Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | DR. COELHO DE MATOS | ||
Descritores: | JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL LEGITIMIDADE | ||
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Data do Acordão: | 05/18/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | SERTÃ | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE AGRAVO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 101.º DO CÓDIGO DO NOTARIADO, 242.º N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL E 26.º, 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. | ||
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Sumário: | 1. O termo “interessado” utilizado no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Notariado tem de entender-se como todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto justificado, remetendo para as normas que disciplinam a legitimidade processual, não conferindo essa legitimidade a quem mostrar um qualquer interesse na impugnação. 2. O herdeiro legitimário, só pelo facto de o ser, não tem legitimidade para impugnar, ainda em vida do pai, a escritura de justificação feita por um terceiro, para inscrição da aquisição de um prédio, alegando a venda verbal e a usucapião. | ||
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Decisão Texto Integral: | 4 Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra 1. AA demanda, na comarca da Sertã, BB e mulher CC, para impugnar a escritura de justificação notarial em que os réus declaram ter adquirido, por usucapião, a propriedade do imóvel rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial. Alega, em síntese, que é filha e daí herdeira legitimária de DD a quem o prédio pertence, sendo que os réus não adquiriram o prédio pelos meios que declaram na dita escritura de justificação. 2. Os réus contestam, opondo a ilegitimidade da autora, uma vez que não tem quaisquer direitos sobre o prédio, dado que o pai ainda é vivo. Por outro lado, contraria a afirmação da ausência de usucapião e reafirma a posse que a ela conduz. 3. Houve resposta e, no saneador, a sra. Juiz julgou procedente a excepção da ilegitimidade da autora e absolveu os réus da instância. Inconformada a autora agrava da decisão, concluindo: a) Sendo a agravante, como é, herdeira legitimaria do proprietário do imóvel dos autos, é ela titular de uma expectativa jurídica relativamente á aquisição desse bem, e nessa medida dispõe de protecção jurídica relativamente a actos de terceiros, como os dos agravados, que eliminam essa mesma expectativa jurídica. b) A agravante é interessada na impugnação do facto justificado, para o que dispõe de legitimidade bastante de acordo com o art.101.º,n.º 1 Código do Notariado, e por consequência é também parte processual legítima atento o seu interesse em demandar os justificantes, tanto mais que não estamos em presença de um negócio jurídico validamente celebrado pelo actual proprietário. c) Donde, em consequência, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a agravante parte legítima e ordene que o processo prossiga os seus ulteriores termos. 4. Os recorridos contra-alegaram em defesa do julgado, concluindo também: a) Sendo a agravante herdeira legitimária do proprietário do imóvel em causa nos autos, e sendo este ainda vivo, face ao preceituado nos artigos 2031° e 2050° do Código Civil, só após a abertura da sucessão a mesma adquire direitos que possam classificá-la como interessada em relação à herança aberta e que possam legitimar a propositura da acção judicial; b) Nas condições expressas em 1) a recorrente não é interessada nos termos e para os efeitos do artigo 101° do Código do Notariado. 5. Foi proferido despacho a mandar subir os autos, o que admitimos fazer subentender a manutenção do decidido. Dispensados os vistos, cumpre conhecer e decidir, tendo em conta que: - Em escritura de justificação notarial o agravado declarou ter adquirido por usucapião o prédio referido na petição inicial, alegando que lhe havia sido vendido verbalmente pelo pai da agravante; - O pai da agravante ainda é vivo. Em causa está apenas a questão de saber se a expectativa de herdeiro sucessível constitui interesse relevante para efeito de legitimidade activa na acção de impugnação de escritura de justificação notarial. Sabe-se que a escritura de justificação não constitui meio idóneo de declaração do direito, nem da sua aquisição ou transmissão, limitando-se tão só à constatação, perante a autoridade notarial, da declaração de posse do justificante e das declarações das testemunhas. Com este procedimento notarial fica constituído pressuposto mínimo para se efectuar o primeiro registo, cuja validade ficará sempre dependente duma eventual impugnação. Se a impugnação vem de pretenso titular do direito de propriedade é óbvio que é parte legítima, mas se, em vez do pretenso titular, vem de quem mais não tem que uma expectativa, pode e deve questionar-se se tem essa legitimidade. Poderia argumentar-se que não viria mal ao mundo se se concluísse pela afirmativa, tendo em conta que a acção nunca visa declarar o direito do autor da impugnação, mas sim pôr à prova no plano jurisdicional o que foi declarado na simples escritura de justificação e sempre com o ónus da prova a cargo do justificante. Se este lograr vencimento, tudo fica resolvido. Se o não conseguir, ficará afectado o registo, mas nunca se diz que o autor é o proprietário ou o possuidor, se o pedido não abranger esta declaração, que sempre será acessória. Num caso como o dos autos, o vencimento da acção teria o inegável interesse, para a autora, de fazer manter aquele bem no património do pai, para se habilitar a adquiri-lo (no todo ou em parte ou mero valor) posteriormente, após a abertura da sucessão. Por isso que não passa de mera expectativa. Não há aqui qualquer direito a defender. Para ter legitimidade activa o autor tem de ter interesse directo em demandar e este exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção (artigo 26.º, 1 e 2 do Código de Processo Civil). Esta utilidade tem de representar necessariamente um direito; tratando-se de mera expectativa ela só será juridicamente relevante se tal resultar da lei. E é aqui que a agravante coloca o assento tónico da sua tese, citando o n.º 2 do artigo 242.º do Código Civil, que diz assim: “a nulidade [do negócio simulado] pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar”. Trata-se, como é óbvio, de conceder ao herdeiro legitimário a possibilidade de acautelar as suas legítimas expectativas contra actos que se dirigem especificamente contra os seus interesses (expectativas). É essa especificidade que lhe confere legitimidade para atacar o acto enquanto fere a mera expectativa e não o simples facto de ser herdeiro legitimário. O caso em apreço não corresponde ao previsto na lei, embora possa haver pontos comuns. Não se trata de negócio do pai da agravante simuladamente realizado com o agravado. Trata-se de um acto unilateral do agravado, enquanto do outro lado só está a inércia do pai da agravante em impugnar o acto justificado. Os casos são diferentes e a norma do citado n.º 2 do artigo 242.º é excepcional; logo não comporta aplicação analógica (artigo 11.º do Código Civil) e por isso não se pode, com base nela, justificar a relevância jurídica das expectativas da agravante. A norma excepcional não comporta aplicação analógica, mas admite interpretação extensiva, como refere a própria norma do artigo 11.º. Logo, bem poderia, nessa medida, fundamentar a buscada relevância jurídica se se pudesse interpretar extensivamente a norma de modo a poder abranger a situação em apreço. “O recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, isto é, pressupõe que determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei. Esgotou-se todo o processo interpretativo dos textos sem se ter encontrado nenhum que contemplasse o caso cuja regulamentação se pretende, ao passo que, na interpretação extensiva, encontra-se um texto, embora, para tanto, haja necessidade de estender as palavras da lei, reconhecendo que elas atraiçoaram o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efectivamente pretendia dizer. Mas o caso está contemplado. Não há omissão” ( cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 4.ª edição, vol. I, pag. 60.) Ora, o pensamento do legislador expresso no n.º 2 do artigo 242.º do Código Civil foi o de incluir no rol das pessoas com legitimidade para arguir a nulidade do negócio simulado o próprio herdeiro legitimário, mesmo em vida do autor da sucessão, desde que, na circunstância, o negócio tenha sido por ele (autor da sucessão) simuladamente feito com o intuito de o prejudicar. Não se trata de conferir legitimidade ao herdeiro legitimário, pelo facto de o ser, mas para permitir atacar um acto viciado (nulo) que foi realizado com a finalidade de atingir os seus interesses. Logo, não se pode dizer que o legislador quis aqui regular a legitimidade do herdeiro legitimário para atacar os actos que atinjam as suas expectativas em relação à futura sucessão nos bens da herança dos seus maiores enquanto vivos. Se assim fosse não era aqui o lugar sistemático de o fazer; tê-lo-ia feito no lugar reservado à matéria da sucessão e não enquanto trata de regulamentar a falta e vícios da vontade do negócio jurídico em geral. Daí que se não possa concluir que o legislador também quis dizer que o regime de arguição pelo herdeiro legitimário previsto no n.º 2 do artigo 242.º do Código Civil se estendia à impugnação da escritura de justificação notarial. Não é legítimo concluir que foi esse o pensamento do legislador, mas que o texto ficou aquém. Não é, decididamente, caso de se fazer incluir no regime aqui definido o da impugnação de escritura de justificação notarial, pela via da interpretação extensiva da norma em apreço. Mas se porventura fosse – o que só aconteceria se se interpretasse a inércia do pai da agravante com o sentido de intuito seu, em conluio com o agravado, para prejudicar a agravante – então só se poderia admitir a legitimidade desde que isso mesmo viesse alegado. Como a agravante só invoca a qualidade de herdeira legitimária não é de admitir a sua legitimidade, porque está apenas em causa uma expectativa que, ainda que legítima, não é legalmente tutelada. Como se julgou num acórdão da Relação do Porto, sobre a matéria, “lavrada escritura de justificação notarial para se obter a primeira inscrição de um prédio no registo predial, só goza de legitimidade, como interessado para impugnar em juízo o facto justificado, quem se arrogar a titularidade de um direito incompatível com o invocado pelo justificante ou tiver outro interesse juridicamente relevante”. ( Acórdão de 09/02/93, em www.djsi.pt , n.º convencional JTRP00007550. No mesmo sentido o acórdão da mesma Relação de 27/11/2003, n.º convencional JTRP00036029.) Podemos, pois, concluir que o termo “interessado” utilizado no n.º 1 do artigo 101.º do Código do Notariado tem de entender-se como todo aquele a quem a lei confere o direito de impugnar em juízo o facto justificado, remetendo para as normas que disciplinam a legitimidade processual, não conferindo essa legitimidade a quem mostrar um qualquer interesse na impugnação. O herdeiro legitimário, só pelo facto de o ser, não tem legitimidade para impugnar, ainda em vida do pai, a escritura de justificação feita por um terceiro, para inscrição da aquisição de um prédio, alegando a venda verbal e a usucapião. Improcedem, pois, as conclusões. 6. Decisão Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida. Custas a cargo da agravante. Coimbra, |