Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
201/06.8TBCLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GRAÇA SANTOS SILVA
Descritores: LITISCONSÓRCIO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
COMPROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 28.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 1405.º, N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Por força do princípio do dispositivo cabe às partes, e unicamente às partes, a definição do pedido de actuação jurisdicional que pretendem obter com a propositura da acção, não sendo legitimo o juiz adequar, por via de interpretação, a literalidade de um pedido com a viabilidade jurídica que se lhe afigura mais próxima dessa literalidade;
2. Numa acção em que se peticiona a declaração e o reconhecimento do direito de passagem do A. por determinado prédio, pertença dos RR, não há litisconsórcio necessário em relação aos demais comproprietários do prédio por onde o A. pretende ver declarado o direito acima mencionado, já que o pedido se reporta apenas à pessoa do A., não lhe sendo aplicável o regime das acções de reivindicação.
Decisão Texto Integral: I- Relatório:
A...., intentou a presente acção comum, com processo sumário, contra B.... pedindo que a Ré seja condenada a reconhecer-lhe o direito de passagem pelo seu (dela) terreno, que identifica, sendo, por sua vez, declarado em seu benefício esse direito, e que ambos os RR. sejam condenados a pagar-lhe a indemnização de 5.700,00€, acrescida de juros à taxa legal, desde citação até integral pagamento.
Fundamentou tais pedidos em que reside numa quinta, de que é comproprietário, na proporção de um sexto, a qual era acedida por um caminho público proveniente de Vale de Azares, que servia outras quintas a jusante. Com a construção de uma variante, pela Câmara Municipal local, deixou de ter acesso à quinta, por esse caminho, sendo que numa acção que correu termos no mesmo Tribunal, a Câmara Municipal garantiu aos AA, entre os quais ele, a feitura de um acesso, já executado, que corre paralelamente à variante e através de diversas quintas e prédios, entre elas aquela onde reside, e um prédio da 2ª Ré. A Câmara não adquiriu os terrenos, que se mantiveram na propriedade dos seus titulares, pelo que não resultou dali qualquer caminho público, mas uma mera passagem de peões, animais e viaturas. Desde 2002, foi essa a via de acesso à sua casa que utilizou, e é a única de que dispõe com comunicação com a via pública. O 1º R., em Maio de 2006, colocou uma retro escavadora no centro dessa passagem, logo após a saída da variante, impedindo o acesso através do caminho, e mais tarde bloqueou o caminho com pedras e terra, de tal forma que mesmo a pé era difícil passar por ele. O seu automóvel ficou preso em sua casa, e então passou a ter que carregar, a pé, as compras, e a tomar refeições em restaurantes. Pugnou pela existência de esbulho violento da sua posse sobre a referida passagem, adquirida pela sua utilização ao longo de mais de três anos, e encravou a quinta de que é proprietário. Disse ainda que o caminho foi reaberto, por força do decretado em procedimento cautelar, sendo que a Ré, por intermédio do R., não lhe reconhece o direito à passagem pelo seu terreno, que se encontra encravado e sem acesso à via pública. Tudo isto lhe causou danos morais cujo ressarcimento pede.
Contestaram os Réus, pugnado pela ilegitimidade do R. e improcedência da acção, alegando, para tanto, que a Ré sociedade é proprietária de dois prédios entre os quais se situa o prédio do A., e que com a construção da variante ficaram todos encravados a veículos. Efectuada uma reunião na Câmara Municipal, foi-lhe comunicado que os demais proprietários dos terrenos encravados estavam dispostos a permitir-se reciprocidade o acesso aos sucessivos e respectivos prédios, em condições de reciprocidade, acordo que aceitou, e que se efectuou de forma meramente verbal. Nessa sequência, em 2002, a C.M. mandou abrir a passagem para viaturas, ao longo dos vários prédios, para acesso a todos eles, incluindo o último que é um dos seus. Em Maio de 2006, o A. colocou pedras e saibro na confinância do seu prédios com os da Ré, impedindo o acesso desta ao último prédio abrangido pelo acesso. Com a violação do acordado dever de reciprocidade de permissão de acessos, a Ré vedou o caminho ao prédio do A. e irmãos. Quem vedou definitivamente o acesso ao prédio do A. não foi o Réu, pelo que é parte ilegítima na acção.
Mais alegou a Ré, que nunca se constituiu qualquer servidão, mas apenas um acordo de tolerância de passagem, mútua, e que o A. retirou o veículo, pelo que toda a argumentação daí decorrente é falsa.
Procedeu-se à feitura de um despacho a convidar o A. a sanar a preterição de litisconsórcio necessário activo, que o Mmo juiz entendeu haver, e como tal tivesse sido recusado, com o argumento de que qualquer comproprietário pode reivindicar de terceiro a coisa comum, foram os RR. absolvidos da instância nos termos do artº 288º nº 1 d) do CPC.
No primeiro dos mencionados despacho, o Mmo Juiz declarou que “na petição inicial que apresentou, o A., apesar da falta de rigor jurídico na formulação do pedido, peticiona que o Tribunal declare que o prédio da 2ª Ré está onerado com uma servidão legal de passagem a favor do prédio melhor id. nos artigos 1º e 2º da petição inicial”.
Inconformado com a decisão final, recorreu o A. dizendo que esta violou o artº 1405, nº 2º do CC, porque “cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que esta não lhe pertence por inteiro, estendendo-se tal regime aos direitos de passagem”
Os RR nada disseram.
II- Questões a decidir:
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs e 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC, na versão anterior ao D.L. nº 303/07 de 24/8), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – fine - do artº 660º nº2 do CPC).
O tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (a não ser aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras), todavia, mas, como vem sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” (referido naquele normativo) não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Compulsadas as conclusões da motivação do presente recurso verifica-se que a questão que foi colocada à apreciação deste Tribunal é saber se houve violação do disposto no artº 1405º nº 2 do CC, por se estender o regime da legitimidade activa nas acções de reivindicação “aos direitos de passagem”.
III- Factos assentes no despacho recorrido:
Da decisão recorrida recolhe-se a seguinte matéria de facto:
O A. intentou a presente acção sem estar acompanhado dos demais proprietários do prédio dominante.
IV- Fundamentos:
Salvo melhor opinião, nesta acção prolifera uma confusão de conceitos dignos de registo.
Começando pela p.i., o A. pede o reconhecimento de um seu direito de passagem, sobre um local que tanto diz que não é caminho público, mas simples passagem resultante de um acordo de proprietários, como que é caminho; invoca em seu benefício a aquisição da posse decorrente do artº 1263º a) do CC invocando uma posse de três anos.
A questão que se coloca no recurso é tão-somente a decorrente do despacho que absolveu os RR da instância, por ilegitimidade advinda de preterição de litisconsórcio necessário.
Por força do princípio do dispositivo cabe às partes, e unicamente às partes, a definição do pedido de actuação jurisdicional que pretendem obter com a propositura da acção e o elencamento dos factos que haverão de suportar esse pedido. “A importância da petição (inicial) como instrumento de proposição da acção nasce do princípio básico da iniciativa de partes, que é, no fundo, um corolário do princípio dispositivo ( artºs 3º, nº 1, 1ª parte e 264º, nº1)” (…). A formulação do pedido reveste também a maior importância, porque o juíz não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (ne eat iudesx ultra vel extra petita partium): artº 661º, 1” – C.P.C. anotado Antunes Varela, pág. 243 da 2ª edição.
O pedido é aquilo que a parte pretende, numa perspectiva de um declaratário normal, e não aquilo que se adequa à tutela judicial vigente.
Ora, no caso dos autos, o A. pede a produção de determinado efeito que presume jurídico, pela positiva e pela negativa, de forma clara, perceptível, e ainda que “incomum”, à luz da contestação perfeitamente explicado. Ele pede que a Ré seja condenada a reconhecer-lhe ( a ele, Autor) o direito de passagem pelo seu terreno, que identifica, sendo declarado em seu benefício (dele, Autor) esse direito.
Com esta formulação não é legítimo em lugar se pede algo em benefício ou prejuízo de prédios, mas tão -somente em benefício do A. A Ré diz, acessoriamente, que os irmão do A. não concordaram com a atitude dele, e torna-se evidente que, assim sendo, a teoria do litisconsórcio necessário não o seduz. Daí o pedido ser feito a título de constituição de direito pessoal e não real.
Ora, nesta perspectiva não há necessidade de qualquer intervenção de terceiros, porque a pretensão substantiva é de declaração de um direito de passagem pessoal. Donde não há qualquer cabimento à intervenção na acção ao lado do A., em termos de litisconsórcio necessário, de ninguém mais.
Nem a lei ou negócio exigem a intervenção de vários interessados, porque, face ao pedido, o único interessado é o A., nem o efeito pretendido com a propositura da acção fica prejudicado ou beneficiado pela intervenção dos demais comproprietários, que não acompanharam, em seu benefício também, a pretensão pessoal do A. Fica portanto sem campo de aplicabilidade o artº 28º do CPC, que define as situações de litisconsórcio necessário.
O A., ao receber o despacho acima mencionado, veio esclarecer que quer “reivindicar na acção um direito de passagem que beneficia um prédio de que é comproprietário”. E de seguida mistura o regime da acção de reivindicação, com o da compropriedade, e com a pretensão de constituição de um direito de passagem pessoal. Ou seja, se o A. já não demonstrava grande conhecimento daquilo que era o regime jurídico aplicável à sua pretensão, com o recebimento desse despacho ficou em confusão total, clamando por três coisas distintas. Daí que não se possa entender sequer o mencionado requerimento como alteração de pedido, nem nada que se pareça.
O regime da acção de reivindicação não se aplica seguramente, porque, por natureza, ela é uma acção de condenação (artigo 4.º, n.º 2, alínea b) do C.P.C.), em que o reivindicante pretende não reconhecimento do seu direito, mas que, com base nele, o demandado seja condenado a efectivar aquela restituição. O proprietário não possuidor pede que seja considerado como proprietário de uma determinada coisa, móvel ou imóvel, na posse ou detenção do réu e que esta lhe seja restituída (artigo 1311.º do C.C.). E, neste caso, o A. não refere sequer que os RR tenham tomado posse ou detenção de coisa sua.
O regime da compropriedade invocado ( artº 1405º, nº2 º do C.C.) também não se aplica, porque tem a ver com a reivindicação.
E quanto ao direito de passagem invocado na p.i., tal como o processo se apresenta, será para apreciar a final.
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V- Decisão:
Acorda-se pois, em julgar procedente o recurso, e declarando o A. parte legitima, e ordenando o prosseguimento dos autos.
Sem custas, uma vez que os RR não suscitaram a questão em apreço no recurso, não dando causa ao despacho recorrido, nem deduziram oposição ao mesmo.