Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOSÉ EDUARDO MARTINS | ||
Descritores: | GRAVAÇÕES E FOTOGRAFIAS ILÍCITAS BEM JURÍDICO PROTEGIDO TIPICIDADE ILICITUDE PALAVRAS NÃO DESTINADAS AO PÚBLICO EXERCÍCIO DE CARGO PÚBLICO DIFAMAÇÃO DEBATE POLÍTICO DIREITO DE CRÍTICA | ||
Data do Acordão: | 09/11/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - TONDELA - JUÍZO C. GENÉRICA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 199.º, 31.º, N.ºS 1 E 2, AL. B), E 180.º, DO CP | ||
Sumário: | I – O direito à palavra e o direito à imagem são bens jurídicos pessoais-individuais, tutelando liberdades fundamentais reconhecidas a qualquer pessoa no domínio exclusivo sobre as suas próprias palavras e imagem. II – Não estando demonstrado, na matéria de facto dada como provada na sentença – reprodução precisa da descrição factual contida na acusação –, que haja sido recolhido o som e a imagem de uma pessoa certa e determinada, mas, tão só, que foi efectuada a captação de som e imagem de uma reunião de uma assembleia de freguesia, ocorre, desde logo, falta de tipicidade do próprio libelo acusatório, determinante da absolvição do arguido. III – Acresce ainda: a) Em relação às palavras gravadas, sempre faltaria a verificação do inciso legal “não destinadas ao público” previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 199.º do CP. b) No que tange à recolha de imagens, a circunstância de nos situarmos perante o exercício de um “cargo público” excluiria a ilicitude da conduta (cfr. artigos 79.º, n.º 2, e 31.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP. IV – O participante no debate político através da crítica, mesmo que esta se revele desproporcionada, rude, grosseira, indelicada, contundente, quiçá injusta, não tem de recear qualquer punição, pois a matriz fundamental da vivência democrática e livre pressupõe a mais aberta e desinibida discussão dos cidadãos sobre a adequada condução da coisa pública. V – O texto escrito – enviado, através de e-mail, pelo arguido aos assistentes enquanto membros de uma assembleia de freguesia, da qual o primeiro é também elemento integrante – “Não sei o que mais destacar em cada um de vós, se a vossa ignorância, se a vossa malvadez, se a vossa falta de cultura democrática; Para que fiquem a saber informo-vos que já dei entrada de um processo judicial contra cada um de vós e podem ter a certeza que este processo será ganho por mim, mesmo que tenham inicialmente a vosso favor juízes e procuradores incompetentes; far-vos-ei pagar os milhares de euros que já gastei neste processo, bem como pagar por tudo (…); Embora vos deseje uma longa vida para que possam sentir a vossa derrota colectiva, para mim, como pessoas que eram, deixaram de o ser. Serão para mim apenas deputados incompetentes e arguidos”, não incorpora expressões idóneas ao preenchimento do tipo objectivo do crime de difamação. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Relatório: A) No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 214/16.1T9TND que corre termos na Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Tondela, no dia 8/1/2019, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte: “VI - DECISÃO: Face ao exposto, decide-se: A. CONDENAR o arguido A. na pena única de 420 (quatrocentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de 12€ (doze euros), pela prática, em concurso efectivo, dos seguintes crimes, a que correspondem as seguintes penas individuais: i. quanto ao primeiro crime de gravações ilícitas, previsto e punido pelos artigos 199.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, praticado em 23.04.2016, na pena de 140 dias de multa; ii. quanto ao segundo crime de gravações ilícitas, previsto e punido pelos artigos 199.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, praticado em 27.04.2016, na pena de 180 dias de multa; iii. quanto ao crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal, na pessoa de (…), pena de 80 dias de multa; iv. quanto ao crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal, na pessoa de (…), pena de 80 dias de multa; v. quanto ao crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal, na pessoa de (…), pena de 80 dias de multa; vi. quanto ao crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal, na pessoa de (…), pena de 80 dias de multa. B. Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil (…) e, em consequência, ABSOLVER o demandado civil A. do pedido; C. Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil (…) e, em consequência, ABSOLVER o demandado A. do pedido; D. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil (…) e, em consequência, CONDENAR o demandado civil A. no pagamento a este da quantia de 350€ (trezentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do restante pedido; E. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil (…) e, em consequência, CONDENAR o demandado civil A. no pagamento a este da quantia de 250€ (duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do restante pedido; F. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil (…) e, em consequência, CONDENAR o demandado civil A. no pagamento a esta da quantia de 250€ (duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do restante pedido; G. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil (…) e, em consequência, CONDENAR o demandado civil A. no pagamento a esta da quantia de 600€ (seiscentos euros), acrescida de juros de mora desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do restante pedido. (…). **** B) Inconformado com a decisão recorrida, dela recorreu, em 12/2/2019, o arguido, pugnando pela sua absolvição e extraindo da motivação as seguintes Conclusões: I. A sentença proferida pelo tribunal a quo, pelo menos na parte em que condena o ora recorrente pela prática de dois crimes de gravações ilícitas, é nula por violação do disposto no art.º 374.º n.º 2 e por aplicação do disposto no art.º 379.º n.º 1 a), ambos do CPP, na medida em que não consta nos Factos Provados a captação de imagens ou sons de qualquer pessoa concreta mas tão somente da Assembleia de Freguesia, assim carecendo de um elemento objectivo do crime previsto e punido no art.º 199.º do CP. II. Caso não se entenda verificada a nulidade referida no número anterior, sempre deverá a sentença sob recurso ser revogada e o recorrente ser absolvido, por a mesma violar o disposto nos art.º 199.º n.ºs 1 e 2, 181.º e 184.º e 31.º º 2 b) do Código Penal bem como os art.ºs 79.º n.º2 do Código Civil, 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 6º e 10.º da CEDH e, ainda, os artigos conjugados 5º, 6º e 40º da Lei 75/2013 de 12 de Setembro. III. A correcta aplicação dos artigos invocados sempre implicaria a absolvição do Recorrente da prática dos crimes pelos quais foi acusado e, bem assim, a improcedência dos pedidos de indemnização civil contra si formulados. IV. Muito embora o Recorrente seja condenado pela prática de dois crimes de gravações ilícitas, dos factos provados elencados na sentença a quo pura e simplesmente não é identificada uma única pessoa que tenha sido fotografada, filmada ou gravadas as suas palavras com a sua oposição. V. O bem jurídico protegido no crime de gravações ilícitas é a palavra pessoal e a imagem pessoal, razão pela qual, aliás, o “titular do direito de queixa é apenas a pessoa cuja palavra foi arbitrariamente registada ou utilizada”. VI. Os direitos à imagem e à palavra, enquanto direitos fundamentais e autónomos, têm consagração constitucional, como decorre do estatuído no art. 26º, nº 1, da CRP, sendo, também, imprescindível o recurso ao art. 79º, do C.C. para delimitação do seu respectivo âmbito. VII. O artigo 199º do Código Penal protege esses mesmo direitos, na vertente do direito de uma pessoa concreta – e não uma Assembleia – recusar a captação da sua imagem e das suas palavras em público por ser reflexo da sua identidade pessoal, como bem jurídico pessoal, correspondente a uma expressão directa da personalidade. VIII. Sem prova da existência e identidade da “pessoa” concreta fotografada ou filmada contra a sua vontade, não é possível a condenação de uma pessoa pelo crime de gravações ilícitas. IX. Sendo os bens jurídicos protegidos pelo crime de gravações ilícitas eminentemente pessoais, ninguém pode ser condenado pela prática desse crime por ter sido dado como provado, sem que tenha sido dada como provada a identidade do lesado, que essa pessoa “captou som e imagem” de um evento. X. A condenação dos autos é tanto mais grave porquanto relativamente à reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…), do dia 27.04.2016, nunca ninguém viu, nem constam dos autos, quaisquer imagens captadas pelo recorrente. XI. Aquilo que esteve sempre em causa nas Assembleias não foi uma oposição por parte de alguns membros da mesma em defesa do seu direito à imagem ou à palavra, mas sim uma oposição dos membros da Assembleia à possibilidade de o Recorrente estar presente na Assembleia em “duas qualidades”: a de jornalista e a de membro da assembleia – essa oposição não se confunde com a oposição que constitui pressuposto do crime de gravações ilícitas. XII. A Assembleia de Freguesia é o órgão deliberativo da freguesia – cfr. Artigo 5º, nº 1; Art. 6º, nº 1 da Lei 75/2013, de 12 de Setembro – prevendo-se expressamente que as sessões dos órgãos deliberativos das autarquias locais são públicas. – art. 49º nº 1 da mesma lei. XIII. Não se pode sequer aceitar que a captação de imagem e som de actos públicos democráticos possa ser ilícita. XIV. Mesmo admitindo a captação de som e imagem dos Assistentes – que não está provada – e mesmo admitindo que tivesse havido da parte dos mesmos uma legítima oposição à captação da sua imagem e som na Assembleia de Freguesia em que participavam – o que só por absurdo e dever de patrocínio se concebe –, face a todo o circunstancialismo concreto, ao disposto no artigo 79º do CC, aos valores da liberdade de expressão, opinião e de informação configurados na actuação do ora arguido e consagrados no art.ºs 37.º e 38.º da CRP e 10.º da CEDH, sempre seriam preponderantes face aos invocados valores de suposta protecção da imagem e da palavra, o que sempre configuraria a causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art.º 31.º n.º 2 b) do Código Penal. XV. O Recorrente saber que membros (alguns/ a maioria/ os presentes...) da Assembleia não queriam – por razões políticas ou regimentais – que fossem captadas imagens da Assembleia e deles mesmos não significa que sabia que estava a agir com conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade. XVI. Pelo contrário, o Arguido foi claro nas suas declarações relativamente ao que entendia ser o seu legítimo direito a filmar a Assembleia, sendo certo que além de membro da mesma era jornalista, o que sempre lhe conferia o direito a captar imagem e som daquele acto público da vida democrática. XVII. Além de não estarem verificados os elementos objectivos do crime também não se verifica o elemento subjectivo do mesmo, entendendo-se dever ser alterada a matéria de facto dada como provada nos artigos 8. e 10, devendo os referidos factos ser considerados como não provados. XVIII. Também quanto ao ponto 3. da matéria de facto dada como provada nenhuma fundamentação existe na sentença quanto ao segmento em que se afirma, apesar da oposição expressa da maioria dos membros da Assembleia de Freguesia pelo que também o referido facto dado como provado deverá ser alterado no sentido de se eliminar dos factos dados como provados “apesar da oposição expressa da maioria dos membros da Assembleia de Freguesia” XIX. No que se refere aos crimes de injúria o Tribunal tem uma visão redutora e uma errada compreensão do que é (e deve ser) a liberdade de expressão numa sociedade democrática, em especial, no domínio da actividade política. XX. Embora o Tribunal reconheça que o email do Recorrente foi dirigido aos seus destinatários enquanto titulares de cargos públicos (cfr. 2ª parte do Facto Provado 9), considerou que as expressões escritas pelo arguido não estão contidas dentro dos ajustados e sãos limites. XXI. O teor do email do Recorrente não entra na esfera particular e vida privada dos visados e corresponde a uma forte crítica da actuação dos mesmos enquanto actores políticos. XXII. As palavras utilizadas pelo Recorrente, no contexto em que foram escritas - expressar a opinião, fortemente desfavorável, acerca da conduta assumida pelos Assistentes, na qualidade profissional em que actuaram, – não são objectivamente injuriosas porque para expressar uma opinião desfavorável, independentemente de questões de estilo, não se podem utilizar palavras laudatórias, como parece evidente: o Recorrente insurgia-se quanto a uma decisão política daqueles actores políticos. XXIII. Recorde-se que, nos termos conjugados do n.º 1. e 2. do art.º 10.º da CEDH, só quando é necessário numa sociedade democrática para proteger outros direitos e liberdades, são aceitáveis ingerências na liberdade de expressão nomeadamente sob a forma de restrições e penalizações. XXIV. No caso dos autos, parece por demais evidente que nada justifica a criminalização da actuação do Recorrente, antes pelo contrário se tem de entender a mesma como legítima, tendo em conta o disposto nos art.ºs 79.º n.º2 do Código Civil, 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa e o art.º 10.º da CEDH e art.ºs 199.º, 181.º e 31.º n.º 2 b) do Código Penal, bem como os artigos 5º, 6º e 49º da Lei 75/2013 de 12 de Setembro. XXV. Os Assistentes – ainda para mais atento o facto de integrarem um órgão público – não podem ter a pretensão de não ser alvo de críticas sobre o desempenho das suas funções, ainda que fortes e eventualmente agressivas. XXVI. São absolutamente desprovidas de qualquer relevância jurídico-criminal as expressões contidas no email em causa, sendo de resto unanimemente aceite (pela doutrina e pela jurisprudência) que os cidadãos com uma exposição pública da sua imagem devem ter de suportar maiores ataques do que o cidadão comum que, precisamente, por não se querer submeter a essa exposição, deve beneficiar de maior tutela penal. XXVII. Tendo em vista o contexto em que foram proferidas e o contexto global ou relacional do Recorrente e dos membros da Assembleia em causa, as expressões utilizadas e dirigidas aos mesmos não possuem idoneidade para ofender a honra e consideração daqueles enquanto pessoas. XXVIII. Das declarações do Recorrente (20181129094114_3426816_2871979.wma, 07h07s a 09h42) resulta evidente a ausência de dolo na sua conduta, devendo ser dado como não provado o facto 9. do elenco dos factos dados como provados na sentença em crise. XXIX. De qualquer forma, os factos dados como provados pelo Tribunal – ainda que não sejam alterados nos termos requeridos – são manifestamente insuficientes para consubstanciar a responsabilidade penal do arguido, seja pela prática do crime de gravações ilícitas, seja pela prática do crime de injúrias (agravadas). XXX. E, bem assim, insuficientes para sustentar quaisquer condenações civis. XXXI. A sentença em crise decidiu presentear o Presidente da Junta de Freguesia de (…), (…), com a quantia de € 350,00 e os membros da Assembleia de Freguesia de (…), (…), (…), e (…) com € 250,00, € 250,00 e € 600,00, respectivamente, quantias que deverão compensar os mesmos pelos graves prejuízos por si sofridos com a captação de imagem de som de uma Assembleia de Freguesia em que participavam e com a recepção de um email do Recorrente. XXXII. Em relação a todos os identificados, o Tribunal considerou que os mesmos não tinham sofrido meros transtornos, incómodos ou preocupações com as gravações e/ ou com o email mas, sim, “danos com suficiente gravidade para, de acordo com as circunstâncias em que se verificaram, merecerem a tutela do direito” – são, porém, as circunstâncias em que se verificaram as gravações em causa nos autos e em que foi enviado o email em causa que impedem a criminalização dessas condutas, nos termos em que amplamente se expôs, e que implicavam a improcedência dos pedidos de indemnização cível formulados por todos os Assistentes. XXXIII. Os factos dados como provados são manifestamente insuficientes para consubstanciar a responsabilidade penal do arguido e igualmente inaptos para fundar e sustentar uma indemnização civil. XXXIV. O direito penal, enquanto direito de proteção, cumpre uma função de ultima ratio – o caso dos autos, numa sociedade democrática, é um caso em que a intervenção do direito criminal não está justificada. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença em crise, absolvendo-se o Recorrente da prática dos crimes de gravações ilícitas e de injúrias agravadas pelos quais foi condenado e, bem assim, dos pedidos de indemnização civil em que foi condenado. **** C) O recurso, em 15/2/2019, foi admitido. **** D) O Ministério Público, em 25/3/2019, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, contra-alegando, em resumo, o seguinte: 1. Não existe nulidade da sentença, por falta de fundamentação. 2. Relativamente ao crime de gravações ilícitas, os assistentes foram alvo de gravações de som e imagem, em relação às quais se opuseram, pelo que não é verdade que não tenha sido identificada uma única pessoa que tenha sido filmada sem a sua oposição. 3. Ainda relativamente a tal crime, apesar das múltiplas decisões que se pronunciaram sobre a ilegalidade da gravação que o arguido efetuou, tendo em conta a sua pretensão de estar presente na dupla qualidade de jornalista e membro da assembleia de freguesia, persiste o mesmo na invocação do exercício de um direito à informação que, manifestamente, não pode invocar, pelo que não se verifica qualquer exclusão da ilicitude. 4. No que concerne ao crime de injúrias, o arguido, com as expressões que dirigiu aos assistentes, não pretendeu apenas formalizar um ataque político, por discordar de uma decisão tomada por aqueles membros da assembleia de freguesia, antes entrou na esfera inviolável dos direitos de personalidade dos assistentes. 5. No plano constitucional, não há primazia do direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra. **** D) Os assistentes, em 25/3/2019, responderam ao recurso, defendendo a sua improcedência, contra-alegando, em resumo, o seguinte: 1. Não existe nulidade da acusação. 2. O arguido, expressa e livremente, confessou os factos. 3. As imagens dos assistentes foram colhidas aquando da realização da assembleia, com a oposição expressa dos seus membros que, individualmente, manifestaram a sua oposição à captação das filmagens, do que o arguido tomou conhecimento. 4. O arguido bem sabe que as expressões por si empregues são manifestamente provocatórias e injuriosas, sendo falso que tais expressões sejam crítica política. **** E) Nesta Relação, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, em 8/4/2019, emitiu douto parecer no sentido do recurso merecer parcial provimento, absolvendo-se o arguido do crime de gravações ilícitas, confirmando-se, no mais, a sentença recorrida. **** F) Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo sido exercido, em 3/5/2019 e em 6/5/2019, o direito de resposta, respetivamente, pelo arguido e pelos assistentes. **** G) Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir. **** II. Decisão Recorrida: I - RELATÓRIO: (…). * III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: A) Resultaram provados os seguintes factos: Da pronúncia: 1. À data dos factos descritos infra, o arguido exercia as funções de membro da Assembleia de Freguesia de (…), em (…). 2. O assistente (…) exercia as funções de Presidente da Junta, o assistente (…) exercia as funções de Presidente da Assembleia de Freguesia, os assistentes (…), (…) e (…) exerciam as funções de membros da Assembleia de Freguesia, a assistente (…) exercia as funções de secretária da Junta de Freguesia e o assistente (…) exercia as funções de tesoureiro da Junta de Freguesia. 3. No dia 23.04.2016, no decurso da reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…) em que os assistentes estavam presentes, o arguido, apesar da oposição expressa da maioria dos membros da Assembleia de Freguesia, procedeu à captação de som e imagem da mesma, o que acabou por conduzir à suspensão dos trabalhos. 4. Após, o arguido procedeu à publicação de tais imagens nas seguintes páginas de internet acessíveis ao público: i. (…); ii. (…). 5. No dia 27.04.2016, em nova reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…), altura em que os assistentes se encontravam presentes, o arguido repetiu a conduta descrita em 3., recolhendo som e imagens dos trabalhos da Assembleia, não obstante oposição expressa dos presentes. 6. Face a tal conduta, os assistentes chamaram a GNR ao local, intervenção que culminou na condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência, no âmbito do processo n.º 106/16.4GCTND, pela circunstância de não ter obedecido à ordem dos militares da GNR para terminar a recolha de som e imagem. 7. No dia 30.06.2016, o arguido, através do seu e-mail pessoal (…), enviou um e-mail com o assunto “Atentado à liberdade de Informação - Assembleia de Freguesia”, dirigido à Junta de Freguesia de (…) com o endereço de e-mail (…), ao assistente (…), com o endereço de e-mail (…), ao assistente (…), com o endereço de e-mail (…), à assistente (…), com o endereço de e-mail (…), a (…), com o endereço de e-mail (…), e à assistente (…), com o endereço de e-mail (…), com os seguinte texto: “Não sei o que mais destacar em cada um de vós, se a vossa ignorância, se a vossa incompetência, se a vossa malvadez, se a vossa falta de cultura democrática. Para que fiquem a saber informo-vos que já da entrada de um processo judicial contra cada um de vós e podem ter a certeza que este processo será ganho por mim, mesmo que tenham inicialmente a vosso favor juízes e procuradores incompetentes. Far-vos-ei pagar os milhares de euros que já gastei neste processo, bem como pagar por tudo como fizerem não foi pouco. Embora vos deseje uma longa vida para que possam sentir a vossa derrota coletiva, para mim, como pessoas que eram, deixaram de o ser. Serão para mim apenas deputados incompetentes e arguidos”. 8. Ao actuar nos termos referidos, o arguido sabia que estava a proceder à recolha de som e imagens não destinados ao público e que para tal não se encontrava autorizado pelos presentes, que, aliás, se opuseram expressamente a tal recolha e, ainda assim, não só o fez, como procedeu à divulgação de tais vídeos em duas páginas de internet livremente acessíveis ao público contra vontade expressa dos seus intervenientes. 9. Ao enviar o referido e-mail aos assistentes (…), o arguido actuou com o propósito concretizado de ofender a sua honra e consideração profissional, enquanto titulares de cargos públicos, o que logrou. 10. Em todas as condutas descritas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Dos pedidos de indemnização civil: 11. O aludido em 3., 4. e 5. foi comentado na freguesia de (…). 12. A assistente (…), em virtude do aludido em 7., sentiu-se desgostosa, envergonhada e triste. 13. O assistente (…), em virtude do aludido em 3., 4. e 5., sentiu-se desgostoso, envergonhado, constrangido e triste. 14. O assistente (…), em virtude do aludido em 7., sentiu-se desgostoso, envergonhado e triste. 15. A assistente (…), em virtude do aludido em 3., 4., 5. e 7., sentiu-se desgostosa, envergonhada, constrangida e triste. Mais se provou: 16. No e-mail aludido em 7. foi reencaminhado o e-mail datado de 29.06.2016, remetido por CCPJ, com o título Atentado Liberdade de Informação - Assembleia de Freguesia, que consta a fls. 51-53, com o seguinte teor: “Assunto: Atentado à liberdade de Informação Exmo. Senhor Presidente da Assembleia de Freguesia de (…). O Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tomou conhecimento de que o director do jornal “(…)”, Sr. (…), foi impedido de proceder à gravação áudio e vídeo da última assembleia de freguesia pública e que há expectativa de que tal se volte a repetir já na próxima assembleia, designada para amanhã. Mercê da qualidade de director daquele periódico regional, o Sr. (…) está habilitado com a carteira profissional de equiparado a jornalista (…), que lhe garante, por força do art. 15º do Estatuto do Jornalista (Lei n.º 1/99 de 13 de Janeiro, com a redacção dada pela Lei 64/2007 de 6 de Novembro), os mesmos direitos e deveres dos jornalistas, seja quanto aos direitos de acesso à informação, seja quanto à sujeição aos deveres éticos e ao regime de incompatibilidades. O art. 9º do Estatuto do Jornalista estabelece que os jornalistas têm o direito de acesso a locais abertos ao público, como é o caso de uma assembleia de freguesia, para fins de cobertura informativa, prescrevendo o art. 10º que os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer sem outras limitações além das decorrentes da lei, tendo o direito a utilizar os meios técnicos e humanos necessários ao desempenho da sua actividade. Não existe qualquer incompatibilidade entre a actividade jornalística e a de membro de uma assembleia de freguesia, desde que o mesmo não exerça funções executivas, em regime de permanência, em órgão autárquico (cfr. art. 3º/1, al. f), do EJ). Recorda-se que o impedimento da entrada ou permanência em locais públicos dos possuidores de carteira profissional de jornalista ou de equiparado para fins de cobertura informativa, pode configurar o crime de atentado à liberdade de informação previsto no art. 19º/1, segunda parte, do mesmo diploma, que se transcreve: 1 — Quem, com o intuito de atentar contra a liberdade de informação, apreender ou danificar quaisquer materiais necessários ao exercício da actividade jornalística pelos possuidores dos títulos previstos na presente lei ou impedir a entrada ou permanência em locais públicos para fins de cobertura informativa nos termos do artigo 9.º e dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 10.º, é punido com prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias. 2 — Se o infractor for agente ou funcionário do Estado ou de pessoa colectiva pública e agir nessa qualidade, é punido com prisão até 2 anos ou com multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber nos termos da lei penal. Em face deste quadro legal, vimos instar V. Exa. a abster-se de quaisquer actos ou diligências que impeçam ou dificultem o exercício da actividade e o direito de acesso à informação do referido director do jornal. Sem outro assunto, subscrevemo-nos com os n/ cumprimentos Atentamente Secretariado da CCPJ” 17. O arguido é equiparado a jornalista, por ser director da publicação designada (…). 18. O arguido é o segundo de três irmãos, tendo crescido num ambiente familiar securizante, que lhe proporcionou a aprendizagem das normas e regras sociais. 19. Ingressou na escolaridade obrigatória em idade própria, registando um percurso escolar com sucesso educativo e elevado investimento pessoal 20. Licenciou-se e obteve o grau de Mestre em Engenharia Electrónica e de Telecomunicações na Universidade de Aveiro, tendo sido bolseiro no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores durante o período do mestrado. 21. Actualmente é Professor-Adjunto na Escola (…), auferindo mensalmente a quantia de 2100€. 22. É positivamente reconhecido pelo seu desempenho profissional. 23. Paralelamente à actividade de docência e há vários anos, realiza trabalho de investigação científica prática aplicada a pessoas com limitações físicas e/ou cognitivas. 24. Em 2012 tornou-se sócio-gerente não remunerado da (…) criada nessa data, em parceria com o Instituto Politécnico da (…) para dar continuidade ao seu trabalho de investigação, sendo que os lucros da empresa revertem integralmente para os trabalhos de investigação. 25. Aquela aplicação permite a uma pessoa tetraplégica, sem quaisquer movimentos das mãos, controlar o rato do computador com os movimentos da cabeça e piscar dos olhos. 26. Por esse trabalho foi galardoado, em 2006, com o Prémio (…), prémio instituído polo Instituto da Segurança Social. 27. O valor pecuniário desse prémio, no montante de 5000€, foi doado pelo arguido à Escola (…) para ser aplicado na investigação e desenvolvimento de novas aplicações. 28. Em 2008, fruto de novos desenvolvimentos tecnológicos dirigidos a pessoas com graves limitações físicas, foi novamente galardoado com o Prémio (…), pelo desenvolvimento da aplicação (…), que permite que uma pessoa completamente imóvel, com a excepção dos olhos, possa interagir com o computador de forma completamente funcional, apenas usando os movimentos dos olhos. 29. O valor pecuniário desse prémio, no montante de 5000€, foi doado pelo arguido à Escola (…) para ser aplicado na investigação e desenvolvimento de novas aplicações. 30. Realiza ainda actividades, a título voluntário e gratuito, com jovens, dando formação na área da robótica, quer a alunos do ensino básico da (…), em parceria com o Instituto (…), quer a jovens do Concelho de (…), na Casa do Povo de (…). 31. É deputado da Assembleia de Freguesia de (…) e é vice-presidente da Casa do Povo de (…). 32. Tem tido intervenção como membro do (…).. 33. O arguido é casado e tem uma filha com 20 anos de idade, que frequenta a Universidade de (…), sendo o ambiente familiar baseado em laços afectivos e espírito de entreajuda. 34. A sua esposa é professora do ensino especial, auferindo cerca de 1200€ por mês. 35. Reside, com a sua esposa, em casa própria. 36. O arguido despende, mensalmente, com as despesas da sua filha na Universidade (alojamento, alimentação, propinas, deslocações, etc.) a quantia de 600€. 37. O arguido beneficia de imagem positiva, associado ao seu percurso e resultados no âmbito profissional, sendo considerado uma pessoa solidária, empenhada, disponível e voluntariosa. 38. O arguido verbalizou que entende que os factos praticados foram no exercício legítimo dos seus direitos. 39. Do seu certificado de registo criminal constam as seguintes condenações: i. pela prática, em 29.12.2015, de um crime de desobediência, do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 15€, por sentença proferida em 12.02.2016 e transitada em julgado em 08.02.2018, no âmbito do processo sumário n.º 447/15.8GCTND, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Tondela, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, declarada extinta pelo cumprimento em 25.10.2018; ii. pela prática, em 27.04.2016, de um crime de desobediência, do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 15€, por sentença proferida em 29.06.2016 e transitada em julgado em 13.07.2017, no âmbito do processo sumário n.º 106/16.4GCTND, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Tondela, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, declarada extinta pelo cumprimento em 15.11.2017. B) Factos não provados: (…). * C) Motivação: A convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada funda-se no conjunto da prova produzida em audiência, devidamente conjugada entre si e ponderada de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer, aliada às regras da lógica. Foram considerados os seguintes elementos: - Regimento da Assembleia de Freguesia de (…) de fls. 27-34; - acta da segunda reunião da sessão ordinária da Assembleia de Freguesia, datada de 29.12.2015, de fls. 35-40; - publicação de fls. 41 e 59 e edição do (…) de Julho de 2016, de fls. 43-50; - e-mail datado de 30.06.2016, de fls. 51-53; - parecer da ERC de fls. 61-66; - certidão judicial da sentença proferida no processo n.º 106/16.4GCTND de fls. 226-259; - visualização do vídeo filmado na assembleia de freguesia realizada em 23.04.2016, junto a fls. 264; - declaração de fls. 753, verso; - acta de fls. 745 e acordo de fls. 746-756. O arguido prestou declarações, nas quais confirmou que procedeu à captação das imagens em causa nas assembleias de freguesia realizadas nas datas aludidas na pronúncia, referindo que poderia proceder à gravação das imagens por se tratar de um acto público, em que não é necessária a autorização dos visados, afirmando ainda que teve conhecimento da oposição dos assistentes quanto à filmagem e nada fez para parar a gravação; confirmou ainda ser da sua autoria o e-mail mencionado na acusação, referindo que o seu envio se deveu a ter recebido um e-mail da CCPJ, no qual se pronunciavam sobre a inexistência de incompatibilidade no exercício das funções de jornalista e eleito da assembleia de freguesia, sendo que tal e-mail foi remetido para os assistentes no exercício das suas funções na assembleia de freguesia e para exprimir a sua discordância quanto ao por estes decidido em anterior assembleia de freguesia. As suas declarações, associadas aos elementos documentais supra referidos, levaram a que se considerassem como provados os factos n.º 1 a 7 e 16 e 17, tendo-se tido também em consideração a posição por si assumida na contestação apresentada. Negou que, com tais gravações e escritos, pretendesse ofender a imagem, honra e consideração dos assistentes, afirmando que poderia proceder a tal gravação sem consentimento por se estar num acto público e estar apenas a exercer os seus direitos de informação, de crítica e de expressão. Os assistentes (…) relataram os factos de forma semelhante ao arguido, reiterando que se opuseram às filmagens que estavam a ser realizadas pelo arguido, por não quererem ser filmados e por entenderem que o arguido não poderia estar presente na assembleia de freguesia, simultaneamente na qualidade de jornalista e eleito, oposição que lhe foi dado conhecimento, tanto mais que existiu uma votação oral numa das assembleias, relatando ainda o modo como se sentiram com a gravação da imagem e a recepção do e-mail. Neste particular, as suas declarações permitiram dar como provados os factos n.º 11 a 15 e não provados os factos n.º i. a v., considerando que os próprios assistentes (…) afirmaram que ou apenas aparecem de costas na filmagem ou não aparecem, de todo, na filmagem, o que se pode confirmar pela visualização do vídeo junto aos autos a fls. 264, motivo pelo qual se deram como não provados os alegados danos morais que alegaram ter sofrido com a captação de tais imagens; acresce que os assistentes (…) não foram destinatários do e-mail aludido no facto provado n.º 7, motivo pelo qual não poderiam sofrer quaisquer danos com o envio do mesmo. As testemunhas (…), também membros da Assembleia de Freguesia, relataram os factos de forma coincidente à relatada pelo arguido e pelos assistentes, referindo que a gravação das imagens não foi autorizada por os assistentes não quererem ser filmados e ainda que existia desentendimento pelo facto de o arguido querer intervir na assembleia simultaneamente como jornalista e como eleito, não tendo o arguido parado a gravação, continuando a realizar a mesma. As testemunhas prestaram um depoimento seguro, sereno, isento, desinteressado, coerente entre si e quando conjugado com os demais meios de prova, designadamente com as próprias declarações do arguido e dos assistentes, demonstrando conhecimento directo sobre os factos que relataram, dado que neles tiveram intervenção directa. A versão do arguido, na parte em que refere poder proceder às filmagens, mesmo sem consentimento dos visados, e não ter tido intenção de ofender a honra e consideração dos assistentes a quem remeteu o e-mail, tendo reagido apenas ao facto de ter recebido a comunicação da CCPJ que dizia inexistir incompatibilidade de exercício de funções de jornalista e eleito da assembleia municipal, dirigindo-se aos mesmos apenas como actores políticos, não mereceu credibilidade. Ao invés, resultou provada a versão da pronúncia no que tange à prova do elemento subjectivo, constante dos factos provados n.º 8 a 10. Vejamos porquê. Por o elemento subjectivo pertencer, por natureza, ao mundo interior do agente, tem que se inferir o mesmo da prova dos factos objectivos, aliada às regras da experiência comum e do normal acontecer, ou seja, a intenção do agente tem que ser inferido através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo. Desde logo, o arguido teve conhecimento da oposição dos presentes na realização das filmagens, nada tendo feito para as parar, pelo que era conhecedor que estava a captar o som e a imagem dos presentes sem qualquer consentimento. Os sentimentos que o arguido possa ter sentido com a comunicação remetida pela CCPJ, que interpretou como lhe dando razão no que defendia, não são, de todo, aptos a justificar a sua actuação no envio do e-mail aos assistentes. O arguido, não concordando com a actuação destes na assembleia de freguesia, em que não permitiram a filmagem, poderia reagir contra a mesma, utilizando os mecanismos adequados. O teor daquele escrito, tendo em conta a forma como se encontra redigido, não foi, a nosso ver, efectuado no exercício do direito de informação, porque não o foi na qualidade de jornalista, uma vez que o arguido, em lado algum, assim assina, apondo apenas o seu nome, nem no exercício da liberdade de expressão. À luz das regras da experiência comum e do homem médio, colocado na mesma situação dos autos, não vemos como pudesse o arguido ter outra intenção que não fosse ofender a honra e consideração dos assistentes a quem remeteu o e-mail. As palavras e expressões utilizadas são, segundo o homem médio, adequadas a tecer juízos de valor sobre a honra e consideração daqueles, o que o arguido bem sabia, tendo ainda em conta as suas habilitações literárias (grau de mestre), não sendo as imputações feitas para salvaguardar interesses legítimos. Para a prova das condições socioeconómicas do arguido, considerou-se o relatório social junto a fls. 792-795, complementado com as suas declarações, bem como os depoimentos das testemunhas (…), que relataram o conhecimento que têm do arguido pelas actividades que desempenham com o mesmo e para as quais o mesmo contribui, bem como o modo de ser do mesmo, tendo prestado depoimento de forma isenta, desinteressada, séria e convicta, associada ainda à visualização dos vídeos referidos na sua contestação, a que se procedeu, inexistindo elementos nos autos que as contrariem (factos provados n.º 18 a 39). Para a prova dos antecedentes criminais do arguido, lançou-se mão do certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 784-788 (facto provado n.º 40). A demais factualidade não provada resultou da ausência de prova quanto aos mesmos (factos vii. e viii.), por não ter sido produzida qualquer prova sobre os mesmos ou da insuficiência da prova produzida (factos vi., ix. a xii.), considerando que os factos não provados n.º ix. a xii. apenas se provam por documento autêntico (como sejam certidões judiciais), não sendo suficiente para os considerar demonstrados uma edição da publicação junta aos autos. * IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: A) Enquadramento jurídico-penal dos factos: (…). * B) Das consequências jurídicas do facto: (…). * V – DOS PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL: **** III. Apreciação do Recurso: O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do CPP. As questões a conhecer são as seguintes: 1) Saber se a sentença é nula por violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2, e por aplicação do disposto no artigo 379.º, n.º 1, a), ambos do CPP, na medida em que não consta nos factos provados a captação de imagens ou sons de qualquer pessoa concreta mas tão somente da Assembleia de Freguesia, assim carecendo um elemento objectivo do crime previsto e punido no artigo 199.º, do Código Penal. 2) Saber se a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 199.º, n.ºs 1 e 2, 181.º e 184.º, 3\.º, n.º 2, b), do Código Penal, bem como os artigos 79.º, n.º 2, do Código Civil, 37.º e 38.º, da CRP, 6. E 10.º, da CRDH e, ainda, os artigos conjugados 5.º, 6.º e 40.º, da Lei 75/2013, de 12 de Setembro. 3) Saber se há erro de julgamento quanto aos factos dados como provados em 3, 8, 9 e 10. 4) Saber se os elementos do tipo de crime de gravações ilícitas estão preenchidos. 5) Saber se os elementos do tipo de crime de injúrias agravadas estão preenchidos. 6) Saber se os pedidos de indemnização civil devem ser julgados improcedente. **** Afigura-se-nos pertinente, por uma questão de lógica, começar por apreciar a questão suscitada em segundo lugar. **** - Da sentença recorrida violar o disposto nos artigos 199.º, n.ºs 1 e 2, 181.º e 184.º, 3\.º, n.º 2, b), do Código Penal, bem como os artigos 79.º, n.º 2, do Código Civil, 37.º e 38.º, da CRP, 6. E 10.º, da CRDH e, ainda, os artigos conjugados 5.º, 6.º e 40.º, da Lei 75/2013, de 12 de Setembro: O recorrente suscita esta questão, em concreto, nas suas Conclusões, nos pontos IV a XIV (gravações ilícitas) e nos pontos XIX a XXIX (injúrias agravadas). **** Na Decisão Instrutória de fls. 668 a 683, proferida em 27 de junho de 2018, o arguido foi pronunciado “pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 302-309”, então dados por inteiramente reproduzidos, sendo-lhe imputada a prática de dois crimes de gravações ilícitas, previstos e punidos pelo artigo 199.º, n.ºs 1, als. a) e b), e 2, al. b), do Código Penal, e de quatro crimes de injuria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, do Código Penal. Da acusação ora em causa, deduzida em 13/3/2018, consta o seguinte: “1. À data dos factos descritos infra, o arguido exercia as funções de membro da Assembleia de Freguesia de (…), em (…). 2. Por seu turno, o assistente (…) exercia as funções de Presidente da Junta, o assistente (…) exercia as funções de Presidente da Assembleia de Freguesia, as assistentes (…) exerciam as funções de membros da Assembleia de Freguesia, a assistente (…) exercia as funções de secretária da Junta de Freguesia e o assistente (…) exercia as funções de tesoureiro da Junta de Freguesia. 3. No dia 23/04/2016, no decurso da reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…) em que os assistentes estavam presentes, o arguido, apesar da oposição expressa da maioria dos membros da Assembleia de Freguesia, procedeu à captação de som e imagem da mesma, o que acabou por conduzir à suspensão dos trabalhos. 4. Após, o arguido procedeu à publicação de tais imagens nas seguintes páginas de internet acessíveis ao público: i. (…); ii. (…). 5. No dia 27/04/2016, em nova reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…), altura em que os assistentes se encontravam presentes, o arguido voltou a repetir a conduta descrita em 3., recolhendo som e imagens dos trabalhos da Assembleia, não obstante oposição expressa dos presentes. 6. Face a tal conduta, os assistentes chamaram a GNR ao local, intervenção que culminou na condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência, no âmbito do processo n.º 106/16.4GCTND, pela circunstância de não ter obedecido à ordem dos militares da GNR para terminar a recolha de som e imagem. 7. (…). 8. No dia 30-06-2016, o arguido, através do seu e-mail pessoal (…), enviou um e-mail com o assunto (…), dirigido à Junta de Freguesia de (…) com o endereço de e-mail (…), ao assistente (…), com o endereço de e-mail (…), ao assistente (…), com o endereço de e-mail (…), à assistente (…), com o endereço de e-mail (…), a (…), com o endereço de e-mail (…), e à assistente (…), com o endereço de e-mail (…), com os seguinte texto: “Não sei o que mais destacar em cada um de vós, se a vossa ignorância, se a vossa incompetência, se a vossa malvadez, se a vossa falta de cultura democrática. Para que fiquem a saber informo-vos que já da entrada de um processo judicial contra cada um de vós e podem ter a certeza que este processo será ganho por mim, mesmo que tenham inicialmente a vosso favor juízes e procuradores incompetentes. Far-vos-ei pagar os milhares de euros que já gastei neste processo, bem como pagar por tudo como fizerem não foi pouco. Embora vos deseje uma longa vida para que possam sentir a vossa derrota coletiva, para mim, como pessoas que eram, deixaram de o ser. Serão para mim apenas deputados incompetentes e arguidos”. 8. Ao actuar nos termos referidos, o arguido sabia que estava a proceder à recolha de som e imagens não destinados ao público e que para tal não se encontrava autorizado pelos presentes, que, aliás, se opuseram expressamente a tal recolha e, ainda assim, não só o fez, como procedeu à divulgação de tais vídeos em duas páginas de internet livremente acessíveis ao público contra vontade expressa dos seus intervenientes. 9. Ao atuar nos termos referidos, o arguido sabia que estava a proceder à recolha de som e imagens não destinados ao público e que para tal não se encontrava autorizado pelos demais presentes que, aliás, se opuserem expressamente a tal recolha e, ainda assim, não só o fez como procedeu à divulgação de tais vídeos em duas páginas de internet livremente acessíveis ao público contra vontade expressa dos seus intervenientes. 10. (…). 11. Ao enviar o referido e-mail aos assistentes (…), o arguido actuou com o propósito concretizado de ofender a sua honra e consideração profissional, enquanto titulares de cargos públicos, o que logrou. 12. Em todas as condutas descritas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.” **** Quanto aos dois crimes de gravações ilícitas, não está demonstrado (na matéria de facto provada e tão pouco na acusação) que haja sido recolhido o som e imagem de uma pessoa certa e determinada, ou seja, não está provado que tenha existido a recolha de som e imagem de qualquer pessoa devidamente concretizada, seja dos assistentes ou de outrem. Os factos dos pontos 3. e 5. (matéria de facto dada como provada) dão a saber que o arguido procedeu, em duas ocasiões distintas, à "captação de som e imagem da reunião da Assenbleia de Freguesia de (…)", sendo que, conforme facto provado 4., as imagens referidas no ponto 5. foram, após recolha, foram publicadas em duas páginas de internet. O direito à palavra e o direito à imagem são bens jurídicos pessoais-individuais e, tutelando liberdades fundamentais reconhecidas a qualquer pessoa no domínio exclusivo sobre as suas próprias palavras e imagem. Ora, a matéria de facto apenas enuncia o que acima está referido. Só na fundamentação de direito (página 18 da sentença recorrida) se concretizou que "o arguido procedeu, efectivamente, à gravação de som e imagem, em duas reuniões da assembleia de freguesia, nas quais são visíveis, além do mais, as faces dos assistentes (…) e as costas de demais pessoas que ali se encontravam presentes". Daí que, os factos provados sejam, salvo o devido respeito, insuficientes para o preenchimento do tipo de crime em causa. Enfatize-se que os factos provados são reprodução da factualidade contida no despacho de pronúncia que remeteu, integralmente, para a acusação pública. E, assim sendo, o que ocorre, desde logo, é a falta de tipicidade do próprio libelo acusatório, a determinar a absolvição do arguido. Com efeito, está aqui em jogo a protecção do direito à imagem e à palavra, bens jurídicos que se pretendem proteger com a norma incriminadora ora em causa, bens com carácter eminentemente pessoal e com a estrutura de uma liberdade fundamental, que reconhecem a cada pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem e a sua própria palavra. Ou seja, no direito penal português vigente, os direitos à imagem e à palavra - com assento constitucional no art. 26.º, n.º 1, da CRP - configuram bens jurídico-penais autónomos e como tal protegidos, independentemente da sua valência do ponto de vista da privacidade/intimidade, como vem frisando a doutrina e a jurisprudência [Manuel Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pág. 821; Ac. da Relação de Lisboa de 15/2/89, CJ 1/89, pág. 154; Ac. do STJ de 24/5/89, BMJ n.º 387, pág. 531]. De referir que o direito à imagem surge igualmente tutelado pelo Código Civil, no seu artigo 79.º. Acompanhamos, assim, o recorrente, quando este defende que, “sendo os bens jurídicos protegidos pelo crime de gravações ilícitas eminentemente pessoais, ninguém pode ser condenado pela prática desse crime, por ter sido provado, sem que tenha sido dada como provada a identidade do lesado, que essa pessoa “captou som e imagem” de um evento.” **** É certo que consta do facto dado como provado sob o n.º 3 da sentença recorrida que “no dia 23.04.2016, no decurso da reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…) em que os assistentes estavam presentes, o arguido, apesar da oposição expressa da maioria dos membros da Assembleia de Freguesia, procedeu à captação de som e imagem da mesma, o que acabou por conduzir à suspensão dos trabalhos.” (nosso negrito). E também consta do facto dado como provado sob o n.º 5 da sentença recorrida que “no dia 27.04.2016, em nova reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de (…), altura em que os assistentes se encontravam presentes, o arguido repetiu a conduta descrita em 3., recolhendo som e imagens dos trabalhos da Assembleia, não obstante oposição expressa dos presentes.” (nosso negrito). Tais factos têm, aliás, total correspondência no teor da acusação pública, datada de 13/3/2018, e do despacho de pronúncia, datado de 27/6/2018. Assim sendo, concede-se que, do respectivo contexto, possa ser defendido que estão em causa nos autos a palavra e a imagem dos assistentes, devidamente identificados nos autos, captadas e divulgadas pelo arguido, no decorrer das respectivas reuniões. Porém, salvo o devido respeito, ainda que trilhemos por esse caminho, não pode ser escamoteado que, tal como refere o Parecer do Ministério Público, a fls. 915/918 verso, a Assembleia de Freguesia é um órgão do poder local, cujas competências se encontram previstas no artigo 9.º, da Lei 75/2013, de 12 de setembro, sendo, a par dos restantes órgãos do poder local, um elemento nuclear do nosso sistema político. Pois bem, à semelhança do previsto para os demais órgãos deliberativos autárquicos, nos termos do artigo 49.º, n.º 1, na mencionada lei, as suas reuniões são públicas, estabelecendo o n.º 2 do mesmo normativo que “às sessões e reuniões dos órgãos das autarquias locais deve ser dada publicidade, com indicação dos dias, horas e locais, da sua realização, de forma a promover o conhecimento dos interessados com uma antecedência de, pelo menos, dois dias úteis sobre a data das mesmas.” Quem é eleito para uma assembleia de freguesia sabe que as reuniões de tal órgão do poder local são públicas. O que é dito em tais reuniões, sempre salvo o devido respeito, destina-se ao público. Não faz sentido que, numa sociedade aberta como a do século XXI, em que a comunicação entre as pessoas e a divulgação de notícias através da imagem, quer através dos meios de comunicação tradicionais quer por meio de redes sociais, é um dado adquirido, os membros de tal órgão queiram permanecer distantes de quem os elegeu, a coberto de um mero registo em actas daquilo que aconteceu numa determinada reunião, sendo certo que, amiúde, o teor das mesmas é colocado em causa, por haver alegadas divergências entre o que está transcrito e o que realmente foi declarado. A partir do momento em que alguém se assume como membro de uma assembleia de freguesia fica sujeito a que, nas respectivas reuniões, possa aparecer em imagens, da mesma forma que aquilo que aí diz possa ser gravado, num clima de absoluta transparência, salvo se algum motivo, de ordem excepcional, justifique o contrário, quanto mais não seja como forma dos cidadãos terem acesso absoluto ao desempenho de quem é eleito. Aliás, convém relembrar que, no caso que ocupa agora a nossa atenção, os assistentes apenas se opuseram à recolha de imagens e som porque entendiam que o arguido tinha que optar se estava na reunião enquanto membro da assembleia de freguesia ou na qualidade de jornalista, ou seja, a sua oposição não teve por base aquilo que consubstancia a prática do crime p. e p. pelo artigo 199.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Com efeito, como membros da assembleia de freguesia, presentes uma reunião pública, não vemos como, por um lado, a sua filmagem nesse local possa ser considerada contra a sua vontade, pois a sua presença ali adequa-se às suas funções, sendo de esperar que ali estejam, e, por outro lado, a gravação das suas palavras sobre assuntos de relevo de interesse público para a comunidade local, a esta destinadas, possam ser objecto de reservas. Saliente-se que, em relação às palavras gravadas, não se verifica o inciso legal "não destinadas ao público" (al. a) do n.º 1 do artigo 199.º do Código Penal. «São públicas as palavras proferidas no seio de órgãos abertos ao público» (cfr. Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal Anotado, anotação ao artigo 199.º). Por conseguinte, no caso dos autos, não se verificaria, também por esta via, um dos elementos típicos objectivos. Além disso, no que concerne à recolha de imagens, sempre terá de ser excluída a tipicidade a tipicidade, por via do disposto no artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil, segundo o qual “Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente». De facto, a circunstância de estarmos perante o exercício de um "cargo público" exlui a tipicidade da conduta. Por isso mesmo, acompanhamos o referido Parecer do Ministério Público, a este propósito, na parte em que pode ser lido o seguinte: “Se é certo que a publicidade das reuniões é assegurada pelo direito dos cidadãos de estarem presentes e à obrigatoriedade de elaboração e de divulgação posterior da respectiva acta, hoje podemos dizer que tal constitui apenas um conjunto mínimo de condições, sem as quais, independentemente do seu grau de empenho, não seria possível aos cidadãos tomarem conhecimento das decisões de tais órgãos deliberativos nem dos processos através dos quais tenham sido alcançadas. E falamos de um conjunto mínimo de condições porque, num tempo em que uma parte cada vez mais importante da informação circula e é obtida na internet, seja através das redes sociais, de jornais digitais, de publicações disponíveis online, de canais de vídeo e rádio online, seja através de qualquer outra forma de partilha de informação online, e sendo a facilidade no acesso à informação, reconhecidamente, um factor decisivo para uma maior democratização da vida política do estado e da sociedade, surgiria como anacronicamente redutor o entendimento de que a publicidade dos processos de decisão dos órgãos deliberativos do poder local é adequadamente alcançado através da simples possibilidade dos cidadãos assistirem às respectivas reuniões ou acederem ao conteúdo sumariado das decisões tomadas, visando tal publicidade, não só manter informados aqueles que já participam activamente na vida pública, mas também o de informar todos quantos possam vir a assumir essa participação activa. É no contexto vindo de descrever, normativo, político e social, que tem que ser operada a concordância entre o direito à imagem dos participantes em reunião de órgão deliberativo do poder local e os direitos de informação e de participação na vida pública.” Assim sendo, temos de ter presente que os membros de um órgão deliberativo de uma assembleia de freguesia ocupam um cargo de natureza pública e política, as respectivas reuniões são públicas e aquilo que nelas se discute e delibera é de interesse público. A captação de imagens e de som das aludidas reuniões e sua posterior divulgação, independentemente da qualidade de quem as leva a cabo, e da existência de oposição (inoperante) servem para uma melhor apreensão do que realmente aconteceu junto da opinião pública, designadamente, ao nível do poder local, pois a ligação entre o eleitor e o eleito é mais estreita. Uma vez mais, por acompanharmos nessa parte, o Parecer do Ministério Público, passamos a transcrever dele o seguinte: “Desde que a imagem seja captada e reproduzida com fidedignidade, sem distorção gráfica ou audiográfica malévola, e que a primeira operação possa ser realizada sem perturbação do normal funcionamento do órgão, não só não vislumbramos obstáculos normativos a que tais captação e reprodução ocorrem, como também não alcançamos de que forma é que a qualidade pessoal ou profissional de quem capta as imagens e as difunde, que aqui surge como um veículo difusor neutro, possa ou deva condicionar a relevância de uma eventual oposição expressa dos visados. Regressando ao caso sub judice, serve o que veio de se dizer para fundamentar o entendimento que a oposição expressa dos assistentes a que o arguido captasse as respectivas imagens videográficas, atento o disposto pelos artigos 18.º, n.ºs 1 e 2, 37.º e 48.º, n.º 1, da CRP, 79.º, n.º 2, do Código Civil, e 49.º, n.º 1 da Lei 75/2013, de 12/09, era juridicamente inoperante, estando o arguido legitimado pelos mesmos normativos constitucionais e legais a realizar tais operações independentemente da qualidade em que o fez, seja de membro da assembleia de freguesia, de jornalista ou de mero espectador, das boas ou más relações que mantinha com os visados, bem como do ânimo com que actuou.” Daqui resulta que o arguido actuou no exercício de um direito, pelo que não poderá o seu comportamento ser considerado ilícito, nos termos do disposto pelo artigo 31.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), do Código Penal, com a consequente exclusão da ilicitude. Face ao exposto, no que tange à prática das gravações ilícitas, é de excluir a responsabilidade criminal do arguido. **** Quanto aos quatro crimes de injúrias, o recorrente entende que deve ser absolvido, no que tange à prática do crime que agora ocupa a nossa atenção, alegando, no essencial, que o teor do email referido nos autos não entra na esfera particular e privada dos visados, correspondendo a uma forte crítica da atuação dos mesmos enquanto atores políticos. Salvo o devido respeito, não está preenchido o elemento objectivo do crime em causa. Há que situar no tempo e no espaço o que foi escrito pelo arguido. À data do envio do mail, é manifesto que existia um confronto político entre o arguido e os ofendidos. Ora, a disputa política implica liberdade de expressão, direito garantido pelo artigo 37.º, da CRP. O professor Costa Andrade, em “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, a páginas 236 e 237, citando Uhlitz, relembra: “Quem participar no debate político através da crítica não tem primeiro que pesar a suas palavras numa balança de ourives. Quem exagera e generaliza, quem, para emprestar mais eficácia ao seu ponto de vista, utiliza expressões desproporcionadas, rudes, carregadas, grosseiras e indelicadas (…) não tem de recear qualquer punição”, pois, “a ordenação fundamental da vida democrática e livre pressupõe a mais aberta e desinibida discussão dos cidadãos sobre a correção da condução da coisa pública”. Qualquer cidadão que exerça um cargo público está sujeito à crítica, muitas vezes contundente e quiçá injusta, quer dos seus pares quer de qualquer cidadão. Como em situações semelhantes, é pertinente chamar a atenção para aquilo que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 81/84 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1985 e no volume 4º dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 225 e segs.), a propósito dos conflitos no binómio liberdade de expressão-direito à honra afirma: “A liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a proteção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de proteção para, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também diretamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.” Nem sempre é fácil traçar uma linha de fronteira, nesta matéria. A nosso ver, na medida em que a atividade política é o expoente máximo da liberdade de expressão, deve ser admitido, em sede das respetivas disputas, e sempre, que os intervenientes se exprimam em tom e modo de desaprovação e reprovação, ainda que de forma rude, ou através de excessos de linguagem, desde que a crítica não consista num ataque pessoal, isto é, conduzida diretamente à esfera privada do ofendido. No caso dos autos, face ao teor do mail, entendemos que não são postas em causa a honorabilidade e a credibilidade dos visados na sua esfera privada, mas que apenas se transmite um juízo de valor sobre o modo como, em determinado momento, e na esfera da vida política, foram tomadas certas decisões relativas à proibição de filmagens por parte do arguido. As expressões usadas pelo arguido só por si não devem ser vista como ofensivas, na medida em que mantém total respeito pela esfera da vida privada dos visados e limitam-se a pôr em causa, segundo a sua perspectiva, não necessariamente a correcta, a forma de exercício da sua ação política. Neste contexto específico, tais expressões, embora pouco abonatórias para os visados, não os visam atingir na sua honra e consideração, enquanto valores consagrados no direito penal. Pelo contrário, devem ser vistas como o exercício de um direito à crítica por algo que, na perspetiva do arguido, foi praticado, no âmbito de um confronto político, o qual não deve ser cerceado. Com isto, não estamos a dizer que a linguagem utilizada pelo arguido seja eticamente irrepreensível, nem que deva ser encorajada pouca contenção no debate político. Simplesmente, face às circunstâncias envolventes, consideramos que não foi visado atingir a esfera da vida privada dos ofendidos, mas sim colocar apenas em causa, e num momento bem específico, determinada conduta quanto ao que devia acontecer na reunião da Assembleia de Freguesia. Também aqui entendemos estar perante um caso de falta de tipicidade. Face ao exposto, no que tange à prática das injúrias agravadas, é de excluir, também, a responsabilidade criminal do arguido. **** - Dos pedidos de indemnização civil: Vem sendo pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem como causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido se encontra acusado ou pronunciado, no processo em que é formulado o pedido. Pois bem, face ao anteriormente exposto, não está provado que o arguido tenha praticado qualquer facto ilícito e culposo, razão pela qual não estão reunidos, cumulativamente, os pressupostos a que alude o artigo 483.º, do Código Civil. Por conseguinte, sem necessidade de mais considerações, terá o demandado que ser absolvido. **** Está prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, designadamente no que tange à impugnação da matéria de facto, pois deparamos, como decorre do já exposto, quanto ao crime de gravações ilícitas, com a falta de tipicidade dos factos objectivos descritos na própria acusação e, quanto ao crime de injúrias, com a ausência do preenchimento do tipo objectivo, o que torna irrelevante a consagração, nos termos constantes da matéria de facto provada, do tipo subjectivo. **** IV – DECISÃO: Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, indo o arguido/demandado absolvido. Sem custas pelo arguido. Vai cada um dos assistentes condenado a pagar taxa de justiça no valor de 3 UC – artigo 515, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP. Custas dos pedidos de indemnização civil a cargo dos demandantes. **** (Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP). **** Coimbra, 11 de setembro de 2019 |