Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2096/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: PENHORA DE RENDIMENTOS
ISENÇÃO
Data do Acordão: 06/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 824º, Nº 3, DO CPC, 45º, Nº 1, DA LEI Nº 28/87, DE 14/08 E 72º DA CRP
Sumário: Isenção da penhora de rendimentos provenientes de pensões sociais, «tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar».
Decisão Texto Integral:
I – Relatório.
...
2. Objecto do recurso.
O presente recurso tem por objecto um despacho que indeferiu a pretensão da recorrente de ficar isenta da penhora das suas pensões de sobrevivência e de velhice no processo de execução supra referido, em que é executada.
3. Enquadramento da pretensão da recorrente.
A exequente-recorrida emprestou a um co-executado da recorrente a quantia de 12.200.000$00, em 28 de Outubro de 1999. Nesse contrato, a recorrente foi fiadora e principal pagadora. O referido mutuário não cumpriu a obrigação decorrente do contrato; consequentemente, em 13 de Março de 2000, a exequente instaurou acção executiva contra a recorrente e o referido mutuário, na sequência da qual foi ordenada, por despacho de 19 de Setembro de 2002, a penhora de «1/3 da reforma mensal recebida por esta executada, até integral pagamento da quantia exequenda e custas prováveis, ...», a qual foi consumada a partir de Novembro de 2002, através de descontos mensais de € 143,72.
Alegando que o desconto decorrente da penhora, cujo despacho não lhe foi notificado, punha em causa o mínimo necessário para a sua sobrevivência, a executada-recorrente pediu a isenção da penhora, nos termos do disposto no artigo 824º, nº 3, do Código de Processo Civil [1]; ouvida, a exequente opôs-se a essa pretensão, invocando o seu crédito e a obrigação da executada.
Foi proferida decisão, dando parcial satisfação à pretensão, pelo que foi reduzido o desconto nas referidas pensões, de 1/3 para 1/6.
4. A requerente-executada não se conformou com este despacho e interpôs recurso, que foi admitido como agravo, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte.
«1ª) A quantia exequenda ascende a 90.000 €.
2ª) A executada é pensionista de velhice e de sobrevivência, cujo montante mensal é de 451,34 €.
3ª) Tem 67 anos de idade.
4ª) É viúva.
5ª) É doente.
6ª) Não tem outros bens ou rendimentos.
7ª) A exequente é a C.
8ª) A executada figurou na condição de fiadora.
9ª) A exequente poderá penhorar bens do executado C.
10ª) A executada M encontra-se em situação de carência económica.
11ª) A penhora incide sobre a sua pensão.
12ª) À mesma foi concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de encargos do processo.
13ª) Por erro de aplicação e/ou interpretação, não foram correctamente observados os pontos legais previstos nos artigos 824º, nº 3, do CPC, 45º, nº 1, da lei nº 28/87, de 14/08 e 72º da CRP».
...
II – Fundamentação.
6.1. Os factos tomados em consideração na decisão sob recurso são os seguintes:
«- o único rendimento mensal da executada é proveniente das pensões em análise, que, em 2002, declarou rendimento global de € 6.060,86.
- tem despesas de saúde e médicas regulares.
- com a executada vivem duas filhas uma trabalha, outra encontra-se desempregada - e um neto, que estuda.
- em Setembro de 2000, a executada celebrou contrato de arrendamento da casa onde habita mediante o pagamento de renda mensal de Esc. 35.000$00, actualizável anualmente de acordo com os coeficientes aprovados por Portaria».
6.2. Factos que se devem considerar, dos documentos juntos:
6.2.1. Em 28 de Outubro de 1999, a exequente-recorrida emprestou a C, co-executado da recorrente, a quantia de 12.200.000$00.
6.2.2. Nesse contrato a recorrente foi fiadora e principal pagadora.
6.3.3. O referido mutuário não cumpriu a obrigação decorrente do contrato.
6.3.4. Em 13 de Março de 2000, a exequente instaurou acção executiva contra a recorrente e o referido mutuário.
6.3.5. Nesse processo, por despacho de 19 de Setembro de 2002, foi ordenada a penhora de «1/3 da reforma mensal recebida por esta executada, até integral pagamento da quantia exequenda e custas prováveis, ...».
6.3.6. Os descontos resultantes da referida penhora iniciaram-se a partir de Novembro de 2002, através de descontos mensais de € 143,72, correspondentes a 1/3 do valor das pensões da recorrente - € 431,16 -.
6.3.7. A recorrente nasceu em 28 de Março de 1937.
6.3.8. É viúva desde 2 de Fevereiro de 1986.
7. O Direito.
O objecto do recurso é o de saber se, face às circunstâncias concretas da vida da recorrente, as suas pensões - de sobrevivência e de velhice - devem ficar isentas de penhora ou se deve manter-se o desconto de 1/6 para pagamento de uma dívida de que a recorrente é fiadora e principal pagadora.
A recorrida defendeu a efectivação do desconto, com argumentos que serão referidos adiante.
A decisão recorrida, perante o pedido de isenção, fixou o desconto em 1/6 do montante das referidas pensões; ou seja, não atendeu toda a pretensão da requerente, mas diminuiu o montante do desconto. Tal decisão, não obstante refutar os argumentos da recorrida e tecer considerações iguais às que vamos deixar, leva-nos a concluir que se entendeu que o montante das pensões percebidas pela recorrente, reduzidas do desconto de 1/6, permitem uma vida com o mínimo de dignidade, a nível da sua sobrevivência.
7.1. O regime legal aplicável é o decorrente da Revisão do CPC, operada pelos Decretos-lei nºs. 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro, uma vez que a acção foi instaurada no ano de 2000 [2], ou seja antes da alteração introduzida pelo Decreto-lei nº 38/2003, de 8 de Março, só aplicável aos processos instaurados a partir de 15 de Setembro de 2003 [3].
No regime legal temporalmente referido, o artigo 824º do CPC proíbe a penhora de «dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, ..., ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante» [4], no que se compreendem as prestações dos regimes da segurança social [5], permitindo, então que, dentro do terço sobrante, possa haver penhora, desde um mínimo de 1/6, a fixar «segundo o seu prudente arbítrio (do juiz), tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado» [6]. Excepcionalmente, pode haver isenção da penhora de rendimentos provenientes de pensões sociais, «tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar» [7].
7.2. Este regime, com preocupações sócio-humanitárias, já tinha sido preconizado pelo Prof. Alberto dos Reis: «razões de decência e de humanidade fazem que se subtraia à penhora, ..., aquilo que é absolutamente indispensável à vida do executado e da sua família [8]. Seria odioso e afrontoso de todos os sentimentos de respeito pela pessoa humana que a penhora se levasse até ao ponto de deixar o executado e os seus inteiramente despojados do que lhes é estritamente imprescindível para a satisfação das mais elementares necessidades da vida: a comida, a cama e o vestuário. Os nºs. 9º, 10º e 11º do artigo 822º obstam a tal crueldade» [9].
Só depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, o legislador ouviu o referido Mestre: «belas e cristãs as palavras do ilustre jurisconsulto, mas que não foram nem ouvidas nem desenvolvidas pelos legisladores que se lhe seguiram. Efectivamente, só após a Revolução do 25 de Abril é que foi criado o salário mínimo nacional, pelo DL 217/74, de 25-5» [10].
Alberto dos Reis referia-se ao que for «absolutamente indispensável à vida do executado e da sua família», concretamente «a comida, a cama e o vestuário»; hoje, diria o mesmo relativamente a pensões sociais, quer pela identidade de razões, quer porque a “família alargada” se desmembrou e quem vive dessas pensões, em geral, não tem lugar na “pequena família”, pelo que, são os lares, os centros de dia ou outros, de acolhimento, pagos com esses rendimentos, que fornecem a comida e a cama.
E o regime de salvaguarda das necessidades básicas próprio de uma sociedade democrática que procura a justiça e a solidariedade [11], tem fundamento inquestionável, considerando o estádio de desenvolvimento ético-social, quer se queira ligá-lo a razões de humanidade [12], quer ao valor da dignidade da pessoa humana [13], quer ao interesse sócio-político da comunidade para que «a subsistência do executado e sua família não seja posta em causa através de uma execução, de forma a não deixarem de ser uma célula economicamente válida da sociedade» [14].
Com esta protecção, gera-se um conflito com o direito de propriedade, também constitucionalmente protegido [15], traduzido na preservação do património do credor que, para o efeito, pode perseguir o património do devedor. Nenhuma dúvida existe de que se deve dar prevalência ao interesse ligado à vida e «dignidade da pessoa humana» [16], e assim tem sido entendido unanimemente; aliás, actualmente, o conflito está resolvido directamente pelo legislador ao conferir ao aplicador do direito o poder vinculado [17] de adequar e fixar a quantia que pode ser descontada ao executada, dentro de 1/3 do seu rendimento social [18] ou, até, subtraí-lo a qualquer desconto [19].
7.3. Com esta resenha, afastamos decididamente a posição e as considerações da recorrida: a) preferência pela penhora das pensões da executada relativamente à penhora de bens móveis ainda a partilhar ou do direito da executada sobre eles, não obstante a alegada insuficiência destes ser igual à insuficiência daquelas, considerando, agora, o montante em dívida, sendo que a penhora dos móveis ou respectivo direito sempre satisfaria, em algum montante, o crédito da recorrida; b) focalização parcial do problema ao referir unicamente a obrigação da executada e o apelo a um princípio tão ultrapassado como o foi já o positivismo: “dura lex sed lex”; c) imposição aleatória da organização familiar da recorrente, ao pretender que ela viva com a ajuda das suas filhas, uma das quais desempregada; d) desconsideração pelo estipulado na lei, nomeadamente o já referido direito à isenção da penhora: «assim, a penhora ora efectuada é perfeitamente legal, não se tendo verificado qualquer atropelo à Lei»; «não podemos aceitar a afirmação feita pela executada em 22º do seu requerimento [20], por bizarra, despropositada e sem qualquer nexo, pois a exequente é o que é, cumpre com as suas obrigações e não pretende ser uma casa de caridade» [22] [23].
7.4.1. Portanto, temos por assente - como o está, quer pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer pela dos Tribunais comuns - que, abaixo de um nível considerado de mínimo de subsistência, o direito do credor cede perante o direito de sobrevivência digna do devedor. Acima desse nível, já o direito do credor não sofre limitações, estando, por outro lado, ultrapassada a questão da penhorabilidade das prestações provenientes do regime da segurança social, primeiro pelas sucessivas declarações de inconstitucionalidade do artigo 45º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto [24], posteriormente pela consagração legislativa: «não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 824º do Código de Processo Civil» [25].
7.4.2. O que se torna necessário resolver é se esse mínimo fica assegurado apesar do desconto de 1/6, como foi decidido, ou se, para isso, é necessário isentar a recorrente de qualquer desconto, como ela defende.
7.4.2.1. Para resolver esta questão, damos por assente, também, que um valor inferior ou igual ao ordenado mínimo nacional é sempre impenhorável, porque este corresponde ao mínimo dos mínimos, em termos de sobrevivência digna de um cidadão numa sociedade pautada por valores de democracia política, social e económica [26]: «efectivamente, o salário mínimo nacional, porque já é o mínimo dos mínimos, é totalmente intocável, impenhorável, por ser indispensável para o sustento do trabalhador. ... . Aliás, é internacionalmente reconhecido que o salário mínimo é indispensável para o sustento do trabalhador. Vejam-se as Convenções da O.I.T. nºs. 122 e 131» [27] [28].
7.4.2.2. Então, neste processo, a questão está em que o ordenado mínimo nacional, em Novembro de 2002, era de 348,01 euros [29] e o montante ilíquido das pensões da recorrente era de 431,16 euros, ou seja, superior ao mínimo dos mínimos em 83,15 euros. Considerando a situação actual, o ordenado mínimo nacional é de 365,60 euros [30] e a pensão actual é de 451,34 [31], ou seja, superior em 85,74 euros àquele valor.
7.4.2.3. É em situações em que o valor da retribuição social a penhorar é superior ao ordenado mínimo nacional que tem lugar «a realização de um concreto balanceamento ou ponderação de interesses entre o credor e o devedor» [32], segundo as directrizes consagradas no nº 3, do artigo 824º, do CPC: a) carácter excepcional da isenção da penhora, o que significa que, em princípio, o interesse do devedor-necessitado não deve sobrepor-se ao do credor, de uma forma tão radical; b) contudo, pode chegar-se a resultado diferente se a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar o justificarem.
7.4.2.3.1. O montante da dívida é elevado, o que, em princípio, desaconselha uma isenção e, até, redução da parte penhorável; na verdade, um montante elevado confere maior importância objectiva a uma dívida.
Em contraposição, o valor do desconto é baixo, relativamente ao referido montante, o que retira muito do poder de satisfação do credor.
O despacho recorrido referiu-se à conveniência dos organismos financeiros terem em atenção a capacidade económica dos financiados: «..., talvez seja tempo de as entidades bancárias e equiparadas, antes da conclusão dos negócios, averiguarem as reais capacidades económico-financeiras dos “parceiros negociais” para cumprimento das suas obrigações» [33]. Pensamos que este aspecto tem importância para a decisão a tomar; não enquanto inaceitável ingerência na acção de entidades privadas, mas no que respeita ao reflexo social e económico dos comportamentos mesmo dos particulares. Ficou conhecida, há uns anos atrás, a situação preocupante de insolvência de muitas famílias e indivíduos na Grã-Bratanha, a partir da facilidade de crédito, nomeadamente com a profusão de cartões de crédito. E, em Portugal, não vão longe os tempos em que, ineditamente, a dívidas dos particulares atingiu montantes superiores à das empresas, em grande parte pelo crédito à habitação, muito do qual foi qualificado como “crédito mal parado”. Uma política financeira que não tome em consideração este e outros perigos semelhantes é perniciosa, podendo levar a situações de colapso, pelo efeito “em cadeia” das insolvências, inclusivamente para as entidades financiadoras. Para já não falar da possibilidade de se criar um “mercado”, apetecível, com os bens dos que não conseguiram pagar os seus empréstimos. Por isso, o Estado acaba por intervir em tais situações; por influência da lei francesa, já o nosso legislador alterou as normas relativamente à utilização e passagem de cheques, quer responsabilizando as entidades bancárias pela atribuição de cheques, obrigando-as ao pagamento directo até certo montante, quer responsabilizando mais o beneficiário do cheque. Ora, é neste contexto que entendemos a citada passagem do despacho recorrido.
E, então, teremos de ter em consideração que o crédito que se pretende recuperar foi concedido a quem não tinha manifestamente poder económico; de tal maneira que a exequente vai atrás do património da fiadora e não do mutuário.
Claro que, do ponto de vista formal, tendo a fiadora assumido a obrigação de principal pagadora, ela não beneficia da excussão prévia, ficando ao lado do devedor, no mesmo plano. Mas, para o que aqui nos interessa, esse aspecto formal, não significa que não ponderemos, ao mesmo tempo, que, do ponto de vista sócio-psicológico, o fiador é um mero garante da obrigação de um devedor principal; e, na generalidade dos casos, é assim que as coisas se passam: alguém é solicitado a ser fiador de um amigo, acabando por aceder, olhando mais à relação de amizade do que à obrigação assumida, que julgará nunca ser actuada; depois, as cláusulas que o colocam na posição de devedor principal nem são lidas nem é compreendido o seu alcance. E a verdade é que, se a lei coloca o benefício da excussão como regra [34], com desvios contados [35], na prática, o fiador surge sempre ao lado do devedor, no mesmo plano.
Repetimos que, com estas considerações, não estamos, de maneira nenhuma, a derrogar a lei; apesar de as coisas se passarem assim - ou se poderem passar assim, admita-se -, a referida pessoa, colocada na posição de fiadora, ao lado do principal devedor, sofre as consequências previstas na lei, sem dúvida, mas, as considerações que fizemos já interessam quando estamos a tomar «em conta a natureza da dívida exequenda». E, nesse âmbito, já se poderá compreender melhor, a par da afirmação da decisão recorrida quanto à falta de cuidado na concessão de crédito, a desvalorização do primeiro factor referido - dívida em montante elevado, indiciando importância objectiva -, o que sai reforçado com o segundo factor - descontos de pequenas importâncias que levarão à ineficácia prática da penhora -. Na verdade, a referida importância da dívida acaba por ficar esvaziada quando é o próprio credor que a concede a quem não a pode pagar, a tal ponto que nem se lhe dirige e vai fazê-lo em relação a quem, na posição de fiador, ganha aproximadamente o ordenado mínimo nacional!
O que queremos dizer com isto é que a situação, tal como a vemos, é diferente da de um credor que, para mutuar uma quantia elevada, que para si é importante, toma precauções relativamente à outra parte e, apesar disso, por esta ou aquela razão, acaba por ver defraudado esse seu cuidado, acaba por ser surpreendido com o que não esperava nem era normal que surgisse.
Assim, no que respeita a este factor de ponderação, não há dificuldade em actuar excepcionalmente o mecanismo da isenção da penhora.
7.4.2.3.2. Relativamente às necessidades da executada-recorrente e agregado familiar, elas são manifestas: trata-se de uma pessoa com 67 anos de idade, que aufere pensões sociais de montante praticamente igual ao ordenado mínimo nacional, com ela «vivem duas filhas uma trabalha, outra encontra-se desempregada - e um neto, que estuda», «tem despesas de saúde e médicas regulares» e paga de renda de casa a quantia mensal que já foi de 35.000$00, entretanto provavelmente actualizada.
Com a idade da recorrente, não é nada provável que encontre uma actividade complementar dos seus rendimentos, de forma a, com sacrifício - exigível -, procurar cumprir as suas obrigações. Uma das críticas que se poderia fazer ao sistema em análise seria o de incentivar à inactividade ou a uma actividade limitada para chegar ao benefício de não ser privado de nada, apesar de se ter pouco; para além da ponderação que o legislador já fez, este caso não é passível de tal crítica, ficando à margem de outras situações em que essa possibilidade, eventualmente num caso concreto, seja um factor no sentido da redução quantitativa da penhora preferir à isenção; na verdade, não se pode pensar em compelir a recorrente a procurar mais rendimentos.
O excesso dos rendimentos da recorrente relativamente ao ordenado mínimo nacional é diminuto; definir um limite, em qualquer situação, embora pragmaticamente necessário, tem sempre algo de aleatório, quer seja numa questão de idade, de prazo, etc.; no caso do ordenado mínimo nacional até se pode dizer que a economia é capaz de estabelecer as coordenadas necessárias para a definição de um limite não aleatório; mas, com referência a esse valor, estabelecer, depois, um limite para uma sobrevivência minimamente digna de carácter excepcional é que volta ser difícil; assim, saber se, com 85 euros que a recorrente tem a mais daquele limite, chega ao limiar da sobrevivência digna, já pode ter qualquer coisa de aleatório; mas, o que se pode dizer é que aquele valor se situa, seguramente, na “zona de penumbra” daquele limite. Acresce que, em termos das leis económicas, no nível de vencimentos que a recorrente tem, a capacidade de aforro é nula e a satisfação de todas as necessidades dignas fica sempre por satisfazer, sendo muito elevada a utilidade marginal da primeira que fica por satisfazer. Ora, só uma situação claramente fora da zona fronteiriça com a da sobrevivência mínima é que leva sempre à prevalência dos interesses do credor: «é inconstitucional o nº 1, do artigo 45º da Segurança Social (Lei nº 28/84, de 14 de Agosto) na parte em que estende a aplicação do princípio da impenhorabilidade total das prestações devidas pelas instituições de segurança social, cujo montante ultrapassou manifestamente o mínimo adequado a ...» [36].
A idade da recorrente traz-lhe mais despesas [37], o que é habitual nessas situações. Acresce que paga, pelo menos, 35.000$00 de renda de casa, entretanto provavelmente actualizada.
O seu agregado familiar não pode trazer-lhe ajudas, podendo mesmo pôr-se a hipótese de a sobrecarregar [38].
7.4.2.3.3. Ora, ponderando os interesses da credora e os da devedora, em concreto, o balanço é favorável a esta, de forma acentuada [39], pelo que se justifica a medida excepcional da isenção da penhora.
III – Decisão.
Nestes termos, concede-se provimento ao agravo, devendo substituir-se o despacho que indeferiu parcialmente o pedido da recorrente por outro que isente totalmente de penhora os rendimentos que obtém a título de pensão de sobrevivência e de velhice.
Custas na primeira instância e neste tribunal pela recorrida.
29 de Junho de 2004

---------------------------------------
[1] doravante, CPC.
[2] facto sob o nº 6.3.4..
[3] artigo 23º do Decreto-Lei.
[4] alínea b), do nº 1.
[5] Lei da Segurança Social, na altura a Lei nº 28/84, de 13 de Agosto, cujo nº 4, do artigo 45º foi, por diversas vezes, julgado inconstitucional enquanto consagrava uma impenhorabilidade absoluta sem atender ao montante dos rendimentos; actualmente, o artigo 73º, nº 2, da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro.
[6] nº 2.
[7] nº 3.
[8] «tendo em conta ... e as necessidades do executado e seu agregado familiar», como prevê o referido nº 3, do artigo 824º do CPC.
[9] Processo de Execução, Coimbra Editora, vol. 1º, 2ª edição, reimpressão, 1982, pág. 352.
[10] Acórdão da Relação de Évora, de 17 de Março de 1988, in CJ XIII, 2, 290.
[11] antes de 25 de Abril de 1974, confrontar com a posição assumida na Revista da Ordem dos Advogados, ano I, nº 1, pág. 47: «Por definição - dir-se-ia - eles (os salários mínimos) devem ser impenhoráveis. Mas as mais legítimas dúvidas se levantam, ante a carência duma disposição legal invocável que assim os considere expressamente».
[12] artigo 1º da Constituição da República Portuguesa (CR). Também a Carta Encíclica Veritatis Splendor, de 6 de Agosto de 1993, se refere à necessidade de «uma convivência social justa e solidária» (nº 5).
[13] além de Alberto dos Reis, também Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, Livraria Gonçalves, Coimbra, 1949, pág. 284. Ver, também, Prof. Artur Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 1970, pág. 106: «por motivos de ordem pública, humanitária ou de moralidade».
[14] Conselheiro Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6ª edição revista e actualizada, Almedina, Janeiro de 2004, pág. 178.
[15] Jorge Barata e M. Laranjo Pereira, Acção Executiva Comum, Editora “Perspectivas e Realidades”, Lisboa, Fevereiro de 1979, Parte II, pág. 56.
[16] artigo 62º, nº 1, da CR.
[17] artigos 1º, 59º, nº 2, al. a) e 63º, nºs. 1 e 3 da CR.
[18] José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 2003, vol. 3º, anot. ao artigo 824º, pág. 357.
[19] nº 2, do artigo 824º, do CPC.
[20] nº 3, do artigo 824º, do CPC.
[21] «tendo em conta ainda que o exequente é uma instituição bancária com uma situação económica e financeira desafogada, pois é um colosso; nada lhe afecta mensalmente o valor de 143,71 €; enquanto para a requerente é muito precioso, indispensável e imprescindível, sob pena de cair em situação de verdadeira miséria» (fls. 67 v.).
[22] artigos 13º e 17º da resposta da recorrida à pretensão da recorrente, a fls. 70.
[23] a apelada refere-se a caridade numa outra acepção, fora do campo do direito; caso contrário, deixaríamos algum comentário, na linha do que François Chabas defende: «le droit consacre en général la morale: bonnes moeurs, justice et, dans une moindre mesure, charité» (Leçons de Droit Civil, 12ª edição, Montchrestien, 2000, Tomo I, 1º vol., pág. 10).
[24] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 349/91, de 3 de Julho; no mesmo sentido o Acórdão do mesmo Tribunal nº 411/93, em que estava em causa a penhorabilidade de uma pensão no montante de 138.90$00.
[25] artigo 12º, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[26] cf. artigo 2º da CR. Cf. Manuel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lex 1997, pág. 641. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 318/99, que declarou inconstitucional «a norma do artigo 824º, nºs. 1 e 2, do CPC, na medida em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas ..., cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional então em vigor, por violação do princípio da dignidade humana ...» (Diário da República, II série, nº 247, de 22 de Outubro de 1999, pág. 15.838 a 15.840); estava em causa uma pensão de invalidez no montante de 38.758$00, sendo o OMN, em 1998, de 58.900$00 (D.L. nº 35/98, de 18/2). Ainda o Acórdão do mesmo Tribunal nº 349/91, em que estava em causa uma pensão no montante de 46.150$00 (ut o Acórdão do TC nº 94/95, de 21 /2/95, in www.dgsi.pt), sendo o OMN, em 1991, de 40.100$00 (D.L. nº 14-B/91, de 9/1).
[27] Acórdão da Relação de Évora, de 17 de Março de 1988, in CJ XII, 2, 291, 1ª col.. Já em 1979, os Drs. Jorge Barata e M. Laranjo Pereira defendiam esta posição: «atendendo à “ratio legis” do art. 823, alíneas e), f) e nº 4, e à própria lógica do sistema capitalista que leve à fixação de um salário mínimo nacional -...- parece-nos mais consentâneo com o espírito do legislador considerar impenhoráveis todos os rendimentos referidos nas alíneas em causa que não excedam o salário mínimo nacional» (local citado, pág. 57). No mesmo sentido, o já citado o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 318/99: « ... o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que, por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos, ...» (pág. 15.839, 2ª col., 10º §).
[28] posição que, beneficiando da unanimidade da doutrina e da jurisprudência, tem hoje acolhimento expresso na parte final, da alínea b), do nº 1, do artigo 824º, do CPC, saído da alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março.
[29] Decreto-Lei nº 325/01, de 17/12, rectificado no D.R. de 17/12/01, 3º Suplemento.
[30] Decreto-Lei nº 19/04, de 20 de Janeiro.
[31] segundo consta da decisão recorrida, a fls. 27, penúltimo §.
[32] Dr. Carlos Francisco Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Dezembro de 1999, anotação ao artigo 824º, pág. 548. O já referido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 318/99 fala na realização de um balanceamento, da utilização de uma adequada proporção na repartição dos “custos do conflito” (cf. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1987, p. 233). Em consequência será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um mínimo de dignidade» (pág. 15.839, 2ª col., 7º §).
[33] fls. 28.
[34] artigo 638º do Código Civil.
[35] artigo 640º do Código Civil.
[36] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 130/95, de 14 de Março (www.dgsi.pt); o sublinhado é nosso. Recorde-se o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 349/91, cuja posição sobre a constitucionalidade do artigo 45º da Lei nº 28/84 impediu a penhora de uma pensão de 46.150$00 quando o Ordenado Mínimo Nacional, em 1991, era de 40.100$00.
[37] «tem despesas de saúde e médicas regulares».
[38] «com ela «vivem duas filhas uma trabalha, outra encontra-se desempregada - e um neto, que estuda».
[39] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 641: «dessa prevalência (dos interesses do exequente) resulta que, na ponderação dos interesses do exequente e do executado, qualquer protecção deste último pressupõe necessariamente que os seus interesses devam ser sensivelmente mais fortes do que o interesse do exequente na realização coactiva da sua pretensão».