Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
171/11.0TASCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
INIBIÇÃO DE CONDUZIR
NÃO ENTREGA DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 69º CP, 500º CPP
Sumário: Não comete o crime de violação de imposições nem o crime de desobediência o arguido que não cumpre a decisão judicial que o condenou a entregar a licença de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito da mesma.
Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de processo comum nº 171/11.0TASCD do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão em que é arguido

            A..., residente na Rua …

         Pelo Ministério Público foi deduzida acusação imputando-lhe prática em autoria material, de um crime de violação de imposições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal.

            Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido absolver o arguido do crime que lhe era imputado.

           

2. Desta decisão recorre o Ministério Público, que formula, em síntese, as seguintes conclusões:

2.1. A entrega da carta dentro do prazo legalmente determinado para efeitos do início do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor é subsumível no tipo objectivo do artigo 353º do CP.

2.2. Apenas considerando que a omissão de entrega do título de condução é criminalmente punível é possível conferir utilidade à redacção do artigo 69º. Nº 4, 2ª parte do Código Penal.

2.3. O tipo do artigo 353º do CP engloba o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo, integrando tanto o próprio conteúdo da pena acessória de proibição de conduzir como as imposições processais decorrentes da aplicação da dita pena.

2.4. A obrigação da entrega do título de condução embora não faça parte integrante do núcleo da pena acessória de proibição de conduzir, continua a ser parte da referida pena.

2.5. Os factos dados como provados preenchem os elementos objectivos e subjectivo do crime do artigo 353º, do CP.

2.6. A conduta omissiva do arguido não é subsumível ao tipo do crime de desobediência atento o carácter subsidiário deste crime.

2.7. Pelo que deve ser o recurso ser julgado procedente revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra que condene o arguido  pela prática em autoria material, de um crime de violação de imposições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal.

            3. O arguido não respondeu ao recurso.

            4. Nesta instância, a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta, convocando os argumentos expendidos em primeira instância pelo Ministério Público, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

            5. Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.


II

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida com relevância para apreciação da questão de mérito:

Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido A... foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por sentença transitada em julgado a 14 de Abril de 2011 e proferida no âmbito do Processo Sumário n.º 44/11.7GDSCD que corre termos no 1º Juízo deste Tribunal Judicial de Santa Comba Dão - notificada pessoalmente ao arguido a 15 de Março de 2011 - numa pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano na condição do arguido se submeter a consulta de toxicologia e seguir o tratamento que aí lhe for prescrito, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por um período de 18 meses.
2. Mais foi determinado por esta decisão condenatória, nela constando, que o arguido deveria entregar, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da dita decisão, a sua carta de condução, na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da sua área de residência; facto de que o arguido foi igualmente notificado, pessoalmente, no dia 15 de Março de 2011.
3. Não obstante ter sido devidamente notificado, o arguido apenas entregou, neste Tribunal, os títulos de condução de que é titular (Carta de Condução n.º  …, Carta de Condução de Tractores Agrícolas n.º  …  e Licença de Condução AND … ) no dia 20 de Maio de 2011, sem que apresentasse qualquer justificação da sua apresentação para além dos 10 dias após o trânsito em julgado, tal como havia sido imposto pela dita sentença.
4. O arguido sabia que era obrigado a entregar, e no prazo fixado, os títulos de condução de que era titular por imposição da sentença criminal condenatória proferida no referido Processo Sumário; sentença esta cujo conteúdo o arguido entendeu e a qual o mesmo sabia dever respeitar, mais sabendo que tal imposição fora emanada por entidade competente e que estava obrigado ao seu cumprimento.
5. Não obstante, o arguido não respeitou o determinado na dita sentença, agindo livre, voluntária e conscientemente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e passível de ser punida por lei.

Mais se provou que:
6. O arguido é solteiro e reside com os seus progenitores, em casa própria destes. O arguido está desempregado e não recebe qualquer subsídio, o pai do arguido está reformado e recebe uma pensão de reforma mensal de cerca de 300,00 euros e a mãe do arguido é doméstica. O arguido trabalha com o progenitor efectuando agricultura de subsistência. O arguido é proprietário de um tractor e de um veículo automóvel e paga dos respectivos seguros a quantia anual global de cerca 310,00 euros. O arguido estudou até ao 7.º ano de escolaridade.
7. O arguido efectuou recentemente um tratamento para o alcoolismo.
8. O arguido é pessoa considerada na comunidade em que se insere.
9. O arguido foi condenado em 11 de Fevereiro de 2008, pela prática em 11 de Fevereiro de 2008, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias.
10. O arguido foi condenado em 2 de Março de 2011, pela prática em 15 de Março de 2011, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena 4 meses de prisão, suspensa por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 18 meses.
11. O arguido foi condenado em 29 de Junho de 2011, pela prática em 2 de Agosto de 2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena 4 meses de prisão, suspensa por 1 ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 16 meses.


III

Questão a apreciar:

Se a não entrega da carta de condução, pelo arguido, na secretaria do Tribunal ou num posto policial, no prazo de 10 dias, contados a partir do trânsito da sentença, na sequência da notificação feita ao mesmo, viola o disposto no artigo 353º, do CP.


IV

Cumpre decidir:

1. Conforme resulta dos autos, ao arguido foi imputada, na acusação pública, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de imposições do artigo 353º, do CP.

Entendeu o tribunal a quo, decidindo nesse sentido, de que a conduta do arguido não preenche a prática daquele crime, absolvendo-o do mesmo[1].

É exactamente contra esta decisão que o recorrente se insurge.

E cita, a propósito, alguns acórdãos deste TRCoimbra, nesse sentido, corroborando assim a posição que expressa no recurso.

Quer na sentença recorrida quer nas alegações de recurso do Ministério Público faz-se eco da divergência jurisprudencial sobre esta matéria, que se mantém. Sendo certo que também na própria magistratura do Ministério Público, a posição não é uniforme, segundo nos apercebemos exactamente no processo que infra se referirá - processo nº 697/09.6TAACB.C1.

Com efeito, esta questão foi já por nós apreciada neste Tribunal da Relação de Coimbra por acórdão de 23.11.2011, proferido no processo nº 697/09.6TAACB.C1, em que somos relator e também no proc. 20/11.0TAANG.C1.

Tal como dissemos então, esta concreta matéria como tantas outras em direito e designadamente em decisões dos Tribunais, não está a merecer consenso, antes se mantendo diferentes posições jurisprudenciais, entendendo umas que existe crime de violação de imposições do artigo 353º, do CP, entendendo outras que existe crime de desobediência e finalmente entendendo outras que não existe nem o crime de desobediência nem o crime do artigo 353º, do CP.

2. É com esta última posição que nos identificamos.

No acórdão supra referenciado – de 23.11.2011, proferido no processo nº 697/09.6TAACB.C1 – dissemos sobre a questão:

“O actual art. 353.º do CP – vigente à data dos factos -, dispõe que «Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.».

Esta disposição merece, pois, desde logo, a seguinte leitura:

Pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
           
Ou seja, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória.

Logo, não pratica o crime quem não cumpre meras obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória, como é a cominação da entrega da carta de condução.

É, pois, nesta dicotomia e diferenciação entre o conteúdo material da pena acessória definido pelo legislador no art. 69º, nº1, do Código Penal e o conteúdo meramente processual, este definido no artigo 69º, nº 3, do mesmo diploma – que regula o cumprimento da pena acessória e o seu controlo, como acontece com o disposto no artigo 500º, nº 2, do CPP -, que deve ser interpretado o teor do artigo 353º, do CP.

A imposição material penal que consta da sentença é a “proibição de conduzir”, pelo tempo aí fixado.

Esta interpretação mais sentido faz se se atentar no seguinte:

A execução da pena acessória só tem início com a entrega da carta ou da sua efectiva apreensão – posição largamente maioritária da jurisprudência, que também perfilhamos.

Se e enquanto o arguido condenado não entregar a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão.

Entregue a carta ou concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena.

Se no período que durar a proibição o arguido conduzir, então sim, põe em causa a imposição que resulta da pena acessória e comete o crime de violação de proibições.
           
A contrario, pode afirmar-se que a falta de entrega da carta constituirá obrigação processual do condenado, não punível.

2.1. Poderá sempre argumentar-se que não faz sentido esta interpretação, pois o legislador já prevê a punição da conduta do condutor que, estando inibido de conduzir, apesar de tudo o faz. Punição prevista no artigo 138º, do Código da Estrada, com o crime de desobediência qualificada.

Entende-se, contudo, não existir a aparente duplicação de punição da mesma conduta se se fizer a seguinte interpretação:

O artigo 138º, do CE regula as sanções específicas praticadas, previstas e punidas à luz daquele diploma.

O nº 1 do artigo 138º refere-se expressamente às contra-ordenações graves e muito graves punidas com sanção acessória.

No presente caso, estamos perante a prática de crime punido com pena acessória artigo 69º, nº1, do CP.

São sanções, lato sensu, com previsão e punição diferentes.

Como são diferentes, por regra, as entidades que as julgam e aplicam: no primeiro caso a entidade administrativa; no segundo, os tribunais.

E a referência que o nº 2 daquele preceito (art. 138º) faz a sentença transitada em julgado, harmoniza-se com esta interpretação na medida em que, sendo a regra da competência para o julgamento das contra-ordenações, da entidade administrativa, está também prevista a intervenção do tribunal – sendo sempre uma intervenção excepcional ou pontual -, quer em situações de recurso da decisão da entidade administrativa, quer ao abrigo dos artigos 77º e 78º, do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, que institui o Ilícito de Mera Ordenação Social. Em todo o caso, o tribunal não deixa de apreciar tão somente uma contra-ordenação e não a prática de um crime.

Acresce que, a previsão do artigo 353º do CP é muito mais ampla que a do artigo 138º, do CE, específico para a inibição imposta ao condutor.

Não deixa de ser, de somenos relevância, a coincidência nas punições previstas quer no artigo 353º do CP quer no artigo 138º, nº 2 do CE, em conjugação com o artigo 348º, nº2, do CP, em que a medida da pena abstracta é, em ambos os casos, a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

3. Retomando a questão inicial, elucidativo mostra-se, a propósito, o decidido no ac. deste TRC de 12.5.2010, proferido no proc. nº 1745/08.2TAVIS.C1, onde se a afirma:

Decorre dos preceitos acima transcritos que a referida pena acessória só é executada, por isso cumprida, a partir do momento em que o condenado entrega o título ou este lhe é apreendido em conformidade com o art.º 500/3 do CPP.
            Isto porque logo no número seguinte, ou seja, no n.º4 do falado artigo 500º se estatui que a licença de condução ficará retida na secretaria [após a sua entrega ou a sua apreensão] «pelo período de tempo que durar a proibição».
            O que significa que o cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.
            De outro modo poderiam ocorrer situações em que no momento da sua apreensão o arguido pudesse invocar ter já decorrido o tempo do cumprimento da pena.
            Daqui poder defender-se que será irrelevante para a integração do tipo [violação de imposições, proibições ou interdições judiciais] o facto do condenado continuar a conduzir até à data da apreensão do título, pois só a partir dela se iniciará o cumprimento ou execução da pena da proibição de conduzir.
            Só no período de execução da pena fará então sentido falar-se em violação de proibições judiciais. Até à entrega espontânea ou forçada da licença de condução não haverá execução da pena e consequentemente violação de proibição judicial.
            Se bem se atentar na redacção do tipo e para o que ao caso interessa, nele se dispõe que comete o crime «quem violar imposições ou proibições determinadas por sentença criminal
a título de pena acessória».
            Ou seja, o tipo prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória.
            E a pena acessória no caso consubstancia-se na “
proibição de conduzir veículos com motor pelo período de …”. Pergunta-se -, a obrigação de entrega no indicado prazo da carta de condução integra tal proibição? Obviamente que não! É apodíctico que não integra a pena a obrigação da entrega da carta nas indicadas condições.
            O legislador poderia tê-la incluído no tipo ou noutro, v.g., de desobediência, mas não o fez. Para o caso engendrou outro sistema de procedimento que o aplicador da lei até poderá criticar invocando v.g. a desarmonia do sistema face ao que se passa com o sistema contraordenacional do Código da Estrada; mas o que não pode é interpretar o tipo de modo a incluir situações nele não previstas, em violação do art.º1 do Código Penal.
            Só a partir do momento em que o agente fica privado do título poderá ocorrer, com relevância penal, a frustração de imposições ou proibições sancionatórias constantes de sentença criminal, só então se podendo ver perfectibilizada a previsão dos elementos objectivos do tipo.
            Como foi dito pelo ilustre Conselheiro Henriques Gaspar em declaração de voto no Ac. do STJ/ Fixador de Jurisprudência n.º8/2008 [DR I-A de 5/8/2008] – “ O princípio da legalidade (…) significa (…) que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (…)
            É princípio inscrito como direito fundamental também em instrumentos internacionais, com conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa.
            …

A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências (…) o que releva (…) é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem, é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão).
            Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (…) está preenchida quando o indivíduo possa saber a partir do texto pertinente (…) quais os actos ou omissões que constituem infracção e pelos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto.
            Nesta perspectiva de ordenação da garantia, uma norma não pode ser considerada como «lei» para efeito da protecção contida no artigo 7.º da Convenção se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (…).
            Nos termos em que a garantia do artigo 7.º da Convenção tem sido considerada, o princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revelar suficientemente clara. (…)
            Por isso, o princípio significa «que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (cf. Figueiredo Dias, op. cit, p. 168).
            O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. (…) A interpretação em direito penal (e sancionatório, em geral) não pode desconsiderar princípios fundamentais - tipicidade; legalidade; não retroactividade in malam partem; proibição de analogia. (…)    A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão.
            A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.
            E, como é dos princípios, em direito penal (e sancionatório) não há integração de lacunas (…).”
            A actuação em causa não cabe na letra da lei (art.º 353º do CP), sendo imposição do princípio da legalidade em matéria criminal que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de se entrar no domínio proibido da analogia.

A certeza e a previsibilidade exigíveis aos tipos afere-se pelo que é possível extrair directamente da sua letra.
            Ora, como refere a sentença, o preceito em causa não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem”.

             4. Exemplificando o enunciado acabado de transcrever, diremos o seguinte:

            Também a pena de multa, diz o artigo 489º do CPP, deve ser paga no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado da sentença[2].

            Se porventura o julgador, na sentença, fizer a cominação ao arguido de que, se não pagar a multa, cometerá um crime de desobediência e o arguido efectivamente não pagar, com certeza que será entendimento generalizado que esta cominação é ilegal. Que não pagando o arguido voluntariamente a multa naquele prazo, deverá proceder-se à sua execução – artigo 491º, do CPP. Do mesmo modo que, não entregando o arguido a carta de condução voluntariamente, se procederá à sua apreensão.

            Igual analogia se pode fazer quanto ao cumprimento da pena de prisão por dias livres, nos termos do artigo 487, nº 3, do CPP.

            Se também neste caso o tribunal ao entregar ao arguido cópia da decisão e da guia de apresentação no estabelecimento lhe fizer a cominação de que, caso não compareça, incorrerá num crime de desobediência e o arguido efectivamente não comparecer, com certeza que será mais uma vez entendido que esta cominação é ilegal. O cumprimento da pena será, nesta situação, feita em regime contínuo, passando-se para o efeito mandados de captura do arguido – como se dispõe no preceito..

            Outros exemplos serão possíveis. Mas o que deve ser efectivamente realçado é que não se pode favorecer a criação de um tipo legal de crime com uma ordem que se afigura ilegítima, por exigência dos princípios da legalidade e da tipicidade, transformando a imposição do Juiz numa fonte de responsabilidade criminal numa situação que manifestamente o legislador não regulou nem quis regular.

            5. Regressando à similitude e também divergências entre as previsões do artigo 138º do CE e artigo 353º, do CP, dir-se-á o seguinte:

            A cominação legal do artigo 138º, do CE é a prática de um crime de desobediência qualificada punido com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

            A desobediência para a cominação à luz do artigo 69º, nº 3, do CP, para a corrente que aceita a prática de tal crime, é uma desobediência simples, punida apenas com prisão até um ano ou multa até 120 dias.

            Existe (existiria), assim, uma clara incoerência neste regime de punição.

            A não ser que se interprete, como já supra se referiu, que a violação da imposição da pena acessória seja punida ao abrigo do artigo 353º, do CP, preceito onde, por sua vez, não cabe já a violação prevista no artigo 138º, do CE.

            Ou seja, o legislador fixou a punição da violação de uma sanção acessória de inibição de conduzir imposta na sequência da prática de uma contra-ordenação, grave ou muito grave, como desobediência qualificada - artigo 138º, do CE.

            E fixou a punição da violação de uma pena acessória imposta na sequência da prática de um crime ao abrigo do artigo 69º, nº1, do CP, como crime do artigo 353º, do CP.         Existindo assim coerência e compatibilidade no ordenamento jurídico”.

            3. São estes os argumentos que nos levaram e levam a entender que os factos consubstanciadores da conduta imputável ao arguido – provada nos autos -, não preenchem a prática do crime do artigo 353º, do CP.

            Estes fundamentos mantêm-se. Neste sentido se tem vindo a decidir nesta Relação, segundo uma das posições defendidas, como aconteceu nos acs. de 12.7.2011, proc. nº 295/09.4TAVIS.C1 e de 9.11.2011, proc. nº 984/09.3TAVIS.C1, ambos consultáveis na base de dados do ITIJ.

            Razão suficiente para se concordar com o teor da sentença recorrida e, consequentemente julgar improcedente o recurso do Ministério Público.


IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.

Sem custas.

Coimbra,

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            (Relator, Luís Teixeira)

            ______________________________________

            (Adjunto, Calvário Antunes)


[1] Entendendo, todavia que pode preencher o crime de desobediência.

[2] Do mesmo modo que a carta deve ser entregue pelo arguido condenado na pena acessória de inibição no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, ao abrigo do artigo 69º, nº 3, do CP.