Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1350/14.4TBLRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: RESOLUÇÃO CONTRATUAL – DESAPARECIMENTO DO INTERESSE DO CREDOR.
MORA DO DEVEDOR.
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA.
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 793º, Nº 2, 799º, 801º, Nº 2, 802º, Nº 1, E 808º DO C. CIVIL
Sumário:
I – Nos casos em que a violação e/ou desvio do programa negocial assume determinada importância e gravidade, que justifique o desaparecimento do interesse do credor na manutenção da relação contratual, confere a lei ao credor o direito de resolução (cfr., v. g., arts 793º, n.º 2, 801º, n.º 2, 802º, n.º 1, e 808º, todos do CC).
II - Direito de resolução legal que, assim configurado, se apresenta como um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento, o mesmo é dizer dependente de um inadimplemento grave.
III - Visando por norma o credor conseguir, com o cumprimento exacto e pontual da obrigação, quer uma finalidade de uso quer uma finalidade de troca, deverá em princípio ser considerada grave toda aquela inexecução ou inexactidão do cumprimento que torne inviável um certo emprego do objecto da prestação ou que impossibilite o credor de a aplicar ao uso especial que tinha em vista.
IV - Regra geral, o fim-motivo visado pelo credor fica fora e não faz parte integrante do conteúdo da obrigação (fica no limbo dos simples motivos juridicamente irrelevantes), porém, embora o fim-motivo seja irrelevante no quadro da fase estipulativa, tal não significa que não possa tornar-se relevante na fase executiva do negócio.
V - “Fins-motivos”/interesses do credor (susceptíveis de relevar em termo de resolução) que serão sempre determinados e perspectivados objectivamente; objectividade que significa que o interesse afectado pelo incumprimento há-de ser apreciado por qualquer outra pessoa (designadamente pelo juiz) e não segundo o bel-prazer, o capricho ou o juízo arbitrário do credor.
VI - É justamente tal situação, de relevância do fim-motivo negocial, para efeito de inexecução do negócio, que se encontra prevista no art. 808º, n.º 1, 1ª parte, do CC, quando se diz que se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação sempre que, em consequência de mora, o credor perder o interesse na obrigação.
VII - Por isso, em várias legislações se prevê a possibilidade de o credor (parte não inadimplente), uma vez incurso em mora o devedor, fixar a este um prazo suplementar razoável - mas peremptório - dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio.
VIII - A situação é contemplada na segunda parte do n.º 1 do já referido art. 808º. Fora dos casos em que a mora tem por consequência a perda do interesse na prestação por parte do credor, este tem à sua disposição o mecanismo seguro da intimação ou interpelação cominatória, que igualmente pode conduzir às consequências do art. 801º, se a obrigação não for cumprida dentro do prazo suplementar razoável fixado na mesma interpelação ou intimação.
IX - A interpelação admonitória deve conter três elementos:
a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. Trata-se, pois, de uma declaração intimativa.
X - Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 799, n.º 1, Código Civil, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua e só existe incumprimento definitivo quando a prestação não tenha sido cumprida e já não possa vir a sê-lo posteriormente e desde que continue a existir interesse do credor na prestação, de acordo com o disposto no artigo 808.º do Código Civil.
XI - A diferença entre a mora e o incumprimento definitivo reside no facto de a mora se traduzir na falta de cumprimento na data estabelecida, continuando o cumprimento a ser possível e a satisfazer o interesse do credor, enquanto o incumprimento definitivo revela uma situação em que a prestação já não pode ser efectuada ou deixe de satisfazer o interesse do credor. Daqui resulta que a aplicação das sanções aludidas no artigo 442.º, n.º 2 do CC. pressupõe o incumprimento definitivo do contrato promessa, não bastando a simples mora.
XII - No entanto, desde há muito tempo que tanto a doutrina como a jurisprudência vêm entendendo que é de considerar como definitivamente incumprido um contrato quando tal resulte de comportamento do devedor que, inequivocamente, demonstre que o mesmo não pode ou não quer cumprir o contratado, desde que tal comportamento seja concludente nesse sentido.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
A..., residente em Rua ... veio intentar a presente acção de verificação ulterior de créditos contra a massa insolvente de E..., a devedora e os credores conhecidos, pedindo a final que:
a) seja verificado e reconhecido o crédito da A. no montante de 69.832,00€, como alegado em 17º e acrescido dos juros mora como alegado em 20º ou, se não, actualizado como alegado em 21º; ou para o caso de este pedido não proceder:
b) seja verificado e reconhecido o crédito da ora A. reclamante no montante de 74.916,00€ como alegado em 19º e acrescido dos juros mora como alegado em 20º ou, se não, actualizado como alegado em 21º;
c) Em qualquer caso, declarar-se e ser reconhecido que a A. é titular do direito de retenção sobre a referida fracção autónoma objecto do contrato promessa em causa e, por isso, graduar–se o seu crédito reclamado em primeiro lugar, porque privilegiado e garantido que está pelo privilégio do direito de retenção sobre aquela fracção e que é prevalecente sobre a hipoteca e penhoras que sobre ela incide.
d) Ainda e em qualquer caso, ser revogada e dada sem efeito qualquer lista de credores reconhecidos que a AI tenha elaborado, bem como qualquer lista em que, porventura, figure como não reconhecido o crédito da A..
Alega, para o efeito, que em 1.10.1998 celebrou com a sua irmã E... um contrato promessa referente à fracção que foi apreendida nos autos de insolvência.
A A., em cumprimento do contrato celebrado entre ambas, procedeu ao pagamento das prestações referentes ao mútuo concedido pela C..., SA à R. E... até ao montante de €34.916,00.
No entanto, a 2ª R. não procedeu à marcação da escritura e sem qualquer motivo justificativo passou a manifestar a vontade e intenção firme de nunca vir a assinar a escritura e cortou relações com a A. durante vários anos.
Em 1.10.1998 a insolvente entregou as chaves da fracção à A. e desde essa altura que a A. aí reside.
O incumprimento do contrato ocorreu em 1.10.2009 e nessa altura, por valorização do imobiliário no decurso de mais de 10 anos após o contrato promessa, o valor da fracção era de mais, pelo menos €40.000,00 em relação ao preço inicial convencionado.
O crédito da A. correspondente a sinal em dobro ascende a €69.832,00.
Na hipótese de não se entender que o crédito da a. é no montante referido, tem ela direito a exigir da promitente vendedora e 2º R a restituição do sinal de €34.916,00, acrescido da valorização da fracção o total de €74.916,00.
*
Citados os credores, veio a C..., SA contestar por excepção e impugnação. Excepciona a caducidade do direito de propor a presente acção e da impossibilidade da acção de verificação ulterior de créditos.
Impugna ainda a factualidade alegada pela A.
A Massa insolvente veio igualmente contestar por excepção e impugnação.
Excepciona litispendência e a intempestividade da propositura da presente acção. Invoca ainda a invalidade do contrato promessa por falta de reconhecimento das assinaturas e ausência de licença de utilização do imóvel. Impugna ainda a factualidade alegada pela A.
A A. respondeu nos termos constantes de fls.101 e ss.
Por despacho de fls. 113 a 116 foi conhecida a intempestividade da presente acção.
Foi elaborado despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de litispendência e de impossibilidade da acção de verificação ulterior de créditos, identificou-se o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, finda a qual foi proferida a sentença de fl.s 286 a 297, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:
“Nesta conformidade, e nos termos das disposições supra citadas, julgo a presente acção procedente e consequentemente:
- julgo verificado o crédito da A. no montante de €69,832,00, acrescido dos juros vencidos e vincendos desde a citação (4.02.2015) e até efectivo e integral pagamento;
- reconhecer que o crédito beneficia de direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo predial de leiria sob o nº ... e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ... com vista à sua futura graduação e pagamento no âmbito do processo de insolvência.
Custas pelos RR”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a credora C..., SA, recurso esse admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, finalizando as respectivas motivações com as seguintes conclusões:
...
Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a prova foi bem apreciada, devendo manter-se inalterada a redacção do item 3.º dos factos provados e aplicada a lei, em conformidade.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:
A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente ao item 3.º dos factos dados como provados, que devem passar a considerar-se como não provados;
B. Se não se verifica incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado entre a ora autora e a insolvente, em virtude de aquela não ter fixado prazo para a outorga da escritura definitiva e;
C. Se a autora não goza do invocado direito de retenção, decorrente da celebração do aludido contrato promessa, acompanhado da entrega e ocupação da fracção prometida vender.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:
...
A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente ao item 3.º dos factos dados como provados, que devem passar a considerar-se como não provados.
...
Analisados estes depoimentos e demais referidos elementos probatórios, pensamos ser de sufragar a conclusão a que se chegou na sentença recorrida.
A matéria de facto colocada em crise no presente recurso, a questão que, nesta sede, verdadeiramente, importa decidir é a de determinar se os depósitos referidos no item 3.º dos factos provados foram feitos pela autora.
Efectivamente, a recorrente não contesta que os mesmos foram feitos, apenas se insurge contra o facto de se ter dado como provado que o foram pela autora.
Aliás, tais depósitos resultam comprovados pela conta corrente junta de fl.s 174 a 225, explicada pelo requerimento da própria C... de fl.s 237, quanto ao significado das siglas “ACR” e “HP-DB”, esclarecendo que a primeira designa amortizações de crédito e a segunda cobrança de despesas.
A recorrente, fundamentalmente, insurge-se contra o facto de se ter dado como provado ter sido a autora a fazer tais depósitos porque a mesma não apresentou todos os talões comprovativos dos mesmos, defendendo não ser de relevar a sua não apresentação com o facto de já serem antigos e a autora não os ter guardado (para além dos juntos a fl.s 142).
No entanto, a própria recorrente, cf. requerimento de fl.s 241 v.º, em resposta a notificação que lhe foi feita para a proveniência de tais depósitos, veio informar que “não detém em arquivo a informação solicitada”.
Bem como na sequência do despacho de fl.s 249, que ordenou a sua notificação para, se possível, juntar aos autos a prova de quem procedeu aos depósitos na conta, veio, cf. 250 v.º, informar que “atento o período em causa, e tendo em conta o lapso de tempo decorrido, tal informação e documentação já não existe em arquivo”.
Ou seja, a recorrente também já não detém/detinha a informação solicitada, o que se compreende, atento o lapso de tempo decorrido, mas tal também é válido para a autora, não se podendo deixar de ter tal facto como provado só porque inexistem os talões comprovativos, para mais, até porque os pagamentos tinham de ser feitos na conta da promitente vendedora, como o explicou a testemunha da recorrente, sua funcionária, ....
Assim, não obstante a inexistência de tais comprovativos, não se segue que não se possa dar como provado que foi a autora a fazer tais depósitos.
A restante prova produzida encaminha-se nesse sentido, designadamente as testemunhas ouvidas, as quais, nos termos que acima se consignaram, referiram ter sido a autora a fazê-los.
De resto, já na própria cláusula segunda do contrato promessa se fez consignar que tal responsabilidade incumbia à autora, o que se compreende, uma vez que esta logo se instalou na fracção prometida comprar.
Como resulta dos factos que constam dos itens 7.º a 14.º da matéria de facto dada como provada (e que a recorrente não impugnou) a autora detém as chaves de tal fracção, desde Outubro de 1998, data a partir da qual, a promitente vendedora não mais se interessou pela fracção, constituindo a mesma, desde tal data, a residência da autora e seu agregado familiar.
Ora, não se compreende que assim sendo não fosse a autora a pagar as prestações em causa.
Da normalidade das coisas e da lógica corrente da vida resulta que a vendedora não continuasse a assumir tal encargo, uma vez que, na realidade, se “desfez” da fracção prometida vender e que, ao invés, as mesmas fossem pagas pela pessoa que a passou a ocupar e fruir, como se de sua dona se tratasse.
Pelo que não vemos razões para alterar a redacção do mencionado item 3.º dos factos provados, ora em apreço.
Consequentemente, nesta parte, improcede o recurso em apreço, mantendo-se a matéria de facto dada como provada e não provada, em 1.ª instância.

B. Se não se verifica incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado entre a ora autora e a insolvente, em virtude de aquela não ter fixado prazo para a outorga da escritura definitiva.
No que a esta questão concerne, alega a recorrente que constando do contrato promessa uma cláusula (4.ª), que estipula que a escritura definitiva de compra e venda seria marcada pela 1.ª contraente (promitente vendedora), no prazo máximo de 12 meses, após o pagamento total do sinal acordado, devendo, para tal, a 1.ª outorgante notificar a 2.ª, através de carta registada com a.r., com a antecedência de 10 dias e se assim não fosse, por qualquer das outorgantes, sob pena de se considerar o contrato definitivamente incumprido e não o tendo a autora feito – não marcação da referida escritura – em face da ausência de prazo para a marcação da escritura e inerente fixação de prazo para o cumprimento, não se pode concluir que exista incumprimento definitivo do contrato promessa em causa.

Efectivamente, os contratos, é sabido, devem ser pontualmente cumpridos (406º do CC).
Quando assim não acontece, quando ocorre um qualquer desvio entre a execução do contrato e o programa negocial verifica-se um “inadimplemento”.
Inadimplemento que, em certos casos, confere ao credor um direito de resolução legal.
Dito de outro modo, nos casos em que a violação e/ou desvio do programa negocial assumem determinada importância e gravidade, que justifiquem o desaparecimento do interesse do credor na manutenção da relação contratual, confere a lei ao credor o direito de resolução (cfr., v. g., arts 793º, n.º 2, 801º, n.º 2, 802º, n.º 1, 808º todos do CC).
Direito de resolução legal que, assim configurado, se apresenta como um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento, o mesmo é dizer, dependente de um inadimplemento grave.
Inadimplemento grave, cuja definição, em primeira linha, pertence ao credor, a quem compete a sua invocação.
Assim, visando por norma o credor conseguir, com o cumprimento exacto e pontual da obrigação, quer uma finalidade de uso quer uma finalidade de troca, deverá em princípio ser considerada grave toda aquela inexecução ou inexactidão do cumprimento que torne inviável um certo emprego do objecto da prestação ou que impossibilite o credor de a aplicar ao uso especial que tinha em vista.
Regra geral, o fim-motivo visado pelo credor fica fora e não faz parte integrante do conteúdo da obrigação (fica no limbo dos simples motivos juridicamente irrelevantes), porém, embora o fim-motivo seja irrelevante no quadro da fase estipulativa, tal não significa que não possa tornar-se relevante na fase executiva do negócio.
Ora, é justamente através da resolução legal que, em certos casos, tais “fins-motivos”, tais interesses do credor que não entraram a fazer parte do conteúdo do contrato e da obrigação do devedor, se tornam relevantes.
“Fins-motivos”/interesses do credor (susceptíveis de relevar em termo de resolução) que serão sempre determinados e perspectivados objectivamente; objectividade que significa que o interesse afectado pelo incumprimento há-de ser apreciado por qualquer outra pessoa (designadamente pelo juiz) e não segundo o bel-prazer, o capricho ou o juízo arbitrário do credor.
É justamente tal situação, de relevância do fim-motivo negocial, para efeito de inexecução do negócio, que se encontra prevista no art. 808º, n.º 1, 1ª parte, do CC, quando se diz que se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação sempre que, em consequência de mora, o credor perder o interesse na obrigação.
Efectivamente, a conversão da mora em incumprimento definitivo implica aplicar à situação o art. 801º, que, nos contratos bilaterais, confere ao credor uma opção entre exigir uma indemnização ou resolver o contrato exigindo ao mesmo tempo o ressarcimento dos prejuízos sofridos.
“Para além dos casos em que a mora, em conjugação ou não com outras causas, fez desaparecer o interesse do credor na prestação, há que ter em conta todos os outros em que tal não acontece mas nos quais não seria legítimo obrigar o credor a esperar indefinidamente pelo cumprimento. Não seria justo manter o credor indefinidamente vinculado ao contrato (inibindo-o designadamente de fazer uma compra de cobertura ou de por qualquer outro modo prover à satisfação da necessidade que o levou a contratar) visto que ele, embora com direito, ficaria sempre sujeito a ter de cumprir por seu lado - bem como a ter de receber a prestação retardada. Por isso, em várias legislações se prevê a possibilidade de o credor (parte não inadimplente), uma vez incurso em mora o devedor, fixar a este um prazo suplementar razoável - mas peremptório - dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio.
A situação é contemplada na segunda parte do n.º 1 do já referido art. 808º. Fora dos casos em que a mora tem por consequência a perda do interesse na prestação por parte do credor, este tem à sua disposição o mecanismo seguro da intimação ou interpelação cominatória, que igualmente pode conduzir às consequências do art. 801º, se a obrigação não for cumprida dentro do prazo suplementar razoável fixado na mesma interpelação ou intimação.
Trata-se de um remédio concedido por lei ao credor para os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial nem ele possa alegar, de modo objectivamente fundado, perda do interesse na prestação por efeito da mora. Constitui, como já disse alguém, um meio especial de “autotutela privada” que faz do credor árbitro da sorte da relação. Por esta via, a lei legitima o credor para provocar unilateralmente uma modificação da relação, introduzindo nela um elemento novo, ou seja, um novo prazo de cumprimento que se caracteriza pela sua peremptoriedade. Prazo, este que, aliás, nada impede possa ser logo estipulado no momento da constituição da obrigação.
A interpelação admonitória com fixação de prazo peremptório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808º é, pois, uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo. Assim, através da fixação de um prazo peremptório, obtém-se uma clarificação definitiva de posições.
A interpelação admonitória deve conter três elementos:
a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo. Trata-se, pois, de uma declaração intimativa.
A interpelação admonitória é unia declaração receptícia: torna-se definitiva e irrevogável a partir do momento em que chega ao poder do devedor ou é dele conhecida (art. 224º). A partir desse momento, o credor já não pode exigir o cumprimento. Se, posteriormente, credor e devedor acordam um outro prazo, então já lhe podem dar o efeito, ou de termo essencial, ou de cláusula resolutiva.
Diz a lei que o prazo fixado pelo credor deve ser um prazo razoável. Essa razoabilidade variará, evidentemente, conforme a natureza da prestação. O prazo razoável será aquele que o for para o aprestamento da prestação. Assim, se a prestação consistir numa soma de dinheiro, será mais breve; se ela consistir na entrega de uma mobília que ainda tem de ser confeccionada ou acabada, no todo ou em parte, será mais longo (sublinhado nosso). Mas se deve ser um prazo suficiente para que o devedor complete o aprestamento da prestação, também não deve ser tal que prejudique ou faça até desaparecer o interesse do credor. Se o credor verifica que se a prestação não for feita dentro de certo prazo suplementar, se dará um evento que fará desaparecer o interesse que para ele tem a prestação, deve avisar disso o devedor.
O devedor poderá discutir posteriormente em tribunal a razoabilidade do prazo, se pretende evitar as consequencias do art. 801º. Nesta hipótese, se o tribunal lhe der razão, nem por isso ressuscita uma relação extinta: limita-se a declarar a subsistência da relação anterior em virtude da ineficácia da interpelação admonitória e da declaração de resolução que porventura se lhe tenha seguido Baptista Machado, Resolução por Incumprimento, in Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, págs. 381 a 385)..
Por último, cabe referir que a resolução se basta com uma declaração nesse sentido à outra parte, cf. artigo 436.º, n.º 1, do Código Civil.
Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 799, n.º 1, Código Civil, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua e só existe incumprimento definitivo quando a prestação não tenha sido cumprida e já não possa vir a sê-lo posteriormente e desde que continue a existir interesse do credor na prestação, de acordo com o disposto no artigo 808.º do Código Civil.
De acordo com o disposto neste preceito “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente “.
Como ensina A. Varela, in RLJ 118 - 54 “a lei não se contenta com a simples perda (subjectiva) do interesse do credor na prestação em mora para decretar a resolubilidade do contrato; o n.º 2 do artigo exige que a perda do interesse seja apreciada objectivamente“.
A perda do interesse não pode ater-se, somente, numa simples mudança de vontade do credor na efectivação do negócio, desacompanhada de qualquer circunstância de relevo para além da mora. A perda do interesse há-de objectivar-se segundo o critério de razoabilidade própria do comum das pessoas - no mesmo sentido, veja-se Menezes Cordeiro, in Estudos de Direito Civil, vol. I, pág. 55 e Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso Em Especial Na Compra E Venda E Na Empreitada, pág.s 333 e 334.
A diferença entre a mora e o incumprimento definitivo reside no facto de a mora se traduzir na falta de cumprimento na data estabelecida, continuando o cumprimento a ser possível e a satisfazer o interesse do credor, enquanto o incumprimento definitivo revela uma situação em que a prestação já não pode ser efectuada ou deixe de satisfazer o interesse do credor. Daqui resulta que a aplicação das sanções aludidas no artigo 442.º, n.º 2 do CC, pressupõe o incumprimento definitivo do contrato promessa não bastando a simples mora.
Neste sentido, entre outros, a nível jurisprudencial, os Acórdãos do STJ de 8/2/200, CJ, STJ, 2000, I, 72, e de 27/11/97, in BMJ 471, 388 e da Relação de Guimarães de 31/03/2004, CJ, 2004, II, 277.

Ora, é certo que na carta a que se refere o item 6.º dos factos provados a autora não marcou prazo para que a escritura definitiva fosse outorgada, pelo que à luz do que se deixou dito não poderia operar a resolução.
No entanto, não se pode olvidar o que consta dos itens 4.º e 5.º, de acordo com os quais, a promitente vendedora não só não marcou a escritura no prazo acordado, como, “sem motivo justificativo, a partir de Outubro de 2009, passou sempre a manifestar a vontade e intenção firme de nunca vir a assinar a escritura e cortou relações com a A. durante alguns anos”.
Como acima já se referiu, como regra, exige-se no nosso ordenamento jurídico que, para haver incumprimento definitivo, tem de existir mora, que desagúe em incumprimento definitivo, por qualquer das formas previstas no artigo 808.º do Código Civil, em que se inserem a perda do interesse do credor apreciada objectivamente ou o decurso de prazo adicional fixado pelo credor, via interpelação admonitória.
No entanto, desde há muito tempo que tanto a doutrina como a jurisprudência vêm entendendo que é de considerar como definitivamente incumprido um contrato, quando tal resulte de comportamento do devedor que, inequivocamente, demonstre que o mesmo não pode ou não quer cumprir o contratado, desde que tal comportamento seja concludente, nesse sentido.
O STJ, já em Acórdão de 3 de Outubro de 1995, in CJ, STJ, Ano III, tomo 3, a pág. 42 e seg.s, decidiu que há incumprimento do contrato quando o devedor (no caso, um empreiteiro) manifestar que não quer cumprir ou que não cumprirá, podendo essa manifestação resultar de declaração expressa ou de actos concludentes do mesmo, citando, nesse sentido, Vaz Serra, in Mora do Devedor, BMJ, n.º48, pág. 60 e seg.s; A. Varela, Das Obrigações em Geral e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. II.
Entendimento este que tem vindo a ser mantido por este Supremo Tribunal, como decorre da análise da jurisprudência do STJ, podendo, por último, dar-se como exemplo o seu Acórdão de 02 de Fevereiro de 2017, Processo n.º 280/13.1.TBCDN.C1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, no qual se cita inúmera jurisprudência e doutrina no mesmo sentido.
Como ali se refere, apoiando-se nos ensinamentos de Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1997, pág. 258; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, pág. 1049 e seg.s; Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág. 323, entre outros, é de considerar a existência de mora debitória, independentemente de interpelação, para além das hipóteses previstas no artigo 805.º, n.º 2, do Código Civil, se o devedor declara ao credor, de forma, inequívoca, definitiva, conscientemente e de forma peremptória, a sua intenção de não cumprir; o que pode revestir a forma expressa ou tácita, exigindo-se, nesta última hipótese que tal intenção tem de se deduzir de factos que, com toda a probabilidade a revelam, em conformidade com o disposto no artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil.
Tal conclusão, em tais casos, acrescenta-se em tal Aresto, assenta da “tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato promessa”.
Ora, in casu, não obstante a promitente vendedora se tenha obrigado a outorgar a escritura definitiva de compra e venda, nos termos acima referidos, o certo é que como consta do mencionado item 5.º, desde Outubro de 2009, sem motivo para tal, sempre revelou vontade e intenção firme de não a assinar.
Daqui decorre que a mesma se desinteressou, se desvinculou das obrigações que assumira ao celebrar o contrato promessa, tornando, desde logo e por isso, impossível, em termos definitivos, o cumprimento do referido contrato promessa, pelo que, como se concluiu na decisão ora em recurso, se tem de ter por definitivamente incumprido o contrato promessa que está na génese dos presentes autos.
Pelo que também quanto a esta questão improcede o recurso.
C. Se a autora não goza do invocado direito de retenção, decorrente da celebração do aludido contrato promessa, acompanhado da entrega e ocupação da fracção prometida vender.
Como é óbvio, esta pretensão da recorrente estava na direta dependência do sucesso que tivesse quanto ao recurso, na sua vertente de facto.
Como resulta do acima exposto, manteve-se inalterada a matéria de facto atinente, pelo que, nos termos expostos na sentença recorrida e para que se remete, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC, a autora goza do invocado direito de retenção.
Consequentemente, também quanto a esta questão improcede o recurso.
Nestes termos se decide:
Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Coimbra, 27 de Fevereiro de 2018.