Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CO-AUTORIA CONCURSO REAL - ROUBO E SEQUESTRO CONCURSO APARENTE - ROUBO E COACÇÃO AGRAVADA | ||
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Data do Acordão: | 02/05/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 26º DO CP; ARTIGO 210º, NºS 1 E 2, ALÍNEA B), POR REFERÊNCIA AO ARTIGO 204º, Nº 1, ALÍNEAS D) E F) DO CP | ||
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Sumário: | 1. A co-autoria deve ser perfectibilizada e aplicada quando dois arguidos contribuíram para a eclosão dos crimes, nunca nenhum deles tendo perdido o real domínio do facto, não obstante ter sido gizado o plano inicial por um, ao qual aderiu o segundo.
2. Tem sido entendido que o crime de sequestro, visando tutelar bem jurídico distinto do protegido pelo crime de roubo, poderá concorrer em concurso real com este. 3. Contudo, só existirá concurso real se a privação da liberdade ambulatória, a liberdade "de ir ou de ficar", exceder a estritamente indispensável para exercer a violência ou ameaça ou para colocar a vítima na impossibilidade de resistir no contexto da consumação do roubo - e bem assim o tempo indispensável para a levar a cabo. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA No processo comum colectivo nº 220/23… do Juízo Central Criminal de Castelo Branco (comarca de Castelo Branco) – Juiz ..., por acórdão datado de 1 de Outubro de 2024, foi decidido: · Absolver os arguidos AA e BB da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de: a) - um crime de introdução em local vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191º, do Código Penal, doravante CP; b) - um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1 e 2, als. b) e e), do CP; c) - um crime de coação agravada, p. e p. pelo artigo 154º, nº 1 e 155º, nº 1, als. a) e b), todos do CP; · Condenar os arguidos os arguidos AA e BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º nºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, als. d) e f), ambos do CP, na pena de 6 (seis) anos de prisão, para cada um dos crimes e para cada arguido; · Condenar os arguidos AA e BB, procedendo ao cúmulo jurídico das penas anteriormente referidas, na pena única de 8 (oito) anos de prisão para cada um dos arguidos. 2. OS RECURSOS 2.1. RECURSO Nº 1 Inconformado, o arguido BB[1] recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «a) O ora Recorrente não praticou os crimes de que vem acusado; b) O ora Recorrente nada roubou aos ofendidos, nem os agrediu; c) Nada ficou provado em todo o processado a tal respeito e no tocante ao ora Recorrente. d) O Colectivo de Juízes interpretou erradamente toda a prova factual existente. e) Nada resulta de tal prova que sustente a pena aplicável ao BB, ora Recorrente, mesmo tendo em conta a Absolvição que se acolhe relativamente aos crimes de “introdução em local vedado ao público”, “sequestro agravado” e “coacção agravada”. f) Não se aceita que para justificar tão pesada pena aplicada ao ora Recorrente se tenha o Tribunal Colectivo estribado no Curriculum Criminal do mesmo pois, pelos crimes do passado, já o BB sofreu e cumpriu as respectivas penas. g) Fica no ar a ideia de que o Colectivo, já que não há matéria nos presentes autos que mereça qualquer pena, está a fazer uma nova punição relativa aos crimes passados, contrariando o princípio de que ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. h) A presente decisão de que ora se recorre não ajuda à regeneração do BB pois a condenação agora aplicada que, como se referiu, está “agarrada” ao passado dele, parece significar que o Recorrente não mais se conseguirá desprender do mesmo e que por isso não valerá a pena lutar por uma melhoria e um cortar de amarras com todo esse passado. i) O Recorrente tem, como consta dos autos, alguma desvalorização psíquica mas não será por isso que merece ser continuamente massacrado, antes pelo contrário deverá ser ajudado e, já todos o sabemos, não é dentro de um Estabelecimento Prisional que isso acontecerá, pelo que importa libertá-lo do ambiente que ali se vive. j) O Recorrente não praticou o acto de que vem acusado – roubo agravado – e nem sequer tinha ideia do que fora roubado e certamente nunca a teria e nem beneficiaria do mesmo, em consequência da sua ingenuidade e diminuição psíquica. k) Deve o presente Recurso ser considerado procedente e o Recorrente Absolvido do Crime de Roubo Agravado pelo qual foi acusado pois não o cometeu, nem há provas nesse sentido. l) Ou na pior das hipóteses ainda assim deve a pena ser substancialmente reduzida, caso não seja revogada. TERMOS EM QUE Com a absolvição do Recorrente ou redução da Pena, SE FARÁ CORRECTA JUSTIÇA». 2.2. RECURSO Nº 2 Inconformado, o Exmº Magistrado do Ministério Público recorreu do acórdão condenatório, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição[2]): 1. «No acórdão recorrido foram os arguidos AA e BB condenados pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de dois crimes de roubo agravados, previsto e punido pelo artº 210º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, als. d) e f), ambos do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão, para cada um dos crimes e para cada arguido, condenando-os, a final, na pena única de 8 anos de prisão para cada um dos arguidos. 2. Não podemos concordar com o acórdão recorrido, entendendo-se que do mesmo resultam diversos pontos de discordância. 3. No acórdão recorrido deu-se como não provado que “o arguido BB traçou, juntamente com o arguido AA, um plano prévio com vista à execução da prática dos factos da acusação” e que “nas circunstâncias referidas em 8 dos factos provados, os arguidos desferiram um número não concretamente apurado de pontapés na cabeça de CC”, com o que se concorda. 4. Em seu lugar deu-se como provado que “No dia 18 de Outubro de 2023, pelas 10h30min., o arguido AA, na execução de um plano previamente traçado por si, e ao qual o arguido BB aderiu no dia dos factos, decidiram dirigir-se à residência dos ofendidos CC, invisual e nascido a ../../1961, DD, nascida em ../../1963, sita no Caminho ..., ..., em ...;” (sublinhado nosso), “pelo que BB e AA, de forma a manietar CC empurraram-no contra o chão e, acto contínuo, um dos arguidos desferiu-lhe um pontapé na cabeça, o que lhe provocou dores e mal-estar” (sublinhado nosso). 5. Estes factos resultaram claramente da prova produzida, nomeadamentedas declarações do arguido AA, das declarações prestadas pelo arguido BB no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, as quais foram reproduzidas em sede de audiência de julgamento uma vez que este exerceu o seu direito ao silêncio, e nas declarações do CC. 6. Contudo, acredita-se que por mero lapso, no ponto 26 dos factos dados como provados fez-se constar que: “26. No âmbito do plano delineado, ao qual ambos aderiram, BB e AA aos abordarem os ofendidos DD e CC, da forma como o fizeram, através do recurso à força física, nomeadamente, tentando amarrar as mãos do ofendido, e ao desferirem-lhe diversos pontapés no corpo, e ainda ao empunharem uma faca de cozinha junto ao pescoço da ofendida, conseguiram fazer seus os referidos objectos, sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade daqueles.” (sublinhado nosso). 7. Este facto dado como provado está em clara contradição com os factos dados como provados nos pontos 1 e 8, porquanto o plano foi previamente traçado pelo arguido AA, tendo o arguido BB aderido ao mesmo no dia dos factos, não se tratando de um plano traçado por ambos, bem como apenas ficou provado ter sido desferido um pontapé em CC e não diversos pontapés como é referido. 8. A contradição insanável da fundamentação encontra-se prevista no artº 410º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal, sendo que a contradição da fundamentação pode consistir na incompatibilidade entre os factos provados, que serão contraditórios, ou entre os factos provados e os não provados, verificando-se que a mesma factualidade é, simultaneamente, considerada provado e não provado. 9. É assim evidente existir a contradição entre os factos dados como provados nos pontos 1 e 8 e o facto dado como provado no ponto 26, a qual deve ser corrigida. 10. A contradição insanável da fundamentação só conduz à verificação do vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal quando não for suprível pelo tribunal ad quem, ou seja, quando a contrariedade detetada se revelar inultrapassável e, por conseguinte, insanável. 11. No caso concreto, afigura-se-nos que a assinalada contradição resulta dos factos dados como não provados no acórdão, tendo-se substituído os mesmos pelos constantes dos pontos 1 e 8 dos factos dados como provados, mas não se atualizando a redação do ponto 26 dos factos dados como provados a tal alteração, o que, salvo melhor opinião, pode ser suprido pelo tribunal “ad quem”. 12. Nos factos dados como provados no acórdão recorrido fez-se constar: “30. O arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida enquanto a agarrava por um braço, era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade, o que quis fazer, efectivamente fez e conseguiu.”. 13. Não se discorda totalmente com o teor deste facto, embora se entenda que este, resultante do ponto 30 da acusação, deverá ser corrigido, porquanto tratando de facto relacionado com um elemento subjetivo não tem correspondência com os factos relativos ao elemento objetivo. 14. O que está em causa é a factualidade suscetível de integrar a prática do crime de coação agravada que foi imputada na acusação, ou seja, o facto constante do ponto 30 dos factos dados como provados encontra-se relacionado com o facto dado como provado no ponto 18. 15. Assim sendo, não se compreende ter-se dado como provado o segmento onde se refere “enquanto a agarrava por um braço”. 16. Nem tal transparece da prova produzida, nomeadamente das declarações da testemunha DD nas passagens supratranscritas na presente motivação de recurso, delas resultando que quando o arguido AA profere a frase constante do facto provado 18, a que se refere o ponto 30 dos factos dados como provados, não estava a agarrar pelo braço aquela. 17. Por outro lado, na parte final do ponto 18 dos factos dados como provados o Tribunal “ad quem” fez constar que “– o que esta não acatou, saindo pouco após a saída do AA, para socorrer o marido”. 18. Ainda na esteira da credibilidade do depoimento de DD, onde o acórdão recorrido baseou grande parte da sua fundamentação, bem como do que se deu como provado no ponto 18, deverá suprimir-se daquele facto a expressão “enquanto a agarrava por um braço” e a expressão “o que quis fazer, efetivamente fez e conseguiu”, devendo em lugar desta última parte passar a constar – o que só não conseguiu porque DD não acatou a ordem dada por aquele arguido, passando tal facto passar a ter a seguinte redação: “30. O arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade – o que só não conseguiu porque DD não acatou a ordem dada por aquele arguido.”. 19. Entende-se ainda que no acórdão recorrido deveria ainda ter-se dado como provado outro facto, decorrente da prova produzida em audiência de julgamento. 20. Das declarações de CC, as quais devem ser concatenadas pelas declarações prestadas por DD, que foram supra transcritas, aquele descreve como lhe bateram e depois ficou no barracão na companhia do arguido BB, porque o arguido AA tinha ido até à residência onde se encontrava a sua mulher e que, posteriormente, o arguido AA regressou ao barracão, perguntou ao arguido BB se o CC se tinha portado bem e, perante a resposta positiva e sabendo que o ofendido era invisual, voltou a dizer “se ele se se mexer, dás-lhe como o ancinho na cabeça”, abandonando os dois arguidos o local, mas deixando o ofendido convencido que continuava a ser vigiado, e apenas quando ouviu a sua mulher a chamar por si e de a advertir a não ir ao barracão pois ainda estava lá um dos arguidos a guardá-lo, é que se apercebeu que os arguidos já lá não estariam. 21. Assim, o Tribunal “ad quem” deveria ter dado como provado o seguinte facto, o qual é concretizador do facto constante do ponto 19 dos factos dados como provados: Deixando CC no interior do barracão sem dali sair por estar convencido que, em virtude de ser invisual, continuava a ser vigiado pelo arguido BB, apenas tendo aquele saído do interior do barracão já depois deter sido chamado pela sua mulher DD, apercebendo-se, então, que os arguidos já haviam fugido. 22. Ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, entende-se que os arguidos cometeram também um crime de coação agravada, na forma tentada, porque a violência exercida não se esgotou na prática dos crimes de roubo. 23. É certo que, tal como se refere co acórdão recorrido, nenhum mal foi anunciado à ofendida DD, mas também é certo que aqui não está em causa a ameaça de um mal. Nem tão pouco o uso da violência estrito senso. 24. Há que atender aqui a um conceito de violência evoluído, tendo em conta que os seus exatos contornos não são definidos pela lei penal, embora esta possa lançar algumas pistas para a sua conceptualização. Assim, encontra-se abandonado um conceito estrito ou literal de violência, remetendo-se somente para a violência física, aceitando-se atualmente determinadas de condutas de natureza física, como disparar tiros para o ar ou destruir objetos, ou até a violência psíquica que, não se reconduzindo à força física, eliminam ou diminuem a resistência da vitima. 25. Assim, é incontornável que o arguido AA atua a coberto de uma ambiência de violência decorrente da violência utilizada no cometimento dos crimes de roubo agravado de que os arguidos foram condenados, sendo suficiente para o preenchimento do tipo de crime a possibilidade de, perante tal ambiência, o anúncio contido na mensagem ser idóneo a provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afete ou prejudique a sua liberdade de determinação e ação. 26. No casso dos autos o arguido já havia encostado uma faca ao pescoço da ofendida, percorrido a residência desta, com ela agarrada pelo pescoço, na procura de dinheiro e ouro, já a havia atirado ao chão por duas vezes, sendo uma delas contra os degraus da escada, pelo que afigura-se-nos idóneo ao preenchimento do crime de coação o facto do arguido AA dizer à ofendida DD para permanecer sentada o sofá durante uma hora e só depois poderia soltar o seu marido, o ofendido CC, que se encontrava no barracão, sob vigilância do arguido BB. 27. E é o Tribunal “ad quem” quem dá como provado no ponto 30 dos factos dados como provados que o arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade (ponto 30 dos factos dados como provados). 28. É certo que de tal frase não se retira qualquer circunstância agravante suscetível de preencher a previsão do artº 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, verificando-se, no entanto, a circunstância agravante prevista no artº 155º, nº 1, al. b) do Código Penal, atenta a sua idade. 29. Concorda-se, contudo, que a conduta do arguido AA não teve a virtualidade de levar a que a ofendida DD tivesse ficado constrangida na sua liberdade, dado que esta não acatou a ordem dada, significando tal que estamos perante a prática do ilícito criminal em referência na sua forma tentada, pelo que os arguidos cometeram um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos art.os 154º, n.os 1 e 2, 155º, nº 1, al. b), 22º, n.os 1 e 2, al. a), 23º, n.os 1 e 2, e 73º, todos doCódigo Penal. 30. Também não se acompanha o acórdão recorrido quando na fundamentação relativa ao crime de sequestro se conclui que os factos dados por provados demonstram que a liberdade de circulação do ofendido CC não esteve coartada para além do necessário e indispensável para o cometimento dos crimes de roubo, pelo que existiria um concurso aparente entre os crimes de roubo e de sequestro. 31. Conforme supra se referiu, entende-se que resultou provado ainda, em complemento do facto dado como provado no ponto 19, que os arguidos AA e BB abandonaram a residência de DD e CC deixando esteno interior do barracão sem dali sair por estar convencido que, em virtude de ser invisual, continuava a ser vigiado pelo arguido BB, apenas tendo aquele saído do interior do barracão já depois de ter sido chamado pela sua mulher DD, apercebendo-se, então, que os arguidos já haviam fugido. 32. O CRIME de sequestro é de execução não vinculada pelo que para o cometimento do crime de sequestro não tem de se verificar a prática de catos de uma determinada espécie ou forma, bastando uma atividade que possa considerar-se meio adequado para privar outrem do seu «jus ambulandi». 33. A conduta dos arguidos, atento o facto de CC ser invisual, foi adequada a levar a que este ficasse no interior do barracão, sem esboçar qualquer reação até, poucos minutos depois, se aperceber que os arguidos já haviam fugido do local. 34. Sabemos e concordamos que, em princípio, o crime de roubo consome o crime de sequestro na medida que este se apresenta como o crime meio para a concretização do primeiro. 35. Porém, têm os tribunais superiores, mormente o Supremo Tribunal de Justiça, entendido que quando a privação da liberdade excede a estritamente necessária para a execução do roubo, quando for desproporcionada para esse fim, ou quando se prolongar para além da apropriação de bens, o crime de sequestro adquire autonomia, verificando-se um concurso efetivo de crimes. 36. Por outro lado, para que se verifique a prática do crime de sequestro não é necessário que a privação da liberdade se verifique durante um específico lapso de tempo, sendo para nós evidente que um diminuto período de tempo de privação de liberdade não obtém dignidade para lograr o preenchimento do tipo de ilícito do sequestro, mas não é este o caso dos autos, merecendo a tutela do direito o período em que o ofendido esteve fechado no barracão. 37. A conduta dos arguidos levou a que o ofendido tivesse ficado convencido que ainda se encontrava a ser guardado pelo arguido BB, pelo que forçosamente tem de se concluir que a sua privação da liberdade de movimentos ultrapassou a medida necessária e naturalmente associada à prática do roubo, pelo que não é consumida pelo crime de roubo, porque ocorreu posteriormente à prática da subtração violenta dos bens dos ofendidos, não sendo assim necessária para a subtração que já tinha ocorrido, mas sim, para que os arguidos se pusessem em fuga. 38. Existe assim um concurso real ou efetivo entre o crime de roubo e o crime de sequestro, sendo este agravado nos termos do artº 158º, nº 2, al. e) do Código Penal. 39. A determinação da medida da pena faz-se em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, conforme decorre do artº 71º, nº 1, e 40º, n.os 1 e 2, ambos do Código Penal, havendo que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra cada um dos arguidos considerando, nomeadamente, os fatores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do nº 2 do artº 71º do Código Penal, devendo na determinação concreta da pena atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”. 40. Para além disso, dispõe o nº 2, do artigo 40º, do Código Penal, que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. 41. No caso concreto, “o grau de ilicitude dos factos é muito elevado, considerando o modo como foram praticados, na pessoa de 2 sexagenários, atacados na sua própria casa (sendo certo que a entrada na habitação constitui agravante do próprio tipo de ilícito, não se tendo aqui em conta, uma vez que já faz parte do tipo de crime)” e que “[p]or outro lado, o grau de intensidade do dolo é acentuado, na medida em que os arguidos agiram com dolo directo que, como é sabido, configura a modalidade mais grave que o dolo pode revestir.”. 42. Também concordamos que a elevada instabilidade pessoal dos arguidos motivada pelo problema aditivo de substancias toxicodependentes concorreram de forma determinante para sua prática, bem como que os extensos antecedentes criminais, com condenações também por crimes da mesma natureza, têm de ser tidos em conta na fixação da medida das penas a aplicar. 43. Assim sendo, não se concorda, no entanto, com a dosimetria da pena de prisão aplicada, dado que uma pena de 6 anos se situa num patamar muito próximo do limite mínimo da moldura penal. 44. Muito pouco, ou praticamente nada concorre a favor dos arguidos, pelo que considerando que o meio da moldura penal que cabe ao crime se situa nos nove anos de prisão, entende-se que, pelo menos, deverá a pena se situar sensivelmente nesse ponto, entendendo-se como adequada uma pena de, pelo menos, 8 anos de prisão. 45. No tocante aos crimes de sequestro agravado e de coação agravada, tentada, sendo punidos com a pena de 2 a 10 anos de prisão, no caso do primeiro, e pena de 1 mês a 16 meses de prisão ou penade 10 dias a 160 dias de multa, e atendendo aquiàs considerações já supra expendidas, entendemos como adequada para cada um dos arguidos uma pena de, pelo menos, 3 anos de prisão pela prática do crime de sequestro agravado e de 8 meses de prisão pela prática do crime de coação agravada na forma tentada. 46. Quanto à pena única aplicada aos arguidos no acórdão recorrido, relativamente apenas a dois crimes de roubo agravado praticados por cada um deles, desde já adiantamos que entendemos ser tal pena muito benevolente, ficando-se por um nível muito próximo do limite inferior da moldura penal da pena única. 47. A moldura penal abstrata da pena única apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta e o seu limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite de 25 anos de prisão), pelo que no caso concreto terá como limite mínimo 8 anos de prisão e como limite máximo 19 anos e 8 meses (8 anos + 8 anos + 3 anos + 8 meses), atento o disposto no artº 77º, nº 2, do Código Penal. 48. Para além das considerações tidas no acórdão recorrido, há que ter presente que no encontro da pena única tem de se fazer uma apreciação do conjunto de todos os factos em causa nos quais os arguidos foram condenados e cujas penas integram o concurso, e a personalidade do arguido, almejando-se uma visão de conjunto com todos os factos, de modo a considerar personalidade unitária dos agentes, aqui cedendo a anterior visão atomística tida na determinação da medida das penas singulares e procurando-se assim ter uma visão de um determinado conjunto de factos tendenteà verificação, ou não, deuma tendência criminosa dos arguidos, sendo essa tendência o justificativo de agravação da pena concreta dentro da moldura penal conjunta, justificada num nível de culpa dos agentes e das necessidades de prevenção mais elevadas. 49. Tendo em conta os factos praticados demonstrativos de personalidades dos arguidos propensas à prática de ilícitos criminais contra as pessoas e contra o património, ressaltando uma clara atitude em que o problema aditivo com que se debatem há anos tudo justifica, como aliás demonstram os extensos antecedentes criminais de ambos, a pena única deve ser agravada dentro da moldura penal conjunta, empurrando-a de forma decisiva para um patamar bem mais elevado daquele em que o acórdão recorrido a destinou, considerando-se uma pena única não inferior a 11 anos. Termos em que, pelos motivos apontados, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em conformidade, condenarem-se os arguidos, a final, numa pena única não inferior a 11 anos de prisão».
Tem razão o MP quando diz que o facto nº 30 está incorrectamente formulado. De acordo com o depoimento a ofendida DD - que fomos ouvir no extracto de gravação indicada no recurso nº 2 -, quando o AA lhe disse para permanecer sentada no sofá durante uma hora, o dito arguido não lhe estava a agarrar um braço. Também é verdade que, ao contrário do que seria intenção do arguido AA, a ofendida DD não acatou a sua ordem, acabando por ir socorrer o marido (facto provado nº 18, parte final). Se assim é, não faz também sentido a formulação da parte final do facto nº 30 - «o que quis fazer, efectivamente fez e conseguiu». Deveria antes ser esta a sua formulação, de acordo com a prova por nós ouvida (far-se-á no Dispositivo a correcção deste facto): «30. O arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade – o que só não conseguiu porque DD não acatou a ordem dada por aquele arguido». No mais (conclusões nºs 19 a 21 do recurso nº 2), não vemos qualquer relevância jurídica do aí proposto como novo facto, nada adiantando à ilicitude dos arguidos, sobretudo devido à posição que haveremos de tomar, mais à frente, na fundamentação de DIREITO, sobre a questão do concurso entre os crimes de roubo agravado e de sequestro (não nos parecendo que esse «pedaço de vida», consubstanciado na prova do novo facto aludido na Conclusão nº 21, venha acrescentar algo a essa discussão conceptual, continuando nós a entender que a situação de sequestro do CC nunca extravasa a violência pressuposta pelo pretendido crime de roubo). 3.1.5. Como tal, não há qualquer razão para alterar a matéria de facto provada e não provada decidida pelo Tribunal a quo, para além do que se escreveu nos pontos 3.1.3 e 3.1.4.2. deste aresto. De facto: O arguido BB nunca perdeu o domínio do facto, podendo, a todo o tempo, pôr termo à sua execução, o que não fez. Foi assim bem encontrada a co-autoria, tendo o tribunal raciocinado correctamente, fazendo o cotejo de toda esta prova e do normal acontecer da vida (as tais regras da experiência), ao concluir que os dois arguidos tinham o domínio dos factos ilícitos, apontando tal acervo probatório para a prova inequívoca da actuação concertada de os arguidos, com tarefas repartidas. Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra os arguidos qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo. Aqui chegados, só há que constatar que o tribunal recorrido, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas, utilizando, de boa feição e pelo melhor método, as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência, não se vislumbrando qualquer vício no seu modo de decidir. Conclui-se, assim, que, não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados, sendo esse um mecanismo recorrente na formação da convicção («basta pensar na prova da intenção criminosa; a intenção, enquanto elemento volitivo do dolo - enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime -, na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado»). Improcede, assim, nesta parte, totalmente o recurso nº 1 e parcialmente o recurso nº 2. 3.2. SOBRE O DIREITO 3.2.1. Com estes factos assim fixados, ninguém duvida que foi correctamente feita a subsunção dos factos ao DIREITO, no que tange à imputação, a cada um dos arguidos, em co-autoria material, de dois crimes de roubo (um praticado sobre a pessoa do CC, outra na pessoa da DD). E são crimes agravados, face ao teor dos artigos 210º, nºs 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204º, nº 1, alíneas d) e f) do CP. 3.2.2. E que dizer do crime de sequestro? O tribunal entendeu que: «Aqui chegados, importa apurar se os crimes de roubo (agravado) e o crime de sequestro, imputados aos arguidos, se encontram numa relação de concurso real ou aparente, uma vez que a violência – traduzida na privação de movimentos – constituiu um dos meios de cometimento dos roubos. A este propósito importa atender ao disposto no artigo 30º, nº 1, ao prescrever que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Da norma citada decorre que se atende ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preenche o mesmo tipo legal de crime, assim se adoptando a unidade e pluralidade de tipos violados como critério básico de distinção entre a unidade e a pluralidade de crimes. No caso da pluralidade de crimes, uma das distinções em que as relações entre esses crimes integrantes dessa pluralidade podem ser catalogadas é a do concurso legal, aparente ou impuro (no qual a conduta do agente preenche formalmente vários tipos de crime, mas, por via de interpretação, conclui-se que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados) e, entre esta as relações de especialidade em que um dos tipos aplicáveis, o tipo especial, incorpora os elementos essenciais de um tipo aplicável, o tipo fundamental, acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente, situação em que só se aplicará o tipo especializado. Tem sido adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça a posição de que “entre os crimes de roubo e sequestro existe uma relação de concurso aparente (por uma relação de subsidiariedade) sempre que a privação da liberdade de locomoção não ultrapasse a medida naturalmente associada à prática do crime de roubo, como crime-fim; o concurso é, pelo contrário, efectivo, quando a privação da liberdade se prolongue ou se desenvolva para além daquela medida, apresentando-se a violação do bem jurídico protegido no crime se sequestro (a liberdade ambulatória) em extensão ou grau tais que a sua protecção não pode considerar-se abrangida pela incriminação pelo crime de roubo” (v. Ac. do S.T.J. de 05.01.2005, Proc. 04P4208, em www.dgsi.pt). No caso dos autos, não pode deixar de concluir-se que os factos dados por provados demonstram que a liberdade de circulação do ofendido CC não esteve coarctada para além do necessário e indispensável para o cometimento dos crimes de roubo, pelo que existe concurso aparente entre os crimes de roubo e de sequestro. Na realidade, a privação de liberdade ocorre durante o lapso temporal em que os roubos são perpetrados, logo os arguidos se ausentando do local após o cometimento destes crimes de roubo, deixando o ofendido CC no espaço da sua residência ou anexo da mesma; de resto, resultou da prova produzida que os ofendidos foram encontrados e socorridos pouco tempo após os factos, ou seja, logo depois de os arguidos saírem do local, cessando, então, em termos factuais, a situação de contenção de movimentos ou de sequestro; é manifesto que os arguidos não prolongaram tal sequestro do ofendido CC para além dos crimes-fim, ou seja, dos crimes de roubo agravado que levaram a efeito». Discorda o MP recorrente no recurso nº 2, defendendo a tese do concurso real e efectivo entre os dois delitos. Muito se tem discutido, na doutrina e jurisprudência, esta questão jurídica[8]. Tem sido entendido que o crime de sequestro, visando tutelar bem jurídico distinto do protegido pelo crime de roubo, poderá concorrer em concurso real com este. Contudo, só existirá concurso real se a privação da liberdade ambulatória, a liberdade "de ir ou de ficar", exceder a estritamente indispensável para exercer a violência ou ameaça ou para colocar a vítima na impossibilidade de resistir no contexto da consumação do roubo - e bem assim o tempo indispensável para a levar a cabo. Na realidade, quando a privação da liberdade não exceda aquele tempo, esgotando-se como meio em relação a "crime-fim" de roubo, sendo meramente instrumental deste, não há sequestro a considerar autonomamente (consumpção) – seja, não obstante a diversidade, em abstracto, dos bens jurídicos tutelados, não há lugar à sua autonomização. Como bem dissertou o aresto do STJ, datado de 24.9.2014 (Pº 146/13.5JAGRD.S1): «I- Na jurisprudência do STJ é uniforme o entendimento de que o crime de roubo consome o crime de sequestro, havendo concurso aparente entre eles, quando a privação da liberdade é a estritamente necessária e proporcionada para a consumação do roubo, mas o concurso já é efetivo se a privação da liberdade exceder o estritamente necessário para a consumação do roubo, quer quando se verifica contemporaneidade das condutas, quer quando o sequestro segue ou antecede o roubo. II - A privação da liberdade pode integrar o elemento típico da violência ou impossibilidade de resistir, constitutivos do crime de roubo, mas só na medida em que ela for necessária para a consumação do roubo. Quando a privação da liberdade ultrapasse o necessário para a consumação do roubo, há concurso efetivo de crimes, pois a punição do crime de roubo não abrangerá a violação do bem jurídico protegido pelo crime de sequestro. III -Quando o crime-meio assume, na conduta executada, uma relevância penal superior à do crime-fim, é intolerável subordinar o bem jurídico protegido ao tutelado por este ultimo. IV -A valoração do “sentido de ilícito dominante” como critério do concurso aparente leva a subalternizar, ou mesmo desproteger, de forma insustentável, bens jurídico-penais relevantes, tratados como meros “sentidos de ilícitos subordinados”. V - No caso do roubo, sendo o “sentido de ilícito dominante” a apropriação de bens alheios, pode acontecer que os meios utilizados (violência, ameaça, colocação da vítima na impossibilidade de resistir) ultrapassem manifestamente, em termos de ilicitude, a que está contida na apropriação patrimonial. Há uma medida de violência ínsita ou conatural ao roubo, e como tal incluída pelo legislador na previsão típica. Mas, ultrapassada essa medida, a violência adquire necessariamente autonomia. VI - A apropriação pode ser de quantia diminuta, mas ser intensa a ilicitude dos meios utilizados. Seria nesse caso insuportável, em nome desse critério formal (dominância do “sentido de ilícito” apropriativo), desprezar a proteção de bens jurídicos nucleares no sistema penal como a integridade física, a liberdade, a segurança pessoal, ou protegê-los reflexamente, em termos de graduação da pena do crime de roubo. VII - O recorrente alega que a privação da liberdade a que submeteu os ofendidos, quando se introduziu no interior dos seus automóveis e, sob a ameaça de um seringa, os obrigou a deslocarem-se para outra localidade, foi tão só o crime-meio, necessário para se apoderar das quantias levantadas nas caixas Multibanco. VIII - Todavia, ocorre concurso efetivo de crimes entre o roubo e o sequestro, tal como se decidiu no acórdão recorrido, quando a duração da privação da liberdade, que se manteve depois da consumação do crime de roubo, agravada pelo deslocamento territorial, revela um procedimento excessivo e desproporcionado, que ultrapassa a medida necessária e conatural à simples apropriação de bens alheios». Entre o sequestro e o roubo pode dever afirmar-se a existência de concurso efectivo, quando a duração da privação da liberdade de movimento não pode ser vista como “conatural” ou implícita na prática do roubo. Assim, sempre que o crime-meio ultrapassar a medida estritamente necessária à consumação do crime-fim, ele assume necessariamente autonomia dogmática, afastando decididamente o concurso aparente. Dito de outro modo: quando a privação da liberdade exceder a estritamente necessária para a execução do roubo, quando for desproporcionada para esse fim, quando se prolongar desnecessariamente para além da apropriação de bens, o crime de sequestro adquire autonomia, verificando-se um concurso efectivo de crimes. Veja-se a propósito a inspirada anotação de Cristina Líbano Monteiro em “Roubo e sequestro em concurso efetivo?”, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.10.2003, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15º (2005), nº 3, pp. 492-496: «Estou de acordo em que é possível encontrar casos de concurso efetivo entre roubo e sequestro. Além das hipóteses de claro desfasamento contextual e daquelas em que há vítimas diferentes, outras existirão porventura. Talvez mais evidentes se, ao contrário do que ocorre na hipótese em apreço, o roubo for praticado durante um sequestro prolongado e já em curso. (Embora se torne difícil imaginar a necessidade de fazer mais violência sobre uma pessoa em tais condições para fazer-se com algum objeto que ainda conserve em seu poder.) Venhamos, porém, aos casos normais, aos que deixam dúvidas, aqueles em que o plano do agente consiste em roubar, i. é, apoderar-se de coisa móvel alheia, usando violência para o conseguir; aos casos, para circunscrever o discurso, em que a violência (ou a colocação da pessoa na impossibilidade de resistir) se traduz na privação da liberdade, rectius na imobilização de quem pode levantar obstáculos à apropriação da coisa. O problema pode descrever-se como segue: em que momento se ultrapassa a fronteira do crime complexo de roubo e se torna necessário convocar outro tipo legal para acautelar um bem jurídico que a norma incriminadora do roubo também protege? Responde o Acórdão: quando a violência usada é desnecessária e exagerada para a efetivação do roubo, E quando é que isso acontece? Diz ainda o Supremo Tribunal de Justiça: quando se podia roubar sem tanta violência. Medida abstrata? Medida objetiva, a partir de um conceito de roubo médio? Discordo do critério – porventura muito generalizado. Explicarei brevemente porquê. O tipo legal do roubo provém, por assim dizer, de um concurso efetivo. Unificado pelo legislador, é certo, mas concurso. Não se torna difícil imaginar as combinações de delitos que pode conter. A um elemento constante, o furto - ainda que em rigor se contemplem ataques à propriedade que estão para além da subtração prevista no art. 203.° do Código Penal -, juntam-se ora a coação, ora a ameaça, ora ofensas à liberdade, à integridade física ou à própria vida (neste caso apenas negligentes). Não afirmo que todos os tipos nele estejam presentes com os exatos elementos que os configuram isoladamente - já exemplifiquei, no furto, zonas de não coincidência. Dito de outro modo. O roubo é crime autónomo, no sentido de desenhado com independência pela lei. E esta tem diante de si o mundo da vida e não apenas outros tipos de crime. A ação social de roubar viola simultaneamente bens patrimoniais e bens pessoais. Por isso o legislador oferece, com o tipo do roubo, uma proteção também plural. Ninguém contesta, pois, que esse crime congrega vários bens jurídicos que se mostram, por sua vez, aptos para fundar, individualmente, outras incriminações. Se assim é, deverá o intérprete redobrar a cautela, desconfiar, sempre que se trate de desunir o que a lei combinou, de devolver à efetividade o concurso que o tipo pretendeu tornar aparente. Ainda uma vez: porquê procurar na pluralidade criminosa o que o delito complexo trouxe para a unidade, criando uma moldura sancionatória própria?». Note-se que esta posição recebeu o apoio do Professor Jorge de Figueiredo Dias[9]. Alicerçado no seu (novo) critério sobre unidade e pluralidade de infracções, que elege a unidade ou pluralidade de “sentidos de ilicitude” como elemento determinante da diferenciação entre unidade e pluralidade criminosa e que caracteriza o concurso aparente como correspondendo às situações em que, embora havendo pluralidade de sentidos de ilícito, um deles é dominante e os restantes subordinados ou dependentes, o Mestre de Coimbra considera abrangido pelo concurso aparente os casos de relacionamento entre crime-meio e crime-fim, exemplificando com o concurso entre sequestro e roubo, manifestando expressamente a sua concordância com a posição subscrita por Cristina Líbano Monteiro naquele texto (com a discordância de Taipa de Carvalho). Como bem disserta Helena Moniz, «tudo estará em saber quando é que o sentido global do ilícito fica alterado de modo que aquele já não constitua simples meio, transformando uma conduta com um único sentido de desvalor em uma conduta com diversos sentidos de desvalor» (Agravação pelo resultado?, 2009, pp. 428-429, nota 76). A concluir, faremos apelo ao doutrinado pela decisão desta Relação, datada de 11.3.2009 (P520/06.3JARA.C1): I. «A pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Casos existem, no entanto, em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas –, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77º». II. Na esfera de protecção do crime de roubo pode estar contemplada uma pluralidade de ilícitos puramente instrumentais (crime-meio), os quais, por via de regra, estão numa relação de concurso aparente com o crime-fim. III – As condutas que conlevam da tipicidade das condutas engolfadas no nos crimes de roubo e sequestro assumem-se como um dos exemplos mais frequentes de relacionamento instrumental entre dois tipos de crime, ou seja, em que «um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu alcance e os seus efeitos. IV. Nos casos em que um crime se apresenta como meio da realização típica de outro crime a solução passa por reconhecer que existe concurso aparente e prevalece o crime dominante: o crime-fim. V. O crime de sequestro é um crime de execução permanente e não vinculada, em que se tutela o bem jurídico liberdade de locomoção, sendo a privação da liberdade e o constrangimento daí resultante uma das possibilidades de execução do crime de roubo. Quando a subtracção ou a entrega por constrangimento de coisa móvel é precedida ou contemporânea de privação da liberdade ambulatória, o critério reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência para discernir entre as situações de concurso real e de concurso aparente passa pela ultrapassagem, ou não, da medida naturalmente associada à prática do crime de roubo. Para tanto, a perspectiva que nos deve nortear encontra-se na vontade que, em concreto, animou o agente do crime, i.e. no desígnio criminoso». Ora, no nosso caso, não se comprovou que tenha havido uma privação absoluta da liberdade de movimentos ou de deambulação, designadamente que lhe tenham sido atados os pés, ou uma actuação dos arguidos dirigida no sentido de privá-lo da liberdade de se movimentar de um lugar para outro, movendo-os apenas a vontade de consumar os roubos projectados. Acresce que, sendo invisual o ofendido CC estaria ele, naturalmente, privado da uma liberdade de locomoção mais célere e expedita, sendo natural que ficasse quieto enquanto o roubo era consumado. Parece-nos, assim, e não obstante o esforço hermenêutico e argumentativo do MP recorrente, assente a matéria de facto provada em relação à vítima CC, que, in casu, não se preenchem os elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime de sequestro imputado aos arguidos, mantendo-se a violência utilizada dentro do âmbito da protecção do crime de roubo agravado. Ou seja, o sequestro aqui apenas foi utilizado como meio para a apropriação dos bens em causa [integrado no meio «pôr na impossibilidade de resistir», não se mantendo o sequestro para além do necessário à consumação do roubo (cfr. facto provado nº 19)]. Improcede, assim, nesta parte, o recurso nº 2. 3.2.3. E que dizer do crime de coacção agravada, tendo como vítima DD? O tribunal entendeu que: «Os arguidos vêm ainda acusados da prática, em co-autoria material, de um crime de coacção agravada, p. e p. pelos artigos 154º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea a), todos do Código Penal; Decorre do art. 154º, nº 1, o seguinte: “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão (...) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” Por seu turno o art. 155º, nº 1, al. a) prevê uma pena de prisão de 1 até 5 anos, se o facto for praticado “(…) por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (…)”. A coacção assume a forma de violência e/ou de ameaça, sendo um crime contra a liberdade de decisão e de acção, sendo este o bem jurídico protegido – cfr., entre outros, Vitor de Sá Pereira, Código Penal Anotado, Quid Juris, pags. 448/451. Também aqui inexistem factos provados relativos aos arguidos, visando a ofendida DD que integrem a prática deste tipo de ilícito. A violência exercida foi a utilizada para a prática dos crimes de roubo agravados; e nenhum outro mal é anunciado à ofendida DD, que logo vai ao encontro do marido para o socorrer, assim que os arguidos saem da sua residência. Não se verifica, pois, este tipo de crime». Discorda o MP, defendendo que, face à nova formulação do facto provado nº 30 (questão já por nós decidida), se deve concluir que os arguidos cometeram o crime de coacção agravada, na forma tentada, sobre a pessoa da DD. Discorre assim: «Contudo, não podemos concordar que a violência exercida foi a utilizada para a prática dos crimes de roubo agravado. É certo que nenhum mal foi anunciado à ofendida DD, mas também é certo que aqui não está em causa a ameaça de um mal. Nem tão pouco o uso da violência estrito senso. Mas temos de ter presente um conceito de violência evoluído, tendo em conta que os seus exatos contornos não são definidos pela lei penal, embora esta possa lançar algumas pistas para a sua conceptualização. Longe vão os tempos em que se defendia um conceito estrito ou literal de violência, remetendo-se somente para a violência física para, mais recentemente, se aceitar determinadas de condutas de natureza física, como disparar tiros para o ar ou destruir objetos, começando-se, depois, a aceitar até a violência psíquica, aceitando-se determinadas condutas que apesar de não se reconduzirem à força física, eliminam ou diminuem a resistência da vitima, falando-se até no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/04/1995 (publicado em www.dgsi.pt) em ambiência de violência enquanto conduta dos agentes suscetível de provocar um estado emocional de medo, na pessoa da vítima. Assim, é incontornável que o arguido AA atua a coberto de uma ambiência de violência decorrente da violência utilizada no cometimento dos crimes de roubo agravado de que os arguidos foram condenados, sendo suficiente para o preenchimento do tipo de crime a possibilidade de, perante tal ambiência, o anúncio contido na mensagem ser idóneo a provocar na pessoa a que se dirige receio, medo ou inquietação que afete ou prejudique a sua liberdade de determinação e ação. No caso dos autos o arguido já havia encostado uma faca ao pescoço da ofendida, percorrido a residência desta, com ela agarrada pelo pescoço, na procura de dinheiro e ouro, já a havia atirado ao chão por duas vezes, sendo uma delas contra os degraus da escada, pelo que afigura-se-nos idóneo ao preenchimento do crime de coação o facto do arguido AA dizer à ofendida DD para permanecer sentada o sofá durante uma hora e só depois poderia LL seu marido, o ofendido CC, que se encontrava no barracão, sob vigilância do arguido BB. De resto, é o Tribunal “ad quem” quem dá como provado no ponto 30 dos factos dados como provados que o arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade (ponto 30 dos factos dados como provados). É certo que de tal frase não se retira qualquer circunstância agravante suscetível de preencher a previsão do artº 155º, nº 1, al. a), do Código Penal, mas tal significaria, tão-somente, que se estaria perante a prática de um crime de coação na sua forma simples. Contudo, verifica-se ainda a circunstância agravante prevista no artº 155º, nº 1, al. b) do Código Penal, atenta a sua idade. Concorda-se, contudo, que a conduta do arguido AA não teve a virtualidade de levar a que a ofendida DD tivesse ficado constrangida na sua liberdade, dado que esta não acatou a ordem dada. Mas tal significa que estamos perante a prática do ilícito criminal em referência na sua forma tentada. Termos em que, salvo melhor opinião, os arguidos cometeram um crime de coação agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos art.os 154º, n.os 1 e 2, 155º, nº 1, al. b), 22º, n.os 1 e 2, al. a), 23º, n.os 1 e 2, e 73º, todos do Código Penal». Também aqui estamos do lado do tribunal recorrido. Olhando para a dinâmica desta acção, e seguindo um pouco a lógica do explanado no ponto anterior, conclui-se que esta conduta dos arguidos – que integra o crime de coacção agravada, na forma tentada – ocorreu antes da consumação dos crimes de roubo, não obedeceu a um desígnio diverso e não ofendeu um bem jurídico tutelado por norma diversa: esta coacção teve tudo a ver com o roubo, evitando-se com ela que fossem surpreendidos pelas vítimas e que estas pudessem chamar por socorro. «Entre o tipo legal de roubo e o de furto, assim como entre o roubo, a coacção e a ameaça, existe uma relação de concurso aparente (consunção), pela qual o roubo engloba o furto, a coacção (cujo tipo legal já abrange o de ameaça) e a ameaça» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, 177). Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense do CP, 1999, Tomo I, p. 368, defende mesmo que «as coacções, mediante ameaças ou ofensas corporais simples, exercidas imediatamente a seguir à execução do roubo e com o único objectivo de impedir a perseguição, são consumidas pelo crime de roubo». Por isso, não vislumbramos no caso suficiente ilicitude que permita a autonomização do crime de coacção agravada (factos nºs 18 e 30), optando-se pelo concurso aparente, como se defendeu na decisão recorrida. Improcede, assim, nesta parte, o recurso nº 2. 3.2.4. Restam as penas. Quanto a elas, genericamente, a defesa entende-as como exageradas, apenas peticionando a sua redução substancial. Já o MP, no seu recurso, entende que deveria ter sido aplicada, por cada crime, uma pena de 8 anos de prisão. Já sabemos que apenas está em causa a punição de cada um dos arguidos pela prática de dois crimes de roubo agravado [artigo 210º, nºs 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204º, nº 1, alíneas d) e f) do CP]. O que temos em termos de molduras penais abstractas quanto aos dois delitos cometidos? Pelo crime de roubo agravado incorrem os arguidos numa pena abstracta de prisão de 3 a 15 anos. O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção», sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. Quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que estes delitos pretendem obviar à violação da propriedade alheia, através da apropriação violenta de tais bens. Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à abundante violação da norma e ao desrespeito generalizado e constante pela propriedade alheia (as penas não surtem o seu desejado efeito pois as reiterações criminosas são por demais evidentes e constantes). A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal abstracta é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações». Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações: · a)- determinação da medida abstracta da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa); · b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do Código Penal (inaplicável in casu); · c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respectiva, com base nos critérios do artigo 71º, do Código Penal; · d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição; · e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta). Sobre a concreta medida das duas penas parcelares e, tendo estas de ser sempre penas de prisão, ajuizamos no sentido de as considerar demasiados benévolas, atento todo o clima de terror vivido por este casal, face sobretudo ao passado criminal destes cidadãos, há muito envolvidos em meios marginais, pouco ou nada tendo feito para se regenerar, também, do seu jugo estupefaciente (os factos provados quanto aos seus antecedentes criminais falam por si – o arguido AA, entre 1998 e 2014, praticou crimes de roubo, de dano, de furto qualificado e de passagem de moeda falsa, conhecendo vários períodos de reclusão, e o arguido BB, entre 2001 e 2009, praticou crimes de furto, de condução sem habilitação legal, de roubo, de introdução em lugar vedado ao público, de coacção agravada e de furto de uso de veículo, conhecendo vários e prolongados tempos de reclusão), nada trazendo a defesa nos seus argumentos recursivos que possa justificar uma maior benevolência (o argumento de que não pode o Colectivo estribar-se no curriculum criminal dos arguidos é absurdo, face ao estatuído no artigo 71º, nº 2, alínea e) do CP, não se aceitando a tese de que o BB padece de «ingenuidade e diminuição psíquica», nada provada no acervo factual). Concordando em pleno com o juízo do tribunal recorrido: · no que à prevenção geral diz respeito, note-se que as exigências se afiguram muito elevadas já que os crimes contra o património e contra as pessoas, como é o crime de roubo, são dos mais praticados na área desta comarca e um pouco por todo o país, importando, pois, repor a confiança na norma violada, havendo que concluir pela necessidade de rigor punitivo para desincentivar a prática destes ilícitos; · as circunstâncias que rodeiam a prática dos crimes são muito graves, pois a violência exercida é já de alguma dimensão; · há que levar em conta que os objectos roubados foram recuperados, não por qualquer contrição dos arguidos mas por força de uma eficaz perseguição policial; · os arguidos agiram sempre com dolo directo, na sua modalidade mais intensa; · ambos têm plúrimos antecedentes criminais por crimes da mesma natureza dos presentes. · a sua imagem na comunidade é negativa; · só o arguido AA confessou – e parcialmente – os factos. Como tal, e concordando em pleno com os argumentos do MP, aplicaremos a cada um dos arguidos[10], pela prática de cada um dos crimes de roubo agravado, uma pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, ainda assim, abaixo da média da moldura penal abstracta de cada um dos crimes de roubo (situada nos 9 anos). Assente o teor das penas parcelares, haverá apenas que determinar a concreta medida da pena de cúmulo, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1 do CP). O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente». A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado. Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011): «A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77º, nº 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/08. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique». Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização». Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta. Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ. (…) Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes. (…) Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária. Por duas razões fundamentais: · É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso; · A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa. Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por: · Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes · A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares. · Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente). Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta. De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime». Nesta nossa situação, optou-se por uma pena de prisão de 8 anos para cada arguido. Já sabemos que, tendo em conta as regras estabelecidas para o conhecimento superveniente do concurso, o tribunal que procede a cúmulo, na ponderação da pena única a aplicar, terá de proceder a uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, sendo essa necessidade de avaliação conjunta que determina que se considere nessa ponderação todas as condenações, sejam elas em pena de prisão efectiva ou suspensa, de modo a poder pronunciar-se sobre a medida da pena conjunta e, então, decidir ou não pela suspensão da execução dessa pena, como faria caso o conhecimento do concurso fosse simultâneo e não superveniente. Ou seja, a não manutenção da suspensão da execução da pena não está directamente fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, mas sim na circunstância de só posteriormente se ter conhecimento desses factos e, por essa razão, se ter de proceder supervenientemente ao cúmulo jurídico. No nosso caso, e bem, o tribunal optou por uma pena cumulativa efectiva de prisão. E aqui chegados, diremos que também nós consideramos exígua a pena de cúmulo, muito mas muito abaixo da linha média da moldura do cúmulo (que se situa nos 11 anos) E para tal considerar nem sequer carecemos de lançar mão de acrescida fundamentação jurídica. Os factos e as vidas pregressas dos arguidos falam por si. Por isso, numa visão global do percurso destes arguidos, useiros e vezeiros em delapidarem património alheiro, somos de opinião que a pena de 10 anos de prisão, em cúmulo, será mais adequado e proporcional às culpas dos agentes. Uma pena inferior a essa, mormente a que foi aplicada em Castelo Branco, revelar-se-ia manifestamente insuficiente face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir. 3.3. Face ao exposto, só resta fazer improceder na sua globalidade o recurso intentado pelo arguido, procedendo parcialmente o recurso do MP. III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 1º- Proceder à alteração da matéria dada como provada, nos seguintes moldes: · O facto nº 26 terá a seguinte redacção: o «26. No âmbito do plano inicialmente delineado pelo arguido AA, ao qual o arguido BB aderiu no dia dos factos, os arguidos, aos abordarem os ofendidos DD e CC, da forma como o fizeram, através do recurso à força física, nomeadamente, tentando amarrar as mãos do ofendido, e ao ser por um deles desferido um pontapé na sua cabeça, e ainda ao empunharem uma faca de cozinha junto ao pescoço da ofendida, conseguiram fazer seus os referidos objectos, sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade daqueles». · O facto nº 30 terá a seguinte redacção: o «30. O arguido AA agiu com o propósito de, pela forma descrita, levar a que DD se mantivesse em silêncio bem sabendo que a frase por si proferida era idónea a constranger a liberdade de determinação da mesma, que se tratava de uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, provocando-lhe receio que atentasse contra a sua vida, saúde ou integridade física caso não cumprissem a sua vontade – o que só não conseguiu porque DD não acatou a ordem dada por aquele arguido». 2º- Negar provimento ao recurso intentado pelo arguido BB; 3º- Dar parcial provimento ao recurso intentado pelo Ministério Público, e, assim: · 3.1. Condenam os arguidos AA e BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º nºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204º, nº 1, als. d) e f), ambos do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, para cada um dos crimes e para cada arguido; · 3.2. Condenam os arguidos AA e BB, procedendo ao cúmulo jurídico das penas anteriormente referidas, na pena única de 10 (dez) anos de prisão para cada um dos arguidos. Sem tributação o recurso nº 2. Quanto ao recurso nº 1, as custas correm a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza. Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado. Coimbra, 5 de Fevereiro de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Sara Reis Marques Adjunto: Maria da Conceição Miranda [1]O outro arguido AA não recorreu do acórdão. [2]Vamos usar numeração árabe e não romana, por dificuldades na transcrição da numeração constante do recurso em causa. [3] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa. Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339º, nº 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa. Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [4] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual. Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019). [5] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica. Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso. Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido. Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l. Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (nº 1 do artigo 163º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do nº 2 do artigo 410º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494. No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666. Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930». [6] Embora na motivação o Colectivo diga que se fez prova que o AA – p. 18 - pontapeou a vítima uma vez na cabeça, a verdade é que do facto nº 8 não se retira a identificação clara de qual dos dois o fez, o que, nesta situação é indiferente atenta a situação de clara co-autoria entre os dois. [7] Como diz Faria Costa (Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, pág. 174), «A primeira ideia que ressalta… é a de que a cumplicidade experimenta uma subalternização, relativamente à autoria. Há, pois, uma linha que se projecta não na assunção de todas as consequências… mas que se fica pelo auxílio. Isto é, fazendo apelo a um velho critério…, deparamo-nos aqui com uma causalidade não essencial». [8] Recordemos o básico (cfr. acórdão desta Relação datado de 25.10.2023 – Pº 332/22.7JACBR.C1): «III. No concurso aparente de crimes ocorre uma relação de consunção quando o preenchimento de um tipo legal, mais grave, inclui o preenchimento de outro tipo legal, menos grave, devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto, resultando dos princípios ne bis idem e lex consumens derogat lex consumate que só se aplica o tipo mais grave. IV. Quando acontece o inverso e o crime mais grave acompanhar um crime menos grave, ocorre uma consunção impura, aplicando-se a norma mais leve. V. O crime instrumental ou crime-meio é aquele em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos, representando, por isso, a sua valoração autónoma e integral uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração». [9] Direito Penal, 2ª ed., 2007, pp. 988-991, 1015 e 1018-1019. [10] Se é verdade que o AA foi mais activo na acção, também o é que o arguido BB é o que apresenta mais antecedentes criminais, justificando-se assim a paridade nas penas. |