Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOÃO MOREIRA DO CARMO | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO RESOLUÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 03/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 1083.º, N.º 2, ALÍNEA D) DO CÓDIGO CIVIL | ||
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Sumário: | Provando-se que o inquilino não reside permanente no locado, deve ser resolvido o contrato. | ||
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Decisão Texto Integral: |
I - Relatório
1. AA, residente na ..., e BB, residente em ..., intentaram acção declarativa contra CC, residente na ..., pedindo seja declarada a resolução do contrato de arrendamento existente entre autores e réu, e ser este condenado no despejo imediato do local arrendado e a entregá-lo livre e devoluto àqueles. Alegaram, em síntese, que entre autores e réu vigora contrato de arrendamento habitacional que teve início em Março de 1998 e foi celebrado pelo prazo de 5 anos. Sucede que o réu não reside no local, utilizando-o como armazém há mais de um ano. Conclui estarem verificados os fundamentos de resolução constantes do corpo do nº 2 e als. c) e d) do art. 1083º do Código Civil. O réu, reconhecendo que não usa electricidade e água, alegou que toma as refeições no locado, que aqui tem muitos objectos de sua propriedade, dorme, passa momentos de lazer e recebe amigos no locado e tem o seu domicílio fiscal. * A final foi proferida decisão que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o R. do pedido. * 2. Os AA recorreram concluindo que: 1. Entendeu a Meritíssima Juiz a quo, perfilhando a interpretração mais “exigente” para o senhorio, no sentido de que as situações tipificadas nas alíneas do nº 2 do artigo 1083º do Código Civil só poderão constituir fundamento de resolução do contrato de arrendamento se preencherem a a cláusula geral prevista no citado nº 2, isto é, se a sua gravidade e consequências tornarem inexigível a manutenção do contrato pelo senhorio, que os factos dados como provados nos autos não seriam suficientes para a resolução do contrato de arrendamento em apreço. 2. Contudo, os factos considerados provados na sentença nos pontos D) e F) a Q) à luz da legislação em vigor e jurisprudência (amplamente) maioritária, impunham decisão contrária àquela que foi proferida pela Meritíssima Juiz a quo. 3. Porquanto ficou provado, de modo manifesto e notório, que o apelado não faz uso normal que um bom pai de família faria de um imóvel arrendado para habitação, não usando ou nele tendo residência permanente há mais de um ano, utilizando o local arrendado para fim diverso daquele a que se destina, conforme se refere na douta sentença recorrida, onde se afirma utilizar o apelado o local arrendado (também) como armazém, do mesmo ainda efetuando ainda perigosa e ilegal utilização. 4. Local arrendado esse, assinale-se, onde a Merítissima Juiz teve (grande) dificuldade em entrar, conforme resulta dos autos. 5. A questão a decidir é a de saber se o uso que o apelado faz do imóvel arrendado, onde não prepara, nem confeciona refeições, não recebe visitas, não convive com familiares e amigos, não comemora datas festivas, não toma banho, não faz higiene pessoal, não lava nem seca roupa, não lava louça, não utiliza a cozinha e não efetua qualquer consumo de água e eletricidade, desde há anos, para além de manter ocupadas e inutilizádas todas as divisões do local arrendado, cheias de caixas do mais variado tipo e tamanho, contendo documentos e vários outros objetos, do mesmo fazendo perigosa utilização, se pode definir como residir no mesmo ou não e se tal uso está compreendido no espírito da lei ao referir-se ao uso do prédio para o fim para que foi contratado, mantendo a exigibilidade para o senhorio de manter o contrato de arrendamento. 6. Todos os acórdãos anteriormente referidos nas presentes alegações são no sentido de que para que se possa concluir se o arrendatário tem ou não residência permanente no prédio arrendado, tudo o que importa averiguar é se é nele que o mesmo tem instalada e organizada a sua economia familiar, se é nele que têm lugar todas as relações de convivência familiar e social, de natureza normal e constante, do arrendatário, podendo assim concluir-se que não reside permanentemente no local arrendado o inquilino que ali não pratica os factos referidos como não provados nos pontos F) a Q) dos factos provados. 7. O facto do apelado entrar e sair de casa todos os dias, ou mesmo de dormir num pequeno sofá (em vez de no quarto, por este estar cheio de objetos acumulados), não significa que o Apelado tenha residência permanente no locado, aliás como muito bem rtefre o Acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Junho de 1995 BMJ 448º, 444, “Dormir no locado não é suficiente para se concluir que o réu tem aí a sua residência permanente.” 8. Residência permanente implica, entre outros, cozinhar, receber família ou amigos, lavar e secar roupa, tomar banho e fazer a sua higiene pessoal, lavar a louça, manter a casa limpa e arrumada, ora nenhuma destas atividades é realizada pelo apelado no local arrendado, sendo o mínimo para isso exigível manter contrato de água e eletricidade no local arrendado o que também não existe conforme provado nos autos, não se podendo dizer que alguém tem residência permanente, num local onde, há anos, não se verifica qualquer consumo de água e de eletricidade. 9. E não tendo residência permanente no local arrendado não merece o apelado a especial proteção que a lei confere ao arrendatário, assim evitando relevante e rápida deterioração do local arrendado (incluindo canalização de água, provavelmente há muitos anos não utilizada). 10. Tendo em conta todos os factos suprarrefridos, não deveria a Meritíssima Juiz a quo, com o devido respeito, que muito é, ter considerado improcedente o pedido dos apelantes, porquanto resulta claro dos autos que o apelado não tem residência permanente no local arrendado desde, pelo menos 2019, utiliza o mesmo como armazém e, por isso, para fim diverso àquele a que se destina, efetuando perigosa e ilegal utilização do mesmo (apesar da falta de alegação que o apelado não usar velas ou seja fumador...). 11. Situações que pela sua gravidade e consequências implicam a inevitável deterioração do local arrendado dada a falta de uso e incorreta e ilegal utilização do mesmo, tornando manifestamente inexigível para os apelantes/senhorios a manutenção do contrato de arrendamento. 12. Ao ter decidido da forma como o fez a Meritíssima Juiz a quo violou o disposto no nº 2 do artigo 1083.º alíneas b) e c) do Código Civil, porque a utilização feita do locado pelo apelado, é uma utilização contrária à lei e aos bons costumes, desvaloriza o imóvel, provocando uma deterioração incompatível com o normal uso de uma casa de habitação e é uma utilização diversa daquela para que foi contratada. 13. Face à prova produzida em julgamento não andou bem a Meritíssima Juiz a quo ao dar como provado que não houve alteração do fim a que o imóvel se destina ou que o apelado tem residência permanente no locado, pelo que deverá a sentença ser alterada e proceder a ação, por violação do art. 1083.º n.º 2 alíneas b) e c) do Código Civil. 14. Todos os requisitos legalmente exigidos para se concluir pelo direito à resolução por parte dos apelantes foram cumpridos, pelo que a ação intentada pelos mesmos deverá proceder substituindo-se a douta sentença recorrida por outra que dê ganho de causa aos apelantes, condenando o apelado nos respetivos pedidos, assim de pugnando pela procedência do presente recurso. Termos em que deverá revogar-se a douta sentença quanto à matéria do recurso, substituindo-a por outra que condene o Apelado nos termos suprarreferidos, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA a que essa douta Relação já nos habituou! 3. Inexistem contra-alegações.
II - Factos Provados
A) Os Autores são donos e legítimos proprietários da fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “C”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo (frente) do prédio sito na Avenida ..., freguesia ... e ..., concelho ..., o qual se encontra inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...90 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha ...64. B) Por contrato escrito, datado de 15 de março de 1998, DD, Pai dos Autores, deu de arrendamento ao Réu aquela fração autónoma. C) Contrato esse efetuado pelo prazo de cinco anos, com início em 1 de março de 1998 e termo em 28 de fevereiro de 2003. D) O local arrendado destinava-se à habitação do Réu. E) Sucede que DD faleceu em 2019.03.12, bem como, posteriormente, sua EE, que veio a falecer em 2020.04.17, sendo os Autores os seus únicos e universais herdeiros. F) O réu, desde, pelo menos, o início do transato ano de 2019 que; G) Não prepara, nem confeciona, as suas refeições no local arrendado; H) Nele não recebe visitas; I) Nele não convive com familiares e amigos; J) Não comemora datas festivas; K) Não toma banho ou faz higiene pessoal; L) Não lava nem seca roupa; M) Não lava louça; N) Não utiliza a cozinha; O) Sendo que o Réu desde, pelo menos, o início do transato ano de 2019, que não efetua no local arrendado qualquer consumo de água ou eletricidade; P) O Réu mantém todas as divisões do local arrendado cheias de caixas do mais variado tipo, tamanho, contendo documentos vários e outros objetos; Q) Dificultando o acesso ou utilização de qualquer das divisões da casa. * Factos não provados: (…) 2) Não utiliza qualquer quarto; (…) *
III - O Direito
1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas. Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte. - Existência de fundamento legal para despejo.
2. Na sentença recorrida escreveu-se que: “São obrigações do arrendatário, além de outras, não aplicar a coisa a fim diverso daqueles a que ela se destina e não fazer dela uma utilização imprudente (art. 1038º, al. c) e d) do CC). … E o art. 1072º, nº 1 do CC que “1 - O arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano”. Nos termos do art. 1083º, nºs 1, 2 e 3 do CC: “1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. 2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio: (…) c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio; d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º; (…) Cabe ao senhorio a prova de todos os factos constitutivos do direito à resolução que pretende fazer valer, competindo ao arrendatário a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado – art. 342º, nº 1 e 2 do CC. Os autores entendem ter motivo para fazer cessar o contrato com fundamento nas als. c) e d) do nº 2, e na cláusula geral prevista neste número do art. 1083º do CC. Esta norma tem sido alvo de alguma discussão jurisprudencial e doutrinal. Como, de forma clara, dá conta o Ac. RC de 12.03.2019, proc. 1047/15.8T8LMG.C1 “Há, de facto, quem entenda que as situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 da citada disposição legal são autênticos fundamentos de resolução do contrato que funcionam por si e independentemente de qualquer outro facto, correspondendo a situações que o legislador definiu como situações de incumprimento do arrendatário que tornam inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio. É essa a posição adoptada por Jorge Henrique Pinto Furtado[1] quando afirma que tais situações correspondem a “…casos típicos de resolução; não meras presunções ilidíveis de inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio”; quando diz que “Provados tais factos, nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para se constituir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio” e quando escreve o seguinte: “Os casos que se enunciam a seguir são, assim, autênticos fundamentos de resolução, como lhes chama a lei; não, meras presunções iuris tantum da inexigibilidade ao senhorio da manutenção do contrato. Verificado qualquer deles, não poderá pois, ainda, provar-se que, não obstante a sua ocorrência, não será inexigível ao senhorio a manutenção do contrato, afastando-se deste modo a resolução – permita-se-nos o plebeísmo – pela porta do cavalo”. Mas também há quem entenda que as situações tipificadas nas referidas alíneas só poderão constituir fundamento de resolução do contrato se preencherem a cláusula geral prevista no citado nº 2, ou seja, se a sua gravidade ou consequências tornarem inexigível a manutenção do contrato pelo senhorio. É este o entendimento adoptado por Maria Olinda Garcia[2] e é essa também a posição adoptada por Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge[3] quando afirmam: “Em face da indispensabilidade do preenchimento do conceito geral de justa causa, incumbirá ao senhorio, autor na acção de despejo, o ónus da alegação e da prova (cfr. art.º 342.º do CC) de factualidade subsumível, não apenas nas diferentes alíneas do n.º 2 ou no n.º 3 do art.º 1083.º (quando seja caso disso), mas também, na cláusula geral constante da 1.ª parte do n.º 2”. Neste sentido também se pronunciaram os Acórdãos da Relação do Porto de 17/04/2008 (processo nº 0831655) e de 20/11/2012 (processo nº 2017/11.0TJPRT.P1)[4]. E há ainda quem adopte uma solução intermédia, sustentando que a verificação de uma das situações tipificadas nas alíneas do citado nº 2 faz presumir a inexigibilidade da manutenção do contrato, de tal modo que o locador apenas tem o ónus de alegar e provar os factos que integrem uma dessas situações, cabendo ao arrendatário o ónus de ilidir aquela presunção, alegando e provando factos dos quais resulte que continua a ser objectivamente razoável a manutenção do contrato – veja-se designadamente o Acórdão da Relação do Porto de 06/05/2010 (processo nº 451/09.5TJPRT.P1)[5]. Na nossa perspectiva, as situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 da norma citada não podem ser desligadas da cláusula geral que se encontra prevista na 1ª parte do mesmo número, ao ponto de afirmar que a verificação dessas situações constitui automaticamente fundamento para a resolução do contrato, independentemente de qualquer outro facto ou circunstância. Pensamos, na verdade, que a inexigibilidade, para o senhorio, da manutenção do contrato (exigida na 1ª parte do citado nº 2) é um pressuposto fundamental do direito à resolução do contrato. Desde logo, porque a regra geral em matéria de contratos é o de que a resolução não se basta com um qualquer incumprimento independentemente da sua gravidade; veja-se que o artigo 802º, nº 2, do CC, veda ao credor a possibilidade de resolver o contrato se o incumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância. Por outro lado, ainda que as situações tipificadas nas citadas alíneas correspondam a exemplos de incumprimento do arrendatário que poderão determinar a resolução do contrato, a verdade é que há uma grande multiplicidade de situações que, apesar de poderem ser incluídas na previsão dessas alíneas, apresentam uma gravidade substancialmente diferente e não parece que se contenha dentro do pensamento legislativo a possibilidade de resolver o contrato com base em incumprimentos que, sendo pontuais e isolados, não apresentam, em termos objectivos, qualquer relevância para o senhorio. Atente-se, por exemplo, na situação prevista na alínea a) que, após a alteração introduzida pela Lei nº 31/2012, alude apenas a “violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio”, sendo para nós impensável que uma violação pontual e isolada de uma regra de sossego ou boa vizinhança, por irrelevante que seja, possa fundamentar a resolução do contrato”. No que respeita à conciliação no nº 2 do art. 1083º com as respectivas alíneas, partilho do entendimento de que a inexigibilidade, para o senhorio, da manutenção do contrato (exigida na 1ª parte do citado nº 2) é um pressuposto fundamental do direito à resolução do contrato, não bastando a verificação das situações previstas nas alíneas. No caso concreto, a matéria provada não permite concluir pela verificação das causas resolutivas previstas nas alíneas c) e d) do nº 2 do art. 1083º do CC. É certo que tal matéria sugere um estilo de vida solitário e frugal (o réu não consome sequer electricidade ou água), contudo, para além da factualidade que resultou não provada, não está demonstrado, nem foi, de resto, alegado, que o réu não pernoite habitualmente no locado (núcleo duro da utilização habitacional), não se podendo, por isso, concluir que nela não resida. É verdade, ainda, que o réu, desde início de 2019, mantém todas as divisões do local arrendado cheias de caixas do mais variado tipo, tamanho, contendo documentos vários e outros objetos, o que dificulta o acesso ou utilização de qualquer das divisões da casa. Mas note-se, o réu não deixou de habitar a casa, apenas a utiliza, também, como armazém, pelo que, em rigor, não se pode dizer que tenha alterado o uso contratualmente previsto. Acresce que, ainda que se considerasse preenchida a causa resolutiva prevista na al. c) por incumprimento da obrigação de não usar o locado para fim diverso àquele a que se destina, sempre se entenderia, atento o contexto factual alegado e apurado, que tal circunstância não teria gravidade ou relevância suficientes para tornar inexigível ao senhorio a manutenção do contrato e para justificar a resolução do contrato. No que respeita à cláusula geral prevista no corpo do nº 2 do art. 1083º do CC, importa salientar que a situação que confere o direito à resolução tem de configurar um “incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”. Pressuposto primeiro para o preenchimento desta cláusula geral é, pois, o incumprimento de deveres contratuais ou legais, ainda que acessórios, nas suas múltiplas dimensões, incluindo a vertente de protecção de terceiros (art. 762º, nº 2 do CPC). Os autores entendem que a utilização de armazenamento que o réu faz do locado constitui um uso imprudente, já que aumenta o risco de incêndio e de deterioração do locado, concluindo pela inexigibilidade para os autores da manutenção do contrato. Ora, a factualidade alegada e que resultou provada não permite concluir por um risco concreto acrescido de incêndio (a casa não tem electricidade e não foi alegado, por exemplo, que o réu utilize velas ou seja fumador ou que ali estejam depositados materiais inflamáveis), outros efeitos nocivos que se reflitam na propriedade de terceiros (designadamente emissão de cheiros nauseabundos que se façam sentir noutros apartamentos do mesmo prédio que atentem contra o direito a um ambiente de vida sadio e direito a habitação em condições de higiene), ou ainda por uma deterioração anormal e não reparável do imóvel, sendo que decorre quer do contrato, quer da lei (art. 1043º do CC) a obrigação do arrendatário restituir o imóvel em boas condições, findo o contrato. Assim sendo, é de concluir pela falta de fundamento para a resolução do contrato.”. Avança-se, desde já, que não se acompanha a decisão tomada na 1ª instância. Nem a fundamentação relativamente à não verificação da causa da resolução prevista na d) do indicado art. 1083º, nº 2, do CC. Analisemos. 2.1. E começando pelo fundamento previsto na antecitada c) diremos que ela não ocorre. O transcrito preceito prevê como fundamento resolutivo o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina. O fim do arrendamento era a habitação do R. e da matéria provada não resulta outro fim, designadamente que o locado seja usado como armazém (como se refere na sentença recorrida). Tão-somente se apurou que – factos F) e P) - que o R., desde início de 2019, mantém todas as divisões do local arrendado cheias de caixas do mais variado tipo, tamanho, contendo documentos vários e outros objetos. Note-se, no entanto, que tal singelo facto não equivale a concluir que o réu utiliza a casa apenas como armazém, pelo que, em bom rigor, não se pode dizer que tenha alterado o uso do prédio para outro fim diverso do contratualmente previsto. Com tal factualidade única não há motivo para resolver o contrato, pelo aludido fundamento. 2.2. No respeitante à citada d) a decisão recorrida referiu três correntes doutrinais e jurisprudenciais que se formaram sobre a problemática da interpretação do art. 1083º, nº 1 e 2 do CC, relacionadas com as alíneas a) a e) do nº 2 (designadamente a d) que está em apreciação). Das três que vem indicadas, em relação à dita alínea d), não alinhamos com a segunda que vem indicada. Mas, perante a primeira e a terceira indicadas há fundamento para resolução do contrato, pois: I) como defende Pinto Furtado, preenchendo-se a sua previsão funciona por si e independentemente de qualquer outro facto, correspondendo a situações que o legislador definiu como situações de incumprimento do arrendatário que tornam inexigível a manutenção do arrendamento pelo senhorio. Tal situação, no pensamento do reputado autor, corresponde a caso típico de resolução, não a mera presunção ilidível de inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio, já que provados os factos integradores da previsão legal, nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para se constituir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio; ou II) na solução intermédia, onde se sustenta que a verificação da situação tipificada na apontada alínea faz presumir a inexigibilidade da manutenção do contrato, de tal modo que o locador apenas tem o ónus de alegar e provar os factos que integrem essa situação, cabendo ao arrendatário o ónus de ilidir aquela presunção, alegando e provando factos dos quais resulte que continua a ser objectivamente razoável a manutenção do contrato. Ora a matéria apurada – factos D) a Q) – falam por si, são eloquentes sobre o não uso do locado para efectiva habitação do R., pelo que em qualquer uma das correntes haverá sempre motivo legal para resolver o contrato. Na realidade, nos termos do supra transcrito art. 1072º, nº 1, do CC, o R. não usa efectivamente a coisa, o locado, para o fim contratado, a habitação, há mais de um ano. Deve dizer-se que doutrinalmente existe uma quarta teoria, que Menezes Cordeiro (em Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, págs. 233/234) apelida de ponderação móvel (denominando as outras de interacção, que corresponde à 2ª acima indicada, de independência, que corresponde à 1ª atrás mencionada, e presunção, que corresponde à 3ª anteriormente apontada), teoria esta que sustenta que as diversas alíneas solicitam, em grau diverso, as exigências do corpo do nº 2, teoria que abraça. Pois, as 5 alíneas desse nº 2 correspondem a situações típicas de incumprimento, particularmente aptas a preencher o quantum necessário de gravidade e de consequências, para ditar a inexigibilidade. Por um lado, elas auxiliam o intérprete-aplicador a melhor conhecer o corpo do nº 2, uma vez que dão exemplos normativamente relevantes. Por outro, elas solicitam desse corpo a necessária configuração valorativa. Ou seja, o nº 2 e as suas alíneas interpreta-se e aplica-se em conjunto. Todavia, o grau de densidade de cada uma destas alíneas é diverso. Pode-se mesmo considerar que o seu alinhamento vai no sentido de uma densidade crescente, a qual varia na razão inversa da solicitação a fazer ao corpo do preceito. A violação das regras da higiene e outras tem uma densidade mínima, devendo ponderar-se a sua gravidade ou consequências. A utilização contrária à lei, aos bons costumes e à ordem pública é, à priori, grave; a ponderação é menor. O uso para fim diverso, o não uso e acessão não autorizada têm um conteúdo valorativo crescentemente tão negativo, que a sua gravidade se torna apriorística. Em termos práticos o ilustre autor defende, que se pode apelar também à referida teoria da presunção. Mais à frente, a propósito da d), concretizando professa (págs. 238/239) que o uso efectivo do arrendado constitui um dever legal específico, que recai sobre o arrendatário (art. 1072º). Tal dever justifica-se por claras razões sociais e económicas: não faz sentido bloquear uma habitação que não sirva para nada; além disso, o abandono de um local potencialmente produtivo faz baixar o valor elas auxiliam o intérprete-aplicador. O não uso do locado por mais de um ano constitui um fundamento praticamente fechado, de resolução. Dada a previsão da lei, não há mais que provar, no sentido da gravidade ou das consequências. De outro modo, esvair-se-ia a intenção normativa, clara ao indicar o prazo de um ano. Bastaria referir o não-uso, cabendo ao tribunal determinar, caso a caso, a sua duração, para se alcançar a “gravidade” ou as “consequências” precisamente o que a lei, aqui, não quis. Subscrevemos toda esta lição e doutrina. Ora, o que os factos demonstram é que o R. não usa o locado para sua habitação, para sua residência permanente, há mais de um ano. Importa relembrar alguma jurisprudência sobre este aspecto que os recorrentes apropriada e utilmente citam, designadamente: “A noção de residência permanente está ligada, como nos parece jurisprudência pacífica, à casa onde o arrendatário tem organizada a sua vida familiar e social e a sua economia doméstica. É a casa, em suma, onde o arrendatário e a família com ele convivente habitualmente dorme, toma as suas refeições e recebe as pessoas das suas relações de amizade (entre outros Acs. do STJ de 5-3-85, BMJ 345º, 372, Rel. Porto da 12-10-97, BMJ 468º, 463 e Rel. Lisboa 11-3-99, C.J. 1999, Tº II, 8). Como refere Aragão Seia (Arrendamento Urbano, pág. 299), “são seus traços constitutivos e indispensáveis a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de constituir o centro da organização da vida doméstica”. – Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 14.10.2003, relator Garcia Calejo. “Sabendo nós que são traços constitutivos e indispensáveis ao conceito de residência permanente, a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de a casa ser a sede ou o centro da vida doméstica, ocupações acidentais (mesmo que diárias), não têm a virtualidade para inculcar a ideia do uso do arrendado como residência permanente, principalmente quando os actos inerentes à vivência quotidiana, o centro da organização da vida doméstica, se faz noutro local.” - vide o mesmo acórdão. E ainda, Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 22.2.2005, relator Rui Barreiros: “A possibilidade de resolução do contrato por falta de residência permanente, nos arrendamentos para habitação, é justificada pela carência de casas para arrendar, constituindo uma injustiça que, ao mesmo tempo, houvesse casas que não podiam entrar no mercado de arrendamento mas também não eram utilizadas pelo inquilino, o qual, entretanto, beneficiava de um regime especial: «aquele especial regime de protecção não foi feito, de toda a evidência, para esses casos» [4] [5]. Por outro lado, é um facto que pode contribuir para a degradação do imóvel e pode levar à não informação do senhorio de factos de que ele deve ter conhecimento relativamente à sua propriedade [6], pelo também está em causa o cumprimento do contrato. O conceito de residência permanente foi fixado pela jurisprudência e já vem sendo elaborado desde o artigo 69º, alínea a) da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948; assim, considera-se que ele se refere à casa onde o arrendatário vive habitualmente e onde tem organizada e instalada a sua economia doméstica [7]. No Acórdão da Relação de Lisboa, de 4 de Junho de 2002 [8], escreveu-se que a residência permanente é «o local onde o locatário tem instalado o seu lar, onde este faz a sua vida normal, onde está organizada a sua economia doméstica, onde come, dorme, recebe as suas visitas, onde recebe o correio, onde permanece nos seus momentos de lazer ou de descanso, onde tem as suas mobílias, as suas roupas, os seus objectos pessoais» [9]. Citando Acórdão desta Relação, de 11 de Janeiro de 2000 [10], afirma que o conceito está ligado às características de estabilidade, habitualidade, durabilidade, continuidade, efectividade e ininterruptividade. (…) dormir no locado não é suficiente para se concluir que o réu tem aí a sua residência permanente. Quanto ao que deva entender-se por residência permanente, para os efeitos desta disposição (e da correspondente alínea i) do nº 1 do art. 1093º do Código Civil que directamente lhe serviu de fonte), vem a jurisprudência seguindo uniformemente, desde há largo tempo, o entendimento segundo o qual ela equivale a residência habitual, estável e duradoura, não coincidindo necessariamente com a noção de residência definitiva.”. No Ac. da Rel. de Lisboa de 12.6.2007, relator Rui Vouga, refere-se que: “Por isso, para que se possa concluir se o arrendatário tem ou não residência permanente no prédio arrendado, tudo quanto se impõe averiguar é se é nele que o mesmo tem instalada e organizada a sua economia familiar, se é nele que têm lugar todas as relações de convivência familiar e social, de natureza normal e constante, do arrendatário, sendo, para o efeito, indiferente que ele tenha diversas habitações, ocupe diversos prédios com mobiliário ou viva em diversos prédios (cfr., neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão da Relação do Porto de 18-7-1975 sumariado in BMJ nº 251, pág. 206). Não reside permanentemente no local arrendado o inquilino que ali não dorme(67), não come(68), nem recebe os amigos, tendo ido viver para lugar distante, onde centralizou a sua economia doméstica e familiar. (67. Cfr., porém, no sentido de que «dormir no locado não é suficiente para se concluir que o réu tem aí a sua residência permanente», o Ac. da Rel. de Coimbra de 27/6/1995 (sumariado in BMJ nº 448, p. 444).”. Acórdão do Trib. da Rel. de Coimbra de 20.4.2010, relator Emídio Costa: “O conceito de residência permanente, para efeitos do artº 64º, al. i), do RAU, já era equacionado com o grau de vida do arrendatário e consequente incidência em relação ao arrendado, devendo ser entendido tendo em atenção o aspecto subjectivo referido ao próprio morador. E tal acontece geralmente naquelas situações em que o inquilino tem outra casa onde vive com permanência mas abusando de só poder ser despejado depois de um longo e aleatório processo judicial, simula uma residência habitual no prédio arrendado para continuar assim a beneficiar do vinculismo também quanto a ele ou exigir luvas ao senhorio. O que é necessário é que possa concluir-se que o arrendatário tem no arrendado o seu lar, que tem nele instalada a sua vida doméstica, a ele regressando logo que a sua vida profissional lho permite [Pinto Furtado, Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, 2.ª ed., 514/515.]. Como ensinam Mário Júlio Almeida Costa e Henrique Mesquita [C.J., Ano IX, 1.º, 20], “existe falta de residência permanente quando a casa é utilizada como residência eventual, esporádica ou secundária...”. E, acórdão do Trib. da Rel. de Coimbra de 19.2.2012, relator Maria Domingas Simões - “I. O art.º 1072.º impõe ao arrendatário que faça uso efectivo do arrendado para o fim contratado, assumindo-se como ilícito contratual o não uso por período superior a um ano, conforme resulta claramente do confronto deste n.º 1 com a norma de exclusão que se lhe segue. II. Tal violação do dever que, para o inquilino, decorre do contrato - e que encontra a sua justificação no facto da não utilização do imóvel implicar a sua desvalorização- é susceptível de fazer nascer na esfera jurídica do senhorio o correspondente direito de resolver o acordo celebrado, como decorre do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º. III. Não tendo embora correspondência no anterior texto, deverá entender-se que, impondo o n.º 1 do art.º 1072.º que o arrendatário use efectivamente o arrendado, uso que terá de ser aferido atendendo ao fim contratualmente previsto, tratando-se de arrendamento para habitação, o dever aqui consagrado se reconduz a final ao velho conceito de residência permanente, impondo ao arrendatário que tenha no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida.”. “Valendo aqui toda o labor doutrinário e jurisprudencial precedente na construção do conceito de residência permanente, assim se entende o lugar onde o inquilino “tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local onde tem instalada e organizada a sua vida familiar, o seu lar. (Aresto do STJ de 5/3/85, BMJ 345, pág. 172, citado por Aragão Seia, no seu “Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, págs. 298/299)”. Posto isto, e como já constatámos factualmente, o apelado, há mais de 1 ano, não prepara, nem confeciona, as suas refeições no local arrendado, nele não recebe visitas, não convive com familiares e amigos, não comemora datas festivas, não toma banho ou faz higiene pessoal, não lava nem seca roupa, não lava louça, não utiliza a cozinha, não efectua qualquer consumo de água e electricidade, mantém o local arrendado com todas as divisões cheias de caixas, o que dificulta o acesso ou utilização de qualquer das divisões da casa. Factualidade evidente que o R. não reside efectivamente no locado. Na decisão recorrida pôs-se alguma ênfase no facto de não se ter provado que o apelado não pernoite habitualmente na casa, mas tal não significa obviamente que ali resida permanentemente, pois como já atrás se sublinhou, Ac. da Rel. de Coimbra de 27 de Junho de 1995, BMJ 448º, 444, “Dormir no locado não é suficiente para se concluir que o réu tem aí a sua residência permanente.”. Em suma e conclusão, o R. não reside efectivamente no local, e assim sendo, à luz quer da teoria da ponderação móvel, quer das denominadas de independência e presunção, anteriormente mencionadas, o R. não merece qualquer protecção legal, havendo fundamento legal para resolver o contrato de arrendamento, com base no art. 1083º, nº 2, d), do CC. 3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): (…) IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, e, em consequência, declara-se resolvido o contrato arrendamento existente entre AA e R., e, em consequência, condena-se o mesmo R. no despejo imediato do local arrendado, correspondente à fracção autónoma, designada pela letra “C”, rés-do-chão esquerdo (frente) do prédio sito na Avenida ..., freguesia ... e ..., concelho ..., e a entregá-lo livre e devoluto àqueles. * Custas pelo R. * Coimbra, 8.3.2022
Moreira do Carmo
Fonte Ramos
Alberto Ruço
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