Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2890/23.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
INSOLVÊNCIA IMINENTE
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA ATUAL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 1, 27.º, N.º 1, AL.ª A), E 222.º-A, N.º 1, DO CIRE, E 549.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – A insolvência iminente é a situação em que é possível prever que o requerente do PEAP estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações.

II – A situação de insolvência não é definida pela relação entre o ativo e o passivo, mas “pela impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas”.

III – Não obstante, não deverá deixar de se ter em conta a relação entre o ativo e o passivo do requerente do PEAP, para efeitos de apreciação da sua situação económica, sendo que o facto do ativo ser superior ao passivo, não afastará automaticamente uma situação de insolvência.

IV – Há que apreciar as particularidades da situação de cada requerente, tendo ainda presente que o indeferimento liminar do requerimento que inicia o processo especial de acordo de pagamento só deverá ocorrer se for manifesto, em face das circunstâncias do caso, que o requerente se encontra em situação de insolvência atual.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Relatora: Helena Melo
1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves
2.º Adjunto: Paulo Correia


Processo 2890/23.0T8CBR.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A e seguintes do CIRE, veio interpor processo especial para acordo de pagamento (doravante designado por PEAP), comunicando que pretende dar início às negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegou que é devedor da quantia total de 7.373,42€, a três entidades/pessoas distintas que identifica (Banco 1...: 3.979,97€; C..., S.A.: 2.893,45€ e BB: 500,00€), cujos créditos já se venceram em 28.04.2005, 2006 e 31.05.2023, respetivamente. Mais refere ser titular de um bem imóvel, penhorado em ação executiva a correr desde 2006, e de dois veículos automóveis, nos valores de 500,00€ e 700,00€, respetivamente. Encontra-se reformado, auferindo uma pensão mensal de 453,07€.

Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a pretensão do requerente, por se ter entendido que já se encontrava em situação de insolvência atual.

O requerente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

1- O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (artigo 222º-A do CIRE).

2- Não definindo o Código o que pode entender-se por insolvência iminente”, tratar-se-á necessariamente de um estado anterior à insolvência, o que nos remete para a noção de insolvência, definida pelo nº 1 do artigo 3º CIRE como a situação “do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

3- A insolvência iminente é a situação em que é possível prever/antever que o estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações.

4- Nos termos do nº 2 do artigo 3º CIRE consagra um segundo fundamento para a declaração da situação de insolvência – manifesta superioridade do passivo sobre o ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, sendo certo que no caso concreto, o ativo é substancialmente superior ao passivo.

5- Já a situação económica difícil é definida pelo artigo 222º-B como a situação do devedor que “encontrar dificuldade séria cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”.

6- Segundo Nuno Salazar Casanova e David Serqueira Dinis, na situação económica difícil o devedor não poderá estar impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações.

Pode cumpri-las, ainda que com sérias dificuldades, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. “É o caso de o devedor que tem património para responder perante as suas dívidas, mas não tem fundos suficientes e, como tal, apenas consegue extinguir as suas obrigações, através de pagamentos em espécie, dações em cumprimento ou cessão de créditos ou outros direitos (o que pressupõe o acordo de credores) ou vendendo os seus ativos a um preço abaixo do valor de mercado a fim de obter liquidez imediata”.

7 - No caso em apreço assume a particularidade de se verificar-se já um incumprimento da generalidade das suas obrigações vencidas, o que levou o juiz a quo a qualificar tal situação como de insolvência “atual”, contudo, a verdade é que o processo executivo não tinha qualquer movimentação processual há anos, e que apenas agora o Requerente foi confrontado com a penhora da sua habitação.

8- Contudo, não é só o incumprimento, ainda que generalizado das suas obrigações vencidas, que carateriza a situação de insolvência, mas a “impossibilidade de cumprimento”, impossibilidade esta que não se reporta ao conceito de incumprimento tal como é definido pelo direito civil.

9- O termo impossibilidade é mais económico-financeiro do que técnico jurídico. Ele reporta-se à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa (porque goza de crédito), nos quais se incluem as possibilidades

de financiamento que, uma vez mobilizadas, permitiriam fazer face às suas obrigações vencidas assegurando a sua viabilidade económica.

10 - Tal como a doutrina vem entendendo, o incumprimento é um facto, enquanto a insolvência é um estado ou uma situação patrimonial do devedor.

11- O estado de insolvência exige um plus em relação ao incumprimento: enquanto este se refere a uma só obrigação individualmente considerada, a insolvência tem em consideração o património do devedor, assumindo um carater geral.

12 - O que releva para o “estado” de insolvência não é o incumprimento das obrigações vencidas, em si mero facto, mas antes a impossibilidade de o devedor as vir a cumprir, simplesmente porque não tem meios. O incumprimento de uma  ou mais obrigações só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo vencido. O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira – é a impossibilidade de pagar e não o incumprimento em si, o elemento essencial da insolvência.

13- Como sustenta Manuel Requicha Ferreira, a verificação desta incapacidade económico-financeira exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas deste. A capacidade de cumprir exige uma análise do ativo e do passivo para aferir da existência de meios  económicos e financeiros, mas atende igualmente às manifestações daquela incapacidade de cumprir através de determinados fatores externos, incluindo o incumprimento.

14 - Voltando ao caso em apreço, e ainda que apreciado o património do Requerente – da certidão matricial que acompanha a petição inicial resulta que o valor patrimonial do imóvel que o Requerente detém ascende ao montante de 23.090,00€, e ainda os dois veículos, cujos valores comerciais ascenderão a cerca de 1.200,00€, pelo que o valor do ativo é superior ao valor do passivo no montante global de cerca de 7.300,00€.

15 - Concluindo, a factualidade alegada pelo Requerente não é possível concluir, por si só, concluir que o Requerente se encontre numa situação de insolvência atual.

16- Não existindo o fundamento de rejeição do requerimento inicial, veja-se nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-12-2019 (Processo nº 5418/19.2T8CBR.C1).

17 - O incumprimento generalizado das obrigações vencidas não é bastante para se verificar uma situação de insolvência atual.

18 - o que carateriza a situação de insolvência é a impossibilidade de cumprimento enquanto incapacidade económico-financeira, o que exige uma avaliação do património

do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas.

19 - Ainda que se verifique o incumprimento de todas as dívidas vencidas, se os elementos existentes apontam no sentido da superioridade do ativo sobre o passivo, não se pode afirmar que o Requerente se encontre em situação de insolvência atual.

Termos em que pelo que se deixou dito, e que V. Exas., doutamente suprirão, revogando-se a Douta Sentença, e proferindo nova Decisão, de admissão do Processo Especial de Acordo de Pagamentos, por não existir a situação de insolvência do aqui Recorrente, mas

tão só uma situação economicamente difícil, farão como sempre,

Inteira e Sã Justiça

II – Objeto do recurso

Face às conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto, a questão a conhecer é a seguinte:

. se deve ser revogado o despacho de indeferimento liminar por o apelante não se encontrar numa situação de insolvência atual, não obstante encontrarem-se vencidas todas as obrigações, porquanto tem um ativo superior ao passivo.

III – Fundamentação

            A situação factual é a supra descrita.

            Escreveu-se com relevo para a questão a apreciar o seguinte no despacho recorrido:

            “Essencial, porém, é que ainda não haja incumprimento generalizado de obrigações (neste sentido - e não obstante referente a PER, mas com total aplicação ao PEAP -, vd. Ana Prata, e outros, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 54 e ss.; e Luís Meneses Leitão, em Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2012, p. 74; e na jurisprudência, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.10.2013 e o do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.02.2014, ambos em www.dgsi.pt).

Tal como refere Ana Paula Boularot, em «Apontamentos sobre os Efeitos do Processo Especial de Recuperação», publicado na Revista Julgar, janeiro-abril de 2017, Almedina, p. 12 (referindo-se a PER, mas com total aplicação ao PEAP), é condição de admissibilidade deste processo especial que o devedor se encontre numa situação de dificuldade económica que lhe permita solver com regularidade os seus compromissos, mas não ainda numa situação de incumprimento total dos mesmos.

Também Jorge Manuel Leitão Leal, Juiz Desembargador, em «O Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP). Algumas Considerações» (trabalho apresentado no âmbito do I Curso de Pós-Graduação em Direito da Insolvência, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 2017, disponível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20Processo%20Especial%20para%20Acordo%20de%20Pagamento%20PEAP.pdf), defende que, para efeitos de aplicação de PEAP, encontrar-se-á em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente «aquele devedor não empresário que ainda vai cumprindo os seus compromissos, mas com séria dificuldade, (…), e antevendo, com possibilidade de concretização que será menor ou maior consoante estiver em situação económica difícil ou em estado de insolvência iminente, que num futuro breve se verá impedido, de forma generalizada, de satisfazer as suas obrigações».

Em contraposição, o devedor que já se encontre em situação de insolvência atual, ou seja, que já está impossibilitado de cumprir generalizadamente as suas obrigações vencidas, terá que recorrer ao processo de insolvência.

No caso em apreço, o requerente alega que é devedor a três entidades distintas, numa quantia global de 7.373,42€, encontrando-se tais créditos vencidos, desde 28.04.2005, 2006 e 31.05.2023, respetivamente. Simultaneamente, alega que recebe mensalmente uma pensão de reforma de 453,07€/mês e que possui dois veículos automóveis no valor de 500,00€ e 700,00€, respetivamente, e de um bem imóvel, penhorado à ordem de ação executiva que corre termos desde 2006.

Ora, tais factos, conjugados entre si, permitem, desde já, concluir que o requerente encontra-se impossibilitado de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas.

Com efeito, parece-nos manifesto que a situação do devedor não é uma situação económica meramente difícil, constituindo antes, verdadeiramente, uma situação de insolvência atual. A factualidade alegada demonstra que o mesmo encontra-se numa situação que já ultrapassou os limites da iminência (de insolvência), integrando uma verdadeira situação de insolvência, na definição contida no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE.

Tal como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.01.2019, acessível em www.dgsi.pt, «deve o juiz, no despacho de abertura do PER ou PEAP, apreciar o pressuposto de que o mesmo depende, ou seja, se o devedor se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, devendo recusar o prosseguimento dos autos quando, da apreciação que deve fazer dos factos, logo resulte que o devedor que recorre a tais procedimentos está já em situação de insolvência atual».

*

Por conseguinte, julgando-se não verificados os pressupostos a que alude o artigo 222.º-A, n.º 1, do CIRE, e ao abrigo do disposto nos artigos 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e 549.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o presente processo especial para acordo de pagamento.”

A decisão recorrida foi proferida em processo especial para acordo de pagamento, o qual se encontra regulado nos artigos 222.º-A a 222.º-J, do CIRE, diploma ao qual se referem todas as disposições legais que venham a ser citadas, sem indicação da fonte.

O  processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (artigo 222º-A).  A lei não exige, como se verifica no PER (artº 17º-A, nº 1) que a situação económica  do requerente seja recuperável.

           

Não definindo o Código o que pode entender-se por insolvência “iminente”, ter-se-á de entender que se está referir a um estado anterior à insolvência, sendo que a noção de insolvência se encontra definida no artº 3º, nº 1, como a situação “do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

A insolvência iminente é a situação em que é possível prever que o requerente do PEAP estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações, sendo que no caso concreto, o requerente já afirmou que não consegue cumprir a generalidade das suas obrigações que se encontram vencidas, duas delas (num universo de três) há vários anos, desde 2005 e 2006.

A argumentação do apelante é que não está numa situação de insolvência atual,  porquanto  tem um património  superior (de 24.290,00) ao seu passivo (7.373,42).

A situação de insolvência não é definida pela relação entre o ativo e o passivo, mas “’pela impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas” (art. 3º do CIRE, conforme se defende no Ac. desta Relação de 01.12.2019, proferido no processo 5494/19.8T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt). Só relativamente às pessoas coletivas e aos patrimónios autónomos, o que não é o caso do requerente, por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, é que o artº 3º, nº 2 atribui relevância à relação entre o passivo e o ativo, consagrando  que também são consideradas insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.

Não obstante, não deverá deixar de se ter em conta a relação entre o ativo e o passivo do requerente do PEAP, para efeitos de apreciação da sua situação económica, sendo que o facto do ativo ser superior ao passivo, não afastará automaticamente uma situação de insolvência. Há que apreciar as particularidades da situação de cada requerente, tendo ainda presente que o indeferimento liminar do requerimento que inicia o processo especial de acordo de pagamento só deverá ocorrer se for manifesto, em face das circunstâncias do caso, que o requerente se encontra em situação de insolvência atual (cfr. se defende no Ac. desta Relação de 13.06.2023, proc. 1365/23.1T8CBR.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt). 

Ora, afigura-se-nos ser esse o caso em apreciação.

Perante a parca reforma do apelante, no montante mensal de 453,071, não detém o requerente disponibilidade financeira ou capacidade creditícia para cumprir as obrigações vencidas. Com efeito, o valor auferido pelo apelante é inferior ao rendimento mínimo mensal garantido – que constitui o «mínimo dos mínimos» necessário para uma sobrevivência digna – pelo que não lhe será possível através do mesmo, proceder a qualquer pagamento, nem será elegível para lhe ser concedido crédito por uma instituição bancária. A circunstância das dívidas mais significativas em termos de valor, já se terem vencido em 2005 e 2006, ilustra bem a referida falta de capacidade do requerente para proceder a qualquer pagamento que se prolonga há quase 20 anos.

O requerente alegou ainda no requerimento inicial que seria auxiliado no pagamento que iria propor aos credores, pelos seus filhos, que o ajudariam com o fim de evitar que a casa onde o pai reside fosse vendida, mas não concretizou os termos dessa ajuda, e acabou por abandonar este argumento em sede de recurso.

É certo que os bens de que o apelante é titular são bens que podem ser convertidos em dinheiro e, caso fossem todos vendidos, afiguram-se ser de valor suficiente para liquidar a totalidade dos créditos reclamados.  Por outro lado, a venda apenas dos dois veículos automóveis que o requerente avalia em 1.200,00, caso consiga a sua alienação por esse valor, sendo que um é de 1969 e outro de 1995, apenas permitirá o pagamento de menos de 20% dos créditos reclamados. O pagamento de uma percentagem superior   terá sempre de passar pela venda do imóvel, o que o requerente não pretende, tendo sido precisamente para evitar a sua venda na execução que o insolvente instaurou o presente PEAP, como resulta do alegado no requerimento inicial.

Assim, pese embora o ativo seja superior ao passivo do requerente, pelas razões que se expuseram, entende-se ser manifesto não poderem os presentes autos prosseguir, por falta de verificação dos pressupostos legais. É esta a situação que os factos alegados pelo próprio devedor evidenciam, pelo que se concorda com a decisão recorrida quando entendeu que a situação daqueles “não é meramente uma situação económica difícil, constituindo antes, uma situação de insolvência atual.” Não se verificando os pressupostos do art. 222-A, nº1 do CIRE, o presente processo especial para pagamento não podia deixar de se indeferido in limine.

            Sumário:

            (…).

           

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Notifique.

Coimbra, 12 de setembro de 2023

Declaração de voto da 1.ª Adjunta (Catarina Gonçalves)

Discordo da decisão que fez vencimento por entender que não há base factual bastante para concluir pela existência da manifesta situação de insolvência actual que conduziu ao indeferimento liminar do PEAP.

A situação de insolvência, de acordo com a noção que nos é dada pelo art.º 3.º, n.º 1, do CIRE, não se basta com o incumprimento (ainda que generalizado e ainda que há vários anos) das obrigações vencidas, exigindo-se ainda – e fundamentalmente – que esse incumprimento seja determinado por impossibilidade do devedor. Ou seja, apenas está em situação de insolvência o devedor que não cumpre as suas obrigações porque não pode (por não dispor de meios que lhe permitam realizar esse cumprimento); não está, no entanto, nessa situação, o devedor que não cumpre porque não quer, ou seja, o devedor que, apesar de dispor de liquidez, rendimentos ou património que lhe permitiam realizar esse cumprimento, não o faz.

Ora, no caso em análise, aquilo que resulta dos autos é a existência de um passivo de valor reduzido (ainda que vencido há vários anos) e a existência de património (um imóvel) cujo valor, ao que tudo indica, será suficiente para satisfazer a totalidade daquele passivo. Ou seja, ainda que não disponha, neste momento, de liquidez imediata para satisfazer o passivo (porque os parcos rendimentos que aufere não lho permitem), o devedor dispõe de património que poderia ser vendido de imediato ou a curto prazo (fosse por sua iniciativa ou por iniciativa dos credores) com vista à satisfação desse passivo, de tal modo que, se o devedor não cumpriu as suas obrigações durante todo o período que já decorreu desde o seu vencimento, não foi por impossibilidade de efectuar esse cumprimento; o cumprimento não foi efectuado porque o devedor não o quis realizar (porque não quis vender o imóvel) e por inacção dos credores que não requereram a penhora do imóvel (penhora que só recentemente foi efectuada).

Penso não ser legítimo concluir pela existência de uma situação de insolvência sempre e logo que o devedor não disponha de liquidez imediata para satisfazer as suas obrigações vencidas, independentemente do património de que seja titular e que possa ser vendido para liquidar o passivo. Essa falta de liquidez está mais associada à situação económica difícil – cfr. art.º 222.º-B do CIRE – do que à situação de insolvência, na medida em que esta supõe algo mais que isso; supõe ou pressupõe que o devedor está, de facto, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas e essa impossibilidade implicará, por regra, não só uma falta de liquidez imediata, mas também a impossibilidade de ela poder ser obtida por outra via e à custa, designadamente, da venda do património de que o devedor seja titular (seja por iniciativa do devedor, seja por iniciativa dos credores).

Nas circunstâncias descritas, tendo em conta o valor do passivo e a existência de um imóvel cujo valor permitirá, ao que tudo indica, a satisfação de todo aquele passivo, entendo, conforme referi supra, não haver base factual suficiente para concluir pela existência de uma manifesta situação de insolvência actual do devedor.     

                                       Coimbra, 2023/09/12

                                          (Catarina Gonçalves)