Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | RETENÇÃO ILÍCITA DE CRIANÇA REGRESSO DA CRIANÇA | ||
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Data do Acordão: | 09/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA POR UNANIMIDADE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1.º, 3.º, 12.º E 13.º DA CONVENÇÃO SOBRE OS ASPETOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS | ||
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Sumário: | I - É objetivo da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em 25.10.1980 pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e aprovada pelo Estado Português pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11.5, contrariar o uso de meios de autotutela em matéria de exercício das responsabilidades parentais.
II - O referido mecanismo convencional visa combater o flagelo das deslocações ilícitas de crianças, organizando para o efeito uma verdadeira ação de entrega da criança ilicitamente retida no estrangeiro, destinada a permitir o regresso imediato ao Estado da sua residência habitual, ação que não contende com a definição das responsabilidades parentais dos progenitores (ou de outras pessoas), mas visando apenas sancionar o carácter ilícito da deslocação (ou da retenção) da criança, evitando que a passagem do tempo venha consolidar as situações constituídas em violação de direitos dos progenitores ou de terceiros, e procurando neutralizar uma via de facto III - Impõe-se uma reação pronta e rápida, que frustre os objetivos prosseguidos pelo infrator do direito de custódia, neutralizando a alteração da situação por ele ´contra legem` criada, e deixando para os tribunais do país da residência habitual da criança a discussão sobre qual o progenitor melhor colocado para exercer as responsabilidades parentais. IV - Daí que o procedimento instaurado seja simples, não obrigando, em princípio, ao exame da problemática relativa ao superior interesse da criança. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 29.3.2022, o Ministério Público[1] veio propor o presente procedimento de entrega judicial da criança AA, com residência habitual na Av. ..., ... ..., Bélgica, contra BB, casada, atualmente a residir na Rua ..., ..., .... Alegou, em síntese: o menor nasceu .../.../2021, em ..., na Bélgica; é filho da requerida e de CC, casados entre si, residindo com o AA, na Bélgica, na morada acima identificada; trabalham na Bélgica, sendo que o pai é médico e a mãe é enfermeira; no dia 13.02.2022, a progenitora viajou para Portugal com o AA, para uma visita de cerca de duas semanas aos seus familiares, ficando acordado entre os progenitores do AA, que o pai viria a Portugal no dia 21 de fevereiro e regressariam os três à Bélgica; a progenitora algumas horas antes do regresso, informou o progenitor que nem ela nem o filho regressariam à Bélgica; a Autoridade Central Portuguesa (Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais/DGRSP) tentou o regresso voluntário da criança à Bélgica, sem sucesso; a permanência do menor em território português deve considerar-se ilícita por ofensa do direito conjunto das responsabilidades parentais durante o casamento; a violação desse exercício conjunto, expressamente prevista no art.º 3º da Convenção de Haia, impõe que o Tribunal adote procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança à sua residência habitual, para que fique à guarda de ambos os pais. Concluiu, pedindo que fosse ordenado: a) A entrega voluntária do menor; b) Não sendo a mesma possível, o prosseguimento dos autos para apreciação do requerimento do progenitor; c) A suspensão da Ação de Regulação das Responsabilidades Parentais/R (processo 400/22.5T8GRD), de acordo com o disposto no art.º 16º da Convenção de Haia. Por despacho de 30.3.2022, foi determinada a alteração da forma de processo (para “processo de entrega judicial de menor”) e a autuação por apenso aos referidos autos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais. A requerida prestou declarações e prescindiu do prazo para contestar (cf. ata de 01.4.2022[2]). Após a promoção da Exma. Magistrada do M.º Público, de 05.4.2022, a pronúncia dos progenitores e a junção de cópia de duas decisões proferidas pelos Tribunais Belgas (a 01.4.2022 e 04.4.2022) (cf. fls. 40, 42, 50, 52 e 69), por sentença de 04.5.2022, o Tribunal a quo decidiu: decretar a entrega imediata do menor AA ao seu país de residência, diligenciando-se pela sua entrega à pessoa do progenitor; sem prejuízo, caso a progenitora esteja na disponibilidade de viajar com o AA para a Bélgica, onde tinha uma vida profissional estável, contacte as autoridades belgas para criar as condições da progenitora regressar àquele país em segurança e lhe sejam concedidos todos os apoios existentes no âmbito da proteção das vítimas de violência doméstica naquele país. Inconformada, a progenitora/requerida apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - Existem elementos de facto que permitam considerar preenchida a alínea b) do art.º 13º da Convenção de Haia de 1980 Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, que consagra exceção ao princípio do regresso imediato da criança. 2ª - O pai do menor sempre manifestou desinteresse pelo filho. As referências afetivas com o pai são mínimas ou inexistentes. No pós-parto nunca auxiliou a Requerente com o que quer que fosse, nunca se disponibilizou a ir às consultas com o menor, não manifesta interesse em brincar com filho, não prepara a alimentação para o filho (sendo que estão a ser introduzidos os alimentos líquidos e sólidos), raramente deu banho ao filho, não o veste para ir para a creche, não passeia com o filho. A mãe do menor sofre violência física e psicológica por parte do seu marido e pai do menor, o que sucede, com particular incidência, desde o nascimento do menor. 3ª - A requerida não pode regressar à Bélgica devido aos comportamentos abusivos e ilícitos de que é alvo por parte do marido, sendo em Portugal (na ...) que se encontra protegida e no seu seio familiar. A requerida teme pela sua própria vida. Reconhece que os maus tratos de que é alvo por parte do pai do menor são prejudicais ao desenvolvimento saudável e segurança do menor. 4ª - Considerando que está envolvida uma criança e que pode haver risco grave para esta de ficar sujeita a perigo, quer de ordem psíquica quer de ordem física, no seu regresso, podendo ainda este constituir uma situação intolerável para a mesma, criou a Convenção a válvula de segurança consagrada no art.º 13º, alínea b) e bem assim a prevista no art.º 12º. 5ª - O TEUDH, no Acórdão proferido pela 1ª Secção, no Processo n.º 66775/11, a 05.02.2015, decidiu que a Convenção de Haia deve ser aplicada de acordo com os princípios de direito internacional, em particular os relativos à proteção internacional dos direitos do homem e, no que respeita mais precisamente às obrigações positivas que o art.º 8º, n.º 2 da Convenção Europeia. No referido aresto aponta-se como linhas a seguir a definição do justo equilíbrio que deve existir entre os interesses concorrentes dos progenitores, da ordem pública e os interesses da criança, sendo que a prevalência é a do «interesse superior da criança.» 6ª - Se é certo que resulta dos autos que o menor reconhece o pai e que este nunca o maltratou fisicamente, também se provou que o pai desde fevereiro nunca visitou o filho em Portugal. É a requerida que, todos os dias, informa o pai das atividades do menor, enviando-lhe, também, fotografias. Também ficou provado que o menor tem um forte relacionamento afetivo com a mãe, depreendendo-se, facilmente, do contexto factual que a mãe tem sido a principal cuidadora da criança. 7ª - Esta vinculação da criança à figura da mãe que, logo após o nascimento, no confronto com a instabilidade decorrente da situação de violência e maus tratos físicos e psicológicos perpetrados pelo pai do menor, cuidou do filho a tempo inteiro e ponderada a não contribuição ativa do pai para demonstrar que tem uma vinculação real, efetiva permanente, altruísta, consistente e securitária com condições reais de apoio ao filho (vinculação essa que a ser demonstrada afastaria a alegação da mãe de que é a figura mais próxima), levam-nos a ponderar que é sério e grave o risco de elevado sofrimento e desequilíbrio emocional para a criança, consequência do seu forçado afastamento da mãe de tal modo que um tal sofrimento constitui uma situação que não deve razoavelmente impor ao filho. 8ª - A violência verbal e psicológica exercida recorrentemente por um progenitor sobre o outro, na presença dos filhos constitui também ela uma forma de violência sobre os próprios filhos, prejudicial ao seu são e normal desenvolvimento. 9ª - Não obstante o art.º 12º, n.º 1 da Convenção consagrar como pressuposto que entre a data da deslocação ilícita e o início do processo tenha decorrido menos de 1 ano, o certo é que este período de tempo não deve deixar de balizar como pressuposto fáctico outras ponderações necessárias, como sejam as que ora se impõem. O AA reside com a mãe e os avós maternos numa habitação com todas as comodidades, apresentando-se sempre bem cuidado e tendo tido uma boa integração. O fim deste processo não é determinar o modo como as responsabilidades parentais desta criança vai ser definido, mas sim o de restabelecer a licitude sem que daí advenham custos inadmissíveis ou desproporcionados, para o filho. Os fins que norteiam a aplicação da Convenção de Haia cedem na presença de um fim mais relevante e superior, o superior interesse do menor. 10ª - A ligação demonstrada no processo do filho à mãe com quem sempre viveu, levam-nos ao reconhecimento de que neste caso se verifica a situação de exceção do art.º 13º alínea b) do Convenção. O limite do que “razoavelmente a criança deve suportar” conduz-nos ao princípio de que a criança não deve passar por situações de sofrimento, de dor e de perda, sobretudo em casos como o presente em que este sofrimento poderia ser inútil face a uma decisão sempre possível de que viesse a ser atribuída a custódia da criança à mãe. 11ª - Afastar o menor da mãe, a sua figura de referência, não salvaguarda os seus interesses e uma decisão proferida em sentido contrário não terá em conta o interesse superior da criança. Ao interesse superior da criança se refere também o Princípio 2º da Declaração Universal dos Direitos da Criança, estabelecendo que na promulgação de leis que tenham por fim proteger a criança “a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”. Este princípio foi incorporado no n.º 2 do art.º 24º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, estatuindo que “Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”. 12ª - A proteção dos direitos fundamentais, constitucionalmente, também protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, deve prevalecer sobre quaisquer normas processuais ou procedimentais, ainda que decorrentes de Convenções Internacionais, como sejam as normas definidoras da competência dos tribunais (art.º 8º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa). 13ª - A decisão recorrida viola as normas constantes dos art.ºs 12º e 13º, alínea b) da Convenção de Haia; Princípio 2º da Declaração Universal dos Direitos da Criança; n.º 2 do art.º 24º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; art.º 8º, n.º 2 da Convenção Europeia; art.ºs 8º, n.º 1, 24º, 25º e 27º da Constituição da República Portuguesa; os princípios norteadores da Convenção de Istambul. Remata dizendo que deve ser revogada a sentença recorrida, devendo o menor manter-se em Portugal na companhia da mãe. A Exma. Magistrada do M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, se o caso em análise se enquadra na previsão do art.º 13º, alínea b), da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.[3] * II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: 1) BB e CC, são pais do menor AA, nascido a .../.../2021. 2) Os pais do AA são casados[4], residindo, até 13.01.2022, juntamente com o AA, na Bélgica. 3) Enquanto casados, o exercício das responsabilidades parentais do AA cabe a ambos os progenitores. 4) O progenitor trabalha na Bélgica, sendo médico de profissão. 5) A progenitora antes de deslocar para Portugal, exercia a profissão de enfermeira na Bélgica, onde ainda mantem contrato de trabalho válido, apesar de, no momento, não se encontrar a exercer a sua profissão. 6) No dia 13.02.2022, a progenitora viajou para Portugal com o menor, para uma visita de cerca de duas semanas aos seus familiares. 7) Ficando acordado entre os progenitores do menor, que o pai viria a Portugal no dia 21 de fevereiro e regressariam os três à Bélgica. 8) Porém, a progenitora antes do regresso, informou o progenitor que nem ela nem o filho de ambos regressariam à Bélgica. 9) A Autoridade Central Portuguesa (DGRSP) tentou o regresso voluntário da criança à Bélgica, mas sem sucesso. 10) A progenitora requereu neste Tribunal a regulação do exercício das responsabilidades parentais do filho. 11) Em 31.3.2022 a requerida prestou declarações junto dos serviços do M.º Público, no âmbito do processo de violência doméstica que corre termos sob o n.º 74/22..... 2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão. Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (art.º 12º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9 (RGPTC). Como tal, nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna), a que melhor serve os interesses em causa; salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes[5] (cf. os art.ºs 987º e 988º, n.º 1, do CPC); o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes - só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias (art.º 986º, n.º 2 do CPC). 3. Do RGPTC importa destacar, ainda, entre outras, as seguintes disposições: - O Regime Geral do Processo Tutelar Cível regula o processo aplicável às providências tutelares cíveis e respetivos incidentes (art.º 1º). - Para efeitos do RGPTC, constituem providências tutelares cíveis, designadamente: a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes; a entrega judicial de criança [art.º 3º, alíneas c) e e)]. - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: Simplificação instrutória e oralidade - a instrução do processo recorre preferencialmente a formas e a atos processuais simplificados [art.º 4º, n.º 1, alínea a)]. - Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão (art.º 28º, n.º 1). Para efeitos do disposto no presente artigo, o tribunal procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes (n.º 3). 4. A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25.10.1980, aprovada pelo Decreto do Governo Português n.º 33/83, de 11.5, - afirmando os Estados signatários a sua firme convicção de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia; e desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita - dispõe, nomeadamente: - A presente Convenção tem por objecto: a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; b) Fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante (art.º 1º). - Os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respetivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência (art.º 2º). - A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) Tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado (art.º 3º). - A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita (art.º 4º, 1ª parte). - Nos termos da presente Convenção: a) O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência; b) O «direito de visita» compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside (art.º 5º). - Cada Estado Contratante designará uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção (art.º 6º, 1ª parte). - As autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respetivos Estados, por forma a assegurar o regresso imediato das crianças e a realizar os outros objetivos da presente Convenção (art.º 7º, 1ª parte). Em particular, deverão tomar, quer diretamente, quer através de um intermediário, todas as medidas apropriadas para: a) Localizar uma criança deslocada ou retida ilicitamente; b) Evitar novos danos à criança, ou prejuízos às partes interessadas, tomando ou fazendo tomar medidas provisórias; c) Assegurar a reposição voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável; f) Introduzir ou favorecer a abertura de um procedimento judicial ou administrativo que vise o regresso da criança ou, concretamente, que permita a organização ou o exercício efetivo do direito de visita; h) Assegurar no plano administrativo, se necessário e oportuno, o regresso sem perigo da criança (2ª parte do mesmo art.º). - Qualquer pessoa, instituição ou organismo que julgue que uma criança tenha sido deslocada ou retirada em violação de um direito de custódia pode participar o facto à autoridade central da residência habitual da criança ou à autoridade central de qualquer outro Estado Contratante, para que lhe seja prestada assistência por forma a assegurar o regresso da criança (art.º 8º, 1ª parte). Pedido que deverá conter, designadamente, a) Informação sobre a identidade do requerente, da criança e da pessoa a quem se atribua a deslocação ou a retenção da criança; b) Se possível, a data de nascimento da criança (2ª parte do mesmo art.º). - A autoridade central do Estado onde a criança se encontrar deverá tomar ou mandar tomar todas as medidas apropriadas para assegurar a reposição voluntária da mesma (art.º 10º). - As autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança. Se a respetiva autoridade judicial ou administrativa não tiver tomado uma decisão no prazo de 6 semanas a contar da data da participação, o requerente ou a autoridade central do Estado requerido, por sua própria iniciativa ou a solicitação da autoridade central do Estado requerente, pode pedir uma declaração sobre as razões da demora. (art.º 11º, 1ª parte). - Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do art.º 3º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança (art.º 12º, 1º parágrafo). A autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente (2º parágrafo). - Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto (art.º 13º). - Depois de terem sido informadas da transferência ilícita ou da retenção de uma criança no contexto do artigo 3º, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou onde esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia sem que seja provado não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para regresso da criança, ou sem que tiver decorrido um período razoável de tempo sem que haja sido apresentado qualquer requerimento em aplicação do prescrito pela presente Convenção (art.º 16º). - Qualquer decisão sobre o regresso da criança, tomada ao abrigo da presente Convenção, não afeta os fundamentos do direito de custódia (art.º 19º). - O regresso da criança de acordo com as disposições contidas no artigo 12º poderá ser recusado quando não for consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (art.º 20º). - Todo o pedido apresentado às autoridades centrais ou, diretamente, às autoridades judiciais ou administrativas de um Estado Contratante ao abrigo da presente Convenção, bem como qualquer documento ou informação a ele anexado ou que seja fornecido por uma autoridade central, deverão ser recebidos pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas dos Estados Contratantes (art.º 30º). - A presente Convenção não impedirá que outro instrumento internacional vigore entre o Estado de origem e o Estado requerido, nem que o direito não convencional do Estado requerido seja invocado para obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida, ou para organizar o direito de visita (art.º 34º, 2ª parte). 5. Como noutras situações com alguma similitude, o presente caso suscita a definição dos poderes-deveres dos progenitores em relação à criança, mas também a tomada de diligências inerentes a uma situação de rapto internacional com a intervenção das Autoridades Centrais dos Estados envolvidos, independentemente da necessidade da eventual adoção de mecanismos de gestão e adequação processual. Ademais, estando-se no campo dos processos de jurisdição voluntária, regulados nos art.ºs 986º e seguintes do CPC (cf. art.º 12º do RGPTC), mais se reclama uma actuação sábia e ponderada dos juízes, sabendo-se que não têm aqui a missão de resolver uma típica questão de direito, mas, antes, a de encontrar, dentro das várias soluções possíveis, a melhor resposta para um problema.[6] 6. Tratando-se de implementar os necessários procedimentos tendentes à entrega da criança, com urgência, despoletada pelo rapto da menor perpetrado pela requerida[7], releva, sobremaneira, o desiderato de dar a melhor resposta ao problema levado a Tribunal, norteados pelo indeclinável e primeiro princípio do respeito pelo interesse da menor (com vista ao seu desenvolvimento integral e harmonioso); importa a defesa imediata dos interesses e dos direitos das crianças. Só assim se poderá executar o objetivo de combater o recurso ao rapto como forma de criar uma situação de facto contrária ao regime do exercício das responsabilidades parentais (cf. art.ºs 1901º e seguintes do CC), em defesa do superior interesse da criança e de acordo com os princípios específicos da jurisdição voluntária.[8] 7. Não se podendo afirmar que a requerida/recorrente haja impugnado a factualidade dada como provada (e sendo certo que nada obsta a que o Tribunal atenda a todos os elementos juntos aos autos), afigura-se que se deverá ter presente a fundamentação probatória apresentada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, destacando-se: «A convicção do tribunal assentou na prova documental junta aos autos, designadamente (...), expediente remetido pelas DGRSP a fls. 5v a 21v, auto de inquirição de fls. 31 a 36. Teve-se em consideração as declarações prestadas pela progenitora, a qual referiu desde logo, não pretende regressar à Bélgica com o filho nem entregar o filho ao progenitor. Mais esclareceu que foi trabalhar para a Bélgica em 2014, apenas vindo a Portugal nos períodos de descanso laboral. Em 2016 iniciou uma relação amorosa com o requerente, tendo vindo a casar em Março de 2020[9], na Bélgica. Elucidou este Tribunal de que nesta última viagem, inicialmente, o requerente não pretendia vir a Portugal, mas acabou por decidir que viria uma semana e regressariam juntos à Bélgica. Quando o requerente chegou foi para a Quinta ..., pedindo à requerida que o acompanhasse, o que não aceitou, pois sentia medo dele, tendo permanecido com o filho em casa dos pais. Combinaram encontrar-se num parque para que o pai pudesse ver o filho. Referiu que era vítima de violência doméstica na Bélgica, sendo o agressor o requerente, acusando-o de beber em excesso quando saiam com amigos, o que a desgostava. Em face do desgaste do casamento, e dos conflitos que se acentuaram após o nascimento do filho de ambos, uma vez que o requerente nunca manifestou interesse em cuidar do menor, sendo que se dirigia a ela com expressões agressivas e ameaçadoras, chegando mesmo a relatar episódios de agressão física, que deram origem ao inquérito que corre termos neste Tribunal. Mais referiu que na Bélgica se ente sozinha pois o requerente e a sua família são pessoas com influência na sociedade belga. Esclareceu que o AA reconhece o pai e reage bem quando o vê[10]. Por outro lado, temos a versão do progenitor constante do requerimento apresentado pelo progenitor, nas autoridades belgas, solicitando o regresso do pequeno AA àquele país - no essencial, refere que a progenitora, desde que o AA nasceu, indiciava comportamentos de hiperprotecção do bebé. Manifestou intenção de instaurar o processo de divórcio. Refere que depois do parto a requerida foi acompanhada por uma psicóloga especialista em perinatal. A psicóloga informou que o casal não se entendia sobre o que era melhor para o bebé, pelo que sugeriu consultas com o casal, o que veio a acontecer. Quando veio a Portugal, em fevereiro de 2022, alugou um local para ficar com a requerida e o bebé a cerca de 10 km da residência dos pais desta, porém ela recusou, preferindo manter-se em casa dos pais, os quais, durante o dia, estavam ausentes em trabalho. Acordaram, então, que visitaria o filho num parque por 30 minutos por dia. Mas isso não o satisfazia. O casal tinha combinado que a requerida viria duas semanas com o AA para Portugal, mas uma semana depois o progenitor juntar-se-ia a eles, uma vez que não pode abandonar o seu posto de trabalho por mais tempo. A requerida apenas o avisou uma hora antes de que não o iria acompanhar de regresso à Bélgica, não tendo conseguir falar com ela, pois não atendia ou tinha o telemóvel desligado. Ela revelou que não iria voltar, mas ele não concorda. Mais alegou que a requerida lhe enviou um email dizendo que já não se sentia segura na casa dele depois dos últimos acontecimentos. Indicou que não se trata de violência física e o que ela está se referindo. É o facto de, quando negociou com ela as coisas básicas que ela lhe recusou, fê-lo de forma emotiva, num tom de voz um pouco mais alto. Das posições assumidas pelos progenitores resulta claro que, por um lado, a relação afetiva entre requerente e requerido se deteriorou após o nascimento do filho, uma vez que parecem existir diferentes perspetivas quanto ao modelo educacional a seguir. Por outro lado, através da imediação foi possível percecionar o estado “depressivo” em que a progenitora se encontra, sendo certo que não nos compete fazer qualquer diagnóstico clínico, é evidente que esta mãe precisa de apoio psicológico, uma vez que o relato que a mesma fez quanto ao seu dia a dia com um recém-nascido, atenta desde logo a sua profissão, deveria ser mais “leve” e não tão penoso como nos fez parecer. Por outro lado, resulta claro que a progenitora não pretende regressar à Bélgica, pretendendo que o seu filho fique em Portugal, sendo que o progenitor peticiona o regresso imediato da criança aquele país.» 8. Não foram concretizados ou demonstrados quaisquer outros factos além dos elencados em II. 1., supra. Se é importante saber se, como e quando ocorreram situações problemáticas no relacionamento do casal e suas repercussões para o bem-estar da criança - eventualmente relevantes, face aos fundamentos invocados pela recorrente e ao disposto no art.º 13º, n.º 1, alínea b) da Convenção de Haia de 1980 -, tais factos concretos, naturalmente, deviam ser trazidos aos autos, sendo que, reafirma-se, não vemos demonstrados outros factos concretos relevantes além dos atendidos pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo. Acrescenta-se que esta Relação ouviu as declarações prestadas pela requerida/recorrente, na diligência de 01.4.2022, podendo assim confirmar o que se deixou consignado na decisão sobre a matéria de facto (factos enumerados e convicção probatória) e atendeu a todos os elementos documentais juntos aos autos, inclusive as mencionadas decisões proferidas pelos Tribunais Belgas (reproduzidas a fls. 56/70 e 64/86). Conjugados todos estes elementos probatórios e o que se vê indiciado, poder-se-á dizer que é relativamente clara e pacífica a realidade objetiva/fática considerada em sede judicial (em Portugal e na Bélgica[11]); não assim, porém, quando se pretende indagar a razão de ser da actuação dos progenitores e o subjacente quadro subjetivo e emocional. 9. Argumentou a Mm.ª Juíza, nomeadamente: - No que diz respeito à residência habitual do AA desde o seu nascimento, não temos dúvida que é na Bélgica - ali residia com os seus progenitores na casa de morada de família, residência habitual da requerida desde 2014. - O exercício das responsabilidades parentais é conjunto na constância do matrimónio. - A progenitora referiu que o progenitor concordou com a sua viagem e do filho, tendo combinado que regressariam à Bélgica os três, depois do progenitor vir cá passar uma semana com a família; só depois de estar cá decidiu que já não iria voltar à Bélgica, em face do invocado estado atual da relação com o requerente, manifestando receio em estar na presença do mesmo. - A progenitora alegou que foi vítima de violência doméstica por parte do requerente, após o nascimento do AA, que a acusava de só dedicar-se ao bebé; disse sofrer mais violência psicológica do que física; revelou dois episódios, ocorridos a presença do AA, em que o requerente lhe terá apertado o braço direito e, noutra ocasião, cuspiu-lhe em cima. - A alegada violência doméstica, cujo processo de investigação ainda se encontra em curso e onde o denunciado ainda não foi ouvido, não se revela, por ora, suficiente para o Tribunal não determinar o regresso imediato da criança ao Estado da Bélgica. - A requerida alega que ainda se encontra a amamentar, o que este Tribunal entende que poderá acontecer, independentemente da idade da criança, até ao momento em que faça sentido para a mãe e/ou criança. Coisa distinta é o aleitamento materno exclusivo, em regra recomendado pela OMS até aos seis meses, idade já ultrapassada pelo menor, que por esta altura já terá iniciado a alimentação complementar. - A progenitora declarou não pretender regressar à Bélgica, onde tem um contrato de trabalho, mesmo indo morar para outra residência, que não a casa de morada de família; ambos os progenitores declararam a vontade de se divorciarem. - O que está em causa é tão só o regresso do AA atenta a factualidade supra explicitada. Não se põe em causa a forte ligação existente entre mãe e filho que, previsivelmente, implicará que esta acompanhe o seu filho no regresso à Bélgica. - Sem pôr em causa os receios manifestados pela progenitora, o progenitor em momento algum pôs em risco a saúde e integridade física ou psíquica do menor. Não obstante o AA poder ter presenciado episódios de discussões e agressões verbais por parte do requerente à sua mãe, não as terá percecionado, atenta a sua tenra idade. Coisa distinta será se tais comportamentos se continuarem a manifestar. Os pais deverão agir pensando sempre em primeiro lugar no filho de ambos que os manterá ligados para sempre. - O regresso do AA à Bélgica não lhe trará perigo de ordem física ou psíquica ou a situação qualificável como intolerável, mesmo que a progenitora não regresse àquele país, em face da grande capacidade de adaptação das crianças, embora uma vez mais se reforce a ligação única existente entre mãe e filho. - Mas não podemos olvidar que a residência habitual do menor é na Bélgica, sendo neste país que a mãe decidiu criar a sua família, pelo que não pode o menor ser afastado do seu progenitor, ainda que o casamento dos pais possa ter “chegado ao fim”. - A progenitora é enfermeira na Bélgica, onde vive há oito anos e tem emprego seguro, pelo que deverá equacionar o seu regresso à Bélgica, na companhia do AA, garantindo antecipadamente, que reúne as condições para viver com o filho, desde já e após o (eventual) divórcio, de modo a poder acompanhar o crescimento do seu filho. - O progenitor goza da presunção de inocência e, no âmbito do referido processo criminal, apenas conhecemos a versão da requerida. - O progenitor aceitou que fosse a progenitora a viajar com o bebé para a Bélgica; caso contrário, está disponível para o vir buscar. - Parte dos episódios contados pela progenitora foram relatados também pelo progenitor, sendo que cada um apresenta uma interpretação diferente dos mesmos. - A progenitora alegou ter-se deslocado à polícia belga para denunciar a violência doméstica de que era vítima. Porém, acabou por não pretender seguir com a denúncia, tendo ficado apenas um registo escrito em como contactou a polícia. - Optou por trazer o seu filho para Portugal, invocando agora a dependência do mesmo de si, quando naquele país poderia ter tido o apoio das instituições nacionais. - Em regra, o progenitor não deve - através da deslocação ou retenção indevidas da criança - criar uma situação potencialmente prejudicial para a criança e, em seguida, basear-se nela para estabelecer a existência de um risco grave para a criança. - Não se pode permitir que o mecanismo de regresso se desative automaticamente, em virtude da recusa de regressar da progenitora, pois estaria a sujeitar o sistema concebido pela comunidade internacional à vontade unilateral de uma das partes. 10. A requerida/mãe agiu ilicitamente ao reter em Portugal a criança em fevereiro passado, pois deveria tê-la feito regressar à Bélgica e não o quis fazer, privando o pai do convívio com a criança, sendo que a Bélgica era o local de residência habitual do menor, cabendo aos progenitores o exercício em conjunto - ainda que após a separação - das responsabilidades parentais; tratou-se de uma decisão unilateral, sem o consentimento e contra a vontade do pai.[12] Salienta-se que é do interesse superior da criança que a regulação do exercício das responsabilidades parentais sobre a mesma se efetue no competente Tribunal ..., devendo o menor aí regressar para esse efeito, porquanto não se provaram quaisquer factos que indiciem um risco grave para a criança devido ao seu regresso, nem que ali regressando, conduzida pela mãe ou pelo pai, fique sujeita a uma situação intolerável, para os fins da excepção prevista na al. b) do art.º 13º, da Convenção de Haia de 1980. A situação de conflito entre os progenitores é habitual em situações de separação (ou divórcio), não assumindo a presente contornos que permitam concluir haver algum risco grave ou situação intolerável para o menino devido ao seu regresso. 11. Nos termos do art.º 13º, §1º, alínea b), da Convenção de Haia de 1980, o tribunal não é obrigado a ordenar o regresso se existir um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável, exceções que, não ficaram provadas nestes autos.[13] 12. A progenitora não ficará privada de apresentar os seus argumentos em Tribunal B... para que o menor passe a residir consigo em Portugal. A ordem de regresso não viola os princípios fundamentais do Estado Português, relacionados com a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. O Estado de residência habitual da criança determinará quais são as medidas de proteção adequadas para a criança, tendo já a situação sob a sua vigilância. 13. Existindo retenção ilícita, na previsão dos art.ºs 1º, 3º e 12º da referida Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, e não verificada qualquer das causas de não regresso da criança, previstas no art.º 13º da mesma Convenção (v. g., risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável)[14], havia que determinar e assegurar o regresso imediato da criança retida indevidamente. O referido mecanismo convencional visa combater o flagelo das deslocações ilícitas de crianças, organizando para o efeito uma verdadeira ação de entrega da criança ilicitamente retida no estrangeiro, destinada a permitir o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, ação que é distinta do mérito do direito em questão, não contendendo com a definição das responsabilidades parentais dos progenitores (ou de outras pessoas), mas visando apenas sancionar o carácter ilícito da deslocação (ou da retenção) da criança, evitando que a passagem do tempo venha consolidar as situações constituídas em violação de direitos dos progenitores ou de terceiros, e procurando neutralizar uma via de facto. Impõe-se uma reação pronta e rápida, que frustre os objetivos prosseguidos pelo infrator do direito de custódia, neutralizando a alteração da situação por ele ´contra legem` criada, e deixando para os tribunais do país da residência habitual da criança a discussão sobre qual o progenitor melhor colocado para exercer as responsabilidades parentais. Daí que o procedimento instaurado seja simples, não obrigando em princípio ao exame da problemática relativa ao superior interesse da criança.[15] De resto, a aludida Convenção teve a finalidade de proscrever o uso de meios de autotutela em matéria de exercício das responsabilidades parentais (que o art.º 16º dessa Convenção, precisamente, manda suspender).[16] 14. A criança, desde o seu nascimento e até à sua retenção ilícita, sempre viveu com os pais, na Bélgica, na casa de morada de família dos progenitores. É do superior interesse do AA que conviva de forma igual com ambos os progenitores. 15. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais ou convencionais. * III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela requerida/apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 104. * 13.9.2022 Fonte Ramos Alberto Ruço Vítor Amaral
[1] Ao abrigo dos art.ºs 4º, n.º 1, alínea i), do EMP, 1º, a) e b), 2º, 3º, 4º, 5º, alínea a), b) e f), 11º, 12º e 14º, da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25.10.1980, ratificada pelo Estado Português pelo DL n.º 33/83, de 15.5, e pela Bélgica, conforme Aviso do MNE n.º 70/91, DR de 14.6.1999, e nos termos do preceituado nos art.ºs 3º, 11º e 12º daquele instrumento legal, 8º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 11º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, 1887º do Código Civil e 17º e 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível. [2] Ficou consignado em ata: «Pelo ilustre mandatário da requerida, foi dito, que: / Nas declarações da requerida, está tudo explicado e que o tribunal já tem conhecimento do processo de violência doméstica e que a posição da requerida já se encontra, também, vertida no procedimento cautelar que ela própria interpôs e que também está junta com este pedido, pelo que prescinde de prazo para contestar». Naqueles autos de inquérito, por violência doméstica, consta apenas o depoimento da progenitora/recorrente (cf. fls. 31 a 35), sendo que a factualidade denunciada ocorreu na Bélgica - cf. ainda, neste sentido, a resposta à alegação de recurso/fls. 139. [3] Por despacho do relator de 30.6.2022 foi determinado o seguinte: «Para acompanhamento (implementação e execução) das diligências visando a “entrega imediata do menor”, extraia e remeta à 1ª instância traslado das seguintes peças: Sentença de 04.5.2022; Ofícios/comunicações eletrónicas da DGRSP e da Unidade de Desenvolvimento Social/Centro Distrital ... juntos aos autos em 11.5.2022 e 31.5.2022; Promoções de 02.6.2022 e 20.6.2022; Despachos de 07.6.2022 e 21.6.2022; Resposta da requerida/progenitora de 17.6.2022 subscrita pelo seu Exmo. Mandatário». [5] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 988º, n.º 1, 2ª parte, do CPC). [7] Cf., a propósito, o acórdão da RC de 22.6.2010-processo 786/09.7T2OBR-A.C1 [assim sumariado: «I - O processo de entrega judicial de menor tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita; II - A Convenção Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças tem por objectivo assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-Membro; III - Nos termos do art.º 11º daquela Convenção e do art.º 11º, n.º 3, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27.11.2003, o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança; V- Aquele Regulamento pretende desencorajar o rapto de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, se tal vier a ocorrer, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estado-Membro de origem; VI - A deslocação de uma criança de um Estado-Membro para outro sem o consentimento de um dos titulares constitui um rapto da criança ao abrigo do mesmo Regulamento; VII - Este reforça o princípio segundo o qual o tribunal deve ordenar o regresso imediato da criança, limitando ao estritamente necessário as excepções previstas na al. b) do art.º 13º da referida Convenção; o princípio é que a criança deve sempre regressar se estiver garantida a sua protecção no Estado-Membro de origem.»], publicado no “site” da dgsi. [8] Num estudo publicado na Revista JULGAR - N.º 24 – 2014, de análise da JURISPRUDÊNCIA SOBRE RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS, Maria dos Prazeres Beleza veio a concluir: «Finalmente, pode suceder que, não obstante ter sido indeferido o pedido de regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, com fundamento nas excepções previstas no artigo 13º da Convenção de Haia de 25.10.1980, o tribunal do Estado onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção, competente segundo o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, profira “uma decisão posterior que exija o regresso da criança”, de acordo com o disposto no n.º 8 do art.º 11º respectivo. Nessa eventualidade, esta decisão de regresso, devidamente certificada (art.º 42º), goza de força executiva nos demais Estados Membros sem necessidade de ´exequatur`. Trata-se de mais uma medida trazida pelo Regulamento (CE) n.º 2201/2003 com o objectivo de combater o rapto, promovendo o regresso célere da criança que dele foi vítima.» Cf., ainda, entre outros, os acórdãos da RP de 08.10.2015-processo 2593/11.8TMPRT-C.P1, proferido num processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais [no qual se expendeu e concluiu: «II - Verificada a deslocação ou retenção ilícita de uma criança de um Estado Membro para outro Estado diferente do da sua residência habitual, haverá que providenciar pelo seu imediato regresso, como forma de desencorajar os “efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicilio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a protecção do direito de visita”, cabendo a qualquer pessoa, instituição ou organismo titular do direito de guarda, pedir que sejam accionados os procedimentos adequados para obter o imediato regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida.»] e da RC de 30.4.2019-processo 177/18.9T8VLF-A.C1 (subscrito pelo relator e o 1º adjunto do presente acórdão), publicados no “site” da dgsi. [12] Cf., nomeadamente, o acórdão da RL de 22.4.2021-processo 2021/20.8T8CSC.L1-6, publicado no “site” da dgsi. [13] Cf., de entre vários, o acórdão da RL de 17.11.2015-processo 761/15.2.T8CSC.L1-7 [tendo-se concluído «VI - O imperativo da ordem de regresso ao país da residência habitual nas situações de retenção ilícita terá de ceder sempre que se considere existir grave risco de a criança, no retorno ao país da sua residência habitual, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável. VII - Na avaliação do preenchimento desta situação de excepção exige-se que seja feito um juízo de ponderação e de conformidade entre o regresso da criança e o seu interesse, ou mesmo a sua vontade (desde que a sua idade e maturidade justifique que se tenha em conta a sua opinião), e a mesma terá de se fundar, inequivocamente, na salvaguarda do interesse da criança, que constitui “a trave mestra” da Convenção.»], publicado no “site” da dgsi. [14] Sendo evidente que não se questiona a verificação de qualquer das situações previstas nos art.ºs 13º, 1º §, alínea a) e 20º da mencionada Convenção. [15] Vide Rui Moura Ramos, anotação ao acórdão do TEUDH/CEDH de 05.02.2015-processo n.º 66775/11, in RLJ, 144º, págs. 402, 403 e 405. [16] Cf., nomeadamente, o acórdão do STJ de 09.10.2003-processo 03B2507 [assim sumariado: «I - É objectivo da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em 25/10/80 pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado e aprovada pelo Estado Português pelo Decreto do Governo nº. 33/83, de 11/5, contrariar o uso de meios de auto-tutela em matéria de exercício do poder paternal. II - O princípio ou regra geral nela estabelecido da recondução da criança para o país onde se encontrava antes da actuação ilegítima sofre, no entanto, as excepções previstas no art.º 13º, por certo inspiradas pela prioridade naturalmente conferida aos interesses dos menores nas situações de conflito que os envolvam.»] e o acórdão da RC de 02.12.2014-processo 1045/12.3TBCLD-A.C1 [«IV – Ocorrendo uma deslocação do menor de Portugal para o Brasil, por iniciativa exclusiva da mãe a quem estava confiado, em desrespeito dos termos do acordo celebrado entre os progenitores na regulação do exercício das responsabilidades parentais (que sujeitava expressamente qualquer mudança do país de residência do menor ao acordo prévio desses progenitores), tal deslocação assume a natureza de ilícita, para o efeito da ´Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças de 1980`»], publicados no “site” da dgsi, e, ainda, Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s), Coimbra Editora, 2009, págs. 443 e seguinte. |