Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
215/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: PENHORA
VENCIMENTO
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALBERGARIA-A-VELHA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 824º, NºS 1, AL. A), E 3 DO CPC.
Sumário: I – À semelhança do que fora já decidido pelo Tribunal Constitucional – Acórdão nº 177/2002, publicado em 2/07/2002 no D.R. Iª série-A - , relativamente às chamadas prestações periódicas mencionadas na al. b) do nº 1 do artº 824º do CPC, foi decidido no Ac. nº 96/2004 desse Tribunal, publicado em 1/04/2004, no D. R., IIª série, julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, a norma que resulta da conjugação do disposto na al. a) do nº 1 e no nº 2 do artº 824º CPC, na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado que não seja titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional .
II – O referido acórdão do Tr. Const. deve ser interpretado no sentido de que não sendo possível penhorar quaisquer bens e não tendo o executado outros rendimentos, o salário igual ou inferior ao salário mínimo nacional é totalmente impenhorável e o salário superior é penhorável até ao máximo de 1/3 desde que os 2/3 restantes sejam iguais ou superiores ao salário mínimo nacional .
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
Nos autos de execução nº 447/02 que correm termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, em que é exequente o A... e executada B..., foi por esta requerida a isenção total da penhora do seu salário.
Deferindo esse requerimento, o Mº Juiz “a quo” proferiu, em 27/06/2005, o despacho certificado a fls. 21, do teor seguinte:
“Notificada para identificar a respectiva entidade patronal veio a executada requerer seja o seu vencimento isentado de penhora alegando auferir um vencimento líquido de cerca de € 390,00, suportar renda de casa no valor de € 212,00, tendo ao seu encargo um filho menor em idade estudantil e o seu marido que se encontra desempregado sem qualquer vencimento.
Juntou recibo de vencimento referente ao mês de Abril de 2005 e, notificada para o efeito, juntou recibo de renda e cópia do bilhete de identidade do seu filho menor, agora com 13 anos de idade.
Notificada, a exequente nada veio dizer.
Decidindo:
Pela prova documental feita juntar pela executada, desacompanhada de outra que o infirme, julgo demonstrado que a executada aufere um vencimento mensal líquido de € 454,75, suporta renda mensal no valor de € 212,00 e tem um filho menor com 13 anos de idade.
Chamado a apreciar da constitucionalidade da penhora ordenada sobre vencimento igual ou inferior ao salário mínimo nacional, por Acórdão nº 96/2004 de 11.02.2004 o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade da penhora de vencimento naquelas condições, por violação do princípio da dignidade humana contida no Estado de Direito e que resulta das disposições conjugadas dos arts. 1º, 59º, nº 2, al. a) e 63º nº 1 e 3 da CRP, assente no pressuposto de que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.
Daqui decorre então a impenhorabilidade de vencimento igual ou inferior ao salário mínimo nacional. Mas, por maioria de razão, e seguindo a ratio que presidiu ao citado acórdão, é também inconstitucional qualquer penhora que na prática comporte redução do vencimento para limiteis inferiores ao salário mínimo nacional (se esse for o único rendimento, como é óbvio).
Acresce que do confronto do montante dos rendimentos auferidos pela executada com o encargos que a mesma suporta, desde logo a título de renda da casa onde habita o respectivo agregado familiar, e dela dependendo um filho menor com 13 anos de idade, resulta justificada a peticionada isenção de penhora.
Em conformidade com o exposto e nos termos do art. 824º nº 3 do CPC, isento de penhora o vencimento da executada enquanto se mantiverem as circunstâncias supra referenciadas ao nível do montante dos rendimentos auferidos e despesas que com eles suporta.”
Inconformado, o exequente interpôs recurso e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) O despacho recorrido violou os artºs 1.°, 59.° n.° 2 al. a) e 63.° n.° 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e o art. 824.° n.° 3 do Código de Processo Civil.
2) O vencimento mensal da Recorrida B... é superior ao salário mínimo nacional;
3) A tese defendida pelo Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão nº 96/2004 de 11/02/2004, é que apenas viola os artºs 1.°, 59.° n.° 2 al. a), 63.° n.° 1 e 3 da CRP a penhora ordenada sobre vencimento igual ou inferior ao salário mínimo nacional;
4) Não pode deduzir-se ao vencimento objecto da penhora as despesas com os encargos próprios ou familiares da executada B..., para, desse modo, obter o valor do salário sobre que há-de recair a penhora para determinar ou não a sua impenhorabilidade.
5) O Tribunal “a quo” poderia, quando muito, determinar que a penhora do seu vencimento fosse reduzida até a um sexto, atendendo aos encargos próprios e familiares da executada B....
Não foi apresentada resposta.
O Mº Juiz “a quo” não reparou o agravo.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão da penhorabilidade ou não do vencimento da executada.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Os elementos de facto relevantes para a decisão são os que resultam do antecedente relatório, que aqui se dá por reproduzido, com saliência para os seguintes:
3.1.1. A executada aufere um vencimento líquido mensal de € 454,75;
3.1.2. Suporta renda mensal de € 212,00;
3.1.3. Tem um filho menor de 13 (treze) anos de idade.
3.1.4 Não há nos autos notícia de que a executada possua quaisquer outros rendimentos ou bens susceptíveis de penhora.
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3.2 De direito
Antes de mais dir-se-á que, face à data da instauração do processo – seguramente anterior a 15 de Setembro de 2003, como resulta da referência ao ano constante do respectivo número (447/02) – e ao disposto no artº 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 38/2003, de 08/03, é aplicável o Código de Processo Civil na versão decorrente da reforma de 1995/1996 [São desse diploma as disposições legais adiante citadas sem outra menção.].
Dispunha o Artº 824º:
1 – Não podem ser penhorados:
a) Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 – A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
3 – Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude n.° 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.
À partida, portanto, atendendo exclusivamente à letra da norma transcrita, salvo isenção excepcional casuisticamente estabelecida pelo juiz com base no nº 3, 1/3 (um terço) de qualquer vencimento ou salário auferido pelo executado poderia sempre ser objecto de penhora.
Suscitou-se, contudo, a questão da constitucionalidade de tal penhora no caso de vencimentos ou salários exíguos, designadamente, dos iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional.
E, à semelhança do que fora já decidido, com força obrigatória geral, relativamente às prestações periódicas mencionadas na al. b) do nº 1 [Cfr. Acórdão nº 177/2002 do Tribunal Constitucional, in D.R., I Série-A, nº 150, de 2 de Julho de 2002.], foi decidido no Acórdão nº 96/2004 do Tribunal Constitucional [Cfr. D.R., II Série, nº 78, de 1 de Abril de 2004.] julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, nº 2, alínea a) e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.° do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995-1996), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
Como se refere na decisão sob recurso, tomou-se como pressuposto que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, de tal forma que, mesmo para satisfação de um seu débito, privá-lo desse mínimo constituiria atentado ao princípio da dignidade humana decorrente do princípio do Estado de direito.
Concorda-se inteiramente com o juízo de inconstitucionalidade formulado no mencionado Acórdão nº 96/2004 do Tribunal Constitucional, afigurando-se-nos que o mesmo tem de ser interpretado no sentido de que, não sendo possível penhorar quaisquer bens e não tendo o executado outros rendimentos, o salário igual ou inferior ao salário mínimo nacional é totalmente impenhorável e o salário superior é penhorável até ao máximo de 1/3 (um terço), desde que os 2/3 (dois terços) restantes sejam iguais ou superiores ao salário mínimo nacional.
Se bem percebemos o despacho recorrido, foi esse exactamente o entendimento adoptado ao dizer-se que “Daqui decorre então a impenhorabilidade de vencimento igual ou inferior ao salário mínimo nacional. Mas, por maioria de razão, e seguindo a ratio que presidiu ao citado acórdão, é também inconstitucional qualquer penhora que na prática comporte redução do vencimento para limiteis inferiores ao salário mínimo nacional (se esse for o único rendimento, como é óbvio).

O Mº Juiz “a quo”, com base no nº 3 do artº 824º e atendendo às necessidades da executada e seu agregado familiar, excepcionalmente, entendeu isentar de penhora, “enquanto se mantiverem as circunstâncias supra referenciadas ao nível do montante dos rendimentos auferidos e despesas que com eles suporta”, todo o seu vencimento, incluindo a parte que excede o salário mínimo nacional.
Abstractamente, não temos dúvidas sobre a legalidade da decisão.
Com efeito, até ao montante do salário mínimo nacional está excluída a necessidade de ponderação do tribunal sobre a admissibilidade da penhora por se entender que, em tais casos, a penhora afecta sempre de forma inaceitável a satisfação das necessidades do executado e seu agregado familiar. Daí para cima essa ponderação não está excluída, nada impedindo que, reunidos todos os pressupostos, excepcionalmente, o juiz decrete a isenção [Cfr. Acórdão nº 177/2002 do Tribunal Constitucional, já citado.].
A questão a colocar é a de saber se, “in casu”, estavam reunidos todos os pressupostos.
Ora, na data da prolação do despacho sob recurso o salário mínimo nacional ascendia a 374,70 € (Dec. Lei nº 242/2004, de 31/12) – actualmente ascende a 385,90 € (Dec. Lei nº 238/2005, de 30/12) – em muito pouco sendo excedido pelo vencimento da executada.
Além disso, não há nos autos notícia de que a executada possua quaisquer outros rendimentos ou bens susceptíveis de penhora, paga uma renda de casa relativamente elevada (212,00 €) e tem a cargo um filho de 13 anos de idade [Embora na 1ª instância tal não tenha sido incluído nos factos provados, a executada também alegou que o marido se encontra desempregado, sem receber qualquer vencimento.].
Em tais circunstâncias, tendo em conta as necessidades da executada e do seu agregado familiar, parece-nos estarem efectivamente reunidos os pressupostos para, excepcionalmente, “enquanto se mantiverem as circunstâncias supra referenciadas ao nível do montante dos rendimentos auferidos e despesas que com eles suporta”, isentar de penhora a totalidade do vencimento da executada.

Soçobram, pois, as conclusões da alegação do recorrente, não merecendo provimento o agravo e sendo de manter o despacho recorrido.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e em manter o despacho recorrido.
As custas são a cargo do agravante.
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Coimbra,