Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/05.0GTSTR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DESPENALIZAÇÃO
SUSPENSÃO DA PENA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
REGIME MAIS FAVORÁVEL
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE TORRES NOVAS – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 348.º, N.º 1, ALÍNEA A) DO C.P., EX VI DO ARTIGO 387.º, N.º 2 DO C.P.P., ARTIGOS 2.º, N.ºS 2 E 4 E 50.º, N.º 5 DO CÓDIGO PENAL; 371.º-A DO C.P.P..
Sumário: I - Tendo sido eliminada a cominação, antes descrita no artigo 387.º, n.º2, do C.P.P., na versão hoje revogada – norma processual, mas também de natureza material na parte em que cominava a punição pelo crime de desobediência – na nova normação juridico-processual, deve ter-se por descriminalizada a conduta que se traduzia em faltar à diligência para a qual o arguido fora convocado, nos termos da versão anterior do referido preceito legal, porquanto esse facto, sendo punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixou de o ser pela lei nova que o eliminou do número das infracções (artigo 2.º, n.º2, do Código Penal).
II. - Tendo havido descriminalização do crime de desobediência previsto no artigo 387.º, n.º 2, do C.P.P., na redacção anterior à reforma de 2007, é de aplicar retroactivamente a lei penal mais favorável, ainda que transitada em julgado a decisão condenatória por tal crime (artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal).
III. - Com a nova redacção do artigo 2.º, n.º4, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável passa a determinar que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessem a execução e os efeitos penais quando o agente já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior.
IV. - Com esta alteração, pretende-se evitar que alguém possa permanecer na prisão em cumprimento de pena, apesar de, segundo a nova lei, já ter ultrapassado o limite que o legislador passou a considerar como o máximo de pena aceitável e político-criminalmente justificável – o que, nas palavras de Taipa de Carvalho, constituiria «o absurdo dos absurdos político-criminais (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 323).
V. - Nas situações em que se verifiquem os pressupostos previstos na 2.ª parte do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, o Ministério Público tem legitimidade para requerer a cessação da execução «logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior» e a aplicação de tal preceito não depende de requerimento, por ser oficiosa, não se exigindo, nesse caso, o recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 371.º A, do C.P.Penal.
VI. – Na aplicação do regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, não se deve atender tão só aos prazos da suspensão que cada um dos regimes estabelece impondo-se, outrossim, determinar se o tribunal da condenação, colocado perante a lei nova – em que o período de suspensão da pena de prisão, corresponde à duração desta, sem poder ser inferior a um ano – teria, de acordo com os critérios legais, optado pela pena suspensa, com as mesmas condicionantes, optado pela pena suspensa, com outras condicionantes, ou teria mesmo optado por outra pena de substituição.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
1. No processo comum n.º 168/05.0GTSTR, o arguido …, melhor identificado nos autos, foi condenado, por sentença de 18 de Julho de 2006, transitada em julgado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código Penal, com referência ao artigo 387.º, n.º2, do Código de Processo Penal, bem como pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, nas penas parcelares de 6 (seis) meses e de 13 (treze) meses de prisão, respectivamente.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 16 (dezasseis) meses de prisão), cuja execução se decidiu suspender pelo período de 3 (três) anos, com sujeição a regime de prova.
2. Em 15 de Maio de 2008, o Ministério Público promoveu: que por descriminalização da conduta pela qual o arguido foi condenado no quadro do crime de desobediência, se declare extinta a respectiva pena parcelar; que fosse proferida decisão a adequar o período de suspensão da pena de prisão ao regime introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de declarar reduzido o período de 3 anos de suspensão para 1 ano e 1 mês.
3. Por despachos de 30 de Maio de 2008, o M.mo Juiz indeferiu as referidas promoções.
4. Inconformado, recorreu o Ministério Público dos referidos despachos, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1.º O despacho recorrido ao considerar que a conduta do arguido, que à data dos factos consubstanciava a prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.°, n.º 1, al. a) do Código Penal, com referência ao artigo 387.°, n.º 2 do Código de Processo Penal não foi descriminalizada com a entrada em vigor da Lei n.º 48/07, de 29/08, viola o disposto nos os artigos 2.°, n.º 2 e 348.°, n.º 1, als a) e b) do Código Penal, o artigo 387.°, n.º 2 do Código de Processo Penal e artigo 29.°, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
2.° Em 15/09/07 entrou em vigor a Lei n.º 59/2007 de 04 de Agosto e a Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, tendo o legislador suprimido do leque de condutas criminalmente puníveis aquela que, anteriormente, preenchia o crime do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 387.º, n.º 2, do CPP, sendo imperativo concluir-se assim pela sua descriminalização.
3.° O preenchimento desse crime derivava da existência de uma disposição legal – o n.º 2 do artigo 387.º – que estabelecia a cominação com o crime de desobediência, e não de qualquer cominação feita por autoridade ou funcionário, limitando-se o agente da autoridade a transmitir a cominação que constava da lei, nesta sequência, condenar o arguido por aplicação da al. b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, violaria o princípio da legalidade.
4.° Assim, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 2 do Código Penal, deixando de existir uma norma legal a prever a referida cominação, deixou de haver fundamento para a sua realização, mostrando-se a conduta respectiva despenalizada, (uma vez que o facto punível pela lei vigente no momento da sua prática deixou de o ser pela lei nova que o eliminou do número das infracções).
5.° Consequentemente, deverá o despacho recorrido ser revogado nessa parte e, em sua substituição, ser proferida decisão mediante a qual se declare despenalizada a conduta do arguido quanto ao crime de desobediência atrás citado e se declare extinta a pena que lhe foi aplicada pela prática do referido crime, determinando-se que seja desfeito o cúmulo jurídico efectuado, mantendo-se apenas a pena parcelar, que lhe fora aplicada pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.°, n.º 2 do DL n.º 2/98 de 3 de Janeiro.
6.° A norma do n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é concretamente mais favorável ao condenado se dela resultar um período de suspensão mais curto.
7.° A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao condenado, mesmo no caso de haver condenação transitada em julgado, decorre actualmente dos artigos 29.º, n.º 4, in fine da Constituição da República Portuguesa e 2.°, n.º 4 do Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
8.°O Ministério Público, enquanto garante da legalidade democrática e da igualdade dos cidadãos perante a lei, tem legitimidade para requerer a aplicação do regime penal mais favorável ao condenado, ao abrigo dos artigos 219.º, n.º 1 da CRP, 1.º do EMP e 5.°, n.º 1 da LOFTJ.
9.° O artigo 371.°-A do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto não constitui obstáculo quer à apreciação oficiosa, quer à aplicação a requerimento do Ministério Público, do regime mais favorável ao condenado, podendo mesmo a sua aplicabilidade imediata aos processos iniciados anteriormente à sua vigência ser afastada por recurso ao disposto no artigo 5.°, maxime n.º 2, alínea a) do CPP.
10.° Ao negar legitimidade ao Ministério Público para requerer a aplicação ao condenado do regime penal mais favorável, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 50.°, n.º 5 e 2.°, n.º 4 do CP, 29.°, n.º 4, in fine, 13.°, 18.°, n.º 2, 219.°, n.º 1 da CRP, 1.º do EMP e 5.°, n.º1 da LOFTJ.
11.° Inexistindo qualquer elemento de facto relevante para a prolação de decisão – em benefício do condenado – no sentido de adequar o período de duração da suspensão de execução da pena de prisão ao vertido no n.º 5 do artigo 50.° do CP ex vi artigo 2.°, n.º 4 do mesmo Código, que não conste já da sentença condenatória, reabrir a audiência revelar-se-ia acto inútil em face do teor do artigo 369.°, n.º 2 ex vi artigo 371.°, ambos do CPP.
12.° Pelo exposto, deverá esse Venerando Tribunal proferir decisão em que determine a redução do prazo de suspensão da execução da pena de prisão de 3 anos para 1 ano e 1 mês, por ser o correspondente à pena parcelar de prisão aplicada, de harmonia com o artigo 50.°, n.º 5 ex vi artigo 2.°, n.º 4 do CP.
13.° Caso V. Ex. assim não o entendam, deverá esse Venerando Tribunal revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que dê cumprimento ao preceituado no artigo 50.°, n.º 5 do CP ex vi artigo 2.°, n.º 4 do mesmo diploma reduzindo oficiosamente o período de suspensão de execução da pena de 3 anos, para 1 ano e 1 mês e, consequentemente, determine a junção aos autos do C.R.C. do arguido e de informação sobre a existência de processos pendentes contra o mesmo em ordem a declarar a eventual extinção da pena.
3. O recurso foi admitido, não tendo sido apresentada resposta.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá merecer provimento.
5. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, as questões que o recorrente coloca são:
- se os factos pelos quais houve condenação pelo crime de desobediência foram descriminalizados com a entrada em vigor da revisão do C.P.P, operada em 2007;
- se o tribunal a quo deveria ter procedido à redução do período de suspensão da execução da pena, ajustando-o à pena de prisão, por aplicação do disposto no artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, na redacção introduzida pela revisão penal de 2007, bem como se o Ministério Público, face à alteração da lei penal, tem ou não legitimidade para requerer a aplicação da Lei Nova, no pressuposto de que a mesma é mais favorável ao condenado, nos casos de sentença já transitada em julgado.
2. Elementos relevantes para a decisão
2.1. Os despachos recorrido têm o seguinte teor:
2.1.1. Quanto ao crime de desobediência:
«Fls. 199 a 202: No requerimento que juntou aos autos alega que o crime de desobediência pelo qual o arguido foi condenado nos autos deixou de existir no ordenamento jurídico-penal, com a alteração do artigo 385.º, do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, ocorrendo assim uma despenalização da conduta do arguido quanto a tal ilícito. Pretende assim o Ministério Público que se declarar extinta a pena parcelar de 6 meses de prisão que foi aplicada ao arguido pela prática daquele crime de desobediência que, na sua opinião, teria deixado de existir atenta aquela alteração legal.
Salvo o devido respeito, discordamos do raciocínio realizado pelo Ministério Público. Na verdade, verifica-se que o crime de desobediência não deixou de existir no ordenamento jurídico-penal. Na verdade, o mesmo continua a ser previsto e punido no artigo 348°, do Código Penal. Para além disso, mantém-se todos os elementos que compõem o tipo de ilícito em causa. Continua assim a ser punível o comportamento do agente que desobedece a uma ordem que for legitimamente dada por uma autoridade competente.
Nos presentes autos o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência devido ao facto de ter desobedecido a uma ordem que lhe foi dada por uma autoridade competente. Deste modo, o seu comportamento preencheu o tipo de ilícito criminal em causa do crime de desobediência. Não ocorreu assim qualquer despenalização da conduta do arguido quanto ao apontado ilícito.
O que se passou foi que com a alteração do artigo 385.º, do Código de Processo Penal, resultante da redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, quando os Tribunais estiverem encerrados no momento da sua detenção e o arguido não puder ser de imediato sujeito a julgamento em processo sumário, deixou de ser advertido pela autoridade policial que proceder à detenção para comparecer no dia útil seguinte em Tribunal para ser sujeito a julgamento, sob pena de incorrer na prática de um crime desobediência. Agora, o arguido é notificado pela autoridade competente para comparecer em Tribunal no dia útil seguinte para ser sujeito a julgamento em processo sumário, com a advertência que o mesmo terá lugar ainda na sua ausência.
Consequentemente, ocorreu apenas uma alteração processual quanto à notificação que é feita ao arguido para comparecer no Tribunal para ser sujeito a audiência de julgamento. Não ocorreu nenhuma despenalização do crime de desobediência por força da alteração da referida norma, na medida em que o mesmo continuou a ser punível.
Por outro lado, o crime em causa nos autos consumou-se através da falta de cumprimento que o arguido efectuou da ordem que lhe foi dada para comparecer no Tribunal no dia útil seguinte para ser sujeito a audiência de julgamento. Essa ordem estava prevista numa norma legal, no caso o artigo 387.º, n.º2, do Código de Processo Penal. Logo o crime em causa ficou devidamente preenchido com a desobediência à ordem realizada pelo arguido. Não deixou, por outro lado, de ser punido com o crime de desobediência o desrespeito a uma ordem dada por autoridade competente, na medida em que continua a estar previsto no artigo 348.º, do Código Penal, com a alteração realizada no Código de Processo Penal, quanto à notificação que é feita pela autoridade competente para garantir que o arguido compareça em Tribunal para ser sujeito a julgamento em Processo sumário
Consequentemente, não se registará no caso concreto a previsão do artigo 2.º, n.º2, do Código Penal, designadamente a despenalização do crime de desobediência com a alteração do Código de Processo Penal introduzida pela Lei n.º 48/2007.
Ainda que assim não fosse, compulsados os autos constata-se que o arguido foi condenado pela prática do crime de desobediência, por sentença transitada em julgado, na previsão quer da alínea a), quer da alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal. Na verdade, compulsados os autos constata-se que a autoridade policial que deteve o arguido e depois o libertou, o notificou que ele deveria comparecer em Tribunal no dia útil seguinte para ser sujeito a julgamento em Processo Sumário. Para além. disso, fez-lhe a advertência expressa que, caso não cumprisse aquela ordem, incorreria na prática de um crime de desobediência. Deste modo, ao não ter comparecido no Tribunal e na data indicada, conforme lhe tinha sido ordenado pela autoridade policial, com a advertência de que incorreria na prática de um crime de desobediência, o comportamento do arguido preencheu a previsão da alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal, pela qual foi igualmente condenado.
Consequentemente, ainda que se considere que o comportamento do arguido deixou de preencher a alínea a), do n.º1, do artigo 348.º, com a revogação da disposição legal que cominava com a prática de um crime de desobediência, no caso aquele artigo 387.º, n.º2, do Código de Processo Penal, o mesmo continuou a preencher a previsão da alínea b), daquele preceito. Na verdade, na falta de disposição legal, a autoridade policial realizou a cominação ao arguido de que incorreria na prática de um crime de desobediência caso não cumprisse a ordem que lhe era dada, designadamente que deveria comparecer no Tribunal em data que lhe foi indicada.
Deste modo, a conduta do arguido não foi despenalizada, na medida em que continua a poder subsumir-se na previsão daquela alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, pois o arguido não cumpriu uma ordem que lhe foi dada por uma autoridade competente. Autoridade essa que lhe fez a cominação que incorreria na prática de um crime de desobediência caso não cumprisse a ordem. Ora, como o arguido foi igualmente condenado pela prática de um crime de desobediência, nos termos da alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal, e que esta não sofreu qualquer alteração. Logo o facto era punível anteriormente e não o deixou de o ser porque a lei nova não o eliminou do número das infracções.
Consequentemente, não existe fundamento para declarar a extinção da pena que foi aplicada ao arguido devido à condenação do mesmo pela prática de um crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, designadamente com o recurso ao artigo 2.º, n.º2, do Código Penal.
Em conformidade, e pelo exposto, indefere-se a promoção do Ministério Público para ser declarada extinta a pena de 6 meses de prisão que foi aplicada ao arguido........... pela prática de um crime de desobediência.
Notifique. »
2.1.2. Quanto à questão do período de suspensão da execução da pena:
«Vem ainda o Ministério Público, no requerimento que juntou aos autos, solicitar que seja proferida nova sentença que aplique o regime da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido … nos presentes autos, que se encontra previsto no artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4-9.
Pretende assim o Ministério Público, nessa nova sentença a proferir que seja reduzido o prazo de 3 anos da suspensão da pena de prisão, que foi determinado nos autos, para o de 1 ano e 1 mês, que corresponderá à pena de prisão que foi aqui aplicada ao arguido........... pela prática de condução de veículo sem habilitação legal. Sustenta esta pretensão no facto da nova redacção daquele artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 59/2007, ser mais favorável ao arguido, que a redacção anterior.
Contudo, determina o artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida por aquela Lei n.º 48/2007, de 29-8, que: Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.
Resulta assim da redacção desta norma que a possibilidade de solicitar a reabertura da audiência de julgamento para que o Tribunal aplique o regime mais favorável que tenha entrado em vigor depois de ter sido efectuado o julgamento, de ter sido proferida sentença, e desta ter transitado em julgado, encontra-se reservada em exclusivo ao arguido condenado. Consequentemente, o pedido de reabertura da audiência consiste numa faculdade que lhe está reservada em exclusivo, podendo ele optar pela sua dedução ou não, e só ele tem legitimidade para o vir apresentar.
Verifica-se assim que qualquer outro sujeito processual, designadamente o Ministério Público não tem legitimidade, nem a faculdade de vir pedir a reabertura da audiência de julgamento para efeito de aplicação do regime que se mostre mais favorável, e para a alteração da decisão final proferida nos autos, ainda que já transitada em julgado.
Por outro lado, e da análise do disposto na Lei não se vislumbra que o Juiz possa aplicar directamente o novo regime legal que tenha entrado em vigor e que se mostre mais favorável ao arguido. Na verdade, o artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, não pode ser interpretado de forma isolada conforme faz o Ministério Público. Terá sim o mesmo de ser interpretado em conjugação com o artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal. Consequentemente, se já foi proferida sentença nos autos e a mesma já transitou em julgado, apenas será possível aplicar uma lei que tenha entrado em vigor posteriormente e se mostre mais favorável ao arguido, caso sejam reunidas as condições previstas no artigo 371°-A, do Código de Processo Penal. Caso não estejam reunidas as condições desta última norma, o Tribunal não poderá aplicar ao arguido essa nova Lei que se mostre mais favorável ao mesmo, nos termos do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, na medida em que tem de respeitar o caso julgado.
Até porque, seguindo a tese do Ministério Público, o artigo 371°-A, do Código de Processo Penal seria uma norma totalmente inútil. Na verdade, se o Tribunal tivesse que oficiosamente aplicar um regime concreto mais favorável ao condenado, sempre que o mesmo entrasse em vigor, tendo assim que alterar a decisão condenatória que havia proferido, ainda que a mesma tivesse transitado em julgado, não se justificava a reabertura da audiência para o efeito e a necessidade de o condenado formular tal pedido. Na verdade, se o Tribunal já estava obrigado a proceder à prolação de decisão que alterasse a anteriormente proferida, assim que entrasse em vigor um regime jurídico concreto mais favorável ao condenado, não havia necessidade de este recorrer para o efeito ao artigo 371°-A, do Código de Processo Penal. De facto, segundo a tese do Ministério Público, o Tribunal já estava obrigado a proceder à alteração da decisão transitada em julgado, por força do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal. Tornar-se-ia assim inútil o pedido do condenado para que fosse reaberta a audiência, na medida em que o Tribunal teria de alterar a decisão mesmo que tal pedido não fosse apresentado.
Ora, o legislador criou o artigo 371°-A, do Código de Processo Penal com um propósito, não tendo emitido uma norma inútil. E esse propósito consiste em que a decisão condenatória apenas será alterada, ainda que tenha transitado em julgado, quando entrar em vigor uma norma de onde resulte um regime jurídico que em concreto é mais favorável ao condenado, quando este último solicitar a reabertura da audiência da audiência. Só nessa situação será admissível a aplicação do regime concreto mais favorável ao condenado.
Até porque não se vislumbra de que forma poderá o Tribunal aplicar o regime concreto mais favorável sem que, previamente, seja reaberta a audiência, e que os intervenientes processuais tenham a possibilidade de analisar e emitir a sua opinião sobre se os factos em causa nos autos se subsumem nesse regime concreto mais favorável. Só com a reabertura da audiência será possível que seja cumprido o princípio fundamental do processo consistente no exercício do contraditório pelos intervenientes.
Refira-se ainda que o n.º4, do artigo 2.º, do Código Penal se encontra dividido em duas partes. A primeira parte não sofreu alterações com a reforma do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4-9. Esta consiste em que: Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em Leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente. Esta parte, que não sofreu qualquer alteração, apenas será aplicável em conjugação com o artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, conforme deixamos expresso supra.
Consequentemente, resulta do disposto nos artigos 371°-A, do Código de Processo Penal, e do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, que não será reaberta a audiência de julgamento apenas quando houver uma alteração da Lei geral, e que tenha sido instituída uma norma cuja previsão abstracta possa ser mais favorável ao arguido. Aquelas normas apenas serão aplicáveis e apenas se justificará a reabertura da audiência, quando o regime jurídico aplicável à situação seja no seu todo mais favorável ao arguido, e não uma norma em abstracto. Para além disso, haverá necessidade que o regime que regula o enquadramento que o Tribunal utilizou como referência para a definição da medida da pena aplicada ao arguido também ter sido, em concreto, modificado e deverá ser mais favorável ao arguido.
Na verdade, é comummente aceite pela doutrina e jurisprudência que o artigo 2.º, n.º4, do Código Penal não determina, em caso de sucessão de Leis no tempo, a aplicação de uma norma legal que em abstracto se mostre mais favorável ao arguido. Na verdade, os dois regimes que se sucederam no tempo não podem ser confrontados em abstracto, mas sim em concreto. Deste modo, serão aplicados em concreto à situação em causa os dois regimes legais que se sucederam no tempo. Verificar-se-á então qual é o regime que em concreto se mostra mais favorável ao arguido, sendo este o que lhe será aplicável. Contudo, para verificar qual é o regime concretamente mais favorável ao arguido não basta verificar em abstracto se a norma baixou a medida da pena ou o tempo da suspensão da execução da pena de prisão. Ter-se-á que aplicar o regime em concreto para verificar se o mesmo é efectivamente mais favorável ao arguido. E esse regime terá de ser aplicado como um todo e não parcialmente. Ora, essa aplicação em concreto só será possível na sequência da discussão da situação no âmbito de uma audiência de julgamento e na sequência do exercício do contraditório por todos os intervenientes processuais.
Até porque não se pode concluir da simples leitura da norma em abstracto que reduz o prazo da suspensão da pena de prisão, equiparando-o ao tempo da pena que foi aplicada ao arguido, para se concluir imediatamente que aplicação da mesma será em concreto mais favorável ao arguido. Na verdade, poderão haver situações em que o regime da Lei nova que reduz o tempo da suspensão da pena de prisão poderá ser em concreto mais desfavorável ao arguido. Designadamente, poderá dar-se o exemplo das situações em que foi determinada como condição para a suspensão da pena de prisão, o pagamento de uma determinada quantia monetária pelo arguido durante o tempo da suspensão. Obviamente que será mais favorável ao arguido ter um período mais dilatado de suspensão da pena do que um mais reduzido. Na verdade, dessa forma o arguido terá mais tempo para cumprir aquela condição e proceder ao pagamento da quantia monetária. Outro exemplo será quando é imposta como condição um programa de recuperação a uma determinada dependência de consumo de álcool ou de estupefacientes, ou então um plano de integração social, com a ocupação laboral. Será também aqui mais benéfico para o arguido que o período da suspensão da pena de prisão seja mais alargado do que reduzido. Na verdade, com um período de suspensão maior o arguido beneficiará do acompanhamento de técnicos especializados, designadamente do DGRS, no âmbito do seu programa de recuperação de consumo de substâncias, e de integração social e laboral. Ora, só com a análise em concreto da situação do arguido, e após o exercício do contraditório pelos intervenientes processuais, será possível verificar qual é o regime que em concreto será mais favorável ao agente, designadamente o de manter o prazo alargado da suspensão da pena, ou de reduzir o mesmo de acordo com o período temporal da pena de prisão que lhe foi aplicada.
Conforme esclarece o Dr. Maia Gonçalves, in Código Penal anotado, 16.ª edição, Almedina, pág. 56: A alteração introduzida no n.º2 do Projecto - substituição de normas mais favoráveis por regime que concretamente se mostre mais favorável, fórmula que veio a ser perfilhada, visou acentuar que não é o regime em abstracto mais favorável o que necessariamente se aplica, mas sim aquele que, em face das particulares circunstâncias do caso concreto, se mostra mais favorável ao delinquente. Pode, por exemplo, a pena de prisão pelo novo regime ser mais prolongada. Mas porque perante a nova lei é possível e se impõe até a aplicação de uma pena de substituição, enquanto que perante a antiga a prisão tenha que ser efectivamente cumprida, terá de se aceitar como mais favorável o novo regime, não obstante o tempo de prisão ser maior. Pretendeu-se ainda, com a substituição de normas por regime, acentuar bem haver que optar, em bloco, pelo regime anterior ou pelo novo. É o regime penal em conjunto concretamente mais favorável que se aplica, não sendo por isso, à falta de lei expressa, lícito aplicar normas de um e de outro dos regimes. Em resumo: sucedendo-se várias leis penais no tempo sobre a incriminação do delinquente... o juiz terá de fazer o cômputo da situação perante cada uma dessas leis, optando depois por aplicar, em bloco, a lei que lhe for mais favorável .
A 2.ª parte do n.º4, do artigo 2.º, foi alterada pela Lei n.º 59/2007, e passou a ter a seguinte redacção: ... se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
Tendo em conta o seu teor conclui-se que esta 2.ª parte do preceito em causa aplica-se às situações em que o condenado esteja a cumprir uma determinada pena criminal, designadamente de prisão ou de multa. Se entrar posteriormente em vigor uma lei que seja mais favorável ao condenado, o mesmo terá que cumprir a pena em que foi condenado até ao limite máximo da mesma previsto na lei posterior. É óbvio assim que esta última parte do n.º4, do artigo 2.º apenas se aplica quando o condenado esteja efectivamente a cumprir uma determinada pena criminal e esta esteja em execução. E ainda quando o limite máximo da medida abstracta da pena previsto na lei posterior, for inferior à medida concreta dessa mesma pena que lhe foi aplicada.
Ora, da análise dos autos constata-se que a pena de prisão que foi aplicada ao arguido se encontra suspensa na sua execução, não se encontrando assim o mesmo a cumpri-la. Além disso, não se registou nenhuma situação em que o limite máximo da medida abstracta da pena aplicada ao crime pelo qual ele foi condenado seja inferior à medida concreta da pena que lhe foi aplicada.
Constata-se que essa 2.ª parte do n.º4, do artigo 2.º, do Código Penal, não será aplicável ao caso concreto.
Acresce que a aplicação directa do n.º4, do artigo 2.º, do Código Penal, com a alteração de uma decisão judicial que já transitou em julgado, não será possível, na medida em que a mesma iria violar manifestamente o caso julgado. Ora, essa violação do caso julgado será inconstitucional, devendo assim ser rejeitada.
Em conformidade, respeitamos a interpretação que o Ministério Público faz da Lei, mas manifestamente não a subscrevemos. Logo consideramos que legalmente o Juiz não pode aplicar directamente uma norma legal que em abstracto se mostre mais favorável ao arguido sem ser ordenada, previamente, a reabertura da audiência, dando-se assim a possibilidade aos intervenientes processuais de discutirem qual será o regime, dos que se sucederam no tempo, que em concreto se mostra mais favorável ao agente, se a decisão proferida no processo já transitou em julgado, como acontece no caso concreto.
Consequentemente, e por todo o exposto indefere-se o pedido do Ministério Público para ser proferida nova sentença com as alterações por si indicadas, designadamente com a redução do período de suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, passando a mesma de 3 anos, para 1 ano e 1 mês, e com a aplicação directa do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, na medida em que tal é legalmente inadmissível.
Notifique.»
2.2. Em sustentação das decisões recorridas, disse o M.mo Juiz a quo:
«Consideramos que os argumentos apresentados pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso de forma alguma abalam a decisão que foi tomada no despacho recorrido.
Na verdade, e no que respeita às alegações referentes ao primeiro despacho recorrido parece-nos que o Ministério Público vem impugnar o teor de uma decisão judicial que entretanto já transitou em julgado. Tal é, no entanto, legalmente inadmissível.
Na verdade, nos autos principais foi o arguido condenado pela prática de um crime de desobediência por violação quer da alínea a), quer da alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal.
Vem agora o Ministério Público impugnar esta decisão ao afirmar que o arguido foi indevidamente condenado pela alínea b), do n.º1, do artigo 348.º, do Código Penal, na medida em que não haveriam fundamentos para o efeito. Contudo, tal impugnação agora realizada pelo Ministério Público é manifestamente extemporânea. Deveria ele tê-la feito após a prolação da decisão se não concordava com ela através da instauração de recurso contra essa parte. Não o fez, contudo, e deixou que a decisão transitasse em julgado, condenando o arguido pela prática do crime de desobediência e subsumindo o seu comportamento igualmente na alínea b), do n.º1, do artigo 348°.
Não pode vir agora recorrer do teor dessa decisão, na medida em que a mesma já transitou em julgado.
Do mesmo modo, também não pode aproveitar as alegações de recurso referentes a um despacho recorrido para vir impugnar o teor de uma decisão já transitada em julgada, e da qual não recorreu na altura em que o deveria ter feito.
Por outro lado, e no que respeita às alegações de recurso referentes ao 2.º despacho recorrido, resulta do disposto nos artigos 371°-A, do Código de Processo Penal, e do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, que não será reaberta a audiência de julgamento apenas quando houver uma alteração da Lei geral, e que tenha sido instituída uma norma cuja previsão abstracta possa ser mais favorável ao arguido. Aquelas normas apenas serão aplicáveis e apenas se justificará a reabertura da audiência, quando o regime jurídico aplicável à situação seja no seu todo mais favorável ao arguido, e não uma norma em abstracto. Para além disso, haverá necessidade que o regime que regula o enquadramento que o Tribunal utilizou como referência para a definição da medida da pena aplicada ao arguido também ter sido, em concreto, modificado e deverá ser mais favorável ao arguido.
Continuamos assim a sustentar que o artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, não poderá ser aplicado directamente, mas sim em conjugação com o artigo 371°-A, do Código de Processo Penal. Deste modo, haverá necessidade de abrir previamente a audiência de julgamento, de forma a verificar-se qual é o regime em concreto, e não em abstracto, mais favorável ao agente. Só esse regime concretamente mais favorável poderá ser aplicado ao arguido, e não o que resulta em abstracto mais favorável.
Para além disso, sempre se dirá que nos recusamos a aplicar o disposto no artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, de forma directa às decisões judiciais já transitadas em julgado, na medida em que consideramos que uma interpretação dessa norma nesses termos é inconstitucional, por violar manifestamente o caso julgado de uma decisão anterior.
Na realidade, a protecção e o respeito pelo caso julgado encontram-se consagrados na Constituição, designadamente nos artigos 2.º, 111.º, n.º1, 205.º, n.º2, e 282.º, n.º3. A interpretação que leve à aplicação directa daquele artigo 2°, n.º4, do Código Penal, às decisões já transitadas em julgado, vai manifestamente pôr em causa o caso julgado e violar estas normas constitucionais.
De facto, desse modo, qualquer decisão judicial, que transitou em julgado, deixa de ter eficácia em definitivo, podendo assim ser alterada a todo o tempo, bastando para o efeito que entre em vigor um regime que se mostra mais favorável ao arguido.
Ora, com o caso julgado de uma determinada decisão pretende-se que a mesma permaneça tendencialmente imutável. Só dessa forma haverá uma garantia de certeza e segurança jurídica e de paz judicial em relação àquela questão, pois a mesma foi decidida em definitivo.
Pelo contrário a possibilidade de a todo o tempo uma decisão judicial poder ser modificada, bastante para o efeito que seja alterada a Lei que regula a situação em causa, provoca grande instabilidade e incerteza quanto à resolução da questão. Consequentemente, o não respeito pela decisão transitada em julgado cria uma enorme perturbação na ordem das decisões judiciais. A certeza, a paz judicial e a segurança jurídicas que são trazidas pelo caso julgado, e que são apanágio de um Estado Constitucional de Direito, são postas em causa pela possibilidade de poder ser modificada a todo o tempo a decisão transitada, através da aplicação directa às mesmas do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, apenas com base em um capricho do legislador que resolveu modificar a norma que prevê o regime jurídico que regula a situação em causa.
Nos tempos que correm, com as constantes e sistemáticas alterações das normas legais, o caso julgado tornar-se-á uma quimera ou uma miragem e não produzirá quaisquer efeitos. Para além disso, o Tribunal vê-se na contingência de ter de estar sistematicamente a reabrir a audiência, a realizar parcialmente novos julgamentos e a proferir novas decisões. Neste último caso para quê proferir nova decisão se passado pouco tempo tem de estar a alterá-la?
Os valores em causa num Estado de Direito Democrático não se conjugam com a emissão de Leis e a interpretação das mesmas sempre de forma favorável ao condenado e arguido, permitindo constantemente uma reapreciação de uma condenação. Esses valores pugnam igualmente por uma estabilidade na resolução das questões e na condenação efectiva do arguido pelo ilícito e pela violação dos valores protegidos constitucionalmente. Deverá assim ser dada prevalência à necessidade social de segurança e certeza do Direito e da justiça.
Deste modo, o Tribunal pode recusar a aplicação directa daquele artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, às decisões judiciais já transitadas em julgado, com o fundamento da interpretação em causa ser inconstitucional, na medida em que o alcance do artigo 29.º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa, quando manda aplicar retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, não possui, como já disse o Tribunal Constitucional em Acórdãos por si proferidos, alcance ilimitado, uma vez que a protecção constitucional do caso julgado justifica a limitação da garantia estabelecida naquele preceito legal. O julgador não é, assim, obrigado a aplicar uma lei inconstitucional.
Deste modo, declarar-se que não se aplica ao caso em análise, de forma directa, a norma do artigo 2°. n.º4, do Código Penal, na medida em que se considera que a interpretação que conclui pela aplicação directa dessa norma é inconstitucional pelas razões já expostas supra.
Pelo exposto, e nos termos do artigo 414.º, n.º4 do Código de Processo Penal, decide-se sustentar ambas as decisões recorridas
3. Apreciando
3.1. Em bom rigor, são duas as decisões recorridas: uma relativamente ao crime de desobediência pelo qual foi proferida condenação; outra relativa à questão do prazo de suspensão da execução da pena.
Ambas envolvem a ponderação dos efeitos nos presentes autos das reformas penal e processual penal que ocorreram em 2007.
Vejamos cada uma dessas questões, separadamente.
3.2. Do crime de desobediência
3.2.1. … foi condenado, por sentença de 18 de Julho de 2006, transitada em julgado, além do mais, pela prática de «um crime de desobediência p. e p. artigo 348.º, n.º1, alíneas a) e b), do Código Penal, com referência ao artigo 387.º, n.º2, do Código de Processo Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão».
Na parte relativa à prática desse crime, traduziram-se os factos, no essencial, na circunstância de o arguido, interceptado por uma brigada da G.N.R. quando conduzia um veículo automóvel ligeiro de mercadorias sem para esse efeito estar habilitado com carta de condução, ter sido notificado para comparecer no tribunal, a fim de ser julgado em processo sumário, sob pena de, faltando, incorrer na prática de um crime de desobediência e de, tendo ficado ciente do conteúdo dessa notificação, o arguido não ter comparecido nem justificado a falta (cfr. certidão da sentença condenatória).
3.2.2. Estabelecia o artigo 387.º, n.º2, do C.P.P., na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, integrado no título atinente ao processo sumário, reportando-se aos casos de detenção em flagrante delito com impossibilidade de audiência imediata:
«Se a detenção ocorrer fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, a entidade policial que tiver procedido à detenção sujeita o arguido a termo de identidade e residência, liberta-o e notifica-o para comparecer perante o Ministério Público no primeiro dia útil seguinte, à hora que lhe for designada, sob pena de, faltando, incorrer no crime de desobediência. As testemunhas são igualmente notificadas para comparecer».
Acrescentava o n.º4 do mesmo artigo:
«Se o arguido não comparecer, é lavrado auto de notícia, o qual será entregue ao Ministério Público e servirá de acusação pelo crime de desobediência, que será julgado conjuntamente com os outros crimes, se o processo mantiver a forma sumária»:
Com a entrada em vigor da Lei nº 48/2007 de 29/8, que alterou a redacção do artigo 387.º do C.P.P., deixou de existir a cominação da desobediência simples para os casos em que anteriormente estava prevista.
Realmente, quando o arguido detido em flagrante delito deva ser libertado, nos termos do artigo 385.º, n.º1 e 2, do C.P.P., na sua nova redacção, o órgão de polícia criminal deve sujeitá-lo a termo de identidade e residência, notificando-o para comparecer perante o Ministério Público, no dia e hora que forem designados, para ser submetido: a audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência de que esta se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor; ou a primeiro interrogatório judicial e eventual aplicação de medida de coacção ou de garantia patrimonial (n.º3 do citado artigo 385.º).
Desapareceu a menção ao crime de desobediência simples e o artigo 387.º passou a dispor sobre a audiência e os respectivos adiamentos.
Não parece haver dúvidas de que o legislador deixou de punir criminalmente o arguido que, detido fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, tendo prestado termo de identidade e residência e sendo notificado pela entidade policial para comparecer perante o Ministério Público no primeiro dia útil seguinte, venha a não comparecer à hora que lhe seja designada.
A consequência, agora, para essa falta de comparência, consiste em que o julgamento em processo sumário sempre terá lugar, sendo o arguido representado na audiência por defensor, devendo ser notificado com tal advertência.
Tendo desaparecido a cominação legal de sancionar o comportamento do arguido faltoso com o crime de desobediência, há que extrair as necessárias consequências relativamente às condutas praticadas anteriormente à entrada em vigor da revisão do C.P.Penal.
É sabido que o preenchimento do tipo legal do crime de desobediência previsto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, depende da existência de uma outra disposição legal (no caso, o anterior artigo 387.º, n.º 2, do C.P.P.) que comine a punição como desobediência simples. Na referida alínea a), o crime de desobediência parece destinado «a servir de norma auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e a sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, Parte Especial, III, 2001, p. 353).
Essa cominação deixou de existir no que toca à conduta em apreço e a conduta antes descrita no artigo 387.º, n.º2, do C.P.P., na versão hoje revogada – norma processual, mas também de natureza material na parte em que cominava a punição pelo crime de desobediência –, deixou de preencher qualquer tipo legal de crime.
A eliminação dessa cominação determina a consequente descriminalização da conduta que se traduz em faltar à diligência para a qual o arguido foi convocado, nos termos da versão anterior do referido preceito legal, porquanto esse facto, sendo punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixou de o ser pela lei nova que o eliminou do número das infracções (artigo 2.º, n.º2, do Código Penal).
É certo que do ponto n.º2 dos factos provados consta que o arguido foi notificado para comparecer, tendo sido advertido de que em caso de falta incorreria na prática do crime de desobediência.
Simplesmente, tal advertência não relevava como «cominação funcional», mas tão-somente como indicação da «cominação legal» então expressamente prevista.
Ora, no artigo 387.º, n.º2, do C.P.P., na redacção anteriormente vigente, estabelecia-se uma “cominação legal”, hoje substituída pela simples advertência de que o julgamento em processo sumário terá lugar mesmo no caso de falta de comparência do arguido, pelo que não seria sequer legítimo o entendimento, face à nova lei, de que o órgão de polícia criminal poderia substituir a falta de cominação legal pela imposição de uma cominação funcional, já que é clara a intenção descriminalizadora do legislador.
A menção, na sentença condenatória, às alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 348.º do Código Penal não permite concluir que se tenha considerado a advertência efectuada pelo órgão de polícia criminal como autónoma em relação à advertência legal que lhe competia transmitir.
Quer isto dizer que estamos perante factos que foram, salvo melhor opinião, descriminalizados.
Este o entendimento perfilhado por esta Relação, no Acórdão de 23 de Janeiro de 2008 (processo 346/06.4GTAVR.C1, www.dgsi.pt), do mesmo relator, que se segue de perto.
No mesmo sentido, o S.T.J., nos seus Acórdãos de 30 de Abril de 2008 (processo 1012/08 – 3.ª Secção, sumariado em SASTJ) e de 14 de Janeiro de 2009 (processo 08P3975, www.dgsi.pt), e bem assim a Relação do Porto, em Acórdãos de 31 de Outubro de 2007 (processo 0713692) e 30 de Janeiro de 2008 (processo 0717187).
Tendo havido descriminalização do crime de desobediência previsto no artigo 387.º, n.º 2, do C.P.P., na redacção anterior à reforma de 2007, é de aplicar retroactivamente a lei penal mais favorável, ainda que transitada em julgado a decisão condenatória por tal crime (artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal).
Eliminada essa conduta do elenco dos crimes, cessam a execução e os seus efeitos penais.
Do que se infere que, nesta parte, o recurso merece provimento.
Assim, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, conclui-se pela extinção do procedimento criminal quanto ao crime de desobediência imputado ao condenado, por via da referida descriminalização, deixando de subsistir a pena que lhe foi aplicada por esse crime. Em consequência, terá de ficar sem efeito o cúmulo jurídico efectuado, uma vez que apenas passa a subsistir a pena que foi aplicada ao condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal.
3.3. Da pretendida redução do período de suspensão da execução da pena
3.3.1. Subsistindo a condenação pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 13 meses de prisão, coloca-se a questão do período de suspensão da pena, com sujeição a regime de prova, que a sentença condenatória fixara em 3 (três) anos.
Pretende o recorrente que tal período de suspensão seja reduzido a 1 ano e 1 mês, igualando-o ao tempo de prisão da pena principal, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e do artigo 2.º, n.º4, do mesmo código.
3.3.2. Dispõe o n.º 4 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.
Por sua vez, o artigo 2.º, n.º2, do Código Penal, prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
No que concerne à aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, estabelecia o n.º 4 do mesmo artigo, na sua redacção originária, que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
A doutrina questionou a constitucionalidade da ressalva constante da parte final do mencionado n.º4, com Taipa de Carvalho, entre outros, a sustentar a tese da inconstitucionalidade (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, PUC, 2003, 239 e seguintes), enquanto Figueiredo Dias se pronunciava em sentido oposto (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 189 e seguintes).
É de assinalar que o Tribunal Constitucional, quando teve de se pronunciar sobre a norma em questão, não a julgou inconstitucional, a não ser em determinadas interpretações normativas. Assim, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 644/98 não julgou inconstitucional a norma em apreço. O Acórdão do TC n.º 169/2002 julgou materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, a norma do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, «na interpretação segundo a qual veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semipúblico um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.» Por seu turno, o Acórdão do T.C. n.º 572/2003 julgou inconstitucional a mesma norma, mas na interpretação de que vedava a aplicação da lei penal nova que descriminalizava o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória.
A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o n.º4 do mencionado artigo 2.º, do Código Penal, que passou a dispor: Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.
A nova redacção contempla duas alterações em relação ao texto original: a primeira consiste na eliminação do segmento, «salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado», pelo que o caso julgado deixou de constituir óbice à aplicação da lei penal mais favorável; a segunda consiste no aditamento do segmento «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.»
Com a nova redacção do artigo 2.º, n.º4, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável passa a determinar que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessem a execução e os efeitos penais quando o agente já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior.
Com esta alteração, pretende-se evitar que alguém possa permanecer na prisão em cumprimento de pena, apesar de, segundo a nova lei, já ter ultrapassado o limite que o legislador passou a considerar como o máximo de pena aceitável e político-criminalmente justificável – o que, nas palavras de Taipa de Carvalho, constituiria «o absurdo dos absurdos político-criminais (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 323).
Compreende-se, pois, que o artigo 2.º, n.º4, 2.ª parte, seja de aplicação oficiosa, não estando na dependência de qualquer iniciativa do condenado.
Assim, a aplicação da 2.ª parte do n.º4 do artigo 2.º não impõe a reabertura da audiência para nova determinação da pena concreta no quadro da moldura penal aplicável, mas significa, apenas, um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado – limite esse que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável.
Na parte respeitante aos “efeitos penais” (ver artigos 65.º a 69.º), afigura-se-nos que será indispensável interpretar a norma no sentido de que os mesmos cessam quando o já cumprido (desses efeitos) tenha atingido o máximo que a nova lei estabeleceu.
3.3.3. Para compatibilizar a lei adjectiva com a circunstância de ter sido eliminado do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, a ressalva do caso julgado, o artigo 371.ºA, do Código de Processo Penal, revisto pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, veio estabelecer:
Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.
Quer isto dizer que, para além do mecanismo de aplicação oficiosa previsto no artigo 2.º, n.º4, 2.ª parte, do Código Penal, existe outro meio, a desencadear por iniciativa do condenado, para aplicação retroactiva da lei posterior mais favorável, em detrimento do caso julgado, que implica a reabertura da audiência tendo como único objecto a questão da determinação da sanção, com ponderação do regime penal concretamente mais favorável ao condenado.
Como se lê no Acórdão desta Relação de 10 de Dezembro de 2008 (no processo 341/03.5TATNV-D.C1, tendo como relator o Dr. Heitor Osório), são pressupostos de aplicação do mecanismo previsto no artigo 371.º-A:
- A existência de uma sentença condenatória transitada em julgado;
- A existência de uma pena em execução [fica limitada a sua aplicação aos casos em que ainda pode ser atenuada ou eliminada a compressão de direitos];
- O impulso processual do condenado;
- A verificação de uma sucessão de leis penais no tempo e a possibilidade de a aplicação da lei penal nova trazer ao condenado um benefício.
3.3.4. Da conjugação das referidas alterações legais introduzidas em 2007 – que se traduziram na nova redacção do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, e no aditamento do artigo 371.º A, do Código de Processo Penal – resulta que:
- o juiz do tribunal da condenação deve, num primeiro momento, oficiosamente e por mero despacho, verificar se a pena aplicada ultrapassa o limite máximo da pena prevista para o crime pela lei nova e, se tal acontecer, deve reduzir a pena aplicada a esse limite, determinando de imediato, se for o caso, a cessação da sua execução e dos seus efeitos penais;
- caso a pena concreta não ultrapasse aquele limite, confere-se ao arguido o direito de requerer a reabertura da audiência para que o tribunal que nesse momento seja o competente, depois de assegurar o contraditório, possa determinar a nova pena atendendo às disposições estabelecidas pela lei que se apresentar como mais favorável (neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Fevereiro de 2008, processo 799/2008-3, www.dgsi.pt).
3.3.5. No caso em apreço, a questão que se coloca consiste em saber o que ocorre nas situações em que, no domínio da versão anterior do Código Penal, tenham sido aplicadas penas de prisão suspensas por períodos superiores aos das penas de prisão substituídas, tendo em vista que o artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, passou a dispor: O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
Segundo o entendimento do recorrente, o tribunal da condenação deveria, por aplicação da lei nova, considerada mais favorável, ajustar o período de suspensão ao novo regime do artigo 50.º, n.º5, ao abrigo da nova redacção do artigo 2.º, n.º4.
Saliente-se que o Ministério Público junto da 1.ª instância, no requerimento sobre o qual incidiu o despacho recorrido, não requereu a reabertura da audiência de julgamento para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, certamente por entender que o pretendido ajustamento do período de suspensão não dependia de tal reabertura.
Não ignoramos que a questão colocada tem sido objecto de controvérsia, sendo propostas soluções jurisprudenciais divergentes.
Algumas vozes têm defendido que o juiz, oficiosamente, deverá considerar o quantum da pena principal como nova duração da suspensão, decorrente da aplicação do artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, sem necessidade de ser requerida a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º A do C.P.Penal.
A nosso ver, porém, o artigo 2.º, n.º4, 2.ª parte, do Código Penal, não consente tal interpretação.
Como se disse supra, o referido preceito consagra, apenas, um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado, que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável.
Quer isto dizer que a ressalva do caso julgado que é afastada pela 2.ª parte do referido n.º4 pressupõe a execução de uma pena principal e já não de uma pena de substituição, «uma vez que só é possível avaliar se o tempo de execução corresponde à pena máxima aplicável pela lei posterior se ambas forem da mesma espécie» (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2.ªedição, 2007, p. 203).
Também Taipa de Carvalho parece partir do pressuposto de que o artigo 2.º, n.º4, 2.ª parte, na sua nova redacção, tem em vista os casos em que a lei posterior ao caso julgado reduza a pena principal (prisão ou multa), relegando para o âmbito do artigo 371.º A os casos de alteração do regime das penas de substituição (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 323 e segs. 326 e segs.).
O artigo 2.º, n.º4, 2.ª parte, na sua nova redacção, única base legal possível para a pretendida redução do período de suspensão, impõe, a nosso ver, uma simples comparação de tipo aritmético entre a pena principal aplicada na sentença transitada e o limite máximo abstractamente previsto na moldura prevista na nova lei, não abrangendo a situação a que os presentes autos de recurso se reportam (ver o texto do relator, em Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008, p. 39 e 40).
Como se lê no Acórdão desta Relação de 10 de Dezembro de 2008 (supra citado), «a fixação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão imposta (…) não resulta de um capricho ou de um cálculo aleatório efectuado pelo tribunal (…). O prazo encontrado resultou também da análise global dos elementos disponíveis relevantes e que conduziram aquele tribunal à formulação da prognose favorável ou seja, na base da fixação do prazo estavam as razões de prevenção especial de socialização que, como é sabido, constituem a base do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.»
Quem entende que, em situações como a dos autos, a questão se resolve através do ajustamento do período de suspensão, mesmo oficiosamente, parece partir do pressuposto de que, face ao novo texto legal, não restaria ao julgador outra alternativa que não fosse reduzir o tempo de suspensão para o quantum da pena principal.
É certo que, não tendo havido quaisquer alterações quanto aos critérios e procedimentos de determinação da pena, podemos ter como adquirido que o tribunal, colocado perante a aplicação do Código Penal revisto, teria de manter a condenação na mesma pena principal para o crime de condução sem habilitação legal.
Mas já não se pode concluir que, face à nova configuração legal das penas de substituição, o tribunal tivesse de manter a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova, agora pelo tempo da pena de prisão substituída.
A decisão de suspender a pena de prisão em determinadas condições assentou na consideração de que tal pena de substituição era a que realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Ora, se o tribunal prefigurasse uma suspensão por apenas 1 ano e 1 mês, temos de admitir que tal pena de substituição poderia não ser considerada adequada e suficiente face às finalidades da punição. Eventualmente, o tribunal teria de reequacionar os termos da substituição ou mesmo optar por outra pena substitutiva, tendo em vista o alargamento destas penas operado pela revisão de 2007.
O confronto dos dois regimes que se sucederam não pode passar apenas pela singela operação de comparação entre uma pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita a regime de prova, e uma pena de 1 ano e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 1 mês, sujeita também a regime de prova, porquanto o prazo da suspensão e as condições estabelecidas são apenas alguns dos elementos a considerar. Se assim fosse estaríamos a fragmentar os dois regimes legais que se sucederam, atendendo exclusivamente aos prazos da suspensão, para depois se concluir que a última pena é mais favorável.
Posto que o quantum da pena principal de prisão não sofreria alteração, e mesmo que tal pena sempre devesse ficar, em qualquer caso, suspensa na sua execução, o que se impõe determinar é se o tribunal da condenação, colocado perante a lei nova – em que o período de suspensão da pena de prisão, corresponde à duração desta, sem poder ser inferior a um ano – teria, de acordo com os critérios legais, optado pela pena suspensa, com as mesmas condicionantes, optado pela pena suspensa com outras condicionantes, ou teria mesmo optado por outra pena de substituição.
E só depois de feita esta operação, é que o tribunal estaria em condições de efectuar, em concreto, a comparação de regimes e verificar qual deles é o mais favorável.
3.3.6. Face ao exposto, conclui-se que, na parte relativa ao período de suspensão, o recurso não merece provimento, ainda que com fundamentos diversos dos sustentados pelo M.mo Juiz a quo.
Realmente, nas situações em que se verifiquem os pressupostos previstos na 2.ª parte do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal, temos como certo que o Ministério Público tem legitimidade para requerer a cessação da execução «logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior» e que a aplicação de tal preceito não depende de requerimento, por ser oficiosa, não se exigindo, nesse caso, o recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 371.º A, do C.P.Penal.
Por outro lado, também temos como certo que tal preceito, evitando o absurdo do cumprimento de uma pena principal para além do limite máximo da pena abstractamente aplicável segundo a nova moldura penal, não enferma de qualquer inconstitucionalidade.
Finalmente, também pode ser equívoca a afirmação pelo M.mo Juiz de que a 2.ª parte do artigo 2.º, n.º4, do Código Penal aplica-se às situações em que o condenado esteja a cumprir uma determinada pena criminal e esta esteja em execução, o que poderia inculcar, erradamente, que a pena de prisão suspensa na sua execução não é uma verdadeira pena.
Porém, tal afirmação já será acertada no pressuposto – que sustentamos – de que a aplicação do referido preceito impõe que esteja a ser executada uma pena principal e já não uma pena de substituição, pois nesta situação terá de haver confronto de regimes para determinação do que se mostre concretamente mais favorável ao condenado.
Quanto à questão da legitimidade do Ministério Público para requerer a reabertura da audiência, a mesma não se coloca com relevância nos presentes autos porquanto o Ministério Público, concretamente, não requereu nesse sentido.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:
a) Conceder provimento ao recurso na parte relativa ao crime de desobediência, revogando o despacho recorrido e declarando descriminalizada a conduta pela qual ….............., melhor identificado nos autos, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º1, alíneas a) e b) do Código Penal, com referência ao artigo 387.º, n.º2, do Código de Processo Penal, e, por via disso, cessada a respectiva pena, nos termos do artigo 2.º, n.º2, do Código Penal, dando-se sem efeito o cúmulo de penas e subsistindo a pena aplicada pelo crime de condução sem habilitação legal;
b) Negar provimento ao recurso no restante.