Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CARLOS GIL | ||
Descritores: | INQUÉRITO JUDICIAL LEGITIMIDADE SOCIEDADE COMERCIAL CONTITULARIDADE DA QUOTA HERANÇA INDIVISA | ||
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Data do Acordão: | 06/21/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA - 4º JUÍZO CÍVEL | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.21, 2\14, 216, 222, 226, 255 CSC, 1407, 2079, 2091 CC, 26, 28, 288 CPC, 20, 204 CRP | ||
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Sumário: | 1. Embora todo o sócio tenha direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato (artigo 21º, nº 1, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais), no caso de contitularidade da quota, o exercício deste direito, porque não é um direito que só individualmente possa ser exercido, deve fazer-se através de representante comum, sendo de admitir que esse representante comum possa ser o cabeça-de-casal.
2. O herdeiro de sócio de sociedade por quotas cuja herança se mostra impartilhada que não seja representante comum dos restantes contitulares da herança, ou cabeça-de-casal da mesma, não tem legitimidade activa para requerer inquérito judicial à referida sociedade. 3. A ilegitimidade activa singular é insanável e verificada após o termo dos articulados determina que o tribunal se abstenha de conhecer do mérito e absolva as requeridas da instância. 4. Não viola o direito fundamental de acesso ao direito a regra da insanabilidade da ilegitimidade singular activa, nem a previsão legal de que em caso de herança impartilhada apenas o representante comum dos contitulares da herança ou o cabeça-de-casal gozam de legitimidade activa para requerer inquérito judicial a sociedade de que o de cujus era sócio. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. Relatório R (…) intentou a presente acção especial de jurisdição voluntária, requerendo que se proceda a inquérito judicial à sociedade I (…) Lda.. O requerente alega que a sociedade requerida é uma sociedade por quotas que tem por objecto social a realização de inspecções técnicas a veículos a motor, tendo o capital social de € 24.939,90, repartido por duas quotas, de € 12.469,95 cada uma, sendo uma quota titulada por (…) e outra quota titulada por (…). Justifica a sua qualidade de sócio da I (…) por sucessão mortis causa, uma vez que a quota de que é contitular pertencia ao sócio e gerente da sociedade (…), que era seu pai e que faleceu em 18 de Julho de 2009. Invoca que, tendo detectado irregularidades praticadas pelos gerentes (…) e (…), e apercebendo-se que estes haviam deixado a gestão da sociedade aos funcionários, endereçou à gerência, em 9 de Setembro de 2009, uma carta na qual solicitou a documentação da empresa. A 14 de Outubro de 2009 deslocou-se à empresa que presta serviços de contabilidade à sociedade, para consultar a documentação, tendo então constatado outras irregularidades. Na sequência desta consulta, e porque constatou a falta de diversos documentos, a 26 de Outubro de 2009 endereçou uma nova carta à requerida, solicitando alguns esclarecimentos, solicitação que reiterou por nova missiva de 10 de Novembro de 2009, sem obter resposta. Encetou então diversas diligências, nomeadamente consultas da prestação de contas de 2008 na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, no âmbito das quais detectou mais irregularidades que denotam que a gestão da sociedade tem sido lesiva do interesse social. Por fim, no dia 7 de Janeiro de 2010, através da sua advogada, endereçou nova carta à gerência em que reiterou o pedido de documentos. Alega ainda que se não fossem as diligências que efectuou, desconheceria quase por completo a situação financeira e contabilística da sociedade requerida, o que representa uma violação do seu dever de informação, e que pretende se proceda a inquérito a fim de descobrir as irregularidades apontadas e outras que se venham a apurar. Invoca por fim que, tendo adquirido a qualidade de sócio por ser herdeiro do titular da quota social, tem legitimidade para, desacompanhado dos demais herdeiros, pedir a realização de inquérito judicial, requerendo contudo à cautela, caso assim se não entenda, a intervenção principal provocada dos demais herdeiros. Foram citados para contestar a acção a requerida I (…) Lda. e os gerentes (…) A requerida I (…) Lda. apresentou contestação, começando por invocar a ilegitimidade do requerente para requerer o presente inquérito judicial, por considerar que este não pode exercer autonomamente os direitos sociais emergentes da quota social cuja titular é a herança indivisa, e que, mesmo que se configure esta situação como contitularidade da quota, os respectivos contitulares apenas podem exercer os direitos a ela inerentes, nos termos do artigo 222º do Código das Sociedades Comerciais, através de representante comum, que no caso será a cabeça-de-casal, mãe do requerente. Acrescenta que, mesmo que assim não fosse, o requerente só teria legitimidade para requerer inquérito relativamente aos factos ocorridos a partir de 18 de Julho de 2009, data da morte do seu pai. Mais invoca que a petição inicial é inepta por inexistência de pedido, porquanto o requerente não indica as concretas informações societárias que lhe não foram facultadas ou que lhe foram facultadas de forma deficiente. Refere que o único fundamento que divisa para o pedido de inquérito judicial por entrave ao exercício do direito de informação se reporta às missivas onde se solicita a acta que aprovou as contas respeitantes ao exercício de 2008, as quais não foram objecto de resposta por se desconhecer o mandato conferido à ilustre mandatária que as subscreveu. Conclui pelo indeferimento liminar do pedido de inquérito, seja por ilegitimidade do requerente, seja por ineptidão da petição inicial, ou, se assim se não entender, pela inverificação dos pressupostos exigidos pelo artigo 216º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, bem como pelo indeferimento do pedido de intervenção principal provocada. Por seu turno, também a gerente (…) contestou a acção, aderindo para o efeito à contestação da sociedade requerida e reiterando ainda argumentos no sentido da ilegitimidade do requerente e da inexistência de fundamentos para se proceder a inquérito. Mais refutou os factos alegados pelo requerente relativos à má gestão da sociedade e às supostas irregularidades cometidas, e concluiu pelo indeferimento dos pedidos formulados. O requerente respondeu alegando que o pedido formulado consiste no pedido de realização de inquérito judicial à sociedade, estando o mesmo fundamentado na averiguação de determinados pontos de facto indicados ao longo do requerimento, e que, caso se entenda que é destituído de legitimidade, deverão ser chamados os restantes herdeiros. Foi proferido despacho saneador que declarou a ilegitimidade activa do requerente e, em consequência, não se determinou a realização de inquérito judicial à sociedade I (…), Lda.. Inconformado com esta decisão, o requerente interpôs recurso de apelação contra a mesma, oferecendo as seguintes conclusões: (…)
Os recorridos contra-alegaram pugnando pela total improcedência do recurso. Ordenou-se a baixa dos autos à primeira instância a fim de serem conhecidas as arguidas nulidades da decisão sob censura e, conhecidos os alegados vícios, colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora apreciar e decidir. 2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil 2.1 Nulidade da decisão sob censura por contradição dos fundamentos com a decisão e por omissão de pronúncia; 2.2 Legitimidade singular do recorrente para requerer inquérito judicial a sociedade por quotas de que era sócio o seu falecido progenitor e cuja herança ainda não foi objecto de partilha; 2.3 Conformidade constitucional com o direito fundamental de acesso ao direito da conclusão da insanabilidade da ilegitimidade singular e da interpretação de que o requerente enquanto herdeiro de sócio de sociedade por quotas e cuja herança se mostra impartilhada não tem legitimidade para requerer inquérito judicial à referida sociedade. 3. Fundamentos de facto enumerados na decisão sob censura e que não foram impugnados pelo recorrente, não se divisando qualquer razão legal para a sua alteração 3.1 A sociedade I (…) Lda. é uma sociedade por quotas que tem por objecto social a realização de inspecções técnicas a todos os veículos a motor. 3.2 A sociedade foi constituída em 22 de Setembro de 1994, com o capital social de € 24.939,90, repartido por duas quotas de € 12.469,95 cada, sendo uma titulada por (…) e outra titulada por (…). 3.3 (…) faleceu em 11 de Dezembro de 2006, tendo a 29 de Dezembro sido registada a transmissão da sua quota, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de (…). 3.4 (…) faleceu em 18 de Julho de 2009, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, no estado de casado no regime da comunhão geral de bens com (…), deixando como herdeiros esta e os filhos de ambos, (…) 3.5 Em 7 de Setembro de 2009 foi registada a transmissão da quota de (…) em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de (…) 4. Fundamentos de direito 4.1 Da nulidade da decisão sob censura por contradição dos fundamentos com a decisão e por omissão de pronúncia (…) 4.2 Da legitimidade singular do recorrente para requerer inquérito judicial a sociedade por quotas de que era sócio o seu falecido progenitor e cuja herança ainda não foi objecto de partilha “Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam” (artigo 2024º do Código Civil). “Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade” (artigo 2032º, nº 1, do Código Civil). No caso em apreço, não se questiona a qualidade de herdeiro do recorrente nem a sua capacidade sucessória, sendo certo que está demonstrado que, juntamente com (…) beneficia de um registo de aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito da quota que era da titularidade de seu falecido pai, (…). Por força do referido registo de aquisição e da sua qualidade de sucessor de sócio falecido da sociedade recorrida, o recorrente é contitular da quota de que era titular o de cujus. Note-se, como justamente se assinala na decisão recorrida, que se trata de uma contitularidade de mão comum[1], não derivando daquele registo de aquisição uma titularidade directa daquela quota, já que só após efectivação da partilha e da liquidação da herança se virá a determinar se e a quem é transmitida a quota social, sempre também com observância do que estiver previsto no pacto social (vejam-se os artigos 225º e 226º, ambos do Código das Sociedades Comerciais). A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, compete ao cabeça-de-casal (artigo 2079º do Código Civil). Salvo os casos que respeitem à prática de actos de administração por parte do cabeça-de-casal, à entrega de bens que o mesmo cabeça-de-casal deva administrar, à cobrança de dívidas activas da herança pelo cabeça-de-casal, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente, à venda pelo cabeça-de-casal de frutos ou bens deterioráveis ou de venda pelo cabeça-de-casal de frutos não deterioráveis para satisfação das despesas do funeral e sufrágios e de administração, sem prejuízo do que se prevê em sede de petição de herança, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (artigo 2091º, nº 1, do Código Civil). O requerente, por força da sua qualidade sucessória, juntamente com outros herdeiros do sócio falecido, é contitular da quota que ao de cujus pertencia, constando do Código das Sociedades Comerciais o regime jurídico aplicável à contitularidade da quota. Assim, em termos gerais, os contitulares da quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum (artigo 222º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais). “O representante comum, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares, sendo a deliberação dos contitulares tomada por maioria, nos termos do artigo 1407º, nº 1, do Código Civil, salvo se outra regra se convencionar e for comunicada à sociedade” (artigo 223º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais). Assim, por força das regras legais que se acabam de citar, no domínio da contitularidade de quota de uma sociedade por quotas, no que respeita o exercício dos direitos a ela inerentes, não vigora a regra geral do litisconsórcio necessário prevista, em termos gerais, no artigo 2091º, nº 1, do Código Civil. Embora todo o sócio tenha direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato (artigo 21º, nº 1, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais), no caso de contitularidade da quota, o exercício deste direito, porque não é um direito que só individualmente possa ser exercido[2], deve ser exercido através de representante comum[3], sendo de admitir que esse representante comum possa ser o cabeça-de-casal[4]. No caso dos autos, visando-se a efectivação do direito à informação no âmbito de uma sociedade por quotas, a norma geral que se acabou de citar é integrada pelo que vem previsto no artigo 214º do Código das Sociedades Comerciais. No entanto, independentemente do figurino próprio do direito à informação dos sócios no quadro das sociedades por quotas, a questão que se colocou em primeira instância e que neste tribunal de novo se coloca é a de não poder um contitular de um quota social que não seja representante comum nos termos da lei, ou cabeça-de-casal por si só exercer o direito à informação, não ser sujeito activo de tal direito. Na verdade, não sendo o recorrente representante comum dos contitulares da quota, nem sendo cabeça-de-casal (havendo cônjuge sobrevivo, o cabeçalato compete à esposa do falecido sócio – artigo 2080º, nº 1, alínea a), do Código Civil), forçosa é a conclusão de que o recorrente não tem o direito a obter por si só informações sobre a sociedade de que é contitular. A legitimidade processual activa, enquanto pressuposto processual subjectivo, afere-se pelo interesse directo do autor em demandar (artigo 26º, nº 1, do Código de Processo Civil), aferindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da acção (artigo 26º, nº 2, do Código de Processo Civil). Supletivamente, a lei processual civil prevê que a legitimidade seja aferida em função da configuração da relação controvertida por parte do autor (artigo 26º, segunda parte do nº 3, do Código de Processo Civil). Porém, esta configuração é supletiva, só operando na falta de indicação da lei em contrário. Ora, no caso em apreço, resulta do regime jurídico da contitularidade da quota, que o direito à informação não pode ser exercido por cada um dos contitulares individualmente, cabendo esse exercício a um representante comum ou ao cabeça-de- casal. No caso em apreço, o recorrente não é representante comum dos restantes contitulares, nem tem a qualidade de cabeça-de-casal, não podendo assim exercer o direito à informação singularmente, como pretendeu nestes autos, sendo por isso destituído de legitimidade activa para o exercício desse direito. E porque se trata de um direito que apenas pode ser exercido por um dos contitulares, seja ele representante comum, seja cabeça-de-casal, não se nos depara uma ilegitimidade activa decorrente da falta de intervenção no procedimento de outros sujeitos que devam estar na lei (litisconsórcio necessário – artigo 28º do Código de Processo Civil), vício sanável nos termos previstos nos artigos 265º, nº 2, 320º, alínea a) e 325º, nº 1, todos do Código de Processo Civil. Do que se trata é de estar em juízo uma pessoa que não tem o direito de exercer o direito que pretende exercer, devendo estar na lide, no lado activo, outra pessoa. Nesta situação, não existe nenhum incidente de intervenção de terceiros que permita a substituição de uma parte por outra[5], constituindo-se por isso a ilegitimidade singular como uma excepção dilatória insuprível de conhecimento oficioso (artigos 26º, nº 1, 269º, nº 1, a contrario sensu, 288º, nº 1, alínea d), 320º, alínea a), 493º, nº 2, 494º, alínea e) e 495º, todos do Código de Processo Civil). Ocorrendo ilegitimidade singular, em sede de inquérito judicial e tendo-se já iniciado a instância (artigo 267º, nº 2, do Código de Processo Civil), deve o tribunal abster-se de conhecer do pedido e absolver os requeridos da instância (artigo 288º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil). No caso em apreço, não é viável a quebra do dogma da prioridade do conhecimento das excepções dilatórias, nos termos previstos no artigo 288º, nº 3, do Código de Processo Civil, pois que o interesse que a legitimidade singular visa tutelar não é o do recorrente, pelo que, ainda que se configurasse a possibilidade da decisão do mérito da causa ser totalmente favorável ao recorrente, nunca se deveria desconsiderar a verificação da excepção dilatória e proferir decisão de mérito no aludido sentido. 4.2 Da conformidade constitucional com o direito fundamental de acesso ao direito da conclusão da insanabilidade da ilegitimidade singular e da interpretação de que o requerente enquanto herdeiro de sócio de sociedade por quotas e cuja herança se mostra impartilhada não tem legitimidade para requerer inquérito judicial à referida sociedade Em via de recurso não podem ser suscitadas questões novas, questões que o tribunal recorrido não pudesse e não devesse ter apreciado. O recurso é um meio processual que visa reapreciar uma decisão proferida num certo quadro factual e não a obtenção de uma decisão sobre uma questão que ainda não havia sido suscitada e que não seja de conhecimento oficioso[6]. Neste contexto, coloca-se o problema de saber se a inconstitucionalidade ora suscitada pelo recorrente constitui ou não uma questão nova. A excepção dilatória de ilegitimidade do recorrente, bem como a insanabilidade de tal vício foi logo suscitada pelas recorridas nas contestações que ofereceram e tendo o recorrente oferecido resposta a tal matéria, teve oportunidade processual de nesse articulado se pronunciar sobre a questão que ora vem colocar em via de recurso. Neste circunstancialismo, parece não oferecer dúvida que estamos face a uma questão nova que não foi oportunamente suscitada pelo recorrente na fase dos articulados. No entanto, a conclusão que antecede não basta para exonerar este tribunal de conhecer o vício em causa, sendo necessário verificar se o mesmo é ou não de conhecimento oficioso. Ora, uma vez que nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204º da Constituição da República), afigura-se-nos que se trata de questão de conhecimento oficioso. Por isso, não obstante a questão da constitucionalidade não ter sido suscitada nos articulados, em primeira instância, apenas sendo invocada em sede recursiva, ir-se-á conhecer da mesma[7]. Nos termos do disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.” “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa). A garantia judiciária inerente ao direito fundamental de acesso ao direito encontra concretização no Código de Processo Civil, prevendo-se no nº 1 do artigo 2º do Código de Processo Civil que “A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.” No entanto, a garantia de acesso aos tribunais para defesa dos direitos fundamentais, demais direitos e interesses legalmente protegidos não significa que o legislador ordinário esteja vinculado a uma irrestrita admissibilidade de que toda e qualquer pretensão seja accionável judiciariamente, independentemente da verificação de determinados requisitos ou pressupostos. Assim, a este propósito, afirma-se na doutrina constitucional, que o “legislador ordinário tem competência para delimitar os pressupostos ou requisitos processuais de que depende a efectivação da garantia de acesso aos tribunais, incluindo aqueles que se prendem com a legitimidade”[8]. Porém, na previsão dos requisitos ou pressupostos necessários para a efectivação da garantia judiciária, o legislador ordinário está vinculado, nomeadamente, às exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, nas vertentes da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, em sentido restrito[9]. Assim, no caso em apreço, importa verificar se a insanabilidade da ilegitimidade singular activa, bem como a ilegitimidade activa de herdeiro de sócio de sociedade por quotas e cuja herança se mostra impartilhada para requerer inquérito judicial à referida sociedade se mostram conformes com os ditames que se acabaram de citar. Começando a nossa análise pelo regime jurídico da ilegitimidade singular na vertente da sua insanabilidade, dir-se-á que, na nossa perspectiva, o regime processual em causa se mostra conforme com a Constituição da República Portuguesa e os seus princípios, não se mostrando violado nenhum dos requisitos constitucionais das leis restritivas dos direitos fundamentais. A nosso ver, um regime processual que previsse a sanabilidade da ilegitimidade singular é que enfermaria de inconstitucionalidade material, na medida em que iria vincular um sujeito processual a um procedimento judicial instaurado por outro, assim se violando a liberdade de decisão do chamado à lide instaurada por outrem, de forma injustificada, pois não se vê que a opção do recorrente se deva sobrepor à dos restantes contitulares, com quotas hereditárias iguais à sua. Apreciemos agora a conformidade constitucional da interpretação de que o herdeiro de sócio de sociedade por quotas e cuja herança se mostra impartilhada não tem legitimidade activa para requerer inquérito judicial à referida sociedade. Esta arguição da inconstitucionalidade do recorrente envolve, necessariamente, e, pelo menos, a arguição da inconstitucionalidade material do disposto no artigo 222º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, pois é esta a fonte normativa da interpretação que o recorrente aqui questiona. Também de algum modo se questiona a conformidade constitucional da norma legal que confere ao cabeça-de-casal de herança impartilhada o exclusivo da administração dos bens da herança (artigo 2087º do Código Civil). Ora, salvo melhor opinião, a solução desenhada na norma legal citada em primeiro lugar corresponde a uma regulação adequada aos interesses em presença. Na verdade, uma sociedade comercial, que não seja unipessoal, envolve necessariamente um potencial de conflitualidade entre os diversos titulares das participações sociais, pois a visão quanto à melhor forma de realização do interesse social nem sempre se apresenta uniforme, havendo que contar com a existência de variados pontos de vista. Ora, esse potencial de conflitualidade exaspera-se quanto um titular de uma participação social falece e lhe sucedem diversos herdeiros. Permitir que a conflitualidade entre os herdeiros de uma participação social pudesse manifestar-se no exercício dos diversos direitos inerentes à participação social do sócio falecido, particularmente no que respeita o exercício dos direitos sociais, poderia conduzir a uma conflitualidade paralisante da actividade da sociedade a que respeita a participação social do sócio falecido. Também por isso, ajuizando agora da conformidade constitucional da norma legal relativa aos poderes de administração do cabeça-de-casal, no domínio do fenómeno sucessório, o legislador teve o cuidado de entregar ao cabeça-de-casal a tarefa da administração dos bens da herança, competindo aos restantes titulares o direito de fiscalizar essa actividade do cabeça-de-casal, tendo ao seu dispor para o efeito e se necessário, o expediente de remoção do cabeça-de-casal (artigo 2086º do Código Civil). Não fora assim, dadas as naturais e persistentes controvérsias entre a generalidade dos herdeiros, como o caso dos autos bem evidencia, colocar-se-ia em perigo a própria conservação da herança. Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que quer a insanabilidade da ilegitimidade singular, quer a ilegitimidade activa do herdeiro de sócio de sociedade por quotas e cuja herança se mostra impartilhada para requerer inquérito judicial à referida sociedade não colidem com o direito fundamental de acesso ao direito. Por tudo quanto fica exposto, conclui-se pela total improcedência do recurso e pela confirmação da douta decisão sob censura. 5. Dispositivo Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por R (…) e, em consequência, confirmam integralmente a douta decisão recorrida proferida a 08 de Novembro de 2010. Custas do recurso de apelação a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais. *** O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário. Coimbra, 21 de Junho de 2011
Carlos Gil ( Relator ) Fonte Ramos Carlos Querido [1] Daí que, em rigor, nenhum dos contitulares a título hereditário tenha a qualidade de sócio, como justamente observa Menezes Cordeiro in Manual de Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, 2ª edição 2007, Almedina, página 350, IV. [2] Sobre estes direitos vejam-se: Sociedades por Quotas, Volume I, 2ª edição, Almedina 1989, Raul Ventura, páginas 502 e 503; Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, 2011, coordenação de António Menezes Cordeiro, página 648 e notas 7 e 8. [3] Assim veja-se, O Poder de Informação dos Sócios nas Sociedades Comerciais, Almedina 2009, Diogo Drago, páginas 284 e 285. [4] Neste sentido veja-se, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, 2011, coordenação de António Menezes Cordeiro, página 648, nota 7, por identidade de razão, segundo cremos. [5] E bem se compreende que assim seja porquanto, admitir tal possibilidade, significaria a admissão, na generalidade dos casos, de uma convolação para uma relação jurídica diversa daquela que inicialmente era objecto do litígio, sem se dar ao chamado a oportunidade de decidir da instauração ou não do pleito em causa, vinculando-a à atitude eventualmente imprudente ou temerária do primitivo autor destituído de legitimidade activa. [6] Veja-se, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e ampliada, Almedina 2008, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 25 e 26, número 5 e páginas 94 e 95, número 6. [7] No recurso de constitucionalidade não é pacífica a delimitação do momento próprio em que a questão da constitucionalidade deve ser suscitada para que o recorrente tenha legitimidade para recorrer para o tribunal constitucional (sobre esta matéria vejam-se: Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora 2010, 4ª edição, J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, páginas 947 a 949, anotação XII; Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina 2010, Carlos Lopes do Rego, páginas 75 a 90). [8] Citação extraída de Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora 2010, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 436, alínea c), da anotação XIII. [9] A este propósito veja-se Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora 2007, 4ª edição, J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, páginas 392 e 393, anotação XII. |