Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA PARTILHA HEREDITÁRIA MÁ FÉ CONSCIÊNCIA DO PREJUÍZO NEGLIGÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/18/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA – COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 236, 349, 610, 611, 612, 616 CC | ||
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Sumário: | 1 – Nos contratos de troca, em que há permuta de bens, consideram-se equivalentes (e identicamente merecedores de tutela) os interesses dos intervenientes no ato e os interesses dos credores à satisfação dos seus créditos, razão pela qual a má fé – em tais contratos, em que à saída dum bem corresponde o ingresso de outro em sua substituição – funciona como o “critério jurídico” que determina quais aqueles contratos/atos que merecem ser alvo da impugnação pauliana, ou seja, é a censurabilidade do comportamento dos intervenientes no ato que justifica que se dispense o respeito pela manutenção dos efeitos do negócio outorgado (sacrificando-se os interesses dos intervenientes no ato em favor dos interesses dos credores à satisfação dos seus créditos). 2 – Daí que a má fé seja a consciência, por parte do devedor e do terceiro adquirente, de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. 3 – E para que haja tal “consciência”, basta que devedor e o terceiro adquirente tenham previsto as consequências danosas como possíveis, ou seja, a negligência consciente é suficiente para haver má fé. 4 – Mas não existirá má fé nos casos da negligência inconsciente, isto é, nos casos em que, ainda que por manifesta falta de cuidado, o devedor e o terceiro adquirente não tenham sequer representado a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial dos credores. 5 – Assim, dar-se tão só como provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da obrigação do devedor não preenche o requisito da má fé. 6 – O que os intervenientes no ato previram ou não previram, embora seja um processo psicológico (como toda a consciência do prejuízo) do devedor e do terceiro adquirente, não deve deixar de ser colocado na fundamentação de facto da sentença (sem prejuízo de, em certos casos, face à robustez decorrente doutros factos, se poder fazer uso de presunções judiciais e dar/considerar como provado o que os intervenientes previram). 7 – A partilha hereditária é um ato que, para efeitos de impugnação pauliana, deve ser reputado como oneroso e que, por isso, exige a verificação do requisito da má fé. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Impugnação Pauliana Partilha hereditária Requisito da má fé Consciência do prejuízo Negligência consciente Negligência inconsciente Partilha hereditária 1 – Nos contratos de troca, em que há permuta de bens, consideram-se equivalentes (e identicamente merecedores de tutela) os interesses dos intervenientes no ato e os interesses dos credores à satisfação dos seus créditos, razão pela qual a má fé – em tais contratos, em que à saída dum bem corresponde o ingresso de outro em sua substituição – funciona como o “critério jurídico” que determina quais aqueles contratos/atos que merecem ser alvo da impugnação pauliana, ou seja, é a censurabilidade do comportamento dos intervenientes no ato que justifica que se dispense o respeito pela manutenção dos efeitos do negócio outorgado (sacrificando-se os interesses dos intervenientes no ato em favor dos interesses dos credores à satisfação dos seus créditos). 2 – Daí que a má fé seja a consciência, por parte do devedor e do terceiro adquirente, de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. 3 – E para que haja tal “consciência”, basta que devedor e o terceiro adquirente tenham previsto as consequências danosas como possíveis, ou seja, a negligência consciente é suficiente para haver má fé. 4 – Mas não existirá má fé nos casos da negligência inconsciente, isto é, nos casos em que, ainda que por manifesta falta de cuidado, o devedor e o terceiro adquirente não tenham sequer representado a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial dos credores. 5 – Assim, dar-se tão só como provado que o terceiro adquirente tinha conhecimento da obrigação do devedor não preenche o requisito da má fé. 6 – O que os intervenientes no ato previram ou não previram, embora seja um processo psicológico (como toda a consciência do prejuízo) do devedor e do terceiro adquirente, não deve deixar de ser colocado na fundamentação de facto da sentença (sem prejuízo de, em certos casos, face à robustez decorrente doutros factos, se poder fazer uso de presunções judiciais e dar/considerar como provado o que os intervenientes previram). 7 – A partilha hereditária é um ato que, para efeitos de impugnação pauliana, deve ser reputado como oneroso e que, por isso, exige a verificação do requisito da má fé.
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório M (…), SA., com sede (…), instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo sumário, contra (1.ºs) M (…) e marido, A (…), residentes (…), O (...), contra (2.º) J (…), viúvo, residente (…), T (...), contra (3.ª) M (…) casada, residente em (…), e contra (4.º) J (…), casado, residente (…), pedindo que seja: “ (…) decretada a ineficácia, em relação à A., da partilha ajustada por escritura de 11-11-2013, conferindo-lhe direito à restituição de uma terça parte do prédio, que por essa escritura foi adjudicado à 1.ª R. e que aproveita ao marido por efeito do regime de casamento, em detrimento do quinhão hereditário que pertencia aos 2.º, 3.º e 4.º réus; e à sua execução no património dos 1.º RR., obrigados à restituição (…)”.
Alegou para tal, em resumo: Concedeu crédito (para a aquisição de produtos alimentares e similares) à B (…), Lda., sociedade de que o 2.º R. e a esposa (M (…) falecida em 07/03/2012) eram os únicos sócios e gerentes; crédito que, entre 1994 e 1996, ascendeu a € 225.753,93, montante em que o 2.º R. e a falecida esposa foram condenados por sentença, transitada em julgado, proferida, em 09/05/2012, na ação n.º 7772/08.2TBOER, na sequência do que a A. intentou, sem sucesso, execução de sentença (em que foram habilitados, por falecimento da M (…), o cônjuge sobrevivo e os dois filhos, aqui 3.º e 4.º RR.). Entretanto, em 9/4/2012, os 2.º, 3.º e 4.º RR. outorgaram partilha por óbito da M (…), declarando na respetiva escritura pública que o ativo (composto por um prédio urbano sito no lugar das F (...), dois prédios rústicos e o quinhão hereditário na herança de M (…), falecida em 18-12-2010[1]) era igual ao passivo (identificando como único passivo uma dívida à CGD, garantida por hipoteca sobre o prédio urbano sito no lugar das F (...) e mencionado na partilha); e adjudicando a totalidade das verbas do ativo e o pagamento do passivo à herdeira M (…)a (aqui 3.ª R.) e ao herdeiro J (…) (aqui 4.º R.), razão pela qual, segundo declararam, “dado que o valor do passivo é igual ao valor do ativo, não há lugar a quaisquer tornas” ao J (…) (aqui 2.º R.). Ora, segundo a A., os 3 prédios partilhados – o urbano sito no lugar nas F (...) (por estar onerado com hipoteca a favor da CGD) e os dois prédios rústicos (atento o seu diminuto valor) – não são suficientes para solver o referido crédito da A.; sendo que da outra verba do ativo (quinhão na herança aberta por morte de M (…)) faz parte (“verba n.º 1” da declaração de bens da herança de M (…)) o prédio a que corresponde o artigo matricial 637.º da atual União de Freguesias de E (...) e S (...) (e a que correspondia o art. 491.º da extinta freguesia de E (...)), T (...), prédio este em valor não inferior a € 113.000,00 (e que, ainda segundo a A., só formalmente havia sido adquirido, em 22/04/1975, pela referida M (…) pertencendo realmente ao 2.º R. e à sua esposa M (…)), sucedendo que, em 11/11/2013, “os RR. procederam à partilha de tal prédio” (deixando indivisa a restante parte da herança da M (…)), atribuindo-lhe o valor de € 34.160,00, tendo adjudicado a totalidade de tal prédio/imóvel à herdeira M (…)[2] (1.ª R) e declarando que, havendo “um excesso de € 22,773,34 sobre o inerente quinhão, tal quantia foi entregue em dinheiro e a título de tornas aos demais herdeiros, quantias que os mesmos confirmaram ter já recebido, considerando-se inteiramente pagos”. Resultando que tudo o referido, segundo a A., “configura ostensivamente o propósito de lesar os interesses da A., como credora de € 225.753,93”[3]; e, ainda, “que a diminuição do património dos 2º, 3º e 4º Réus, no que se refere ao quinhão de herança de M (…), por meio da escritura de 11.11.2013, pelo menos no valor de € 37.666,00, correspondente a uma terça parte do valor venal do referido prédio, recebendo, aparentemente, tornas de €11.386,66, prejudica a garantia patrimonial do crédito da Autora.”[4]
Os 1.ºs e os 3.º e 4.º RR. contestaram separadamente; o 2.º R. não contestou. Alegaram – em síntese e de relevante – os 1.º RR. (M (…) e marido A (…)) que procederam efetivamente à partilha parcial da herança da M (…)porém, por valor superior ao declarado na escritura, ou seja, acordaram entre si que o imóvel partilhado valia €130.000,00 e pagaram de tornas a cada um dos outros dois herdeiros (aos 2.º, 3.º e 4.º RR. e ao A (…) entretanto falecido) a quantia de € 43.333,00, quantia que os primeiros receberam em cheque e o A (…) em dinheiro; acrescentando que o que declararam em sentido diverso na escritura – em que atribuíam ao imóvel o valor de € 34.160,00 e que as tornas ascendiam a € 22,773,34 – foi feito apenas por motivos fiscais. Mais alegaram que, “apesar dos laços familiares que têm com os 2.º, 3.º e 4.º RR., nada têm a ver com os mesmos, nem com as suas vidas profissionais e financeiras, residindo há longos anos no concelho de O (...)”[5], desconhecendo por completo os negócios e as dívidas contraídas pelo 2.º R. e mulher, designadamente para com a A.. Finalmente, impugnaram que o imóvel em causa pertencesse realmente ao 2.º R. e à sua esposa M (…), explicando que o imóvel foi adquirido pelo irmão A (…) (que era padre), que pagou o preço da aquisição e o colocou em nome da irmã, M (…), que com ele vivia; e que residindo o mesmo, no exercício do seu sacerdócio, na respetiva paróquia, juntamente com a irmã M (…), acedeu em que no imóvel residissem o 2.º R., mulher e respetivos filhos. Concluíram, pugnando pela improcedência da ação. Alegaram, em sentido semelhante, os 3.º e 4.º RR. (M (…) e J (…)), acrescentando ainda que aplicaram os € 43.333,00 que receberam de tornas no pagamento de dívidas da herança deixada por morte da mãe; mais exatamente, pagaram a dívida à CGD, libertando o prédio urbano sito no lugar das F (...) da hipoteca que sobre ele incidia (“valendo o mesmo sem a hipoteca à volta de € 90.000,00”), pagaram dívidas fiscais da herança da falecida mãe, no valor de € 3.972,07, pagaram, também com o recurso a fundos próprios, uma dívida da mãe e do pai à CCAM (...), de valor superior a € 40.000,00 e pagaram IMIS, razão pela qual “não diminuíram com a referida partilha o património da herança aberta por óbito da mãe, antes pelo contrário”[6]. E concluíram, do mesmo modo, pugnando pela improcedência da ação.
Realizou-se a audiência prévia, foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova. Instruído o processo e realizada a audiência de julgamento, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que concluiu “ (…) declarando a ineficácia em relação à autora da partilha efetuada em 11 de Novembro de 2013, na proporção de um terço da verba n.º 1 ali partilhada, condenando os réus a não se oporem a que a autora execute o referido imóvel no património da 1.º ré e marido, para satisfação do seu crédito (…).”
Inconformados com tal decisão, interpõem os 3.º e 4.º RR. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que, invertendo o decido, julgue a ação improcedente. (…) A A. respondeu, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pelos recorrentes, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos. Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida: Provados 1. A autora exerceu o comércio de venda por grosso de produtos alimentares e similares, no estabelecimento sito na Rua (…), nº 130, em (…), concelho de (…), e, em 1994, deu crédito ao 2.º réu, para adquirir mercadorias, destinadas ao estabelecimento da sociedade B (…), Ldª, sito na freguesia de E (...), concelho de T (...), da qual aquele e sua esposa, M (…), já falecida, eram os únicos sócios e gerentes; 2. Nos autos de processo comum ordinário, intentado por M (…) SA contra B (…) , Lda., J (…) e M (…) foram os ali réus condenados solidariamente a pagar à autora a quantia de € 225.755,93, por créditos contraídos entre 1994 e 1996, por sentença proferida em 15/06/2011 e transitada em julgado em 09/05/2012; 3. A autora intentou contra os referidos devedores a execução dessa sentença, nos termos do requerimento apresentado em 06.09.2012, dando lugar ao processo de execução, pendente sob nº 7103/12.7TBOER, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-Juiz 2; 4. Com o falecimento da executada, M (…), a autora requereu nos autos de execução identificada em 3), a habilitação dos seus herdeiros, por requerimento apresentado em 26.11.2012, no âmbito do qual na qual foram julgados habilitados os ora indicados como 2.º, 3.º e 4.º réus; 5. No dia 9 de Abril de 2012, os 2.º, 3.ª e 4.º réus outorgaram por escritura pública a partilha da herança de M (…), falecida em 7/3/2012, tendo declarado que do património da falecida constava: - “UM - prédio urbano, sito às F (...)/E (...), composto de casa destinada a comércio e habitação, com dependências, logradouro, quintal com um poço e tanque, descrito na Conservatória de Registo Predial de T (...) sob o n.º mil oitocentos e setenta e dois, ali registado a favor da autora da herança pela apresentação quatro, de trinta de Setembro de 2002, inscrito na matriz pelo artigo 497, com o valor patrimonial de €9.967,99, a que atribuem o valor de doze mil setecentos e oitenta e seis euros e noventa e dois cêntimos”, - “DOIS – prédio rústico, sito em E (...), composto de terreno de cultura com laranjeiras e macieiras, descrito na Conservatório de Registo Predial de T (...), sob o n.º dois mil oitocentos e oitenta, ali registado a favor da autora da herança pela apresentação quatro, de trinta de Setembro de 2002, inscrito na matriz pelo artigo 563, com o valor patrimonial tributável de €168,46, a que atribuem o valor de mil euros”; - “TRÊS – Prédio rústico sito em E (...), composto de terreno de cultura com laranjeiras, descrito na Conservatória de Registo Predial de T (...), sob o n.º mil oitocentos e setenta e um, ali registado a favor da autora da herança pela inscrição G-dois, inscrito na matriz pelo artigo 564, com o valor patrimonial tributável de €233,60, a que atribuem o valor de mil euros”; - “QUATRO - Quinhão hereditário na herança de M (…), falecida em 18 de Dezembro de 2010, cuja herança se encontra fiscalmente colectada sob o n.º 708190191, a que atribuem o valor de onze mil e quinhentos euros”; - PASSIVO – “CINCO – Dívida à CGD, SA, resultante de uma hipoteca para garantia de obrigações pecuniárias decorrentes de quaisquer operações bancárias assumidas ou a assumir pela autora da herança, M (…) e marido J (…), pelo que actualmente a herança é responsável por metade desse valor, no montante de vinte e seis mil duzentos e oitenta e seis euros e noventa e dois cêntimos”; 6. Mais declararam na escritura pública de partilha descrita em 5) que “o valor do ativo e do passivo do património da autora da herança é igual pelo que o valor líquido do património é de zero euros”; que à herdeira M (…) é adjudicada a verba 2 e metade da verba 1 e 4, na quantia global de €13.143,46 e metade da dívida referida na verba 5 e que ao herdeiro J (…) é adjudicada a verba 3, metade da verba 1 e 4, na quantia global de €13.143,16 e metade da dívida da verba 5”; 7. No dia 11 de Novembro de 2013, os 1.ª, 2.º, 3.ª e 4.º réus e A (…) outorgaram escritura pública de partilha (parcial), por óbito de M (…) tendo declarado que do património da falecida faz parte o prédio urbano, sito na Estrada Nacional 337, n.º de polícia 1246, na extinta freguesia de E (...), concelho de T (...), atualmente designado por União de Freguesias de E (...) e S (...), composto de casa destinada a habitação de rés-do-chão, garagem, terraço, logradouro e quintal, descrito na Conservatória de Registo Predial de T (...) sob o n.º três mil e vinte e oito, ali registado a favor da autora da herança pela apresentação dois de 2/6/2005, inscrito na matriz pelo artigo n.º 637, anteriormente inscrito na matriz pelo artigo 491/E (...), “que para efeitos deste ato decidiram tomar em conta o valor patrimonial tributário e atribuído de € 34.160,00, prédio, a dividir desde logo em três partes iguais, no valor de onze mil trezentos e oitenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos, pertencente a cada um dos irmãos da falecida: (…) e outro à sobrinha M (…)”, dali ainda constando “que o quinhão que pertencia à sobrinha M (…) na quantia de onze mil trezentos e oitenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos, dado o seu posterior falecimento será dividido em três partes iguais na quantia de três mil setecentos e noventa e cinco euros e cinquenta cêntimos, pertencendo uma parte a cada um dos herdeiros J (…), e dois filhos J (…) e M (…)”; 8. Consta também da escritura pública de partilha, descrita em 7): “Mais disseram que procedem à partilha adjudicando o referido imóvel à herdeira M (…), na quantia de €34.160,00, com um excesso de €22,773,34 sobre o inerente quinhão, quantia que já entregou em dinheiro e a título de tornas aos demais herdeiros, quantias que os mesmos confirmaram ter já recebido, considerando-se inteiramente pagos”; 9. Os 1.º, 3.ª e 4.º réus tinham conhecimento das sociedades comerciais detidas pelo 2.º réu e mulher, do óbito após doença prolongada da mulher do 2.º réu, das dificuldades económicas do casal, que habitava por condescendência da tia da mulher no prédio descrito em 7) há longos anos, assim como da existência de credores; 10. O restante acervo hereditário da falecida M (…) permaneceu indiviso até aos dias de hoje, composto pelas verbas 2 a 9, prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 1588, 2044, 2081, 3203, 3551, 3575, 3668, 4349 da extinta freguesia de E (...), a verba 10, prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 4163 da extinta freguesia de S (...) e a verba 11 inscrita na matriz sob o artigo 662 da Freguesia de T (...)[7]; 11. O imóvel adjudicado à 1.ª ré, descrito em 7), foi a casa de habitação durante mais de 30 anos do 2.º réu, mulher e filhos, os 3.ª e 4.º réus, de onde o 2.º réu saiu em data não concretamente apurada no ano de 2013, pouco tempo após a celebração da escritura pública referida em 7) e 8); 12. Desde data não concretamente apurada, em 2013, que a 1.ª ré e marido fazem do prédio referido em 7) casa de habitação, tendo nele efetuado obras de remodelação (substituição de caixilharia, pavimentos, redes de água e esgotos, colocação de tetos falsos, azulejos, carpintaria e pinturas) que importaram a beneficiação e a avaliação atual do prédio em montante aproximado a €140.000,00; 13. Por acordo verbal, contemporâneo da data da celebração da escritura pública de partilha descrita em 7) e 8), foi atribuído pelas partes ao prédio urbano descrito em 7) o valor de €130.000,00, valor que utilizaram para determinação do quinhão a que cada herdeiro teria direito para efeito de tornas, no valor de €43.333,00; 14. Por cheque bancário cruzado, com o n.º 0276364.9, do Banco X (…), datado de 11/11/2013, da conta bancária titulada por A (…), recebeu a 3.ª ré M (…) por si e pelos 2.º e 4.º o valor correspondente a tornas, descrito em 13), no montante de €43.333,00; 15. Por auto de penhora datado de 03/11/2016, foi penhorado a favor da autora o prédio urbano e dois prédios rústicos identificados em 5), para cumprimento da quantia exequenda no valor de €225.755,93; 16. Por escrito particular, intitulado “declaração”, foi declarado pelo gerente da CGD em 27/4/2018 que “os encargos do empréstimo n.º 0798001514385, mutuado por J (…) e M (…), nomeadamente prestações, desde Março de 2007, foram cobrados na conta n.º (…), titulada pelo fiador da mesma operação J (…), tendo sido a última no valor de €782,98”; 17. O empréstimo com o n.º 56056023165, contraído em 27/12/2013 pelo valor global de €54.002,88 destinou-se a liquidar a quantia exequenda referente ao processo executivo n.º 240/04.3TBAGN, que corria termos no Tribunal Judicial de Arganil, em que era exequente a CCAM (...) e executado J (…) 18. O empréstimo descrito em 17) foi liquidado em 22 de Setembro de 2015, com a entrega nessa data do montante de €41.322,29; 19. Por perícia junta aos autos em 20 de Março de 2019 o prédio urbano descrito em 7) foi avaliado, com reporte a 11/11/2013, em cerca de €115,961,56; 20. Por perícia junta aos autos em 20 de Março de 2019, o valor do prédio urbano descrito em 5), foi avaliado, por reporte a 09/04/2012, em cerca de €97.045,04; 21. Por perícia junta aos autos em 6 de Maio de 2019, os prédios rústicos, descritos em 10), por reporte ao dia 09/04/2012 foram avaliados no montante global de €17.470,00. * Não Provados a) Que, aquando o início das relações comerciais, entre a autora e o 2.º réu, este tenha informado que teria em conjunto com a sua esposa um vasto património imobiliário, com destaque para o prédio urbano que habitavam, em E (...), T (...) (quinta com moradia), e a sociedade de que era administrador, J (…) C (…)SA, com sede e actividades na região de T (...), pertencendo a ambos a totalidade das suas acções; b) Que as relações comerciais dos 2º, 3ª e 4º réus, quer de eventuais sociedades pelos mesmos detidas, quer quaisquer relações obrigacionais por aqueles assumidas, nomeadamente enquanto na qualidade de devedores, fossem estranhas à 1.ª ré e marido., que nunca nelas intervieram ou com elas tiveram qualquer conexão ou sequer conhecimento; c) Que o prédio urbano descrito em 7) pertencesse ao 2.º réu; d) Que o prédio urbano descrito em 7) tenha, apenas por conveniência do 2.º réu, sido formalmente partilhado e registado em nome da 1.ª ré; e) Que o 2.º réu volvidos cinco anos da celebração da partilha, continue a ter habitação no prédio descrito em 7); f) Que o 2.º réu tenha ocultado a titularidade do prédio descrito em 7), sob a aparência de pertencer a M (…), que tenha desviado bens do seu património e que tenha acumulado dívidas no valor de €125.000,00; g) Que os 3.ª e 4.º réus com a quantia de € 43.333,00 que receberam a título de tornas de seus tios, M (…) e marido A (…), respeitantes à partilha que foi feita do prédio urbano descrito em 7), tenham pago a dívida à CGD, acrescida dos juros entretanto vencidos, libertando o prédio urbano que havia sido dado de hipoteca; h) Que os 3.ª e 4.º réus tenham pago dívidas fiscais da herança de sua falecida mãe junto do Serviço de Finanças de T (...), no valor de € 3.972,07; i) Que os 3.ª e 4.º réus tenham pago os IMIs respeitantes aos prédios da herança da falecida mãe, partilhados em 5) e ainda dívidas fiscais, evitando assim a execução do património da referida herança. * B – Direito Em face do que consta da fundamentação jurídica da sentença recorrida, importa começar por delimitar o objeto da ação: Escreveu-se na sentença recorrida: “ (…) constitui a causa de pedir na presente ação (…) a existência de dois negócios jurídicos, em que o 2.º réu foi interveniente, simulados: o primeiro, por partilha extrajudicial por óbito da sua mulher, a constituir doação por renúncia à herança deixada por esta; o segundo, por partilha extrajudicial e parcial de um prédio urbano constante da herança da tia da mulher, pré-falecida, de quem a herança aberta por óbito da sua mulher sempre seria herdeira na quota parte de 1/3.” Com todo o respeito, não é este o objeto da ação[8]. A ação tem tão só como objeto a impugnação pauliana da escritura de partilha de 11/11/2013, referida nos pontos 7 e 8 dos factos provados[9]. A A., para chegar à escritura de partilha de 11/11/2013, historia, é certo, o que aconteceu antes, falando designadamente da escritura de partilhas de 09/04/2012 (a referida nos pontos 5 e 6), porém, não “ataca” tal escritura, não diz/pede que a mesma seja simulada e também não pede a sua impugnação pauliana. Aliás, a A. não tinha/tem um qualquer interesse ou utilidade na impugnação desta escritura de partilha[10], uma vez que todos os bens imóveis pela mesma partilhados (aqui se incluindo os imóveis que faziam parte do quinhão hereditário partilhado) foram adjudicados a quem (os 3.º e 4.º RR.) respondia e responde[11], enquanto herdeiros da M (….), pela totalidade do crédito da A., ou seja, pela escritura de partilha de 09/04/2012, a garantia patrimonial da A. não sofreu qualquer diminuição: tudo o que foi adjudicado aos 3.º e 4.º RR. continuou a responder, do mesmo modo que respondia até ali, pela satisfação do crédito da A.. Não é pois pertinente, com todo o respeito, a parte em que a sentença recorrida se “debruça sobre o primeiro ato impugnado: a partilha outorgada por escritura em 09 de Abril de 2012”. Esta escritura, repete-se, não é minimamente impugnada e, por conseguinte, a sentença não tinha que se debruçar, como fez, quanto à verificação dos requisitos da impugnação pauliana em relação a tal ato (até por tal “pronunciamento” não ser um pressuposto indispensável para aquilo que a sentença tinha obrigatoriamente que conhecer e decidir: a impugnação pauliana da escritura de partilha de 11/11/2013). Vem isto a propósito, como é evidente, da questão suscitada em 2.º lugar na apelação, isto é, dos RR/apelantes invocarem a nulidade de sentença do art. 615.º/1/d) do CPC, ou seja, segundos os RR/apelantes, por esta ter conhecido “do pedido de impugnação da primitiva transmissão”. Nulidade que, como também é evidente, não se verifica, uma vez que a sentença, debruçando-se indevidamente sobre algo que não suscitava pronúncia, acabou por, a tal propósito, não conhecer/decidir nada, pelo que o que verdadeiramente se verifica é um erro na construção do silogismo judiciário e não a invocada nulidade de sentença. Para chegar a uma qualquer conclusão (quer de procedência quer de improcedência) a respeito da impugnação pauliana da escritura de partilhas de 11/11/2013, não tinha a sentença que proceder à análise jurídica, à luz dos requisitos da impugnação pauliana, da escritura de partilhas de 09/04/2012, ou seja, nem é tanto se analisou bem ou mal, é sim que não tinha nada para analisar juridicamente. Embora se possa acrescentar, entrando um pouco no mérito da análise jurídica que foi feita, que não se compreende que se haja considerado que, na escritura de partilhas de 09/04/2012, o comportamento do 2.º R. “configura repúdio tácito e inequívoca da herança”, quando ninguém invocou tal coisa (art. 236.º/2 do C. Civil) e quando as declarações de tal 2.º R. constantes da escritura de partilhas não confirmam, só por si, tal interpretação (à luz do art. 236.º/1 do C. Civil)[12]. Ademais, como já referimos, tendo todos os bens imóveis partilhados (aqui se incluindo os imóveis que faziam parte do quinhão hereditário partilhado) sido adjudicados a quem (os 3.º e 4.º RR.) respondia e responde, enquanto herdeiros da M (…), pela totalidade do crédito da A., não sofreu a garantia patrimonial da A., em razão da escritura de partilha de 09/04/2012, qualquer diminuição, ou seja, tal ato (escritura de partilhas de 09/04/2012) nenhum prejuízo terá causado à (garantia patrimonial da) A.. Isto dito, passemos à análise do objeto da ação. A impugnação pauliana, é sabido, é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do ato impugnado; em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer ato patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; mas em que apenas pretende que o ato seja ineficaz[13] em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição. Por outras palavras ainda “(...) a impugnação pauliana é um meio de reação contra atos positivos do devedor - designadamente contra atos de alienação - que não enfermam de qualquer vício interno (são atos válidos), mas que causam prejuízo aos credores. A ação tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor. Trata-se, portanto, de uma ação pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma ação de declaração de nulidade ou de anulação ou de uma ação resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor”[14],[15]. E, resumidamente, são requisitos de procedência de tal meio de conservação patrimonial, segundo os art. 610º, 611º e 612º, todos do CC: -A existência de determinado crédito; -Que tal crédito seja anterior ao ato ou, sendo posterior, tenha sido o ato realizado dolosamente visando impedir a satisfação do direito do credor. -Resultar do ato a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; -Tratando-se de ato oneroso, que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má fé “a consciência do prejuízo que o ato cause ao credor”. E, no caso, numa apreciação superficial sobre a verificação de tais requisitos, de imediato se percebia que toda a questão/dificuldade se iria situar no último requisito, ou seja, na má fé. O crédito da A. e a sua anterioridade estão provados por uma sentença transitada em julgado; está pois definido – noutro processo, em que chegou a ser intentada execução – que a A. é credora do 2.º R. (este enquanto tal e na qualidade de interessado na herança aberta por óbito de M (…) e dos 3.º e 4.º RR (estes apenas enquanto interessados na herança aberta por óbito de M (…)). O mesmo se devendo dizer quanto à impossibilidade para a A./apelada de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade, uma vez que, a propósito de tal requisito, de acordo com o art. 611º do CC, o ónus probatório colocado a cargo do impugnante se esgota na prova do “montante das dívidas”, ónus que a A. cumpriu com o caso julgado material formado pela sentença proferida no anterior processo. Dito doutro modo, era aos RR., interessados na “manutenção” do ato impugnado, que incumbia a prova dos 2.º, 3.º e 4.º RR possuírem bens penhoráveis de igual ou maior valor que a obrigação para com a A.; prova que de certo modo estava prejudicada por, de concreto, pouco haver sido alegado com tal objetivo (é irrelevante a existência de mais e outros bens, uma vez que o que interessa é que tais outros bens sejam “de igual ou maior valor” que a obrigação para com a A.). Daí que, como referimos, se antevisse que toda a questão/dificuldade se situaria no requisito da má fé. E o que é – o que deve entender-se – por má fé? No nosso sistema jurídico, nos contratos de troca[16], nos contratos em que há permuta de bens, consideram-se equivalentes (e merecedores de tutela) os interesses dos intervenientes no ato e os interesses dos credores à satisfação dos seus créditos, razão pela qual a má fé – em tais hipóteses/contratos, em que à saída dum bem corresponde o ingresso de outro em sua substituição – funciona como o “critério jurídico” que determina quais aqueles contratos/atos que merecem ser alvo da impugnação pauliana[17], ou seja, é a censurabilidade do comportamento dos intervenientes no ato que há de justificar que se dispense o respeito pela manutenção dos efeitos do negócio outorgado (sacrificando-se os interesses dos intervenientes no ato em favor dos interesses dos credores à satisfação dos seus créditos). Daí que se diga que a má fé “é a consciência de que o ato em causa vai provocar a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou um agravamento dessa impossibilidade. Tendo os outorgantes representado atempadamente as consequências danosas do seu ato, têm a possibilidade de o omitir, pelo que, se nele insistem, apesar desse conhecimento, esta sua atitude é eticamente censurável e por isso considerada de má fé”[18]. Pelo que, para que haja tal “consciência”, devem o devedor e o terceiro adquirente não só ter a perceção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do ato que vão praticar, mas também aperceber-se – ter “consciência” – que podem impossibilitar os credores do devedor de obter a satisfação integral dos seus créditos. Bastará pois que devedor e terceiro adquirente tenham previsto as consequências danosas como possíveis, ou seja, a negligência consciente – terem tido consciência da possibilidade do ato atingir os credores – é suficiente para haver má fé. Mas já não existirá má fé no caso da negligência inconsciente, nos casos em que, ainda que por manifesta falta de cuidado[19], o devedor e o terceiro adquirente não tenham sequer representado a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial dos credores. E disto – desta distinção que acaba de ser feita – resulta que a alegação/prova da má fé, num processo, não se basta com a alegação/prova do terceiro adquirente ter tido conhecimento da obrigação do R/devedor, mostrando-se também indispensável que se alegue e dê como provado, pelo menos, que o terceiro adquirente[20] admitiu como possível que do ato praticado podia resultar a impossibilidade do credor do devedor de obter a satisfação integral do seu crédito. Normalmente, vemos alegado, discutido e dado como provado (ou não provado) que o negócio (sob impugnação) foi efetuado para evitar que devedor pudesse cumprir a sua obrigação para com o credor. Não é preciso tanto, o conceito de má fé não é exigente em termos de elemento volitivo, não impondo a demonstração de um “animus nocendi”, porém, repete-se, a negligência inconsciente – ou seja, as hipóteses em que, ainda que por manifesta falta de cuidado, o devedor e o terceiro adquirente nem sequer representaram a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial dos credores – não preenche o conceito de má fé. Ora – é onde pretendemos chegar – o que está dado como provado na sentença recorrida não permite afirmar e concluir que os RR. previram as consequências danosas como possíveis, ou seja, que atuaram (pelo menos) com negligência consciente[21]. Com relevo para a apreciação jurídica da má fé, está apenas dado como provado (ponto 9 dos factos provados) que “os 1.º, 3.ª e 4.º réus tinham conhecimento das sociedades comerciais detidas pelo 2.º réu e mulher, do óbito após doença prolongada da mulher do 2.º réu, das dificuldades económicas do casal, que habitava por condescendência da tia da mulher no prédio descrito em 7) há longos anos, assim como da existência de credores”, mas isto – só isto – não afasta a hipótese da negligência inconsciente, a hipótese de, embora por falta de cuidado, não terem sequer representado a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial da A.. E o que os intervenientes no ato previram ou não previram, sem prejuízo de ser um processo psicológico (como toda a consciência do prejuízo) do devedor e do terceiro adquirente, não pode deixar de ser colocado na fundamentação de facto (ou nos factos provados ou nos factos não provados) da sentença. Não sendo colocado, como é o caso, uma de duas: ou não está alegado e, então, a impugnação pauliana improcede[22] ou, tendo sido alegado, tem que ser ampliada a matéria de facto. É este último o caso dos autos. Como se fez constar do relatório inicial, a A. também alegou que a partilha impugnada teve o propósito de lesar os interesses da A. enquanto credora de € 225.753,93, pelo que não podia a sentença recorrida deixar de se pronunciar, em termos factuais, sobre tal “propósito”, aqui considerando implicitamente alegada (por ser um minus) toda a gradação do juízo de censura até à referida hipótese de negligência consciente, ou seja, admitindo que não se provasse terem os RR. agido como o propósito (dolo direto) de inviabilizar a satisfação integral do crédito da A., teria a sentença, pelo menos, que se pronunciar sobre se os RR. representaram ou não a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial da A. (negligência consciente). E é justamente por tudo isto – por o desfecho do recurso ser a anulação do sentenciado, tendo em vista a ampliação da matéria de facto – que, ao contrário do que é normal e lógico, não começámos pela impugnação da decisão de facto suscitada: é que, a nosso ver, o desfecho da impugnação de facto não pode perder de vista que, a final, sempre se determinará a ampliação da matéria de facto (e o que está em causa em tal ampliação da matéria de facto). Resulta da alegação e conclusão recursivas dos RR/apelantes que, segundo eles, terão sido incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 9.º, 10.º e 16.º dos factos provados e os factos constantes das alíneas g), h) e i) dos factos não provados. A divergência em relação ao facto 10.º decorre dum evidente lapso de escrita da sentença recorrida[23], estando o “essencial” (com o sentido do art. 5.º/1 do CPC) da divergência com o que se deu como provado no já referido ponto 9.º dos factos provados, uma vez que o ponto 16.º e as alíneas g), h) e i) dizem respeito a aspetos instrumentais. Em rigor, nem tudo o que consta do ponto 9.º dos factos provados é impugnado, mas apenas a parte em que se diz e se dá como provado que “os 1.ºs RR tinham conhecimento das sociedades comerciais detidas pelo 2.º réu e mulher, do óbito após doença prolongada da mulher do 2.º réu, das dificuldades económicas do casal, que habitava por condescendência da tia da mulher no prédio descrito em 7) há longos anos, assim como da existência de credores”[24]. O objeto dos autos, como já referimos, circunscreve-se à impugnação pauliana da partilha outorgada no dia 11 de novembro de 2013 (e mencionada nos pontos 6 e 7 dos factos provados) e, em face do alegado e do que logo ficou provado pelos vários documentos que foram juntos, de imediato se percebia, como também já referimos, percorrendo os vários requisitos da impugnação pauliana, que o desfecho final da lide se iria/irá “jogar” no requisito da má-fé. Tudo estava/á em saber/apurar, segundo a expressão da lei, se os RR. tinham “consciência do prejuízo” que a partilha causava à A., o que, traduzido em factos, começa por pressupor e exigir que tivessem conhecimento “das sociedades comerciais detidas pelo 2.º réu e mulher, das dificuldades económicas do casal e da existência de credores”; após o que, partindo também de tais “factos/indícios”, fazendo funcionar critérios de normalidade (as presunções judiciais dos arts. 349.º e 351.º do C. Civil), se chegaria (ou não) à prova de terem tido consciência da possibilidade (pelo menos) da partilha nos termos efetuados causar dano à A. (o que, tudo junto, dá a “consciência do prejuízo”, o mesmo é dizer a má fé). E numa ação como a presente, em que uma parte “acusa” as partes contrárias de se terem de algum modo concertado para impedir a satisfação do seu crédito, a prova direta de tal “fito” é algo que não é expectável que aconteça e seja efetuada: quem celebra negócios com o intuito de diminuir ou suprimir a garantia patrimonial dos seus credores, não elabora documentos – não faz “atas” – a informar sobre o “animus” dos mesmos e, evidentemente, também não confidencia os motivos e propósitos de tais negócios ou divulga e publicita “urbi et orbe” o que fez. O que não significa que os tribunais, quando tal acontece e por os motivos e propósitos de cada um pertencerem ao domínio insondável da natureza humana, fiquem “de mãos atadas”, tolhidos no apuramento do que realmente aconteceu. Há sempre factos a que os tribunais devem chegar – é seu estrito dever – a partir das presunções/ilações impostas por outros factos conhecidos (349.º do CC); e a ação em que um credor ataca (lançando mão da impugnação pauliana) negócios celebrados pelo seu devedor propicia, exemplar e recorrentemente, hipóteses de aplicação da prova por presunções. É certamente o caso, embora, impõe-se reconhecer, não seja um caso dos mais evidentes. Tratando-se o ato impugnado duma partilha hereditária, é por natureza um negócio outorgado entre pessoas em que há fortes ligações e conexões; porém, ao contrário do que é bastante recorrente (em que, verdadeiramente, o ato, entre pessoas próximas e familiares, é não raras vezes “notoriamente” simulado, vindo o credor “apenas” com a ação pauliana por razões práticas), a partilha foi mesmo real (como o indiciam os pontos 11 e 12 dos factos provados)[25], provocando a característica e típica alteração nas relações factuais de domínio sobre o bem partilhado, ou seja, em termos práticos e públicos, o uso/posse do bem partilhado passou em exclusivo para os 1.º RR.; por outro lado, em linha com o que vimos de dizer, também não estamos (como se vê do que consta do ponto 14 dos factos) perante aquela situação, algo recorrente, dos fluxos monetários respeitantes ao negócio impugnado não terem passado pelo sistema bancário. Não obstante a Exma. Juíza a quo, partindo da circunstância das dificuldades económicas do 2.º R. J (…) e da mulher M (…) serem do “conhecimento público e notório em meios pequenos como as povoações que ladeiam a freguesia de E (...)”, observou o seguinte: “(…) Acresce ainda, em termos lógicos e de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer não ser possível os visados na presente ação não terem conhecimento desses factos públicos e notórios, não sendo admissível a alegação do seu desconhecimento, sob residência em O (...) e não terem contacto com a realidade desta zona, quando alegam, de forma contraditória conhecer a circunstância mais reservada, como o modo de aquisição do prédio urbano partilhado em 2012 pela irmã do (…) com dinheiros do (…) que era por todos conhecida, a que acresce o conhecimento evidente da cessão gratuita do gozo, temporário, desse prédio urbano a favor do 2.º réu e mulher e ainda a opção de vida que tomaram de regressar à zona, com obras dispendiosas de reparação e remodelação do prédio em litígio.(…)” Poderá ser, embora, face à prova produzida, não seja pacífica uma qualquer decisão sobre tal ponto “nevrálgico” dos factos. A tal propósito, contrapõem os RR/apelantes que, “à luz das regras da experiência comum, só se entende ou entenderia (dar-se como provada a factualidade em causa) na hipótese dos 1ºs Réus terem tido a sua residência, à data do óbito da mulher do 2º Réu e posteriormente até à escritura de partilhas, em E (...) ou nessa zona geográfica, o que manifestamente não sucedeu, ou ainda que a autora tivesse logrado provar, o que não veio a fazer, que entre os 1ºs RR., o 2º réu, a sua falecida mulher e 3º e 4º RR. sempre ocorreu uma grande e estreita convivência entre si, uma enorme amizade e confiança, ao ponto de uns e outros saberem no dia a dia a vida de cada um deles”. Observação com alguma pertinência, embora também se deva dizer que, sendo todos os RR. familiares (a 1.ª R. é irmã da mãe da falecida esposa do 2.º R.) e mantendo os 1.º RR. ligação a E (...) (ao ponto de terem feito as obras que fizeram no prédio em causa), não era/seria exatamente apenas a A. a ter que trazer aos autos a existência de convivência, amizade, confiança e conhecimento entre todos os RR., sendo também os 1.º RR. a ter que trazer aos autos a ausência de tal convivência, amizade, confiança e conhecimento, para daqui se extrair, com mais segurança, o seu não conhecimento do que se deu como provado (e que está impugnado). Como já por mais de uma vez referimos, o essencial do que era controvertido (com relevo jurídico) cingia-se, no início da audiência, a pouco mais do que a má fé, porém, nas duas sessões de julgamento, a cuja audição procedemos, nem uma só pergunta foi formulada às partes e/ou às testemunhas sobre o referido (e dado como provado) conhecimento dos 1.ºs RR. (daí a compreensível contraposição dos RR./apelantes). É certo que tais perguntas não originam, normalmente, respostas com grandes contributos, porém, tal não significa que não devam ser feitas[26] e que não se extraiam as devidas conclusões do “tipo” de respostas que forem dadas. Enfim, juntando toda esta debilidade da prova produzida à necessidade, já explicada, de ter que se proceder à ampliação da matéria de facto – tendo-se em vista, com tal ampliação, o apuramento dum facto “visceralmente” ligado ao que está dado como provado no ponto 9.º (aqui impugnado) dos factos provados – entendemos não ser adequado que tais factos tenham respostas processuais separadas, ou seja, que se decida agora a impugnação da decisão de facto (sobre o conhecimento da existência de credores) e que se mande tão só apurar se os RR. representaram ou não (pelo menos) a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial da A.. Como se referiu, a impugnação pauliana propicia, exemplar e recorrentemente, hipóteses de aplicação da prova por presunções, de situações em que os tribunais chegam a factos a partir das presunções/ilações impostas por outros factos conhecidos (349.º do CC), o que significa que será com base em mais ou menos os mesmos “factos conhecidos” que acabará por se “responder” a ambos os factos: ao constante do (impugnado) ponto 9.º e ao que suscita a ampliação da matéria de facto. E sem prejuízo de não estar afastada a aplicação de presunções naturais em “cascata” – a partir dos dois únicos factos por ora “conhecidos”: a relação familiar entre os RR. e ser E (...) um meio pequeno – o certo é que mais “factos conhecidos” (instrumentais) podem/devem ser obtidos para concluir, com menor discutibilidade, quer pelo facto constante do (impugnado) ponto 9.º quer pelo facto que suscita a ampliação da matéria de facto. Como referimos, estamos, em face do que se deu como provado (e não é impugnado), perante uma partilha real, em que, como também se provou, houve uma “simulação relativa” quanto ao valor efetivamente atribuído ao bem partilhado[27], que foi até superior ao valor em que a A. (na PI) estima o bem[28], o que retira alguma solidez às presunções naturais a extrair dos únicos dois referidos “factos conhecidos” (a relação familiar entre os RR. e ser E (...) um meio pequeno). Se porventura estivesse provado que os 2.º, 3.º e 4.º RR. tivessem recebido, na partilha, menos de 1/3 do real valor da sua quota no imóvel[29] (se não estivesse provada a “simulação relativa”) e, ainda, que o uso/posse do bem partilhado não tivesse passado em exclusivo para os 1.º RR., não nos repugnaria, caso fosse/seja de considerar provado o que consta do ponto 9.º dos factos, fazer uso, aqui e agora, das regras da experiência comum e dar/considerar como também provado, a partir de tal (hipotética) globalidade factual, o facto que suscita a ampliação da matéria de facto, ou seja, que os RR. representaram (pelo menos) a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial da A.. Mas não é isto que temos. O que temos é, numa apreciação global, uma factualidade algo equívoco e discutível, em virtude (também) da fragilidade da prova produzida, para além de não ter sido tomada posição (quer em termos de provados, quer em termos de não provados[30]) sobre um facto imprescindível. Sendo, repete-se, que toda a referida factualidade – apontada exclusivamente ao requisito da má fé – está “visceralmente” ligada, havendo toda a vantagem, tendo em vista o acerto da decisão, que seja apreciada conjunta e concentradamente, razão pela qual, é a conclusão final, consideramos prejudicado o conhecimento da impugnação da decisão de facto e, tendo em vista tal apreciação conjunta e concentrada, também pela 1.ª Instância, anulamos as “respostas” constantes dos pontos 9.º e 16.º dos factos provados e das alíneas g), h) e i) dos factos não provados (para que o “essencial” ponto 9.º e os instrumentais ponto 16.º e alíneas g), h) e i) possam ser pensados/repensados em conjunto com o facto “essencial” que suscita a ampliação da matéria de facto). * Fica assim prejudicada a invocada nulidade da sentença, por condenação além do pedido (cfr. art. 615º/1/e) do CPC) e consistente, segundo os RR/apelantes, em a sentença ter excedido os limites quantitativos e qualitativos do pedido, “condenando os RR. a não se oporem a que a autora execute a totalidade do imóvel no património dos 1ºs RR. adquirentes (em vez do referido terço), para a satisfação do seu crédito” (conclusão 1.ª). Questão em que os RR/apelantes tinham razão, embora se trate, mais do que duma nulidade de sentença por condenação além do pedido, dum modo pouco preciso e cuidado de redigir o segmento decisório, em que se termina a condenar “os réus a não se oporem a que a autora execute o referido imóvel no património da 1.º ré e marido, para satisfação do seu crédito”, permitindo a interpretação (que suscita a invocação da nulidade) da totalidade do imóvel poder ser executado no património dos 1.º RR., quando, ao invés, toda a fundamentação (da sentença recorrida) vai no sentido da ineficácia relativa e seus efeitos serem restritos a 1/3 do referido imóvel (como, aliás, consta do pedido). Aliás, voltando à má fé, não será despiciendo referir que a partilha hereditária é um ato que, para efeitos de impugnação pauliana, deve ser reputado como oneroso e que, por isso, exige a verificação do requisito da má fé. É certo que, na partilha, não há uma verdadeira troca de prestações (mas apenas uma mera modificação de direitos), porém, resulta para os outorgantes da partilha a transformação dum direito indiviso sobre uma totalidade num direito exclusivo sobre uma parte daquela totalidade, ou num seu equivalente, razão pela qual se pode dizer que à saída dum direito corresponde a entrada de outro, na esfera jurídica de todos os outorgantes, devendo por isso a partilha ser considerada como um ato oneroso para efeitos do art. 612.º do C. Civil. Má fé que será imprescindível quanto ao devedor, não sendo necessária em relação a todos os demais outorgantes na partilha, bastando que um destes (o que será R. na ação) tenha atuado com a consciência do prejuízo, para que a partilha possa ser atingida pela impugnação pauliana[31]. O que em substância também responde à questão subjacente a esta nulidade: se só um outro outorgante na partilha é R., apenas os interesses deste terceiro, provada a sua má-fé, devem ser sacrificados perante os interesses dos credores daquele, ou seja, quanto aos restantes partilhantes (que não sejam RR. e a quem não pode ser assacada qualquer má fé), a sua posição não pode ser afetada, mantendo-se incólumes os resultados para eles advindos da partilha. Por outro lado, a impugnação pauliana é um meio de conservação da garantia patrimonial e não um modo de aumentar tal garantia, pelo que se do património dos 2.º, 3.º e 4.º RR. fazia parte o direito sobre uma quota ideal correspondente a 1/3 do prédio[32], a execução que a impugnação pauliana autoriza não pode incidir sobre a totalidade do prédio ou sequer sobre 2/3 do prédio. *
III – Decisão Pelo exposto, nos termos do art. 662.º/2/c) e 3/c do CPC, anula-se a decisão proferida na 1.ª Instância, anulando-se o que se deu como provado nos pontos 9.º e 16.º dos factos provados e como não provado nas alíneas g), h) e i) dos factos não provados e ordenando-se que se repita o julgamento, tendo em vista a ampliação da matéria de facto com inclusão de factualidade respeitante ao “propósito” dos RR. – ou seja, se os RR. representaram (pelo menos) como consequência da partilha a possibilidade de lesarem a garantia patrimonial da A. – e tendo em vista, em função da prova já produzida e a produzir, os factos constantes dos pontos 9.º e 16.º e das alíneas g), h) e i). Custas, nesta instância, pelo vencido a final. * Coimbra, 18/05/2020 Barateiro Martins ( Relator ) Arlindo Oliveira Emídio Santos [1] E irmã da mãe da M (…), de nome A (…) e pré-falecida. [2] Também irmã da M (…), assim como um outro irmão, de nome A (…). [3] Art. 23.º da Pi. [4] Art. 24.º da PI. [5] Art. 8.º da contestação. [6] Arts. 44.º e 45.º da contestação. [7] Procedeu-se à retificação do lapso de escrita constante da sentença. [8] Aliás, diferentemente (e, a nosso ver, mais corretamente), noutro passo da sentença recorrida, enunciou-se, como “questões a decidir, saber se se encontram preenchidos os factos constitutivos da impugnação pauliana da adjudicação por partilha de uma terça parte do prédio urbano sito na EN337, n.º 1246 Espariz (…)” [9] Ou seja, não tem como objeto nem a impugnação pauliana de qualquer outro negócio/ato/escritura nem a nulidade de qualquer negócio/ato/escritura por simulação. [12] Foi-se certamente sugestionado pela circunstância de, na partilha feita, o 2.º R. ter ficado sem qualquer verba do ativo e/ou do passivo e não haver pago ou recebido tornas, mas isto (só isto) não significa que tenha havido “repúdio de herança” na escritura de partilhas de 09/04/2012 e que a sua declaração negocial possa/deva ser interpretada, sem mais, como de repúdio da herança; mais, em relação a “novos” bens que porventura apareçam, o 2.º R. continua a ser herdeiro/interessado. [17] Diversamente, quando estamos perante liberalidades, já não se justifica que os interesses de quem deu e recebeu se sobreponham aos interesses de quem deixou de ter garantido o cumprimento do seu direito de crédito, razão pela qual já não se exige o requisito da má fé. [19] Não existe, antes da conclusão de qualquer negócio e da outorga de qualquer ato, um dever acessório de indagação e certificação sobre a situação patrimonial, de modo a prevenir uma eventual lesão da garantia comum dos credores. [21] Assim como o que está dado como não provado não permite afirmar e concluir que os RR. não previram as consequências danosas sequer como possíveis, ou seja, que não atuaram sequer com negligência consciente. [24] Como é evidente, os restantes RR. sabiam e tinham conhecimento de tudo isto: o 2.º R. (que, por lapso, foi incluído como outorgante da partilha) por serem factos que lhe dizem respeito e os 3.º e 4.º RR. por serem seus filhos e terem sido inclusivamente habilitados na execução referida nos pontos 3 e 4 dos factos provados e outorgantes na escritura de partilhas referida no ponto 5 dos factos provados. [26] Um correto saneamento do processo é e será sempre decisivo para a fluência da audiência – para que não seja esquecido o que é decisivo e para que não sejam introduzidos temas irrelevantes, que acabam apenas por funcionar como “distrações” do que é essencial – chame-se-lhe especificação/questionário, factos assentes/base instrutória, objeto do litígio/temas da prova ou o que quer que seja. [28] A A. disse que o bem valia 113.000,00 e os RR., ao partilhá-lo, atribuíram-lhe o valor de € 130.000,00, embora hajam declarado (seguramente por razões fiscais) o valor patrimonial tributário do bem: € 34.160,00. |