Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
515/09.5T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
UNIÃO DE FACTO
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA/AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 320/90 DE 18/10, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8, ART.12 CC
Sumário: 1– A Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, alterou o regime vigente relativo à protecção social na eventualidade de morte do beneficiário da segurança social, previsto no Decreto-Lei n.º 320/90 de 18 de Outubro, no Decreto-Regulamentar n.º 1/94 de 18 de Janeiro e na al. a), do n.º 1, do artigo 3.º, ex vi artigo 6.º, ambos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, com as seguintes consequências, entre outras: (a) O requerente já não necessita de instaurar uma acção para obter a declaração de que vivia em união de facto com o beneficiário da segurança social falecido e (b) já não tem de provar que carece de alimentos e que não os pode obter das pessoas que legalmente estão obrigadas a prestar-lhos.

2 – As acções pendentes sobre esta matéria estabelecerão em termos definitivos, entre o requerente e a Segurança Social, o direito que o primeiro tem, ou não tem, à prestação social, pelo que, tais acções não se tornam inúteis com a entrada em vigor da nova lei, na medida em que uma acção só se torna inútil quando a sua decisão, seja ela qual for, não possa produzir quaisquer efeitos práticos entre as partes.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) A recorrida M (…) instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter a condenação do Instituto de Segurança Social, agora recorrente, a reconhecer que ela é titular das prestações por morte, previstas no Decreto-Lei n.º 320/90 de 18 de Outubro, complementado pelo Decreto-Regulamentar n.º 1/94 de 18 de Janeiro e na al. a), do n.º 1, do artigo 3.º, ex vi artigo 6.º, ambos da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio, decorrentes da morte de AA (…), beneficiário da Segurança Social, com quem a requerente viveu em união de facto durante 27 anos.

O Instituto de Segurança Social contestou alegando insuficiência da causa de pedir por não terem sido alegados factos relativos à situação económica das pessoas que legalmente estão obrigadas a prestar alimentos à Autora, designadamente os seus filhos.

Quanto à matéria alegada pela Autora referiu existir insuficiência da causa de pedir, na medida em que a Autora não alegou factos destinados a mostrar que carecia de alimentos e que não podia obtê-los dos seus familiares e ex-cônjuge.

Relativamente aos restantes factos alegados referiu não serem do seu conhecimento.

A Autora veio completar a petição no que respeita à apontada insuficiência da causa de pedir e posteriormente foi elaborado despacho saneador e fixada a base instrutória.

Após a entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, que alterou diversos artigos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, foi proferido despacho judicial a julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Resumidamente, considerou-se existir inutilidade da lide devido a três ordens de razões:

Por um lado, argumentou-se que as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, ao artigo 6.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, suprimiram o requisito da necessidade de alimentos por parte do membro sobrevivo da união de facto, e, bem assim, a necessidade do requerente provar que lhe era impossível obtê-los das pessoas legalmente obrigadas a prestar-lhos.

Doravante, as pessoas que tenham vivido em união de facto com um beneficiário da segurança social, podem requerer, após a morte deste, a atribuição das prestações sociais previstas como medida de protecção dos cônjuges e membros de união de facto que sobrevivam ao beneficiário, sem que tenham de alegar e provar que carecem de alimentos, pelo que, a acção é inútil nesta parte.
Por outro lado, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, ao artigos 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, e o aditamento do artigo 2.º-A a esta última lei, bem como a alteração introduzida no n.º 2, do artigo 8.º, do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, a prova relativa à existência da união de facto, exigida até ao momento, passou a ser feita extrajudicialmente, consoante dispõe agora o n.º 1, do artigo 2.º-A (prova da união de facto), aditado à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, nos termos do qual «Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível», prevendo-se agora, de acordo com as novas regras, nos termos do n.º 2, do artigo 6.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que «A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação».
Donde se conclui que, presentemente, é desnecessária a instauração de acção judicial para provar a existência da união de facto.

Por fim, entendeu-se que o novo regime é aplicável imediatamente à situação dos autos, nos termos da parte final do n.º 2, do artigo 12.º, do Código Civil, e que a disposição do artigo 6.º, da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, apenas tem aplicação no que respeita aos preceitos com repercussão orçamental. 

b) O Instituto de Segurança Social recorre deste despacho, em síntese, por duas razões:

Em primeiro lugar, alerta para o facto do artigo 6.º, da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, dispor que «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor», o que implica que os pedidos de prestações por parte dos membros da uniões de facto sobrevivos só possam, em qualquer caso, ser satisfeitos com a entrada em vigor do Orçamento de Estado para 2011.

Em segundo lugar, porque a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, ao n.º 1, do artigo 6.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, relativamente à «desnecessidade de alimentos» só se aplica às uniões de facto cujo óbito do beneficiário tenha ocorrido após a entrada em vigor da mencionada alteração, isto é, aos óbitos ocorridos a partir de 4 de Setembro de 2010.

Sendo esta a solução resultante do disposto na 1.ª parte, do n.º 2, do artigo 12.º, do Código Civil, nos termos da qual as novas disposições legais não têm eficácia retroactiva.

Desta forma, como o falecimento de AA (…) ocorreu ainda no domínio da lei anterior à Lei n.º 23/2010, é face à lei antiga que serão definidos os direitos da Autora e não face à lei nova, pelo que, a acção conserva a sua utilidade, já que a Autora tem de fazer prova da necessidade de alimentos para poder obter o reconhecimento do direito que invoca.

c) Face ao exposto, o objecto do recurso, tal como configurado pela recorrente, consiste no seguinte:

Primeiro: averiguar quais as consequências do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, ao determinar que «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor».

Segundo: apurar se a presente acção perdeu ou não perdeu utilidade face às alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, por se verificarem agora, com as alterações introduzidas, as seguintes situações:

1- O requerente já não necessita de instaurar uma acção para obter a declaração de que vivia em união de facto com o falecido, beneficiário da segurança social;

2 - O requerente já não necessita de provar que carece de alimentos e que não os pode obter das pessoas que legalmente estão obrigadas a prestar-lhos.

II. Fundamentação.

1. A matéria provada relevante para a questão a decidir é esta:

AA (…) faleceu no dia 12 de Março de 2009 no estado de divorciado.

A Autora é divorciada e alega factos para provar que (I) vivia em união de facto com o falecido; que (II) carece de alimentos e que (III) não os pode obter do seu ex-marido e dos seus filhos e que o falecido era (IV) beneficiário da Segurança Social, com o n.º 009717670.

A Autora pede a condenação do Instituto de Segurança Social, a reconhecer que ela é titular das prestações previstas no Decreto-Lei n.º 320/90 de 18/10, Decreto-Regulamentar n.º 1/94 de 18/01 e al. a), do n.º 1 do artigo 3.º, ex vi artigo 6.º, ambos da Lei n.º 7/2001, de 11705, decorrentes da morte de AA....

2 - Passando à análise da questão objecto do recurso.

a) A primeira questão que é a colocada no recurso tem a ver com os efeitos resultantes das alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, no seu artigo 6.º, ao determinar que «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor».

Uma interpretação que se afigura adequada ao seu teor literal consiste em separar temporalmente (I) o momento em que o cidadão preenche em abstracto os requisitos exigidos por lei para adquirir o direito à prestação (II) do momento a partir do qual se vence o direito.

Ou seja, distingue-se entre a aquisição do direito em abstracto e a efectivação do mesmo em concreto, nada obstando a que os dois momentos não coincidam.

Esta questão, porém, não foi tratada na decisão sob recurso, nem é afectada por ela.

Por conseguinte, não será objecto de apreciação, repete-se, porque a decisão sob recurso, tendo incidido na extinção da instância, nada dispôs que possa contender com a produção de efeitos do aludido preceito constante da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.

b) Vejamos agora se a presente acção perdeu ou não perdeu utilidade face às alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, por se verificarem agora, com as alterações introduzidas, as seguintes situações:

O requerente já não necessita de instaurar uma acção para obter a declaração de que vivia em união de facto com o falecido, beneficiário da segurança social; e

O requerente já não necessita de provar que carece de alimentos e que não os pode obter das pessoas que legalmente estão obrigadas a prestar-lhos.

Desde já se adianta a resposta que vai no sentido de não haver inutilidade da lide pelas seguintes razões:

1.º - Uma acção só se torna inútil quando a sua decisão, seja ela qual for, já não produza quaisquer efeitos práticos.

É esta ausência de efeitos práticos que dita a morte da instância, por a sua continuação nada poder acrescentar à situação que então já se verifica.

Pode esta situação ocorrer com a sentença que venha a ser proferida, caso a acção prossiga?

A resposta tem de ser negativa.

Com efeito, nesta acção a Autora pede que a Segurança Social lhe pague uma prestação social nos termos que já ficaram identificados atrás.

Ora, a decisão que venha a ser tomada neste processo faz caso julgado entre as partes e vincula-as ao que for decidido.

Ou seja, a decisão nesta acção fixa definitivamente entre as partes os direitos que há ou não há e seu conteúdo, no que respeita à prestação pedida.

Mas sendo isto assim, e é, então não pode argumentar-se que esta acção não pode produzir qualquer efeito entre as partes.

Como necessariamente os produzirá não pode ser considerada inútil.

2.º - Se a presente acção se extinguisse, a questão que aqui se coloca entre a Autora e a Segurança Social iria colocar-se novamente, pois a Autora teria de fazer o mesmo pedido que aqui faz à Segurança Social, mas se a acção prosseguir, já não necessita de fazer outro pedido além daquele que está feito na petição inicial, o que também mostra a utilidade da acção.

3.º - A questão da aplicação da nova lei não é pacífica, como resulta das alegações da Segurança Social.

Esquematizando ambas as situações.

Lei Velha - 4 de Setembro de 2010 - Lei Nova


Requisitos substantivos

1 - Morte do beneficiário1 - Morte do beneficiário
2 - União de facto2 - União de facto
3 - Carência de alimentos

Com efeito, podem equacionar-se pelo menos três hipóteses:

a) Primeira: a supressão do requisito que previa a existência de uma situação de carência de alimentos tem eficácia retroactiva e aplica-se também aos casos em que o falecimento do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor da nova lei (2 requisitos), isto é, antes de 4 de Setembro de 2010, como é o caso dos autos.

A nova lei (2 requisitos) aplica-se desde o óbito, ainda que anterior a 4 de Setembro de 2010.

b) Segunda: a nova lei só se aplica aos óbitos ocorridos depois dela ter entrado em vigor, portanto, aos verificados após 4 e Setembro de 2010.

Aos óbitos ocorridos antes de 4 de Setembro de 2010 aplica-se a lei velha (3 requisitos) e aos posteriores a lei nova (2 requisitos).

c) Terceira: a lei nova (2 requisitos) aplica-se aos óbitos anteriores a 4 de Setembro de 2010, mas apenas relativamente ao período temporal da produção dos efeitos previstos na lei nova, isto é, «…com a Lei do Orçamento de Estado posterior à sua entrada em vigor» - artigo 6.º da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.

Até ao momento da produção dos efeitos da lei nova os óbitos anteriores a 4 de Setembro de 2010 regem-se pela lei antiga (3 requisitos).

Ora, também sob neste aspecto se verifica que a decisão nesta acção se torna útil, na medida em que a decisão que for tomada irá equacionar e resolver a aplicação da lei nova no tempo e a decisão que vier a transitar em julgado ficará a valer definitivamente entre as partes.


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Cumpre, por conseguinte, julgar o recurso procedente.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida.

Custas pela parte vencida a final.


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Alberto Ruço (Relator)
Judite Pires
Carlos Gil