Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
680/23.9T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CHANDRA GRACIAS
Descritores: ERRO NA FORMA DO PROCESSO
ERRO NO MEIO PROCESSUAL
NULIDADE DE TODO O PROCESSO
TIPO DE PRETENSÃO DEDUZIDA
Data do Acordão: 03/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LAMEGO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 193.º, N.ºS 1 E 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – A nulidade de todo o processo (nulidade principal, nominada ou típica), por erro na forma do processo ou no meio processual – art. 193.º do Código de Processo Civil –, existe quando é aplicada a forma errada do processo comum; a forma comum em vez da especial, ou vice-versa; a forma errada do processo especial, ou a forma errada de procedimento cautelar em vez de processo comum.

II – Já não ocorre o erro na forma do processo quando o que o Autor peticiona, independentemente de o fazer correcta ou erradamente, se ajusta à forma de processo escolhida e usada por essa parte.

III – A idoneidade da forma de processo, que deve ser indicada na petição inicial, afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo Autor, e não por referência à pretensão que devia ser por ele deduzida; aqui trata-se, não de uma inadequação da forma do processo, mas de uma situação de eventual improcedência da acção.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Chandra Gracias
Adjuntos: José Avelino Gonçalves
Maria João Areias



Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Viseu/Juízo Local Cível de Lamego

Recorrente: AA

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

AA instaurou acção declarativa de condenação contra BB, ambos melhor identificados nos autos, aduzindo, em síntese, que no âmbito do Proc. n.º 493/20...., do mesmo Juízo Local Cível, em 6 de Janeiro de 2022, foi efectivada transacção entre as mesmas partes, segundo a qual o R. ficou obrigado a reparar o veículo de marca Volkswagen, modelo GOLF 1G1526, de cor preta, com o chassis n.º ...43, pertencente ao A., até ao dia 15 de Julho de 2022.

No entanto, não o fez e, perante a falta de qualquer explicação para o sucedido, o A., em 1 de Agosto de 2022, resolveu com justa causa o contrato e solicitou a entrega dos seus veículos, que se encontravam na oficina do R., a partir do dia 10 de Agosto de 2022.

Quando tomou posse das viaturas automóveis o A. deu conta que lhes faltavam várias peças, pelo que enviou em 19 de Agosto de 2022, nova missiva ao R. a interpelá-lo para, em 5 dias, proceder à entrega das peças retiradas, nada tendo aquele feito.

Invocando que «…vai ter de mandar reparar o carro numa outra oficina, tendo-lhe sido apresentado um orçamento no valor de 34.932,00€ …; uma vez que o Réu ficou com as jantes, terá de despender ainda mais a quantia de 1.752,00€ e para as suspensões de rebaixamento a quantia de 3.069,00€, e tendo em conta que, desde 15 de Julho de 2022, até à presente data[2], já decorreram 347 dias, deve o Réu ao Autor a quantia de 3.470,00€ …, a título de cláusula penal para indemnização dos danos decorrentes na mora.», peticionou a condenação do R. a pagar-lhe:

«a quantia total de 43.223,00€ (Quarenta e três mil duzentos e vinte e três euros), sendo 34.932,00€ (Trinta e quatro mil novecentos e trinta e dois euros) a título de gastos que o Autor vai ter de suportar para proceder à reparação do veículo identificado no artigo 1º da PI e cujo preço já havia liquidado ao Réu, 4.821,00€ (quatro mil oitocentos e vinte e um euros) a título de pagamento das jantes e suspensão de rebaixamento que foram retiradas indevidamente pelo Réu dos veículos do Autor, e 3.470,00€ (três mil quatrocentos e setenta euros) a título de cláusula penal, acrescidos dos juros à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.».

Contestando, o R.  excepcionou a nulidade de todo o processado, por uso indevido deste meio processual, posto que a sentença homologatória constitui título executivo, e, no mais, aparte os termos da transacção, impugnou a tese apresentada, invocando que o levantamento dos veículos equivaleu a desistência da obra, não sendo caso de resolução contratual.  

O A. respondeu à excepção, alegando que o recurso à presente acção declarativa é a forma correcta de ser ressarcido dos danos emergentes do referido incumprimento.

Com data de 18 de Abril de 2024, foi exarado Saneador Sentença, de harmonia com o qual:

«Verificando-se o erro na forma do processo, estamos perante uma nulidade de conhecimento oficioso - artigos 196.º e 200.º, n.º 2, do Código de Processo Civil -, que importa a anulação de todos os atos praticados, e, como tal, temos a nulidade de todo o processo, que conduz à absolvição do réu da instância.

Face ao exposto, decide-se julgar verificada a exceção dilatória de erro na forma do processo e, em consequência, decide-se absolver o réu da instância.

Custas da ação pelo autor – artigos 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.».

II.

Discordando, o A. interpôs Recurso de Apelação, e respigam-se das suas alegações as seguintes

«CONCLUSÕES:

(…).».

III.

Questão decidenda

A despeito da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Da excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por erro no meio processual utilizado.

IV.

Para além das circunstâncias relatadas, da consulta da plataforma informática retira-se ainda que:

Em 6 de Janeiro de 2022, no Proc. n.º 493/20...., que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu/Juízo Local Cível de Lamego, com as mesmas partes figurando em idêntica qualidade processual à destes autos, foi alcançada transacção com as seguintes cláusulas:

«1. O Autor desiste de todos os pedidos formulados contra o 2.º Réu.

2. O Autor e o 1.º Réu acordam no seguinte:

2.1) Que o Autor é dono legítimo proprietário dos veículos id. na al.a) do pedido da P.I. e ainda do veículo de marca Volkswagen, modelo GOLF 1G1526, de cor preta, com o chassi nº ...43.

2.2) O Réu obriga-se a proceder à reparação do veículo atrás identificado, com o chassis nº ...43, utilizando para esse efeito, as partes integrantes e tudo o que demais seja necessário utilizar do veiculo id na al. a) do pedido da Petição Inicial, com o chassis nº ...24.

2.3) A reparação atrás identificada consiste, nomeadamente, em trabalhos de chapa, pintura, mecânica e eletricidade, por forma a colocar o veículo em condições normais de funcionamento e circulação. Para esse efeito, o Réu obriga-se a desmanchar a parte interior do veículo a reparar, preparando-o para a aplicação da respetiva pintura, o que fará após a correção dos trabalhos necessários ao nível de chapa. Na parte restante, o réu obriga-se a transferir do veículo com o chassi nº WV...24 para o veículo a reparar, o respetivo motor, caixa de velocidades, e demais material que se revele necessário para o funcionamento do veiculo a reparar. Autor e Réu acordam que caso o turbo-compressor do motor a utilizar careça de reparação, o Réu obriga-se a dar conhecimento de tal facto ao Autor, para que este, no prazo máximo de 2 dias, proceder à recolha da mesma oficina do Réu e proceda á sua reparação a suas exclusivas expensas.

3) A reparação acordada na cláusula 2ª, deverá estar concluída até ao dia 15/07/2022, devendo o Réu proceder ao levantamento dos veículos identificados na cláusula 2º, que se encontram na garagem do Autor, até ao dia 20 do corrente mês, devendo o Réu avisar o Autor por qualquer meio.

4) No decorrer do período da reparação, o Autor fica com direito de se deslocar à oficina do Réu e acompanhar a referida reparação, podendo delegar essa função na pessoa de seu pai, CC ou de DD, caso em que terá de avisar o Réu dessa presença, sendo certo que não poderão interferir na forma como o Réu levará a cabo a respetiva reparação.

5) Na data da entrega do veículo a reparar, o Autor e Réu deverão verificar, conjuntamente com os respetivos mandatários, o estado da reparação e funcionamento do veículo.

6) O Autor declara que os veículos identificados na cláusula 2º são da sua exclusiva propriedade, responsabilizando-se perante as autoridades portuguesas, por quaisquer encargos que sejam relacionados com a posse e propriedades dos mesmo, desobrigando-se /desculpabilizando o Réu de quaisquer encargos ou de justificar a sua posse.

C) Autor e Réu acordam na estipulação de uma cláusula penal, para o caso de incumprimento do prazo de entrega do veiculo reparado, no valor de 10,00€ por cada dia de atraso.

D) Com a reparação identificada nas cláusulas antecedentes e a entrega de veículos, A. e Réu considerando-se integralmente cumpridos e extintas as obrigações resultantes da presente lide.

E) Quanto ao veiculo de passageiros de Marca Volkswagen modelo Golfe, cor preta e verde, com o chassi nº WVW 1G... 25, Autor e Réu consideram nada haver a reclamar uma da outra, ficando o autor com a obrigação de tratar da documentação necessária para a anulação do correspondente documento de identificação.

F) O Autor desiste de todos os demais pedidos formulados e o Réu desiste do pedido reconvencional formulado, nada mais tendo a receber pela reparação a que se obriga».

V.

Do Direito

A única questão a apreciar é a de saber se, no caso em análise e como ajuizado no Tribunal recorrido, se verifica erro no meio processual empregue conducente à nulidade de todo o processo, legalmente configurada como excepção dilatória, até de conhecimento oficioso, obstativa do conhecimento do mérito da causa e que gerou a absolvição do ora Recorrido da instância – cf. arts. 193.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. b), e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

Na perspetiva do Tribunal a quo, a questão foi assim reconduzida:

«- Do uso indevido do meio processual:

Vem o réu alegar a nulidade do processo porquanto o que o autor pretende com a presente ação é garantir o cumprimento da transação homologada por sentença no âmbito da ação de processo comum n.º 493/20...., sentença esta que constitui título executivo, com o qual aquele deveria ter lançado mão da execução, nos termos do artigo 10.º, n.ºs 4 e 5, do Código de Processo Civil.

O autor, notificado para exercer o contraditório, veio referir que a prestação assumida pelo réu se tornou impossível de cumprir, motivo pelo qual, não teve o autor outra possibilidade que não o recurso à presente ação declarativa.

No âmbito da referida ação de processo comum que correu termos neste Juízo, entre autor e réu foi alcançada transação nos termos da qual as partes acordaram em:

No âmbito da presente ação, o autor deduz os seguintes pedidos: «(…) deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, consequentemente, ser o Réu condenado a:

a) pagar ao Autor a quantia total de 43.223,00€ (Quarenta e três mil duzentos e vinte e três euros), sendo 34.932,00€ (Trinta e quatro mil novecentos e trinta e dois euros) a título de gastos que o Autor vai ter de suportar para proceder à reparação do veículo identificado no artigo 1º da PI e cujo preço já havia liquidado ao Réu, 4.821,00€ (quatro mil oitocentos e vinte e um euros) a título de pagamento das jantes e suspensão de rebaixamento que foram retiradas indevidamente pelo Réu dos veículos do Autor, e 3.470,00€ (três mil quatrocentos e setenta euros) a título de cláusula penal, acrescidos dos juros à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

b) Deve ainda o Réu ser condenado a pagar as custas, procuradoria e demais encargos deste processo».

Para o efeito, alega que, não obstante terem celebrado a referida transação, o réu não procedeu à reparação do veículo até à data acordada, nem posteriormente, apesar das várias insistências do autor e que, perante a falta de cumprimento e de explicação para o sucedido, resolveu o contrato e solicitou a entrega das viaturas.

Mais alega que faltam várias peças nas viaturas e que para reparar o veículo noutra oficina, adquirir distanciadores das jantes e suspensões de rebaixamento vai ter que despender a quantia ora peticionada ao réu, ao qual acresce o valor da cláusula penal fixada para cada dia de incumprimento.

Vejamos.

O artigo 2.º, do Código de Processo Civil, estabelece que:

2 - A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.

O artigo 10.º, do mesmo diploma legal. prescreve quanto às espécies de ações que:

1 - As ações são declarativas ou executivas.

2 - As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas.

3 - As ações referidas no número anterior têm por fim:

a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;

b) As de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito;

c) As constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente.

4 - Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida.

5 - Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.

6 - O fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo.

Face ao alegado pelo autor na petição inicial, temos que este já dispõe, efetivamente, de um título executivo: uma sentença judicial que - alegadamente - não foi cumprida pelo réu.

É certo que o autor não pretende executar a prestação assumida pelo réu, mas sim que esta prestação seja levada a cabo por outrem e que o réu seja condenado no pagamento correspondente.

Mesmo assim, estamos em crer que o pedido formulado pelo autor não é legítimo à luz de uma ação declarativa, sendo apenas válido numa ação executiva, uma vez que o que se pretende é a efetivação da prestação de um determinado facto (por terceiro) relativo a um direito já declarado e definido pelo tribunal através da homologação da transação alcançada entre as partes, e a indemnização pelo alegado incumprimento.

No caso em apreço, o autor tem já definido o seu direito (à reparação do veículo), através da transação celebrada no identificado processo, matéria que já foi definitivamente tratada nos termos em que as partes decidiram acordar.

Constatando que o réu não estará a cumprir com a sentença ali proferida, através da transação celebrada, deveria o autor recorrer à ação executiva, na modalidade de prestação de facto, no âmbito da qual pode ainda peticionar a condenação do mesmo na indemnização do dano sofrido – artigo 868.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Este preceito legal estatui que: «se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo» [sublinhado nosso].

Conforme explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, p. 302 e seguintes, «tratando-se de obrigação de prestação de facto positivo com prazo certo, o nº 1 aponta para o seguinte: quando a obrigação for fungível, o credor, ao propor a execução, pode optar entre a execução específica por outrem (art. 828º do CC) (…). Optando o exequente pela prestação por outrem, a execução virá a tramitar-se como execução para pagamento de quantia certa, tendo em vista obter o montante necessário ao pagamento do custo da prestação (arts. 870º a 873º). Quando o exequente faça esta opção, pode ainda pedir indemnização moratória (arts. 804º e 806º do CC) (…)».

É o que sucede no caso, o autor não pretende efetivamente que seja o réu condenado na execução da prestação a que estava adstrito por força daquela transação, mas a pagar o valor correspondente à mesma, à reparação (com o que a mesma implicará, por forma a colocar o veículo em condições normais de funcionamento e circulação), que será executada por outrem.

Dito de outra forma, salvo melhor opinião, a ação adequada à finalidade pretendida pelo autor não é a declarativa, mas sim a executiva, dado que apenas esta irá responder ao por si almejado.

Tendo recorrido à ação declarativa em vez da ação executiva, fez um uso indevido e inadequado deste meio processual.

Esta situação configura uma exceção dilatória do erro na forma do processo, que origina a anulação dos atos que não possam ser aproveitados e obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do n.º 2 do artigo 576.º do Código de Processo Civil.

Ora, no caso em apreço, temos que nenhum dos atos praticados pelo autor podem ser aproveitados, dado que não se afigura possível converter a presente ação declarativa numa ação executiva, considerando, desde logo, que esta deve ser instaurada mediante requerimento executivo, com determinados requisitos e em modelo definido por portaria do Governo – artigos 712.º, n.º 2, e 724.º, daquele diploma legal.».

Para a apreciação do mérito do recurso é fulcral ter bem presente o figurino da nulidade de todo o processo, dita nulidade principal, nominada ou típica, por erro na forma do processo ou no meio processual, consagrada no art. 193.º.

Em traços gerais pode dizer-se que o erro na forma do processo se verifica «quando é aplicada: (i) a forma errada do processo comum; (ii) a forma comum em vez da forma especial, ou vice-versa; (iii) a forma errada do processo especial; (iv) a forma errada de procedimento cautelar em vez de processo comum; não ocorre o erro na forma do processo quando o que o autor peticiona, independentemente de o fazer correcta ou erradamente, se ajusta à forma de processo escolhida e usada por essa parte.»[3].

Por conseguinte, «1. A idoneidade da forma de processo, que deve ser indicada na petição inicial (art. 552.º, n.º 1, al. c)), afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor, e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata-se, não de uma inadequação da forma do processo, mas de uma situação de eventual improcedência da ação), ocorrendo o erro e a correspondente nulidade quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão.»[4].

Afirma-se, pois, que «A causa de pedir é irrelevante para os efeitos do artigo em anotação, para os quais apenas interessa considerar o pedido formulado.»[5].

No caso em concreto, o Tribunal a quo subsumiu a situação ao uso indevido do meio processual, a que alude o art. 193.º, n.º 3.

«O n.º 3 regula o erro na qualificação jurídica e estabelece a regra da convolação pelo juiz da qualificação do meio processual.

A convolação pressupõe três requisitos: (i) a compatibilidade do conteúdo acto praticado com o acto que devia ter sido praticado; (ii) o respeito do prazo para o acto que devia ter sido praticado; (iii) a competência do tribunal para o novo meio processual.

Incumbe ao juiz corrigir a qualificação errada do meio processual que foi realizada pela parte.»[6].

«O n.º 3 do preceito, introduzido no atual CPC, já não respeita ao erro na forma de processo, antes ao relacionado com o meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato. Em tais circunstâncias, em lugar do decretamento puro e simples da nulidade do ato, impõe-se ao juiz o dever de proceder à sua correção oficiosa, determinado que sejam seguidos os termos processuais adequados. O sentido desta previsão é claro: evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão em juízo.»[7].   

Ou, por outras palavras, «O n.º 3 trata, já não do erro na forma do processo (global), mas do erro no meio processual utilizado pela parte no âmbito dum processo.

Autor e réu têm ao seu alcance, ao logo do processo, meios de atuação que a lei processual lhes disponibiliza para veicularem e fazerem vingar as suas pretensões ou oposições, quer no plano do mérito, quer no das questões processuais (articulados, requerimentos, respostas, reclamações, recursos, embargos). O n.º 3 cuida do erro da parte no ato de utilização de um desses meios, determinando o aproveitamento daquele que a parte haja inadequadamente qualificado, mas cujo conteúdo – subentende-se – se adeque ao meio que devia ter sido utilizado; o juiz, oficiosamente, observado o princípio do contraditório, corrige o erro e manda proceder à tramitação própria deste último.»[8].

A sanação do erro em qualquer destes casos – na forma do processo ou na qualificação do meio processual – opera ex tunc[9].

Cotejada a pretensão do Recorrente com as considerações tecidas decorre, com meridiana clareza, que o mesmo pretende, desde logo e antes de mais, que se tenha a resolução contratual (feita, segundo apelidou, com «justa causa»), corporizada na carta remetida em 1 de Agosto de 2022, como lícita – cf. conclusões 15.ª ss.      

Ou seja, a pretensão formulada nesta acção, tal qual foi livremente por si conformada não se resume, exclusivamente, a obter o cumprimento da obrigação (reparação e indemnização) a que alude a transacção judicialmente homologada, caso em que se deveria equacionar o recurso à acção executiva.     

Sob o prisma formal, a tutela processual que foi escolhida pelo Recorrente, através da propositura de uma (esta) acção declarativa cível, com processo comum, não é errada ou inidónea a fazer valer a sua pretensão.

Com efeito, não é de mais reter que nesta instância recursiva não se cura de saber se o pedido que foi concretamente enunciado tem, ou não, mérito suficiente.

Isso é matéria distinta da aqui apreciada, que diz respeito à substância da acção, e que conduzirá, a final, a uma decisão de (im)procedência da acção.

Tanto basta para que se conclua não ocorrer a nulidade de todo o processo, por erro no meio processual empregue, e, assistindo integral razão ao Recorrente, deve revogar-se o despacho sindicado, ordenando-se o prossecução dos ulteriores termos desta acção. 

A satisfação das custas processuais impenderá sobre a parte vencida, a final (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

VI.

Decisão:

Com os fundamentos explicitados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, e determinando-se que a acção prossiga os seus subsequentes trâmites processuais.

O pagamento das custas processuais responsabiliza a parte vencida, a final.

Registe e notifique.


Coimbra, 11 de Março de 2025

(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)



[1] Juiz Desembargador 1.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Maria João Areias
[2] A propositura da acção remonta a 5 de Junho de 2023.
[3] Teixeira de Sousa in, Código de Processo Civil Online, Dezembro de 2024, anotação ao art. 193.º, p. 76, nota 3
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 3.ª Edição, 2022, anotação ao art. 193.º, p. 256, adiantando que «O que caracteriza o erro na forma do processo é que ao pedido formulado corresponda forma de processo diversa da empregue e não se mostre possível, através da adequação formal, fazer com que, pela forma de processo efetivamente adotada, se consiga o efeito jurídico pretendido pelo autor.» (pp. 256/257, n.º 2), e «4. O erro na forma do processo importa somente a inatendibilidade dos atos que não possam ser aproveitados, praticando-se os necessários a que, tanto quanto possível, o processo se aproxime da forma prevista na lei. O limite a observar é sempre o das garantias da defesa, não podendo aquele aproveitamento traduzir-se numa diminuição dessas garantias.» (p. 257).
[5] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in, Código de Processo Civil Anotado, 1.º Volume, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 2014, anotação ao art. 193.º, p. 377, nota 6.
[6] Teixeira de Sousa, op. cit., p. 76, notas 8 a) e b), e 9 a).
[7] Abrantes Geraldes, op. cit., p. 257, nota 7.
[8] Lebre de Freitas, op. cit., p. 377, nota 7.
[9] Teixeira de Sousa, op. cit., p. 76, nota 2 b).