Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
168/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: BALDIOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, NºS 2 E 3, DA LEI Nº 68/93, DE 4/09
Sumário: I – Os baldios são terrenos de uso comunitário indispensáveis à economia agrícola de subsistência das populações locais, geralmente assente na pastorícia, fornecendo esses terrenos as lenhas, os estrumes, o mato, as pastagens, as águas, as pedras e o saibro, a caça e os espaços necessários para o efeito referido, constituindo realidades jurídico-económica-sociais que provêm de antanho.

II - A anterior lei (Dec. Lei nº 39/76, de 19/01, que veio restituir aos povos – às comunidades que deles foram desapossadas pelo Estado Fascista - o uso, a fruição e a administração dos baldios, como é referido no respectivo intróito) definiu os baldios como “os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia, freguesias ou parte delas”, e a actual lei (Lei nº 68/93, de 4/09) chamou de baldios “os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”.

III - Na prossecução daquele objectivo da primeira lei citada, foi atribuída legitimidade à assembleia de compartes para deliberar sobre a interposição de quaisquer acções judiciais para recuperação de parcelas indevidamente ocupadas e, na falta da assembleia de compartes, foi às juntas de freguesia da área da situação dos baldios que foi atribuída tal função, como se escreveu no Ac. da Rel. Coimbra de 4/03/1986, in C.L. ano XI, tomo II, pg. 47 - é o que resulta do disposto nos artº 6º, al. j), daquela Lei (39/76) e 3º do D.L. nº 40/76, de 19/01 (legitimidade para arguir a anulação de actos ou negócios jurídicos que tenham por objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares).

IV - Com a Lei nº 68/93, de 4/09, que revogou aqueles anteriores diplomas, veio acentuar-se a finalidade dos baldios e respectivo regime jurídico, como bem transparece do seu articulado, designadamente do seu artº 3º - onde se preceitua que “os baldios constituem, em regra, logradouro comum, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola” .

V – Enquanto a anterior lei – artº 3º do Dec. Lei nº 40/76, de 19/01 - conferia legitimidade para arguir a anulação de actos ou negócios jurídicos relativos aos baldios quer às assembleias de compartes quer às juntas de freguesia, a nova lei confere essa legitimidade ao Ministério Público, aos representantes da administração central, da administração regional ou local da área do baldio, aos órgãos de gestão do baldio e também a qualquer comparte, para requererem a declaração de nulidade de actos ou de negócios jurídicos de apropriação ou de apossamento de baldios – nº 2 do artº 4º.

VI - Mas não só, pois a nova lei ainda confere legitimidade a estas entidades para “requererem a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respectiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore” – nº 3 desse artº 4º.

VII - Donde que, presentemente, qualquer comparte de um baldio goze de legitimidade para o referido efeito.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

           

No Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, A..., residente em ...., instaurou contra a sociedade “B... ”, com sede em ...., a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que a Ré seja condenada a reconhecer que o prédio identificado no ponto 2 da petição constitui um baldio, pertença da comunidade das populações que habitam nas localidades de Barrocal, Casal Novo, Courã, Caeira, Covão da Silva e Caseirinhos, todas da freguesia de Pombal; seja a Ré condenada a reconhecer que a parcela, com a área de 31.255 m2, assinalada num desenho junto com a petição, faz parte integrante desse prédio; seja a Ré condenada a reconhecer que o A. é membro das referidas comunidades, detendo, por isso, a qualidade de comparte; seja a Ré condenada a restituir à dita comunidade a posse do referido terreno-baldio, que ocupa abusivamente, livre de pessoas e de construções sobre ele erguidas, recolocando-o no estado em que se encontrava antes da intervenção da Ré sobre esse terreno.

            Alegou, muito em resumo, que existe um prédio rústico, que é baldio, nas imediações de Pombal, freguesia de Pombal, pertencente às localidades de Barrocal, Casal Novo, Courã, Caeira, Covão da Silva e Caseirinhos, denominado Vale Pombeiro e Vale Geraz, com a área de 599.500 m2, inscrito na matriz respectiva sob o artigo 2393.

Que desde tempos imemoriais que a generalidade dos moradores das referidas povoações apascentam gados nesse baldio, aí roçam matos e cortam lenham, à vista de toda a gente.

Que a Ré é dona de um prédio sito em Eiras de Belém, limite da povoação do Barrocal, que confronta com o referido baldio, mas que a Ré vem ocupando também parte dos terrenos baldios, desde há cerca de 3 anos, numa área de 31.255 m2, que pretendeu anexar ao seu prédio.

Donde a razão de ser da presente acção.


II

            Contestou a Ré, alegando, muito em resumo, que o A. deve ser considerado parte ilegítima na acção, porque não demonstra a qualidade de terreno baldio do terreno em causa, com a consequente absolvição da Ré da instância.

            Que, no entanto, a Ré não ocupa qualquer área de terrenos baldios, sendo falso tudo quanto o A. alega em contrário.

            Que em 1997 houve uma delimitação do prédio da Ré com o acordo dos representantes da Assembleia de Compartes do baldio, com cedência recíproca de terras.

            Que a Ré nunca invadiu os terrenos do baldio em causa.

            Terminou pedindo a improcedência da acção.


III

            Respondeu o A., onde mantém que é parte legítima na acção, por ser comparte do universo de compartes do baldio em questão.


IV

            Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi expressamente apreciada a excepção da ilegitimidade do A, questão esta suscitada pela Ré, tendo sido decidido que o A. carece de legitimidade para a presente causa, tal como ele próprio a configura, com a consequente absolvição da Ré da instância.


V

            Dessa decisão interpôs recurso o A., recurso que foi admitido em 1ª instância e que já nesta Relação foi sujeito a rectificação nessa admissão, passando a ser considerado como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, conforme fls. 194.

           

Nas alegações que apresentou o Agravante concluiu do seguinte modo:

           

(...)


VI


            Contra-alegou a Agravada, (…)


VII

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, com rectificação quanto à sua qualificação, como já antes se referiu, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume à reapreciação da decisão recorrida, que considerou ser o A. parte ilegítima para a presente acção.

           

            Na fundamentação do assim decidido escreveu-se que “…o Autor não invoca qualquer acto ou negócio jurídico que tenha tido por objecto os terrenos que diz serem baldios. Ou seja, não baseia o Autor, de forma evidente, a causa de pedir num qualquer acto ou contrato, em que tenha tido intervenção a Ré, de onde resultasse tal afectação dos baldios e que, face à lei, seja nulo.

Noutros termos, o que o Autor diz é que a Ré ocupa sem qualquer título (que o legitime ou não, face à lei) terrenos baldios. Mas se assim é, agora já concluindo, não cai por essa razão a presente acção na previsão dos nºs 1 e 2 do artº 4º da Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4/09), de forma evidente (o próprio Autor não formula pedido de declaração de nulidade a que os mesmos se referem).

(…)

            … não poderemos deixar de ter em devida atenção a circunstância de o nº 3 do citado preceito vir, necessariamente, no seguimento do anterior, onde está previsto precisamente o recurso à acção de declaração de nulidade (a declaração de nulidade pode ser requerida pelo Ministério Público), o que nos parece indicar que foi precisamente intenção do legislador atribuir também às mesmas entidades (a quem atribuiu legitimidade para interpor a acção de nulidade – e portanto também a qualquer comparte) a legitimidade para requererem, conjuntamente com a declaração de nulidade do acto, a subsequente restituição da posse do baldio que aquele preciso acto nulo teve por objecto.

            Ou seja, contrariamente àquele que parece ser o entendimento do Autor, a norma em causa não parece atribuir a um qualquer comparte, enquanto tal, a legitimidade para, isoladamente, propor acções contra terceiros que, porventura, através de um qualquer acto ilegítimo, afectem os baldios”.

            E no prosseguimento de tal entendimento, foi decidido considerar o A. parte ilegítima para a presente acção, do que vem interposto o presente recurso.

           

            Apreciando, é entendimento unânime no pensamento histórico português o de que os baldios são terrenos de uso comunitário indispensáveis à economia agrícola de subsistência das populações locais, geralmente assente na pastorícia, fornecendo esses terrenos as lenhas, os estrumes, o mato, as pastagens, as águas, as pedras e o saibro, a caça e os espaços necessários para o efeito referido, constituindo realidades jurídico-económica-sociais que provêm de antanho.

            Veja-se Manuel Rodrigues in “Os Baldios”, editora Caminho, pgs. 18 e segs., e Aquilino Ribeiro in “Quando os Lobos Uivam” – de onde se respiga a seguinte passagem: “Livre e plena propriedade! Na serra não existem divisórias, nem muros, nem coutadas, nem empeços. O lavrador chega e ninguém o coíbe de encher o carro; escolhe o campo o que mais madruga; o mais operoso; o mais apto”, entre outros.

            Daí que a anterior lei (Dec. Lei nº 39/76, de 19/01, que veio restituir aos povos – às comunidades que deles foram desapossadas pelo Estado Fascista - o uso, a fruição e a administração dos baldios, como é referido no respectivo intróito) tenha definido os baldios como “os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia, freguesias ou parte delas”, e que a actual lei (Lei nº 68/93, de 4/09) tenha chamado de baldios “os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”.

            Na prossecução daquele objectivo da primeira lei citada, foi atribuída legitimidade à assembleia de compartes para deliberar sobre a interposição de quaisquer acções judiciais para recuperação de parcelas indevidamente ocupadas e, na falta da assembleia de compartes, foi às juntas de freguesia da área da situação dos baldios que foi atribuída tal função, como se escreveu no Ac. da Rel. Coimbra de 4/03/1986, in C.L. ano XI, tomo II, pg. 47.

            Aliás, é o que resulta do disposto nos artº 6º, al. j), daquela Lei (39/76) e 3º do D.L. nº 40/76, de 19/01 (legitimidade para arguir a anulação de actos ou negócios jurídicos que tenham por objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares).   

            Com a Lei nº 68/93, de 4/09, que revogou aqueles anteriores diplomas, veio acentuar-se a finalidade dos baldios e respectivo regime jurídico, como bem transparece do seu articulado, designadamente do seu artº 3º - onde se preceitua que “os baldios constituem, em regra, logradouro comum, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola” .  

            No artº 2º desta Lei delimita-se o âmbito de aplicação da dita, no qual se integram, entre outros, os terrenos baldios “objecto de apossamento por particulares, ainda que transmitidos posteriormente, aos quais são aplicáveis as disposições do Dec. Lei nº 40/76, de 1/01 – al. c) do nº 1 deste preceito.

            Este diploma definiu a doutrina que orientaria as acções a desenvolver para a recuperação dos baldios, dando-lhes a necessária cobertura legal, como já antes se deixou referido.

            E na prossecução desse objectivo, também no artº 4º da nova lei se estipulou que “os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, excepto nos casos expressamente previstos na presente lei” – nº 1 do artº 4º.

            Aliás, tal princípio já resultava do artº 2º da anterior lei, onde se proibia a negociação de terrenos baldios, dizendo-os “fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de apropriação privada, por qualquer forma ou título, incluindo a usucapião.

            Porém, enquanto a anterior lei – artº 3º do Dec.Lei nº 40/76, de 19/01 - conferia legitimidade para arguir a anulação desse tipo de actos ou negócios jurídicos quer às assembleias de compartes quer às juntas de freguesia, a nova lei confere essa legitimidade ao Ministério Público, aos representantes da administração central, da administração regional ou local da área do baldio, aos órgãos de gestão do baldio e também a qualquer comparte, para requererem a declaração de nulidade de actos ou de negócios jurídicos de apropriação ou de apossamento de baldios – nº 2 do artº 4º.

            Mas não só, pois a nova lei ainda confere legitimidade a estas entidades para “requererem a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respectiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore” – nº 3 desse artº 4º.

            Donde que, presentemente, qualquer comparte de um baldio goze de legitimidade para o referido efeito.

            No referido sentido pode ver-se o Ac. da Relação Coimbra de 7/02/2006, proferido no processo nº 3799/05, disponível em www.dgsi.pt. 

            Ora, com o devido respeito por entendimento contrário, o que o Autor na acção veio alegar é que existe um baldio nas imediações da cidade de Pombal, pertencente às localidades de Barrocal, Casal Novo, Coura, Caeira, Covão da Silva e Caseirinhos, da freguesia de Pombal, cujo terreno terá sido invadido pela Ré, por volta de 1997/1998, tendo ocupado ou apossado-se de parte do mesmo, designadamente de uma parcela que o A. desenhou em planta, na qual a Ré terá efectuado um parque de estacionamento e estruturas de piscinas e de balneários, para uso do parque de diversões que criou em terreno próprio e confinante com o baldio.

            Nessa sequência, o A. pede o reconhecimento de que existe o alegado baldio e o reconhecimento de que o dito foi efectivamente ocupado ou apossado parcialmente pela Ré, com a consequente condenação desta a restituir, de imediato, essa área “abusivamente apossada” pela Ré à comunidade em questão, da qual se diz comparte.

            Ora, afigura-se-nos que nos termos das disposições legais citadas o Autor goza de legitimidade activa para demandar a Ré, já que apenas está a requerer a restituição da posse de parte do baldio de que se diz comparte, à comunidade legitimamente tutelar do referido baldio, o que cabe perfeitamente no nº 3 do artº 4º da Lei nº 68/93, de 4/09.

            Isto independentemente de não estar requerida a declaração de nulidade de qualquer acto ou negócio jurídico, o que o A. não alegou existir ou poder estar em causa.

            Face ao que se nos afigura ter razão o Autor/Recorrente, quando pugna pela sua legitimidade activa para a presente acção, o que implica o provimento do recurso interposto, com vista ao seu regular prosseguimento em 1ª instância.


VIII

            Decisão:

            Face ao exposto, concede-se provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído, em 1ª instância, por outro que julgue ser o A. parte legítima para a presente acção, com o consequente prosseguimento do processo os seus regulares termos.

            Custas pela Ré.