irregularidades, mas o desacordo da apelante manifesta-se quanto ao entendimento defendido, relativamente à dívida de IVA impugnada judicialmente pela insolvente e relativamente à dívida de IRS que deu causa a um processo instaurado pela Autoridade Tributária contra a insolvente em 2000, ambas as dívidas não refletidas na contabilidade da insolvente. A apelante defende que, sendo uma delas (IRS) anterior a 08.11.2000 (pois foi esta a data da instauração do processo) e a outra (IVA), relativa aos exercícios de 1995 a 1997, tendo o processo de impugnação dado entrada em 2002, ambas são anteriores à sua gerência, pelo que não pode a mesma ter qualquer responsabilidade por tal facto. Ainda que viesse a ter conhecimento de tais processos, o provisionamento das mesmas implicaria uma justificação sobre a alteração de posição de provisionamento, a que não estava obrigada. Este provisionamento não é obrigatório, se existir um entendimento sobre a improcedência dos processos de natureza fiscal. E mesmo que assim não se entenda, tendo as irregularidades sido praticadas em 2000 e 2002, está ultrapassado o prazo de três anos previsto no no nº 1 do artº 186º do CIRE. Nas suas contra-alegações o Ministério Público vem pugnar pela manutenção da decisão recorrida, porquanto as irregularidades revestem relevo significativo não se percebendo qual foi a evolução e o desempenho da insolvente ao longo do ano, bem como e quando chegou à situação de falta de liquidez para continuar a cumprir as suas obrigações. Em seu entender, o não reconhecimento da dívida de IRS distorceu a imagem da situação financeira e patrimonial da empresa, dado que, atento o valor elevado (103.126,88, sendo 59.921,22 de capital e 43.205,66 de juros), o seu reconhecimento, por si só, determinaria que logo em 2017 a insolvente apresentasse capitais próprios negativos, mas não se pronuncia concretamente sobre a questão suscitada pela apelante, nem também as demais apeladas. Vejamos: Relativamente à referida dívida de IVA apurou-se que: 54. A dívida de IVA reconhecida respeita aos anos de 1995, 1996 e 1997, tendo sido apurada através de métodos indiretos em processo de inspeção. 55. Este apuramento foi alvo de processo de impugnação fiscal pela insolvente, que deu entrada a 18.11.2002 no ..., hoje Tribunal Administrativo e Fiscal ..., cuja decisão foi objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo ..., onde se encontrava pendente à data da declaração de insolvência. 56. Esta dívida nunca foi refletida na contabilidade.
Na sentença recorrida entendeu-se que o facto “das dívidas estarem ainda a ser discutidas em tribunal, não implicava que não fosse feita uma estimativa do respetivo valor, sendo assim as mesmas reconhecidas através de uma provisão. Não sendo possível fazer uma estimativa suficientemente fiável, sempre deveriam tais créditos, apesar de não reconhecidos, ser divulgados como passivo contingente (cfr. os parágrafos 14.1 a 14.10 da Norma Contabilística e de Relato Financeiro para Pequenas Entidades –NCRF-PE).” Trata-se de dívida de IVA apurada pela Autoridade Tributária em consequência de inspeção efetuada à insolvente e que esta não aceitou, tendo procedido à sua impugnação judicial, cuja cópia juntou aos autos, encontrando-se o processo em fase de recurso, à data da insolvência. No apenso de reclamação de créditos a apelante não deduziu impugnação à reclamação deste IVA pelo Ministério Público. A apelante veio defender não estar obrigada a mencionar em sede de provisões as referidas dívidas, porque dependente de parecer técnico, desconhecendo se o mesmo existiu ou não, e, ainda que estivesse obrigada, tal menção deveria ter sido efetuada em 2000 e 2002, mas não indicou em que normas contabilísticas se fundamenta. A contabilista certificada da insolvente, requerida nestes autos, contra-alegou, mas não se pronunciou sobre esta questão. Em 2009, face à necessidade de alinhamento do normativo contabilístico português com as Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) foi implementado o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) – aprovado pelo DL 158/2009, de 13.07. As suas normas denominam-se de Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF). O SNC foi alterado em 2015 pelo DL 98/2015, de 02/06, em resultado da transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva 2013/34/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013. Na sentença recorrida fez-se alusão às as Normas de Contabilidade e de Relato Financeiro para pequenas entidades, aplicabilidade que não foi posta em causa na apelação[3]. Todavia, tanto de acordo com a informação junta aos autos, em 19.04.2021, pela contabilista certificada da insolvente, como do informado no relatório pericial, de acordo com o relatório e contas dos anos de 2017, 2018 e 2019, a insolvente adotou como referencial contabilístico o sistema de Normalização Contabilística, categorizando-se como micro entidade, nos termos do preceituado no nº 2 do artº 9º do Decreto-Lei 158/2009, de 13 de julho, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 98/2015[4], pelo que a norma que se lhe aplica é a Norma Contabilística e de Relato Financeira para micro entidades, denominada pela sigla NCRF-ME e não a Norma Contabilística para Pequenas Entidades, designada pela sigla NCRF-PE. A problemática das provisões, passivos contingentes e ativos contingentes merece particular atenção no âmbito da contabilidade, dadas as incertezas e riscos que inevitavelmente rodeiam muitos dos acontecimentos e circunstâncias. Envolve subjetividade, perante conceitos passíveis de diversas interpretações, e fortemente dependentes do julgamento profissional[5]. Provisão é um passivo de momento ou quantia incertos, que deverá ser reconhecida quando, cumulativamente (parágrafo13.1da NCRF-ME[6]): . Uma entidade tenha uma obrigação presente (legal ou construtiva) como resultado de um acontecimento passado; . Seja provável que seja exigido um exfluxo de recursos incorporando benefícios económicos (ou potencial de serviço) para pagar essa obrigação; . Possa ser feita uma estimativa fiável da quantia dessa obrigação. De acordo com o parágrafo 13.2 da NCRF-ME, presume-se que um acontecimento passado dá origem a uma obrigação presente se, tendo em conta toda a evidência disponível, for mais provável do que não que tal obrigação exista à data do balanço. O uso de estimativas é uma parte essencial da preparação das demonstrações financeiras e não prejudica a sua fiabilidade. Isto é especialmente verdade no caso de provisões, que pela sua natureza são mais incertas do que a maior parte de outros elementos do balanço. Uma entidade pode, normalmente, fazer uma estimativa da obrigação que seja suficientemente fiável para usar ao reconhecer uma provisão (parágrafo 13.3). Já no que se refere à mensuração, a quantia reconhecida como uma provisão deve ser a melhor estimativa do dispêndio exigido para liquidar a obrigação presente à data de relato (NCRF-ME 13.6). Por sua vez o passivo contingente é uma obrigação (Parágrafo 12 da NCRF 21[7]): . Possível, que decorre de acontecimentos passados e cuja existência apenas será confirmada pela ocorrência ou não de um ou mais acontecimentos futuros incertos, que não estão totalmente sob controlo da entidade; ou . Presente, que decorre de acontecimentos passados, mas não é reconhecida porque: • Não é provável que seja exigido um exfluxo de recursos incorporando benefícios económicos (ou potencial de serviço, no caso do SNC-AP) para liquidar essa obrigação; • A quantia da obrigação não pode ser mensurada com suficiente fiabilidade. Enquanto as provisões são passivos de oportunidade ou quantia incerta, as contingências são uma condição ou situação, cujo desfecho final, ganho ou perda (originando os chamados ativos contingentes e passivos contingentes), só será confirmado na ocorrência, ou na não ocorrência, de um ou mais acontecimentos futuros e incertos (IAS (International Accounting Standards ou norma internacional de contabilidade) 37 e IASB (International Accounting Standards Board) 94, respetivamente, §10 e 3 (cfr. se defende no trabalho citado na nota de rodapé 5). Em suma, a diferença está no facto de que, embora “todas as provisões sejam contingentes” (IAS 37:§12) pelo carácter de incerteza que possuem, nem todas as contingências são relevadas/divulgadas sob a égide das provisões. O relato financeiro das entidades (privadas ou públicas) tem como objetivo proporcionar informação que seja útil para os múltiplos utilizadores das demonstrações financeiras (DF) na tomada de decisão. Considerando a referida margem de subjetividade/julgamento profissional nesta matéria das contingências, as características qualitativas da relevância e fiabilidade da informação têm, assim, uma importância acrescida. As provisões são reconhecidas no balanço, na demonstração de resultados e nas notas anexas enquanto que os passivos e ativos contingentes são apenas divulgados. Os factos contingentes que podem originar o reconhecimento de provisões para riscos e encargos ou a divulgação de passivos contingentes são: litígios e reclamações, garantias pós-venda, avales e garantias de terceiros, pensões, indemnizações ao pessoal, impostos, pré-aquisições empresariais, reestruturações empresariais, questões ambientais, factoring, expropriações e subsídios estatais (cfr. se defende no trabalho citado na nota de rodapé 5, que temos vindo a seguir de perto). Uma entidade pode, normalmente, fazer uma estimativa da obrigação que seja suficientemente fiável para usar e reconhecer uma provisão. Quando tal não seja possível, existe um passivo que não pode ser reconhecido, sendo divulgado como um passivo contingente. Ainda que se tenha categorizado como micro entidade, esta qualificação embora dispensasse a insolvente de apresentar o anexo a que se refere a alínea e) do nº 1 do artº 11º do SNC, não a desobrigava de divulgar, designadamente, no final do balanço, o montante total dos compromissos financeiros, garantias ou ativos e passivos contingentes nos termos do artº 11º, nº 4, alínea a) do SNC. No Parecer Técnico(PT) 25565 – Provisão, de 16-10-2020, acessível no sítio da Ordem dos Contabilistas Certificados, em https://www.occ.pt/pt/noticias/provisao/, sobre o tratamento contabilístico com o reconhecimento de uma provisão para um processo judicial em curso, como passivo e gastos, entendeu-se que o reconhecimento da provisão “resulta de existir uma obrigação presente que com probabilidade irá originar saída de recursos da empresa no futuro, e cujo custo possa ser estimado com fiabilidade, nos termos do parágrafo 13 da norma contabilística e de relato financeiro (NCRF) n.º 21 – «Provisões, passivos contingentes e ativos contingentes.» A obrigação presente resulta do facto de existir um processo judicial em curso, no período presente, que com probabilidade poderá originar a saída de fluxos no futuro. De acordo com o parágrafo 15 da NCRF n.º 21, essa obrigação presente deverá ser determinada com ajuda de peritos, neste caso, dos advogados da entidade. A probabilidade dessa obrigação presente vir a ocorrer deverá ser considerada se o acontecimento for mais provável, do que não, ocorrer, isto é, se a probabilidade do acontecimento ocorrer for maior do que a probabilidade de isso não acontecer, conforme previsto no parágrafo 22 da NCRF n.º 21. Na prática, se existir uma probabilidade de mais de 50 por cento, da entidade ter de vir a pagar a situação solicitada no processo judicial em curso, então estará cumprido este critério. De acordo com o parágrafo 37, a estimativa desse passivo (e gasto) relacionado com a provisão de um processo judicial em curso poderá ser efetuada tendo por base juízos e opiniões dos referidos peritos independentes (advogados). Será, então, com base num relatório do advogado da entidade, que esta deverá verificar se estão cumpridos os requisitos para o reconhecimento da provisão. Atendendo a que esse processo em tribunal se poderá estender durante longo tempo, tendo a entidade que apenas efetuar o pagamento após o decorrer de vários períodos, haverá que registar esse passivo (e gasto) pelo respetivo valor presente, atualizando os custos que se estimam incorrer com esse processo judicial para o momento presente, nos termos do parágrafo 45 da norma.” A NCRF-ME não dispõe de norma equivalente ao do parágrafo 37 da NCRF 21, citada no Parecer. Na ausência de outro específico, a adoção deste critério afigura-se correto para decidir se determinada situação preenche a previsão do parágrafo 13.2 da NCFR-ME. A existência de um parecer emitido por advogado externo da empresa, dando conta da probabilidade de vir a perder a ação inferior a 50%, justificaria a não inclusão como provisão da quantia impugnada a título de IVA. No relatório pericial fez-se constar que relativamente à dívida de IVA que “este passivo deveria constar da informação contabilística da insolvente à data da apresentação da petição inicial”. No caso, desconhece-se se a contabilista certificada da insolvente pediu a opinião a peritos ou se não a pediu quando decidiu não constituir provisões para pagamento de IVA e de IRS. Trata-se de questão que deveria ter sido esclarecida face ao relatório pericial, onde é afirmado o que se transcreveu. A parte teve a possibilidade de obter informação mais pormenorizada, mediante reclamação do relatório pericial por deficiência, e não se socorreu desse direito, não pode agora vir a colocar as questões que deveria ter suscitado nessa sede. Ainda que assim não se entendesse, nunca se justificaria a anulação do julgamento para essa indagação e complementação da perícia, tendo em conta a ausência de pronúncia sobre a questão da contabilista certificada, que nada disse a propósito, em sede de contra-alegações, sendo a técnica mais habilitada a esclarecer os procedimentos que empreendeu e porque razão optou por não mencionar as dívidas de IRS e IVA, a dificuldade na obtenção de documentos que os autos evidenciam, e a sua não essencialidade, por não serem os únicos factos que preencheram a previsão do artº 186º, nº 2, alínea h), como infra melhor se desenvolverá. Para inscrever determinada quantia em sede de provisões há que fazer um juízo de prognose e concluir que o pagamento da quantia a título de IVA tinha probabilidade de vir a ocorrer em mais de 50% e poder estimar-se o montante a suportar. Esse juízo é solicitado pelo contabilista certificado ao advogado encarregue do processo, o qual, sendo externo à empresa, lhe oferecerá credibilidade. Se não for possível concluir-se a probabilidade de vir a ocorrer em mais de 50% e não for possível estimar-se o valor, então será divulgada informação como contingência. Só não deverá constar essa informação se a provável saída de recursos for considerada remota. A consideração como passivo contingente alerta os terceiros que vão entrar em negociações com a sociedade para a probabilidade de alteração da sua situação financeira. No caso, não se pode olvidar que, encontrando-se a impugnação já em sede de recurso, no Tribunal Central Administrativo, tal significa que já foi proferida uma decisão pela 1ª instância que foi desfavorável, total ou parcialmente, à insolvente. E nessa medida, a probabilidade de tal crédito por impostos vir a ser exigido, aumentou e deveria ter sido refletida em sede de provisões, até porque o montante a pagar está perfeitamente concretizado pela AT. No mínimo, sempre teria de ser reconhecida como passivo contingente. As provisões devem ser revistas à data de cada balanço e ajustadas para refletir a melhor estimativa corrente. Se deixar de ser provável que será necessário um exfluxo de recursos que incorporem benefícios económicos futuros para liquidar a obrigação, a provisão deve ser revertida (13.7 NCRF-ME). Não se trata assim de fazer refletir no passivo apenas na data em que a dívida surgiu, mas sim ao longo dos anos enquanto a mesma não se encontrar definitivamente resolvida. A necessidade de provisões e a sua revisão é efetuada à data de cada balanço e ajustada para refletir a melhor estimativa corrente. Não se esgota num único balanço e demonstração de resultados, pelo que era um dever que se mantinha nos exercícios subsequentes, nomeadamente nos três que antecederam a declaração de insolvência. Dívida da Segurança Social Relativamente a esta dívida apuraram-se os seguintes factos: 46. A dívida reconhecida de IRS, no valor de € 59.921,22, acrescida de juros moratórios no valor de € 43.205,66 não está evidenciada nas demonstrações de resultados de 2017 e 2018, nem consta das Demonstrações Financeiras do ano de 2019. 47. Esta dívida respeita a retenções na fonte e foi reclamada no processo n.º ...78, instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 08.11.2000. Tendo a dívida sido reclamada num processo instaurado pela AT em novembro de 2000, diz respeito a imposto a pagar relativo no máximo a 2000 e anos anteriores. Uma vez que a insolvente é uma pessoa coletiva, trata-se de uma dívida que só pode estar associada à figura de substituição tributária, vertida no artº 20º da Lei Geral Tributária e à obrigatoriedade de realização de retenção na fonte de imposto constante dos artigos 98º e seguintes do CIRS, isto é de rendimentos das categorias A e H (trabalho dependente e pensões) e de outras categoriais (empresariais, profissionais, prediais, capitais e de incrementos patrimoniais) (conforme resposta à questão 14 da perícia). Teria de estar demonstrada nas demonstrações de resultados de 2017? De acordo com o relatório da perícia efetuada à contabilidade da insolvente, perante a data de instauração deste processo de execução, deveria constar no balancete geral analítico de dezembro de 2019 informação sobre tal dívida e, consequentemente, nas Demonstrações Financeiras do ano de 2019, assim como nas Demonstrações Financeiras de 2018 e 2017, nomeadamente, no Passivo em Balanço (cfr. também resposta ao quesito 14).
A exigência ao período de três anos aludido no nº 1 do artº 186º, não faz assentar a causa da potencial condenação das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência, na data do vencimento das dívidas, mas antes na data da ocorrência dos factos que são suscetíveis de originar e produzir a apontada qualificação, consubstanciada no comportamento da apelante enquanto gerente, de infringir as obrigações contabilísticas a que está adstrita, não obstante o crédito já se encontrar vencido em data anterior aos três anos referidos no nº 1 do artº 186º (cfr. se defende nos Acs. do STJ de 13.07.2021, Processo 18591/16 e de 27 de Outubro de 2020, proc. 814/13.TYVNG-A.P1.S1). Defende a apelante que desconhecia as dívidas existentes (IRS e IVA) e que durante anos concorreu a apoios financeiros de cariz público e que para os mesmos lhe fossem concedidos era requisito essencial a junção da certidão de não dívida à AT. Estas certidões foram sempre emitidas sem qualquer menção a dívidas fiscais, pelo que, se nem a própria AT fazia referência a tal dívida, não lhe pode ser assacada responsabilidade. Tal factualidade não consta da matéria de facto do presente incidente. No entanto, o MP referiu a existência de uma certidão emitida em 24.06.2020, junta com a reclamação de créditos, onde foi declarado que nos anos de 2017, 2018 e 2019, a devedora não apresentava dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira[8]. Não se nos afigura que a apelante desconhecesse a existência dos dois processos. A sociedade insolvente é uma sociedade familiar que foi passando de geração em geração, tendo a recorrente assumido a gerência da sociedade em 2006, após o falecimento do seu pai, sendo de prever que o seu pai lhe tivesse transmitido essa informação. Não obstante, uma simples pesquisa no Portal das Finanças permitir-lhe-ia constatar a existência dos processos. A emissão da certidão onde não são referidas as dívidas por IVA e IRS verifica-se, certamente, por os processos se encontrarem pendentes. Mas a sua pendência, como referimos já, não desobrigava a insolvente de inscrever as dívidas em provisões (passivo não corrente). Mas ainda que se entendesse que não era caso de incluir a dívida a título de IRS e de IVA no passivo (provisões) da empresa nem de a relatar como passivo contingente, muitos outros factos foram apurados que não permitem qualificar a insolvência como fortuita, preenchendo a alínea h) do nº 2 do artº 186º. Assim, os factos constantes dos pontos 24 a 37, 39 a 45, 57, 58, 64 e 65 dos factos provados. Da análise desses factos, concluiu-se na sentença recorrida que as diversas irregularidades na elaboração da contabilidade, prejudicaram, de forma relevante, a compreensão da situação patrimonial da sociedade, mais se consignando que “Observa-se, nesse sentido, que pelo facto de todos os movimentos do ano de 2019 terem sido lançados no mês de dezembro, de se não mensurar os pagamentos processados aos trabalhadores, bem como de os recebimentos e suprimentos registados não estarem refletidos em disponibilidades, não se consegue perceber qual foi a evolução e desempenho financeiro da devedora ao longo do ano, bem como, e quando, se chegou à situação de falta de liquidez para continuar a cumprir as suas obrigações. Por outro, o não reconhecimento da dívida de IRS distorceu a imagem da situação financeira e patrimonial da empresa, visto que, atento o seu elevado valor (€ 59.921,22 de capital, acrescida de € 43.205,66 de juros), o seu reconhecimento, por si só, determinaria que logo em 2017 a insolvente apresentasse capitais próprios negativos. Ao omitir o reconhecimento desta dívida da contabilidade, e ao não divulgar a dívida de IVA, devedora passou uma imagem de saúde financeira que não correspondia à realidade. Por fim, também o erro relativo à informação sobre as remunerações dos órgãos sociais e pessoal e a retirada das prestações suplementares influem na perceção da situação patrimonial e financeira da insolvente: o primeiro terá agravado ou diminuído os prejuízos reais sofridos pela sociedade no ano de 2019 em cerca de 30%; os movimentos relativos às prestações suplementares, por seu turno, determinaram que as contas de 2019 apresentassem capitais próprios negativos de - € 93.505,41, sem que se consiga perceber se essa valor negativo já deveria estar registado nas contas dos anos anteriores.” Em suma, ainda que não fossem de incluir na rubrica provisões nem no passivo contingente, os demais erros e irregularidades impedem que a contabilidade da sociedade exponha apropriadamente a sua posição financeira e o seu desempenho financeiro, não apresentando uma imagem minimamente fidedigna da sua situação patrimonial e financeira. Deste modo, sempre se consideraria verificada a presunção inilidível de insolvência culposa prevista no art. 186.º, n.º 2, al. h), in fine, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Os deveres de manter uma contabilidade organizada, prestação de contas e sua publicação, que visam a proteção dos credores societários, incumbem aos representantes legais da sociedade, como resulta dos arts. 117°, n.º 1, do Código do IRC e dos art.ºs 64°e 65°do CSC. Não assiste assim razão à apelante quando defende que a sua obrigação é apenas contratar um TOC, técnico que desde 2015 é designado por contabilista certificado, esgotando-se nessa nomeação, não se mostrando violados os deveres de cuidado e lealdade previstos no CSC. É certo que o contabilista certificado é o responsável pela execução da contabilidade, devendo assegurar-se que a mesma é conforme à legislação em vigor, estando a respetiva atividade profissional delineada, a partir de 2015, no Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, na redação do Decreto-Lei nº 139/2015, de 7 Setembro (anexo I), designadamente no artº 10º, nº 1, acompanhado do regime do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, aprovado pelo mesmo diploma legal (anexo II). O DL 139/2015 transformou a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas em Ordem dos Contabilistas Certificados, e alterou o respetivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de outubro, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabeleceu o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais. Mas compete aos gerentes das sociedades por quotas a administração e representação da sociedade – art. 252.º, n.º 1, do Cód. das Sociedades Comerciais (CSC) – “abrangendo a administração, em sentido amplo, a administração gestionária e a administração técnica ou organizativa; bem como a “representação orgânica em nome da sociedade perante outros sujeitos(os gerentes ligados à sociedade por um vínculo de organicidade) , seja nas relações internas(com os sócios, o órgãos de gestão e o ROC), seja nas relações com terceiros externos à sociedade.” Em sede de “administração e fiscalização”, dispõe o art. 64º, nº1 do CSC sob a epígrafe “deveres fundamentais” que os gerentes e administradores devem observar “deveres de cuidado, relevando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criteriosos e ordenado” (alínea a). E, nos termos do art. 65º do CSC compete ao gerente/administrador assinar os documentos de prestação de contas aí se incluindo “o relatório de gestão, as contas de exercício e demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a casa exercício anual” – cfr. os nºs 1, 2 e 3. O gerente é responsável pela apresentação das contas da sociedade, assume com a aceitação do cargo de gestão que tem a competência e conhecimento para o exercício dessa função e deve exercê-la de acordo com o padrão da “diligência de um gestor criterioso e ordenado” (cfr. se defende no Ac. do TRL de 27.04.2021, proferido no processo 540/19.8T8VFX-C.L1-1, e de onde foram retirados os dois extratos que antecedem em itálico). No caso a apelante era a única gerente da insolvente e como tal responsável nos termos supra expostos. A sentença recorrida não merece censura. Sumário: (…)
IV – Decisão Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida. Custas pela apelante. Coimbra, 12 de julho de 2022
[1] Relatado pelo Sr. Juiz Desembargador, aqui 2º Adjunto. [2] Igualmente relatado pelo mesmo Sr. Juiz Desembargador, aqui 2º Adjunto. 3 Consideram-se pequenas entidades, nos termos do artº 9º, nº 2 do SNC as entidades , que não ultrapassem dois dos três limites seguintes, à data do balanço: Total de balanço: € 4 000 000;b) Total de vendas líquidas e outros rendimentos:€ 8 000 000; c) Número de trabalhadores empregados em média durante o exercício: 50. [4] De acordo com o artº 9º, nº 1 do SCN consideram-se micro entidades, aquelas que, de entre as referidas no artigo 3.º, à data do balanço, não ultrapassem dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 350 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 700 000; e c) Número médio de empregados durante o período: 10. E de acordo com o artº 9º-D, nº 1 as entidades a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º devem aplicar a 'norma Contabilística para Microentidades' (NC-ME), compreendida no SNC. O nº 2 do mesmo preceito legal estatui que “sem prejuízo do disposto no número anterior, as entidades aí referidas podem optar pela aplicação das 'Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro' (NCRF) ou da NCRF-PE, devendo tal opção ser identificada na declaração a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas”. [5] Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes na ótica empresarial e pública: o caso especial dos Municípios Portugueses, Andrea Libório Neto, Bárbara Borges Friza, Mª Amélia Monteiro e Sónia Silva Barbosa, acessível em www.occ.pt/dtrab/trabalhos/iicicp/finais_site/82.pdf. [6] Este parágrafo tem a mesma redação do 13.4 da NCRF-PE e do 13 da NCRF 21 (provisões, passivos contingentes e ativos contingentes). [7] A NCFR-ME não contém uma definição deste conceito. [8] Encontrar-se-á certamente junta ao processo organizado pelo AI. |