Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CHANDRA GRACIAS | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CÁLCULO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL REEMBOLSO DO IRS MONTANTE INDEVIDAMENTE RETIDO CÔMPUTO MENSAL | ||
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Data do Acordão: | 02/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 239.º, N.ºS 3, AL.ª B), I), E 4, AL.ª C), DO CIRE | ||
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Sumário: | I – A jurisprudência tem-se dividido na definição temporal para o cálculo do rendimento disponível do insolvente para efeitos de cessão ao fiduciário: ou no sentido de, se aquele auferir tais rendimentos mensalmente o período de referência ser o mensal, ou no sentido do mecanismo de ajustamento anual, ainda que sublinhando que, se a decisão inicial fixou um critério mensal, é esse que deverá ser seguido.
II – O montante correspondente ao reembolso do IRS respeita a valores que foram indevidamente retidos ao longo dos meses e que se tivessem sido contabilizados no mês correspondente, isso poderia significar não haver lugar a rendimento disponível ou que este seria menor, o que justifica a necessidade de se efectuar o acerto. III – Estando em causa um valor que é entregue por ter sido retirado indevidamente, a parcela referente a cada mês deve ser somada às quantias recebidas nesse mesmo mês, só tendo obrigação de repor nesse mês, se tiver excedido o montante equivalente ao rendimento indisponível. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo Local Cível da Guarda (J1) Recorrente: AA
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I. Em 18 de Outubro de 2020, AA apresentou-se à insolvência, invocando o «…esforço orçamental que mensalmente leva a cabo…», em atenção à sua remuneração enquanto motorista ao serviço de A... Unipessoal, Lda. (ilíquida computada em 1034,50 €), e ao pagamento, quer da renda (450 €/mês), quer da prestação alimentícia a filho menor de idade (160 €/mês), não dispondo de bens móveis ou imóveis capazes de solver o passivo existente. Declarou, ainda, pretender beneficiar da exoneração do passivo restante. Por Sentença que remonta a 4 de Dezembro de 2020, o mesmo foi declarado insolvente. Em 10 de Março de 2021 foi-lhe deferido aquele benefício, determinando-se que «…o rendimento disponível que o(a)(s) devedor(a)(es) venha(m) a auferir se considera cedido a fiduciário….»[2], «…fixando o rendimento indisponível do insolvente no valor equivalente a 1,5 SMN, devendo ceder ao senhor fiduciário os valores excedentes.». Em 2 de Abril de 2024, o Fiduciário apresentou relatório atinente ao 3.º e último ano de cessão de rendimentos (computado de Março de 2023 a Fevereiro de 2024), conforme art. 240.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indicando estar em dívida a quantia global de 1549,93 € (mil quinhentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos), também devida por reembolso do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Em 3 de Junho de 2024, o insolvente pronunciou-se negando dever qualquer valor, por perfilhar o entendimento que o cálculo do rendimento disponível deve incidir sobre o montante anual e não sobre o rendimento mensal. O Fiduciário respondeu, referindo que «…calculou o rendimento disponível a entregar durante o período de cessão com referência aos meses em que os rendimentos excederam 1,5 SMN, conforme determinado por Despacho de 03.05.2021. Por não ser feita qualquer referência no Despacho de que o apuramento do rendimento disponível a entregar devesse ser calculado anualmente, efetuou o cálculo mensalmente, tendo apurado o montante global a entregar de 1.549,93 €,…».
Em 13 de Setembro de 2024 foi lavrado despacho com o teor que segue: «Através de req. ref.ª n.º2385637, veio o Sr.º Fiduciário, no âmbito do relatório a que se refere o artigo 240.º do Código da Insolvência, informar que existe uma discrepância no apuramento do rendimento objecto de cessão uma vez que, em sede de IRS de 2022, o insolvente obteve um reembolso no valor de 874,96€, que somado ao vencimento do mês de Maio de 2023, resulta num rendimento disponível a entregar de 677,75€ Mais esclarece que, no que tange ao segundo ano de cessão, permanece em dívida o valor de 872,18€ (referente ao IRS de 2021), perfazendo o valor total em dívida 1549,93€. Notificado o insolvente veio o mesmo alegar que o cálculo do rendimento disponível deve incidir sobre o montante anual e não sobre o rendimento mensal. Assim, tendo o rendimento disponível sido fixado no valor acima de 1,5 SMNs, só quando o rendimento do insolvente ultrapasse, anualmente considerado, tal verba, haverá rendimento disponível a entregar ao fiduciário, e não já quando, em meses isolados, o valor seja ultrapassado, tanto mais que o rendimento indisponível foi ultrapassado pelo reembolso de IRS, que corresponde ao montante que, mensalmente, foi retido a mais ao requerente. Notificados os credores nada foi dito ou requerido. Cumpre apreciar e decidir: Preceitua o artigo 239.º, nº 2 do Código da Insolvência que no despacho inicial se determina que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, refere-se a respeito deste regime: “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos designado período da cessão- ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.“ No regime criado, confrontamo-nos, assim, com dois interesses fundamentais a ponderar: por um lado, o interesse dos credores, que pretendem, naturalmente, reaver os seus créditos e o do insolvente em libertar-se do passivo. A lei permite que o insolvente obtenha a exoneração dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (artigos 235.º e 236.º do CIRE), de modo a poder reiniciar a sua vida económica livre das dívidas contraídas. Como este resultado é conseguido à custa dos credores, importa seguir com especial atenção a lisura do comportamento do devedor e a sua boa fé, visto que a medida em causa, gravosa quanto àqueles, só se compreende à luz da ideia de que o insolvente deseja orientar a sua vida de modo a não se envolver de novo em situações similares. Neste contexto, a lei estabelece limites que passam pelo indeferimento do pedido de exoneração (artigo 238.º, nº 1 do CIRE) e a cedência do rendimento disponível aos credores (artigo 241.º do mesmo diploma legal), como forma de minorar o prejuízo destes e de responsabilizar o devedor pelo cumprimento, na medida do possível, das suas obrigações. Nos termos do artigo 239.º, nº 3 do CIRE integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor. Contudo, ficam excluídos do rendimento disponível, como prevê o mesmo preceito: a) os créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) o que seja razoavelmente necessário para: i- o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii- o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii - outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. Dispõe, ainda o n.º 4 do mesmo inciso que: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”. Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património [al. a); cf., ainda, al. d)]”. No caso em discussão nos autos, o Sr.º Fiduciário relacionou como rendimentos a ceder os valores recebidos pelo insolvente a título de reembolso de IRS. Como supra se referiu uma das obrigações que recai sobre o insolvente é a de proceder à imediata entrega ao fiduciário dos rendimentos por si recebidos que sejam objecto de cessão. Ora, estes rendimentos são todos os que advenham, a qualquer título, ao devedor, não excluídos pelo dever de entrega ao fiduciário por alguma das alíneas do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE. Como sublinham Carvalho Fernandes e João Labareda, constituem o rendimento disponível os rendimentos que advenham ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b), do nº 3 do citado artº 239º (CIRE Anotado, 2ª edição, pág. 905), adiantando Menezes Leitão que a cessão de rendimentos abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais (Direito de Insolvência, 8ª edição, pág. 369). Como se pode ler no Ac. TRP datado de 16.12.2020, processo n.º 499/13.5TJPRT.P2, disponível em dgsi.pt, “integra o rendimento disponível do insolvente os montantes pelo mesmo recebidos a título de reembolso de IRS.” No mesmo sentido pode ler-se o Ac. TRG datado de 19.09.2019, disponível em dgsi.pt “O rendimento correspondente ao reembolso de IRS relativo ao ano de 2018 mas pago pela Fazenda Pública à recorrente no decurso do período de cessão de rendimentos cujo início foi declarado em 28-01-2019 não está abrangido pela exclusão prevista na alínea a), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, integrando, atenta a sua natureza, o rendimento disponível cedido ao fiduciário por configurar um rendimento que adveio ao devedor e não excetuado por lei” (…) “ Todo o valor de IRS reembolsado na pendência do período de cessão integra necessariamente o rendimento disponível da recorrente, independentemente da fórmula a utilizar quanto à periodicidade (mensal ou anual) do cálculo dos rendimentos, quando se verificou no despacho liminar da exoneração do passivo restante - que determinou a cessão à fiduciária do rendimento disponível que a devedora venha a auferir durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência - que a devedora/insolvente aufere rendimentos de trabalho mensais superiores ao seu rendimento indisponível e não há indicação da existência de meses em que o rendimento da devedora não chegue a alcançar o valor fixado como mínimo de subsistência, ou em que não haja rendimento - nem tal foi alegado em momento próprio ou em sede de alegações de recurso -, não se colocando a questão de uma eventual compensação relativamente àqueles em que o exceda.” Ora, integrando o rendimento disponível–logo, objecto de cessão– todos os rendimentos recebidos pelo devedor, seja a que título for, com exclusão apenas das situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, não se vê razão para nele não incluir as importâncias recebidas pelo insolvente a título de reembolso de IRS. Além disso, o corpo do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE considera rendimento disponível todos os rendimentos recebidos pelo devedor, independentemente da sua natureza, desde que contidos nos limites impostos pelas suas alíneas a) e b). Não existe, face ao exposto, qualquer fundamento para se alterar o valor apurado pelo Sr.º Fiduciário como rendimento disponível a ceder à fidúcia relativamente ao período de cessão já decorrido. Em face do exposto, notifique o insolvente para proceder à entrega do valor em divida à fidúcia, sob pena de não lhe ser concedida a exoneração do passivo restante.».
II. Não concordando com o seu teor, o Insolvente interpôs Recurso de Apelação, e as suas alegações findam com as seguintes «CONCLUSÕES: (…).».
III. O MP respondeu ao recurso, e as suas alegações rematam com as seguintes «Conclusões (…).».
IV. Questão decidenda Sem embargo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil): - Do período de referência para o cálculo do rendimento disponível (anual ou mensal), e eventual obrigação de entrega ao fiduciário de algum valor monetário proveniente do reembolso do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
V. As circunstâncias processuais pertinentes para a boa decisão desta matéria estão elencadas.
VI. Do Direito A exoneração do passivo restante é um instituto do direito da insolvência, com assento legal nos arts. 235.º ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção operada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, por força da obrigatoriedade de transposição da Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2019[3]. Deflui do Considerando 73 desta Directiva que aqui se visa uma verdadeira segunda oportunidade, ao evidenciar-se que «…deverão ser tomadas medidas para reduzir os efeitos negativos do sobre-endividamento ou da insolvência para os empresários, nomeadamente permitindo o perdão total da dívida após um determinado período e limitando a duração das decisões de inibição resultantes do sobre-endividamento ou da insolvência do devedor. … Os Estados-Membros deverão poder decidir a forma de dar acesso ao perdão, incluindo a possibilidade de exigir que o devedor o solicite.»[4]. Este instituto oferece ao devedor pessoa singular honrado[5] uma oportunidade de começar de novo – fresh start –, libertando-se, de forma definitiva, da totalidade do seu passivo remanescente, pelo que, enquanto medida de protecção ao devedor, com vista à sua recuperação e reintegração na actividade económica que lhe irá permitir encetar uma vida nova, não faz sentido atribuir-se-lhe tal benefício caso não seja merecedor de tal prerrogativa[6]. Como argutamente já se observou «A exoneração é, assim, antes de tudo, uma medida de protecção do devedor, tornando o recurso a ela uma verdadeira tentação. Esta força atractiva desencadeia, naturalmente, efeitos perversos: pode conduzir a “abusos de exoneração”. …pode, de facto, haver a tendência para ver na exoneração um recurso normal, que a lei disponibiliza para a desresponsabilização do devedor. Consequentemente há o risco de o processo de insolvência se transformar num refúgio ou numa protecção habitual contra os credores (bankrupcy protection). A experiência aconselha a que a disciplina da exoneração seja regulada com alguns cuidados.»[7]. Com a admissão liminar do pedido de exoneração dar-se-á início a um novo momento processual, em que durante um determinado período temporal, designado período de cessão, fixado em três anos[8], o insolvente fica vinculado à observância escrupulosa de certas exigências, nomeadamente o pagamento das suas dívidas, e em que todo o rendimento disponível[9] que auferir será afecto à distribuição pelos credores. Uma vez que a exoneração do passivo restante é uma benesse ao insolvente, no decurso deste período de cessão – que tem que ser visto como um período de provação –, impende sobre o mesmo o esforço acrescido de contenção das despesas por forma a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores[10]. Só desta forma é possível legitimar, neste instituto proteccionista do devedor insolvente, os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, à luz da perda que se faz repercutir (em regra para sempre) na esfera jurídica do credor. Findo esse período temporal o Tribunal tomará uma decisão final sobre a concessão (v.g., se tiver cumprido com as suas obrigações) ou não da exoneração.
Chegado o termo deste marco temporal insurgiu-se o Recorrente com a forma de cálculo do rendimento disponível para efeitos de cessão ao fiduciário (anual vs. mensal), vindo isto a propósito da inclusão do montante percebido a título de reembolso de imposto, na medida em que, se o cálculo tivesse sido anual, nada teria a ceder. Deve assinalar-se, no entanto, que o Recorrente não questiona a obrigação que sobre si recai, de entrega do valor recebido a título de reembolso do imposto[11], em si mesma considerada – corpo das alegações, n.ºs 5 e 6. Assente a obrigação do insolvente de entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objecto de cessão, no que tange à definição temporal, chama-se à colação que «…cabe ao Tribunal fixar um rendimento indisponível, anual ou mensal, sendo que o pensamento legislativo tem como período de referência um mês, até porque, por norma, estamos no domínio de relações laborais, operando então por uma média anual, sendo que, nos meses em que esse valor não for excedido, não incorre a obrigação de cessão de rendimentos, não existindo rendimento disponível.», e «…caso suceda que o devedor, … por determinada razão, aufira de um montante inferior ao estipulado como rendimento indisponível, estabelecido como razoavelmente necessário ao sustento do agregado familiar, não nasce a favor do mesmo, o direito de compensação nos rendimentos disponíveis futuros.»[12]. A jurisprudência tem-se dividido na definição temporal: ou no sentido de, se aquele auferir tais rendimentos mensalmente o período de referência é o mensal[13], ou no sentido do mecanismo de ajustamento anual[14], ainda que sublinhando que, se a decisão inicial fixou um critério mensal, é esse que deverá ser seguido. Com efeito, já se consignou que «quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), i), do artigo 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês. Com efeito, apesar de a letra do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo.»[15]. A despeito dos diferentes entendimentos, há um ponto concordante, qual seja o de verificar, antes de mais, o que foi decidido aquando do pedido de exoneração do passivo restante. Na realidade, trata-se agora de cumprir, executando, uma decisão judicial transitada em julgado. De harmonia, constata-se que foi o próprio insolvente que invocou «…esforço orçamental que mensalmente leva a cabo…», declarando exercer a profissão de motorista por conta de outrem, auferindo uma remuneração mensal 14 (catorze) vezes ao ano, e ter despesas mensais inerentes ao exercício das responsabilidades parentais (sustento de um filho menor de idade), e igualmente uma despesa mensal com o pagamento de renda de casa. Foi com estes pressupostos (mensais) indicados pelo Recorrente que foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado o montante a excluir do rendimento disponível. O Recorrente não alegou que as premissas sobre as quais assentou aquela decisão se alteraram, nem os autos disso dão nota. Oportunamente houve prolação de decisão em 1.ª Instância, já transitada em julgado, a definir esse parâmetro temporal – mensal –, contra a qual o Recorrente, atempadamente, não reagiu (datada de 10 de Março de 2021 e subsequentemente objecto de rectificação, em 3 de Maio de 2021). Do que decorre que esse valor foi estabelecido pelo Tribunal a quo por referência ao período mensal, e tudo o que em cada mês excedesse tal patamar deveria imediatamente ser entregue ao fiduciário – cf. art. 239.º, n.º 4, al. c). Revertendo ao caso em apreço, o montante correspondente ao reembolso do imposto respeita a valores que foram indevidamente retidos ao longo dos meses e que se tivessem sido contabilizados no mês correspondente, isso poderia significar não haver lugar a rendimento disponível ou que este seria menor, o que justifica a necessidade de se efectuar o acerto. Estando em causa um valor que é entregue por ter sido retirado indevidamente, a parcela referente a cada mês deve ser somada ao valor recebido nesse mesmo mês, só tendo obrigação de repor (nesse mesmo mês) se tiver excedido a quantia equivalente, na situação em causa, a 1,5 salários mínimos nacionais. Assim sendo, o Recorrente recebeu de reembolso referente ao ano de 2021, 1076,93 € (mil e setenta e seis euros e noventa e três cêntimos), e com referência ao ano de 2022, 874,96 € (oitocentos e setenta e quatro euros e noventa e seis cêntimos). Dividindo cada uma destas quantias por 12 – pois o Recorrente recebe em duodécimos –, obtém-se 89,74 € (oitenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos), e 79,91 € (setenta e nove euros e noventa e um cêntimos), respectivamente. Somando 89,74 € (oitenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos) ao valor que recebeu em cada um dos meses de 2021, e somando 79,91€ (setenta e nove euros e noventa e um cêntimos), ao valor que recebeu em cada um dos meses de 2022, verifica-se que em nenhum deles excede o valor fixado de 1,5 salários mínimos nacionais. Termos em que, na procedência do recurso, deve revogar-se o despacho recorrido, por nada mais ter o Recorrente a entregar ao fiduciário.
Não há lugar ao pagamento de custas processuais (art. 607.º, n.º 6, ex vi art. 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil).
VII. Decisão: Com a argumentação apresentada, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se o despacho recorrido. Não há lugar ao pagamento de custas processuais. Registe e notifique. Coimbra, 11 de Fevereiro de 2025 (assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
[3] Sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Directiva (UE) 2017/1132 (Directiva sobre reestruturação e insolvência). [5] O que expressivamente decorre dos Considerandos 1, 5 e 15, de harmonia com os quais, e de modo respectivo: «… a possibilidade de os empresários honestos insolventes ou sobre-endividados beneficiarem de um perdão total da dívida depois de um período razoável, permitindo-lhes assim terem uma segunda oportunidade;». «Em muitos Estados-Membros, são necessários mais de três anos para que os empresários que são insolventes mas honestos consigam obter o perdão da dívida …». «Para o efeito, importa reduzir as diferenças entre Estados-Membros que dificultam a reestruturação precoce de devedores viáveis com dificuldades financeiras e a possibilidade de perdão de dívidas para os empresários honestos.». [6] Maria do Rosário Epifânio in, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Outubro de 2024, p. 400, e Lilian Almeida Curvo e Maria João Machado in, A exoneração do passivo restante – algumas questões acerca da fixação do rendimento disponível, Julgar Online, Março de 2022, pp. 1 e 6/7 (acessível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2022/03/20220330-JULGAR-A-exonera%C3%A7%C3%A3o-do-passivo-restante-Lilian-Almeida-Curvo-Maria-Jo%C3%A3o-Machado.pdf). Cf. Acórdão deste Tribunal da Relação, Proc. n.º 2614/19.6T8LRA-C.C1, de 04-02-2020 (disponível, com os demais citados, em www.dgsi.pt), e ponto 45 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18-03-2004, diploma que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. [10] Expressão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 27138/11.6T2SNT-C.L1, de 26-01-2017. [13] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 11855/16.7T8SNT.L1.S1, de 09-03-2021, e do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 380/13.8TBABT.E1, de 29-09-2022. [14] No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 78/13.7TBMAC.E1, de 07-04-2022, lê-se que «O CIRE não impõe que o critério temporal para o cálculo da parte dos rendimentos do insolvente que fica excluída do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i), do CIRE, seja mensal. Esse cálculo deverá ser feito em conformidade com o critério temporal que tenha sido fixado pelo juiz. Na falta dessa fixação, deverá o mesmo cálculo ser feito segundo um critério anual, tendo como referência cada um dos anos do período da cessão.». Em idêntico sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n.º 338/19.3T8GMR.G2, de 22-04-2021: «O apuramento dos rendimentos objecto de cessão para efeitos do artº 240º, nº 2, do CIRE, deve ser feita por referência ao período de um ano. II- Assim, no relatório anual a apresentar pelo Sr. Fiduciário deve atender-se ao valor anual dos rendimentos (diferença entre o rendimento global auferido pelo insolvente e o montante anual fixado como indisponível).». [15] Acórdão deste Tribunal da Relação, Proc. n.º 2455/11.9TJCBR.C1, de 22-10-2019. |