Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | SARA REIS MARQUES | ||
Descritores: | DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA INDÍCIOS SUFICIENTES ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO REMESSA PARA OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO IMPUGNADA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA, JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 360.º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL; ARTS 127º E 425º, Nº 5 DO CPP. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1 - O acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
2 - Deve, pois, considerar-se que o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia é um acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400. °, n. º1, alínea d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: * * * No Juízo Central de Instrução Criminal de Coimbra, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi proferido despacho, datado de 17/12/2024, de não pronúncia do arguido AA, melhor id. nos autos, pela prática dos factos que lhe são imputados no requerimento para abertura da instrução e determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos. “ 1. O presente recurso tem por objeto a dissensão da assistente em relação à decisão instrutória, que considerou inexistir indiciação suficiente para submeter o arguido a julgamento pelo crime de falsidade de depoimento. 2.Na motivação, além da descrição, na fração saliente, dos atos processuais relevantes, foi delineado o quadro teórico-jurídico caracterizante do crime de falsidade de depoimento. 3.Subsistem, na totalidade, as objeções invocadas pelo assistente no RAI, que se mostram reproduzidas na presente peça, porquanto se entende não terem sido infirmadas pelo arrazoado do M.mo Juiz de Instrução – por isso, repristinam-se aqui tais observações, pois que consolidam a referência nuclear deste recurso. 4.O M.mo Juiz, na esfera da motivação dos factos, aderiu irrestritamente ao argumentário trilhado no despacho de arquivamento. Fê-lo da subsecutiva forma: “[…] merece concordância o exarado pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, no sentido de que o ora arguido não chegou a entrar em verdadeira contradição, quando depôs como testemunha, aquando do julgamento, não podendo concluir-se […] que o arguido tenha, deliberada e conscientemente, mentido, tendo, por várias vezes, dito, expressamente, já não se recordar do que lhe era questionado ou do que com o que era confrontado […]. Acresce que o ora arguido referiu que […], a partir de determinada altura, chegava a não se recordar devidamente […]”. Mais ajuntou “[…] que as contradições e incongruências afiguram-se de escasso relevo, na consideração global do depoimento e do seu relevo enquanto tal […]” 5- Nesse conspecto, o M.mo Juiz desvalorizou erradamente o comportamento dessultório e assimétrico do arguido e, com tal procedimento, preteriu o correspondente desígnio da prestação de um depoimento falso, que deflui concludentemente dos depoimentos por ele prestados na fase de inquérito e na fase de julgamento. 6. Na verdade, basta colacionar tais depoimentos, ainda que de forma algo ligeira, para se colher o indigitado propósito de faltar à verdade. 7. O descompasso e assincronia dos depoimentos foram assentados, indiciária e objetivamente, na decisão instrutória, sob os números 1 a 5. 8.O depoimento prestado pelo ora arguido, em julgamento, está coinquinado de múltiplas flutuações e mostra-se inteiramente contraditório relativamente ao depoimento prestado no inquérito. Mais: os próprios depoimentos feitos em julgamentos desvelam outrossim esse posicionamento adversativo. 9.Diante disso, é surpreendente e ilógico afirmar que o arguido não chegou a entrar em contradição, quando depôs como testemunha aquando do julgamento. 10.Nem se obtempere com o quesito da memória do arguido, em face de ele ter afirmado, por vezes, já não se recordar do que lhe era questionado ou com o que era confrontado. 11.A invocação da memória (da falta de) tem validade e aplicação, na envolvência de elementos acessórios, relativamente a insignificâncias – mas já não, como ocorre no caso, no que afeta a aspectos macroscópicos – neste tópico, veja-se o Acórdão da Relação de Évora de 22-01-2013. 12.Ora, na situação em exame, as discrepâncias são rigidamente maiúsculas e excludentes. 13.De outra parte, o valor do putativo empréstimo, alegadamente de 20 000 €, corresponde a um montante importante, que não se apaga naturalmente da memória. 14.As versões do depoente, aqui arguido, indiciam uma intenção de falsidade e de enganar o tribunal, não sendo ainda ocioso preluzir que a testemunha tinha aqui um móbil para mentir. 15. Nos depoimentos prestados, a testemunha AA transmitiu factos inconciliáveis, que refletem uma contradição reveladora de falsidade. 16. Com efeito, na situação em pauta, a interpretação que desponta dos elementos probatórios recolhidos é de uma total heterogeneidade e sobreposição entre os relatos apresentados, circunstância que não se pode considerar como normal perante as regras da experiência comum. 17. A questão em apreço, perante as sucessivas divergências e variações dos depoimentos, não se pode enfocar, aqui, em termos de memória, pois que a perceção do supositício negócio se torna, para sempre, nítida e inolvidável. 18.Adversamente ao entendimento do M.mo Juiz de Instrução, não se trata aqui de matéria anódina, em que as diferenças entre os depoimentos são inexpressivas; trata-se, antes, de um constituinte totalmente essencial – veja-se, por exemplo, que o núcleo factual referente ao empréstimo esteve na génese da queixa apresentada. 19.Por isso, no apropositado Acórdão, foi dada como não provada a matéria de facto registada sob os números XXXIII a XXXVII. 20.Conclui-se, assim, que presta um depoimento falso a testemunha que, refugiando-se na falta de memória, invoca falsamente não se recordar dos factos ocorridos que são objeto de inquirição. 21.Também não subsistem dúvidas acerca da verificação do tipo subjetivo do crime de falsidade de depoimento. 22.No caso em pauta, as regras da experiência e os critérios de normalidade não foram minimamente atendidas. 23.Se as provas coligidas no inquérito e na instrução fossem objeto de uma racional interpretação lógico-dedutiva, ao invés de ter sido proferido despacho de arquivamento e despacho de não pronúncia, teria sido exarado, respetivamente, despacho de acusação e despacho de pronúncia, dado que se verificam suficientes indícios da prática, pelo arguido, em autoria material, de 1 crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3, do Código Penal. 24.Também não se pode invocar aqui a aplicação do princípio in dubio pro reo para solucionar uma putativa dúvida – de facto, a divergência entre os depoimentos é tão impressiva que expunge totalmente essa possibilidade. 25.Deve, pois, ser abduzido o exercício retórico do M.mo Juiz, por se apartar das regras da experiência e da correta hermenêutica 26.Os indícios são suficientes quando justificam a realização de um julgamento. Justapostos os elementos constantes dos autos, conclui-se pela presença plena de indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento, pela prática do mencionado crime. 27.O despacho de não pronúncia, por violar o direito ao acesso à justiça, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, inquina da correspondente inconstitucionalidade, que aqui se invoca. 28.O Tribunal a quo violou: o disposto nos artigos 360.º, n.os 1 e 3, do Código Penal e 20.º, n.º 1, da Constituição da República; e o estabelecido nos artigos 283.º, n.os 1 e 2, e 308.º, n.os 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA NOS EXATOS TERMOS DEFINIDOS NA PRESENTE PEÇA. Consequentemente: - o despacho de não pronúncia deve ser substituído por outro que pronuncie o arguido, AA, pela prática, em autoria material, de 1 crime de falsidade de depoimento, previsto e punível pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3, do Código Penal.” O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
* -» O MP junto da primeira instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões (transcrição):
* O arguido AA também respondeu ao recurso, motivando a resposta e apresentando as seguintes conclusões:
* Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso, acrescentando que: (transcrição) * Cumprido que foi o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP, o assistente respondeu, dizendo, no essencial. que a decisão deve ser no sentido defendido no recurso interposto.
* Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
* De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se com a apreciação da suficiência dos indícios da prática pelo arguido dos factos e crime descritos no RAI . * “Da finalidade da instrução: A presente fase processual traduz-se em um controlo judicial do despacho final do Ministério Público proferido no inquérito, de acusação ou de arquivamento (in casu, de arquivamento), ou seja, tem em vista, nas palavras da lei, a “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Não se trata de emitir um juízo sobre o mérito da causa, o qual competirá ao juiz do julgamento, mas sim de proferir uma decisão judicial sobre a acusação ou arquivamento, na qual se analisem os respectivos pressupostos jurídico-factuais e apreciando eventuais obstáculos de natureza processual . Apresentando-se o processo isento de vícios (cfr. art.º 308.º, n.º 3, do Cód. de Proc. Penal), o arguido deve ser pronunciado pela prática de determinado crime se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes do seu cometimento. Caso contrário, deverá proferir-se despacho de não pronúncia (art.º 308.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal). Esta suficiência de indícios existirá, conforme dispõe o n.º 2 do art.º 283.º do Cód. de Proc. Penal, aplicável à instrução ex vi art.º 308.º, n.º 2, se deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Vale por dizer que existirão indícios suficientes sempre que os factos originarem a convicção de que, com a discussão da prova em audiência de julgamento, os elementos típicos do crime se provarão com um juízo de certeza: “Indícios suficientes são referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, enfim, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído” . Estes elementos factuais serão todos aqueles que dos autos constem, quer tenham sido adquiridos em sede de inquérito pelo Ministério Público, quer resultem das diligências probatórias levadas a cabo na instrução. Assim, consoante bem se escreve no Ac. da RC de 23/05/2018, “o juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º2 do art.283.º do C.P.P., aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Seguindo a lição do Prof. Figueiredo Dias, proferida ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, consideramos que continua a ser aceitável, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133. Por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infração, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de razoável probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados A decisão de pronúncia, tal como a de acusar, não pode ser proferidas de forma apressada ou precipitada, pois sujeitar alguém a um julgamento, para além do natural incómodo, pode ser causa, se não para o próprio, para outras pessoas, de desonra e de vergonha. Na mente do julgador deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso do bom nome e reputação do cidadão. A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo, pelo menos para quem defenda, como é o nosso caso, que este vigora em todas as fases do processo penal. No sentido de que o mesmo não tem aplicação na fase de pronúncia decidiu o acórdão da Relação de Évora, de 15 de Outubro de 1991, in BMJ n.º 410, pág. 903. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.». In, www.tribunalconstitucional.pt. Em suma e na perspetiva que seguimos, afigura-se-nos que o Juiz de Instrução, na fase de instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo e, por outro lado, o tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o mesmo Juiz - e não os sujeitos processuais ou algum deles – ao valorar a prova chegou a um estado de dúvida insanável sobre a suficiência dos indícios para o arguido vir a ser condenado e, face a tal estado, escolheu a tese desfavorável ao mesmo, pronunciando-o e submetendo-o a julgamento” . * Da prova produzida em sede de inquérito e de instrução: Na fase processual de inquérito, foram coligidos nos autos, designadamente, os seguintes elementos documentais: - Certidão extraída dos autos de Processo Comum Colectivo com o n.º 220/17...., a fls. 2 e ss.; - Transcrição das declarações prestadas por AA, a fls. 38 a 134; - Certidão do acórdão proferido nos autos de Processo Comum Colectivo com o n.º 220/17...., a fls. 141 e ss.; - Informação sobre trânsito em julgado, a fls. 245. Foi constituído e interrogado como arguido: AA. Na presente fase processual foi junto aos autos parecer. * Realizou-se debate instrutório, em conformidade com o que consta da respectiva acta. * O Tribunal é o competente. Não existem nulidades, excepções ou outras questões prévias que cumpra conhecer. * Da suficiência ou insuficiência de indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança: Do imputado crime de falsidade de testemunho: Tutelando a administração da justiça enquanto função estadual , o legislador penal prevê, no n.º 1 do art.º 360.º do Cód. Penal, sob a epígrafe “falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução”, a conduta de “quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos”, punindo-a com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias, sendo que, nos termos do n.º 3 do mesmo art.º, a pena é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias, se o facto tiver sido praticado depois de o agente ter sido ajuramentado e advertido das consequências penais a que se expõe (esta punição agravada configura o que se designa por perjúrio). Trata-se de um crime de perigo abstracto, isto é, o delito consuma-se independentemente da verificação de um qualquer resultado, designadamente, a influência em determinado sentido da entidade decisora, presumindo o legislador, iuris et de iure, que a prestação de declarações falsas representa, em si mesma, um perigo para os bens jurídicos protegidos. É, também, um crime formal ou de mera actividade, que se esgota na própria realização da conduta penalmente censurada . A testemunha é aquele interveniente processual que possui conhecimento directo dos factos que constituem o objecto do processo (cfr. art.º 128.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal), sejam eles eventos do mundo exterior ou do mundo interior das pessoas. O testemunho consubstancia, assim, uma declaração de ciência sobre realidades percepcionadas pelo observador, dirigida à entidade competente para o receber, in casu, o Tribunal. Na medida em que existe um interesse estadual na aquisição de declarações verdadeiras no âmbito processual, por as mesmas constituírem os alicerces da decisão, sobre a testemunha impende um especial dever de verdade – cfr. art.º 132.º, n.º 1, al. d), do Cód. de Proc. Penal – de dizer toda a verdade e só a verdade no que respeita aos factos sobre os quais presta depoimento. Importa concretizar, agora, quando se considera falsa uma determinada declaração, sendo que, tomando como ponto de partida que existe falsidade quando há uma divergência entre o conteúdo da declaração e o objecto da declaração , o importante é determinar em que consiste este objecto, o qual constituirá o termo de avaliação da verdade/falsidade da declaração. No seguimento da generalidade da doutrina alemã e, entre nós, de Medina de Seiça, subscreve o Tribunal, quanto a esta matéria, uma concepção objectiva, segundo a qual “a falsidade da declaração afere-se pela sua conformidade com o acontecimento real a que se reporta” , ou seja, a declaração é falsa quando o teor da declaração diverge da realidade histórica. Como já foi sublinhado, o n.º 3 do art.º 360.º do Cód. Penal estabelece uma moldura penal agravada para o denominado perjúrio, que constitui uma qualificação do tipo fundamental de falsidade previsto no n.º 1, pela dupla circunstância de o agente ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais que para ele lhe advêm faltando à verdade, partindo o legislador do princípio que no perjúrio se verifica uma mais intensa violação do dever de verdade, por ocorrer após uma especial advertência e um concreto acto solene. Com o acolhimento da concepção objectiva de falsidade da declaração não se quer significar, porém, que baste uma qualquer discrepância (ainda que abissal) para que o tipo-de-ilícito esteja preenchido. Se assim fosse, grande esforço de memória estaria a ser exigido dos cidadãos e, por outro lado, estar-se-ia perante uma situação de responsabilidade objectiva, que o Direito Penal rejeita. Assim, o mero lapso ou falha de memória não será, de forma alguma, criminalmente censurado, na medida em que, como em qualquer crime, além dos elementos típicos objectivos se exige o preenchimento de elementos subjectivos, sendo que, no crime de falsidade de testemunho, se impõe a presença do dolo, em qualquer das suas modalidades – directo, necessário ou eventual (cfr. art.ºs 13.º e 14.º do Cód. Penal). Gizado este quadro normativo, doutrinário e jurisprudencial, centrando-nos no caso sub judice, podemos formular um juízo indiciário nos seguintes moldes: Existem indícios da seguinte factualidade descrita no douto requerimento para abertura da instrução, com relevo para a decisão, e que ora se transcreve: 1. No âmbito do processo n.º 220/17...., que foi tramitado no Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2, figurava como arguido, entre outros, BB, aqui assistente. 2. No inquérito referido em 1., o aqui arguido denunciou, em 9/5/2017, perante a 1ª Secção/Brigada da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, os seguintes factos: “Em agosto do ano passado, numa altura em que se encontrava atravessar algumas dificuldades financeiras, teve uma conversa com um seu conhecido, de nome BB, nascido em 1986 e residente na Rua ..., ..., Quinta ..., em ..., dando-lhe conta da sua situação. Como resposta, o indivíduo disse que o poderia ajudar, e, efetivamente, emprestou-lhe a quantia de 20 000€ (vinte mil euros), que lhe entregou em notas, sendo que na altura ficou acordado que lhe pagaria em 15 dias e que não existiriam quaisquer juros. No entanto, devido a várias vicissitudes, não conseguiu pagar a divida no período acordado, sendo que apenas em meados de setembro de 2016 lhe entregou a quantia de 20000€ em notas. Para sua surpresa, após ter recebido o dinheiro, o BB informou-o que a divida ainda não estava integralmente saldada; pois os juros estavam em falta. Ao questioná-lo sobre o respetivo montante, o individuo disse-lhe que seriam 17 000€. A fim de tentar livrar-se de tal pressão, o denunciante foi pagando dentro das suas possibilidades, sendo que até à presente data já entregou 18 500€ (dezoito mil e quinhentos euros). (…) No dia de 9/5/2017, (…) o pai do BB disse-lhe que tinha que pagar a quantia de oitenta e três mil euros, insistindo que o pagamento teria de ser feito rapidamente. A isto, o denunciante retorquiu, dizendo que não possuía tal importância, sendo que, depois de alguma negociação, o pai do BB indicou que aceitaria setenta mil euros, na condição do pagamento ser feito de imediato, ao que o denunciante respondeu que lhe era de todo impossível. Ao ouvir tal coisa, o pai do BB entregou-lhe um bloco A4 de folhas quadriculadas e disse-lhe que deveria escrever belo seu punho o seguinte texto: “Eu, AA declaro que recebi em numerário o valor de 70 000€ de BB”, que, pese embora não corresponder verdade, acabou por escrever tando em conta as ameaças que foram feitas não só a si, mas também à sua esposa, ao seu filho e aos seus pais”. 3. No âmbito do mesmo inquérito referido em 2., o aqui arguido prestou declarações complementares, em 12/3/2018, perante a 1ª Secção/Brigada da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, de onde se extrai: “Questionado por que razão, tendo em consideração todos os problemas anteriormente referidos com elementos da família BB, concordou em aceitar um empréstimo no valor de €20.000 (vinte mil euros) do BB “DD”, respondeu que por uma lado pela facilidade de recurso para fazer face a encomendas já realizadas, por outro lado, na tentativa de ficar resolvida definitivamente a situação ” com o irmão do BB, o tal CC, aliado ao desespero financeiro e compromissos assumidos com outros clientes, foi na tentação e voltou a cair no mesmo logro. Nesta situação, além de ter devolvido os €20.000 ao BB, também com a referida questão dos juros, acabou por lhe entregar 5.000 euros em dinheiro, o que ocorreu junto aos Bombeiros Voluntários existentes na Av.º ..., cfr. consta já nos autos e 5.000 euros por transferência bancária para a conta do irmão EE, de acordo com copia do documento a fls. 15. Além destas duas verbas, procedeu ainda ao pagamento da legalização de uma carrinha BMW modelo 550 ao BB, que ascendeu ao valor de €8.827,34, encontrando-se lesado no total de €18 827,34 (dezoito mil oitocentos e vinte e sete euros e trinta e quatro cêntimos) conforme documentos que pretende enviar e juntar aos autos.” 4. Em audiência de discussão e julgamento, que decorreu em 3/11/2020 (entre as 10h e 56m. e as 12h e 28m), na sala de audiências do Juízo Central Criminal de Coimbra – J2, o aqui arguido afirmou: - Nunca pediu dinheiro emprestado a nenhum dos arguidos (assistente nos presentes autos); - Nunca passou por dificuldades financeiras pelo que não tinha necessidade de o fazer; - Aquando da subscrição da confissão de dívida, no dia 9/5/2017, no valor de € 70.000,00 tinha-lhe sido exigido inicialmente € 100.000,00; - Não sabe se lhe exigiram juros. 5. Na sessão de audiência de discussão e julgamento, de 11/12/2020, (entre as 10h e as 11h e 51m), que decorreu no mesmo local aludido em 4., o ofendido, aqui arguido, declara: - Pediu, e foi concedido, pelo BB filho, a título de empréstimo, a quantia de € 20.000,00, com juros. 6. Nas sessões referidas em 4. e 5., após ter sido advertido pelo M.mo Juiz que presidiu à audiência de Julgamento de que estava sujeito ao dever de verdade, e das consequências penais em que incorreria, caso faltasse à verdade, o arguido, na qualidade de testemunha, prestou depoimento nos termos mencionados. 7. O arguido, nessas sessões, e na de 16/4/2021, na qualidade de testemunha, foi cotejado com os depoimentos por si prestados na fase de inquérito. 8. O arguido sabia que, na envolvência das inquirições efectuadas na Polícia Judiciária, mencionadas em 2. e 3., ou seja, em 9/5/2017 e 12/3/2018, tinha a qualidade de testemunha. 9. Sabia também que, no contorno das sessões de julgamento aludidas em 4. e 5., realizadas nos dias 3/11/2020 e 11/12/2020, referente ao processo comum colectivo n.º 220/17...., tinha a qualidade de testemunha e que estava perante um Tribunal competente para receber, como meio de prova, o seu depoimento. 10. Sabia ainda, em ambas as situações, que estava legalmente obrigado a responder com verdade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade criminal. Não existem indícios da seguinte factualidade descrita no douto requerimento para abertura da instrução e que ora se transcreve: 1. O arguido estava ciente de que o depoimento por si prestado em julgamento, na qualidade de testemunha, estava em contradição com o depoimento por si prestado na pretérita sessão de julgamento. 2. O arguido estava consciencializado de que o depoimento por si prestado em julgamento, na qualidade de testemunha, entroncava em contradição com os depoimentos por si prestados anteriormente, na qualidade de testemunha, na esfera do inquérito. 3. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de faltar à verdade, quer em sede de inquérito, quer em sede de audiência de discussão e julgamento, bem sabendo que, dessa forma, punha em causa o interesse na boa administração da justiça. 4. Tinha conhecimento de ser a sua conduta proibida e punida por lei. Quanto à motivação de tal juízo indiciário, temos que, em relação às declarações concretamente prestadas pelo ora arguido, testemunha nos autos de processo comum colectivo com o n.º 220/17...., relevou a certidão extraída dos mesmos e a transcrição efectuada. Relativamente ao mais, merece concordância o exarado pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, no sentido de que o ora arguido não chegou a entrar em verdadeira contradição, quando depôs como testemunha, aquando do julgamento, não podendo concluir-se, da análise das declarações prestadas em sede de inquérito e do depoimento em juízo, que o arguido tenha, deliberada e conscientemente, mentido, tendo, por várias vezes, dito, expressamente, já não se recordar do que lhe era questionado ou do que com o que era confrontado (cfr. as declarações transcritas a fls. 67v, 80, 82v, 85,106, 112, 113, 114, 116 e 118). Acresce que o ora arguido referiu que além de terem sido situações que se prolongaram no tempo, desde, pelo menos 2015, e que envolveram diversas transacções monetárias, de valores díspares, com pessoas diferentes, e, sobretudo, a partir de determinada altura, chegava a não se recordar devidamente e, como o mesmo chegou a descrever em sede de audiência de julgamento “são alturas de muito desespero e que de facto a pessoa cai na tentação de, de digamos, de resolver a situação” (cfr. transcrição a fls. 118). Acresce que as contradições e incongruências afiguram-se de escasso relevo, na consideração global do depoimento e do seu relevo enquanto tal, tendo sido detectadas, evidenciadas e valoradas pelo Tribunal do julgamento, vindo, a final, o colectivo de juízes, no acórdão proferido, decidido, aliás, condenar os ali arguidos, entre os quais o ora assistente, nos seguintes termos: “B)- condenar o arguido CC pela prática, em co-autoria, na forma consumada, de: B.1- um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão; B.2)- um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão; e B.3)- condenar o arguido CC, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dois anos e nove meses de prisão efectiva; C)- condenar o arguido EE pela prática, em co-autoria, na forma consumada, de: C.1)- um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e nove meses de prisão; C.2)- um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e três meses de prisão; e C.3)- condenar o arguido EE, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período de tempo, mediante regime de prova e com a condição de, no primeiro ano, pagar mil euros a uma Instituição de Solidariedade Social, a indicar pelos serviços da DGRSP, no âmbito do Plano de Reinserção Social; D)- condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria, na forma consumada, de: D.1)- um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão; D.2)- um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e nove meses de prisão; e D.3)- condenar o arguido BB, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de três anos e três meses de prisão efectiva; E) condenar a arguida FF, pela prática, em co-autoria, na forma consumada, de: E.1)- um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão; E.2)- um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e três meses de prisão; E.3)- condenar a arguida FF, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período de tempo, mediante regime de prova e com a condição de, no primeiro ano, pagar mil euros a uma Instituição de Solidariedade Social, a indicar pelos serviços da DGRSP, no âmbito do Plano de Reinserção Social”. Na motivação de tal peça decisória, o Tribunal Colectivo, tendo interpelado e solicitado esclarecimentos, aquando da produção de prova, ao ora arguido, assim escreveu: “Perante os esclarecimentos apresentados pela testemunha, este documento em nada abala o depoimento prestado. O facto de o veículo Audi já não ser da testemunha e ser referido na declaração de fls 162 apenas pode significar que os arguidos não tinham conhecimento da venda anteriormente efectuada (nem teriam, naturalmente, consultado o registo automóvel); além disso, nada impõe a necessidade de conjugação entre as datas constantes do registo e a data da queixa apresentada na Polícia Judiciária (09 de Maio de 2017), sendo reforçada pela proximidade com a data referida para o pagamento (uma semana depois da data dos factos). Nesta sessão de 16 de Abril, a testemunha apresentou um depoimento sereno e coerente, merecedor de credibilidade, não deixando dúvidas ao tribunal colectivo. Na verdade, tudo aponta no sentido do depoimento da testemunha AA, as datas constantes do registo automóvel (quanto ao Audi de matrícula ..-BT-..) não o afectam e (para além da mera negação dos arguidos que prestaram declarações) nada mais existe que o contrarie, sendo que o mesmo, nessa parte, se apresentou coerente e firme e condizente com a data e teor da queixa apresentada nesse dia, na Polícia Judiciária. Os factos de 25 de Janeiro de 2017 acabam por ser aceites parcialmente pelo arguido CC (embora procurando escudar em defesa a agressão do queixoso) sendo confirmado pelo expediente do atinente episódio de urgência. O facto de a Polícia Judiciária, após receber a queixa pelos factos de 09 de Maio, não encetar de imediato qualquer diligência de prova nada significa e muito menos pode ser valorado como falta de credibilidade. A não conformidade total entre o conteúdo da denúncia (fls 83) e o conteúdo da declaração assinada (fls 162) mostra a naturalidade da actuação (se fosse pensada e planeada não falharia nesses “elementos decisivos”) e o medo e constrangimento em que a testemunha se encontrava; de espantar seria, nesse contexto, AA ser capaz de reproduzir os termos de um documento assinado nessas circunstâncias de constrangimento e ameaça. A disparidade (contradição) entre os pagamentos exigidos e as quantias negociadas não significa qualquer incoerência, mas apenas a situação de pressão em que se encontrava. A questão da divergência do valor dos empréstimos e dos juros (pontos 41 e 42 do recurso – transcritos no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra) está enunciada supra e não se coloca nos termos pretendidos pelos arguidos e, além disso, não se enquadra nos factos pelos quais estes vão condenados pois respeitam aos negócios anteriores e não aos factos de 09 de Maio. Aliás, as divergências quanto a valores fazem sentido tendo em conta a confusão relativamente aos diversos negócios e ao longo período em causa bem como quanto ao tempo, entretanto decorrido, sendo manifesto que, salvo o devido respeito, os depoimentos não têm que ser, como salienta o Digno Magistrado do Ministério Público, “matematicamente certos e geometricamente/integralmente coerentes”…”. Destarte, resulta claro que o ora arguido, ali testemunha, não agiu com consciência e intenção de mentir ao tribunal, estando arredada, outrossim, a presença de uma conduta dolosa. Em conclusão, não se descobre uma razoável probabilidade de uma futura condenação do arguido, em sede de julgamento, pelos factos que lhe são imputados no requerimento para abertura da instrução e com a respectiva qualificação jurídica. Restará, pois, concluir pela não pronúncia. * III DECISÃO: Pelo exposto, não pronuncio o arguido, AA, melhor id. nos autos, pela prática dos factos que lhe são imputados no requerimento para abertura da instrução, susceptíveis de, alegadamente, o constituírem autor material de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art.º 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.” * Como acima se referiu, o presente recurso tem como único objeto a apreciação da existência (ou não) de indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos e crime que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução, sindicando a decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo. O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de outubro de 2001, publicado na Coletânea de Jurisprudência (CJSTJ, Ano III, pp. 196-198), decidiu que o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância, não admitindo, consequentemente, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça . Deve, pois, considerar-se que o acórdão confirmatório de uma decisão de não pronúncia é um acórdão absolutório para os efeitos previstos no artigo 400. °, n. º1, alínea d) e, consequentemente, no artigo 425.º do Código de Processo Penal. Estabelece o artigo 400, nº1 alínea d) do Código de Processo Penal: “1. Não é admissível recurso: (…) d) De acórdãos absolutórios, proferidos em recurso, pelas relações, (…)” Por seu turno, estabelece o artigo 425º nº5 do mesmo código: “5. Os acórdãos absolutórios enunciados na alínea d) do nº1 do artigo 400º, que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto, podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”. Assim, havendo confirmação do despacho recorrido, a Relação pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada ao abrigo do disposto no artigo 425. °, n. º5 do Código de Processo Penal. No caso em apreço a decisão recorrida é de não pronúncia. E, analisados os autos, nomeadamente a decisão instrutória e a motivação do recurso, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respetivos fundamentos, de facto e de direito. Destarte, de forma breve, e em reforço do entendimento sufragado na decisão impugnada (secundado pelo Ministério Público, quer junto da primeira instância, quer junto deste Tribunal de recurso), cumpre fazer algumas considerações. Invoca o Recorrente que, em face dos elementos probatórios constantes dos autos, deveria ter sido proferido despacho de pronúncia do arguido Mas, manifestamente, não lhe assiste razão. Para efeitos de dedução de acusação pública no termo do inquérito, considera a lei suficientes os indícios dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 308 n.º 1 do CPP). E porque no juízo de quem acusa, tal como no de quem pronuncia, deverá estar sempre a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, tal possibilidade razoável tem que surgir como mais positiva do que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, através de um juízo objetivo fundamentado nos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido. Ou, utilizando agora as expressivas palavras do Prof. Figueiredo Dias, quando, já em face da prova recolhida, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou, em todo o caso, esta surja mais provável do que a sua absolvição (cfr. Direito Processual Penal, V.I, 1974, pg.133). A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo (emanação do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.º 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa), que vigora, segundo entendemos, em todas as fases do processo penal, de acordo com o qual o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet. Note-se ainda que a análise da prova indiciária está sujeita aos princípios e regras processuais que regem a apreciação da prova, designadamente ao princípio da livre apreciação da prova, contemplado no art. 127º do CPP, com a consequência de que a prova indiciária deverá ser apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Revertendo ao caso dos autos à luz do que acima foi exposto, e compulsados os autos e a prova que o mesmo contém, concluímos que a avaliação feita pelo juiz a quo relativamente aos indícios existentes não merece qualquer censura. Lidas as atas e as transcrições dos depoimentos, entendemos que, de facto, e tal como o fez o Tribunal a quo, as contradições e esquecimentos do arguido são compreensíveis, se atentarmos nos efeitos que produzem nos mecanismos de memória, quer o decurso do tempo, quer a emotividade com que os vários episódios em causa nos autos foram vivenciados pelo arguido. Refere o M.mo Juiz a quo, com acerto, que “o ora arguido referiu que além de terem sido situações que se prolongaram no tempo, desde, pelo menos 2015, e que envolveram diversas transacções monetárias, de valores díspares, com pessoas diferentes, e, sobretudo, a partir de determinada altura, chegava a não se recordar devidamente e, como o mesmo chegou a descrever em sede de audiência de julgamento “são alturas de muito desespero e que de facto a pessoa cai na tentação de, de digamos, de resolver a situação”. Acresce que as contradições e incongruências se afiguram de escasso relevo, na consideração global dos depoimentos e que têm de ser contextualizadas e que, para mais, foram esclarecidas Ou seja, de modo algum podemos concluir, num raciocínio lógico e fundado nas regras da experiência e do normal acontecer, que há indícios suficientes de que o aqui arguido sabia que estava a faltar à verdade e estivesse ciente de que prestara depoimentos contraditórios e que foi esse o seu propósito. A apreciação que o Tribunal a quo fez da prova junta aos autos mostra-se expressa na fundamentação da decisão recorrida, de modo claro e transparente, tendo-se procedido a uma análise detalhada de todos os elementos de prova, fazendo deles uma apreciação crítica, racional, global e conjugada, sem recorrer, nessa apreciação, ao mínimo uso de qualquer arbítrio, capricho ou preconceito. Essa apreciação feita pelo Tribunal tem apoio no teor dos documentos e depoimentos e é razoável e verosímil, sendo conforme com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, não se vislumbrando qualquer violação de normas de direito probatório. Quanto à análise do crime imputado ao arguido, remetemos para a análise da Doutrina e Jurisprudência levado a cabo pela decisão em recurso, bem como pelas doutas resposta e parecer do M.º P.º e que conduzem à decisão adotada pelo Tribunal, que não podemos deixar de sufragar. Assim, estando nós em concordância com a análise que é feita na decisão recorrida, remetendo-se para os respetivos fundamentos, entendemos não merecer tal decisão qualquer censura, devendo ela ser confirmada. Acrescente-se apenas que não ocorreu qualquer violação do disposto nos artigos 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal e 20.º, n.º 1, da Constituição da República e nos artigos 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal.
III- Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em, nos termos do n.º 5 do artigo 425º do Código de Processo Penal, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. * Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP) Coimbra, 11 de Junho de 2025 Sara Reis Marques Alexandra Guiné Alcina da Costa Ribeiro
|