Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2490/19.9T8ACB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: SOCIEDADE INSOLVENTE
ADMINISTRADORES DE DIREITO E DE FACTO
PRESUNÇÕES
CONTABILISTA CERTIFICADO
IRREGULARIDADE NA CONTABILIDADE
NEXO DE CAUSALIDADE
MEDIDA DE INIBIÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 186.º, N.ºS 1 A 3, DO CIRE
Sumário: I – O n.º 2 do artº 186º estabelece presunções juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência. Assim, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador de direito ou de facto, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

II – O n.º 3 consagra uma presunção juris tantum, de culpa grave dos administradores de direito ou de facto da pessoa coletiva insolvente, sendo necessário demonstrar o nexo de causalidade. A presunção pode ser ilidida, incumbido ao administrador ou gerente de direito ou de facto a prova em contrário.

III – Relativamente aos contabilistas, revisores oficiais de contas e outras pessoas que possam ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa e que não foram seus administradores de direito ou de facto, não estando as mesmas mencionadas nos nºs 2 e 3 do artº 186º, não estão abrangidas pelas presunções, tendo de ser demostrado com o necessário suporte factual, que agiram com dolo ou com culpa grave e a existência de um nexo de causalidade entre a sua atuação e criação ou agravamento da insolvência.

IV – Os gerentes e os administradores das sociedades assumem com a aceitação do cargo de gestão que têm a competência e conhecimento para o exercício dessa função, devendo exercê-la, como se referiu, com o padrão de diligência de um gestor criterioso e ordenado. Consequentemente, o apelante não se pode escudar em que não tem conhecimentos de contabilidade e que só tem o 12º ano para não ser responsabilizado por ter sido praticada na contabilidade, irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

V – Para que seja dado como provado o nexo de causalidade entre a irregularidade praticada na contabilidade e a criação ou agravamento da situação de insolvência, no caso dos contabilistas certificados e Roc´s, não basta a consideração de que os dados da contabilidade são um dos poucos elementos objetivos que permitem aos financiadores avaliar a situação patrimonial e financeira das empresas antes de tomarem as decisões sobre a concessão de crédito, sendo necessário um suporte factual.

VI – A medida de inibição de 8 anos aplicada ao gerente mostra-se em conformidade com o princípio da proporcionalidade, tendo presente toda a extensa factualidade, ilustradora da conduta altamente censurável, preenchedora de diversas alíneas do artº 186º que conduziu a Sotrapex a um estado de insolvência, não só pelo financiamento de outra sociedade que não era sequer participada pela insolvente, como devido a toda a descapitalização da mesma a que seu gerente procedeu, durante o período em que decorriam as negociações com os credores no âmbito do PER e até à realização da Assembleia de Credores no processo de insolvência, realizada em 16.06.2020, tendo transferido todos os contratos e o património da insolvente para a sociedade “I..., Unipessoal, Lda.”, da qual era gerente de facto, deste modo esvaziando a sociedade insolvente.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Helena Melo
Adjuntos: Catarina Gonçalves
Maria João Areias

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

 A... UNIPESSOAL, LDA. foi declarada insolvente nos autos principais, na sequência do encerramento de um processo especial de revitalização, por sentença datada de 16/12/2019,  transitada em julgado.

Os credores da insolvência B..., Lda., C..., Lda., D..., S.A. e E..., Lda.”, requereram a qualificação da insolvência como culposa, requerendo a afetação pela qualificação da insolvência como culposa do gerente AA. Assim, os credores B... e C... requereram a qualificação com base no preenchimento das alíneas b), d), f), h) e i) do nº 2 e b) do nº 3 do artº 186º do CIRE, a D... imputando o preenchimento da previsão das alíneas d), f), g) e h) do nº 2 do artº 186º do CIRE e a credora F..., imputando o preenchimento das alíneas e), f), g) e h)  do nº 2 e alínea b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.

A credora D... além da qualificação do sócio-gerente da insolvente, igualmente requereu que fossem afetados pela qualificação, o contabilista certificado BB e o revisor oficial de contas, CC.

Em 05.03.2020, a credora B... veio apresentar requerimento, onde alegou ter tomado conhecimento da posição da D... e considerando igualmente que existe matéria para responsabilizar o Técnico Oficial de Contas e o Revisor Oficial de Contas da Sociedade insolvente e requereu que os efeitos da insolvência como culposa se estendessem também ao contabilista certificado BB e ao revisor oficial de contas CC.

Por despacho de 07/07/2020 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência da sociedade com carácter pleno.

O Administrador da Insolvência emitiu parecer nos termos do art. 188.º, n.º 2, do CIRE, propondo a qualificação da insolvência como culposa e requerendo a afetação pela qualificação da insolvência como culposa do gerente AA, considerando que a factualidade que alegou preenchia a previsão das alíneas d) e f) do nº 2 do artº 186º do CIRE.

Os Requerentes e o Administrador da Insolvência alegaram que a A..., sob a gerência do Requerido AA, entregou dinheiro, bens, e equipamentos a uma sociedade comercial que o Requerido constituiu na Guiné-Bissau, denominada “G..., SARL”, da qual era sócio único e gerente e que se dedicava à produção de produtos agrícolas. Mais alegaram que o financiamento da “G..., SARL, conduziu a A... à situação de insolvência em função da enorme dívida que contraiu perante instituições bancárias e financeiras  e fornecedores. Baseando-se na análise do “Relatório de Gestão” do exercício de 2018 e do anexo das “Demonstrações Financeiras”, alegaram que a referida sociedade deve à A... a quantia de 21.524.489,22 €, a título de pagamento dos bens entregues e de restituição do dinheiro. Acrescentaram que a mesma situação se verifica com a sociedade “H..., Lda.”, também detida na totalidade pelo Requerido AA, cuja dívida à A... ascende a 858.257,06€.

Paralelamente, alertaram para o facto de o Requerido AA ter constituído uma nova sociedade, denominada “I..., Unipessoal, Lda.”, que prossegue a atividade da A..., com os mesmos trabalhadores, know-how, e clientes, sendo que os únicos bens apreendidos para a massa insolvente foram cinco veículos ligeiros de passageiros e de mercadorias.

Ademais, denunciaram que a A... emitiu faturas por bens não vendidos e serviços não prestados com o intuito de obter os valores faturados das entidades com quem tinha celebrado contratos de factoring.

Por fim, consideraram que a contabilidade da A... não reflectia a realidade da empresa, razão pela qual a Requerente D... requereu a afetação pela qualificação da insolvência do contabilista BB e do revisor oficial de contas CC.

O Ministério Público manifestou a sua concordância com o parecer do Sr. Administrador da Insolvência, em virtude dos factos nele vertidos corresponderem aos factos existentes nos autos, e requereu a qualificação da insolvência como culposa nos termos do art. 186.º, n.ºs 1, 2, als. d), f), e h) do CIRE.

Notificada a insolvente e citado o único gerente AA nos termos do art. 188.º, n.º 5 do CIRE, veio deduzir oposição ao incidente, reconhecendo que os negócios com a sociedade “G..., SARL”, não tiveram o retorno esperado e acabaram por conduzir a A... à situação de insolvência, realçando que a insolvência podia ter sido evitada se o processo especial de revitalização que requereu tivesse sido aprovado pelos credores. Admite ter constituído uma nova sociedade com o propósito de dar continuidade à atividade da A..., mantendo os mesmos trabalhadores, fornecedores, e clientes, e que dessa forma esperava conseguir pagar as dívidas aos antigos fornecedores da A....

Concluiu, pugnando pela improcedência do incidente de qualificação da insolvência.

 Posteriormente, o Ministério Público, em 24.10.2022 e o Sr. AI , em 15.11.2022, vieram alegar que, tendo em conta o alegado pelo credor D... (e também o credor F..., na perspetiva do AI), não se opunham a que o contabilista certificado da sociedade insolvente e o ROC que procedeu à sua auditoria fossem afetados pela qualificação da insolvência.

Tendo sido constatado que o contabilista certificado e o ROC não tinham ainda sido citados para deduzirem oposição, procedeu-se à sua citação.

O requerido  CC, revisor oficial de contas, deduziu oposição ao incidente, admitindo ter auditado as contas da A... referentes aos exercícios de 2017 e 2018. Referiu que as “Demonstrações Financeiras” anexas ao “Relatório de Gestão” do exercício de 2018 lhe suscitaram dúvidas quanto à possibilidade de cobrança da dívida da “G..., SARL”, que aumentara significativamente em relação ao ano anterior, e que por essa razão impôs como condição da certificação legal das contas do exercício de 2018, sem reservas, uma declaração escrita do gerente e do contabilista da A... a garantirem a continuidade da empresa e a viabilidade do investimento na Guiné-Bissau. Mais referiu desconhecer que a A... ia apresentar um processo especial de revitalização após a certificação legal das contas. Considera ter cumprido as suas funções com diligência e independência, agindo sempre de boa-fé. Por fim, recusa que a certificação legal de contas do exercício de 2018 tenha servido de base para avaliações do risco de crédito da A... por parte de entidades financiadoras uma vez que o PERE foi requerido imediatamente após a emissão do documento, negando, por isso, a existência de um nexo causal entre a sua atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência da A....

Concluiu pugnando pela não afetação na qualificação da insolvência como culposa da A....

Citado o contabilista certificado BB, o Requerido deduziu oposição ao incidente, alegando que nunca foram apontadas irregularidades à contabilidade da A... nas várias inspeções realizadas desde 2011 a 2018 pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Explicou o enquadramento contabilístico dos bens e serviços faturados à “G..., SARL” e dos produtos que esta faturava à A..., salientando nunca ter tomado decisões sobre a gestão ou os negócios da A... e que o seu trabalho consistia apenas em lançar na contabilidade os dados apurados. Defende que a contabilidade da A... reflectia a real situação patrimonial e financeira da sociedade, e considera ter desempenhado as suas funções com rigor e diligência, no respeito pelos princípios e regras contabilísticas. Por fim, nega a existência de um nexo causal entre a sua atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência da A....

Elaborou-se despacho saneador com a enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova.

Procedeu-se ao julgamento. Durante a audiência de julgamento foram juntos mais documentos ao processo por parte dos Requerentes e dos Requeridos. Os documentos foram admitidos ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no art. 11.º do CIRE.

A final foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Pelo exposto, o Tribunal decide julgar parcialmente procedente o incidente de qualificação da insolvência e, em consequência:

A – Qualificar a insolvência da sociedade “A..., Lda.”, como culposa;

B – Declarar afetado pela qualificação da insolvência o Requerido AA, contribuinte fiscal n.º ...96, residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., a título de culpa dolosa;

C – Declarar o Requerido AA inibido para administrar patrimónios de terceiros, por si ou por interposta pessoa, pelo período de 8 (oito) anos;

D – Declarar o Requerido AA inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por si ou por interposta pessoa, pelo período de 8 (oito) anos;

E – Determinar a perda de quaisquer créditos do Requerido AA sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente da sociedade e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos;

F – Condenar o Requerido AA a indemnizar os credores reconhecidos da sociedade “A..., Lda.”, na totalidade do montante dos créditos não satisfeitos, e até às forças do seu património;

G – Declarar afetado pela qualificação da insolvência o Requerido BB, contribuinte fiscal n.º ...04, residente na Rua ..., ..., ... ..., a título de culpa dolosa;

H – Declarar o Requerido BB inibido para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses;

I – Declarar o Requerido BB inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por si ou por interposta pessoa, pelo período de 2 (dois) anos e (três) meses;

J – Determinar a perda de quaisquer créditos do Requerido BB sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente da sociedade e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos;

L – Declarar não afetado pela qualificação da insolvência o Requerido CC, contribuinte fiscal n.º ...40, residente na Quinta ..., ... ..., ....

M – Condenar o Requerido AA e o Requerido BB nas custas do incidente, na proporção de 85% para o primeiro, e 15% para o segundo.”

           O Requerido AA não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

            (…).

Igualmente o Requerido BB interpôs recurso, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

(…).

B..., SA, credor requerente, veio contra-alegar, tendo formulado as seguintes conclusões, relativamente ao recurso apresentado pelo apelante AA:

            (…).

Também a D...   respondeu ao recurso apresentado pelo requerido AA, tendo terminado as suas contra-alegações da seguinte forma:

(…).

O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões na resposta ao recurso interposto pelo requerido AA:

            (…).

E apresentou ainda as seguintes conclusões na resposta ao recurso interposto pelo requerido BB:

(…).

II – Do objeto do recurso

Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões, as questões suscitadas são as seguintes:

            Da apelação do apelante AA

. caso se considere o recurso tempestivo (foi suscitada a sua extemporaneidade pela credora/apelada D..., S.A.,  nas contra-alegações, ao abrigo do disposto no artº 638º, nº 6 do CPC), apreciar se caducou o direito de declarar a abertura do incidente de qualificação;

. se a matéria de facto deve ser alterada, analisando-se, previamente, se o apelante deu cumprimento aos ónus que recaem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto;

. se não se mostram preenchidas as previsões das alíneas b), d), e) e f)  do nº 2 do artº 186º e alínea a), nº 3 do artº 186º do CIRE; e,

.caso se considere que a insolvência deve ser qualificada como culposa, se a condenação do apelante na medida de inibição prevista nas alíneas b) e c) do nº 2 do artº 189º do CIRE, pelo período de 8 anos,  viola o princípio da proporcionalidade.

Da apelação do apelante BB

. se a sentença é nula por omissão de pronúncia;

           . se a sentença recorrida não se pronunciou sobre factos alegados essenciais, provados por documentos e por depoimentos;

. se a matéria de facto deve ser alterada, e,

            . se o apelante deve ser afetado pela qualificação como culposa da insolvência.

III - Fundamentação

Na primeira instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos:

A) Factos Provados:

1. Em 02/10/2006 foi constituída a sociedade por quotas “A..., Lda.”, com sede social na Rua ..., ..., ... ..., ..., tendo por objeto social o comércio por grosso de cereais e alimentos compostos para animais, comércio de materiais de construção, comércio de produtos alimentares, transportes rodoviários de mercadorias, importação e exportação.

2. A sociedade tinha como sócios AA e DD.

3. Ambos os sócios exerciam a gerência da sociedade.

4. A sociedade obrigava-se com a assinatura de um dos gerentes.

5. Os edifícios da sede e escritórios, e as instalações de trabalho da empresa estavam situados em imóveis cedidos a título de comodato.

6. A sociedade fez obras de ampliação e melhoramento do edifício da sede e escritórios, e do parque de estacionamento dos veículos de mercadorias, no montante total de 2.076.256,68 €, que se traduziram em benfeitorias dos imóveis cedidos.

7. Em 26/10/2009, o objeto social da sociedade foi alterado para comércio por grosso de cereais, sementes, leguminosas, oleaginosas e outras matérias-primas agrícolas, comércio de produtos alimentares, cerealicultura (exceto arroz), transportes rodoviários de mercadorias, importação e exportação, comércio por grosso de sucatas e de desperdícios metálicos.

8. Em 19/12/2016, a sociedade foi transformada numa sociedade unipessoal, passando a denominar-se “A..., Unipessoal, Lda.”.

9. A sociedade passou a ter como único sócio e gerente o Requerido AA.

10. A sociedade dedicava-se, essencialmente, à compra de cereais e oleaginosas para revenda em Portugal e Espanha, ao transporte rodoviário de cereais a granel e lonas (cargas próprias), bem como à prestação de serviços de transporte de cargas de terceiros.

11. O Requerido AA era também sócio único e gerente das sociedades:

- “H..., Lda.”, constituída em 10/02/2005, com sede na Rua ..., Lugar ..., ... ..., ..., e tendo por objecto social o comércio por grosso de cereais, sementes, leguminosas, oleaginosas e outras matérias-primas agrícolas, exploração agro-pecuária, comércio de alimentos compostos para animais, culturas agrícolas, importação e exportação; e

- “G..., SARL”, sociedade unipessoal de responsabilidade limitada de direito guineense, constituída em 12/12/2012, com sede na Região ..., Sector de ..., Guiné-Bissau, e tendo por objeto social a importação e exportação, comércio geral, indústria, transportes, construção civil e obras públicas, venda de materiais de construção civil, pesca industrial e artesanal, compra e venda de combustíveis e derivados, atividades turísticas, hotelaria, restauração, agricultura, prestação de serviços, ensino e formação profissional, produção e comercialização de energia elétrica e água, e de modo geral todas as atividades conexas com o objeto principal e outras, desde que permitidas por lei.

12. A sociedade “H..., Lda.”, não exercia atividade, não era titular nem detentora de bens móveis ou imóveis, e não tinha trabalhadores.

13. A sociedade servia de instrumento da “A..., Unipessoal, Lda.”, para aumentar os plafonds dos seguros de crédito relativos à sua atividade de transporte e de comércio de cereais, por via da emissão de faturas em nome da “H..., Lda.”, quando o plafond com determinado cliente fosse atingido.

14. A sociedade “G..., SARL”, dedicava-se à produção de produtos hortícolas e frutícolas.

15. A “G..., SARL”, tinha a concessão de exploração de terras de cultivo na região de ..., na Guiné-Bissau.

16. As terras concessionadas ocupavam uma área de 600 hectares de terra de cultivo.

17. Além disso, a “G..., SARL”, tinha comprado uma parcela de terreno para construir edifícios para escritórios e alojamento de trabalhadores, armazéns, oficinas, e as estufas, como parte das infra-estruturas de apoio à exploração agrícola.

18. À data da atribuição da concessão, os terrenos não estavam preparados para serem cultivados e não existiam infra-estruturas de apoio à produção agrícola.

19. A partir de 2012, a “A..., Lda.”, sob a gerência do Requerido AA, comprou e enviou para a Guiné-Bissau máquinas, escavadoras de lagartas, veículos pesados de mercadorias, geradores de energia elétrica, materiais de construção e outros equipamentos para iniciar a construção das infra-estruturas necessárias à exploração agrícola em larga escala nas terras concessionadas à “G..., SARL”.

20. Foram construídas, entre outras, as seguintes infra-estruturas de apoio à exploração agrícola da “G..., SARL”:

- produção e rede de distribuição de energia elétrica;

- furos de captação de água e reservatórios;

- canais e rede de condutas de abastecimento de água;

- diques;

- sistemas de rega nas plantações;

- vias rodoviárias de acesso às plantações;

- vedações;

- estufas;

- armazéns e oficinas;

- edifícios para escritórios e para alojamento de trabalhadores.

21. O preço de compra da parcela de terreno referida no ponto 17. e os custos com os equipamentos e a construção das infra-estruturas da “G..., SARL”, na Guiné-Bissau, incluindo a energia e a mão-de-obra, foram integralmente suportados pela “A..., Lda.”.

22. Para pagar a construção dessas infra-estruturas na Guiné-Bissau, a “A..., Lda.”, contraiu mútuos bancários junto das instituições bancárias em Portugal e ficou a dever a fornecedores.

23. Sob a gerência do Requerido AA, a “A..., Lda.”, também comprou e enviou para a Guiné-Bissau tratores e alfaias agrícolas, veículos pesados de mercadorias, câmaras frigoríficas, fertilizantes, sementes, adubos, herbicidas, e outros equipamentos para preparar os terrenos, fazer as plantações, e conservar os produtos.

24. De igual modo, a “A..., Lda.”, suportou todos os custos com a preparação dos terrenos e com as plantações com recurso a financiamento bancário e a endividamento perante os fornecedores dos bens.

25. A “A..., Lda.”, Lda.”, faturava os bens fornecidos e os serviços prestados à “G..., SARL”, e inscrevia o valor como “movimento a débito” numa conta-corrente criada entre as duas sociedades.

26. Sendo que, não foi acordado qualquer prazo de amortização da dívida, nem o pagamento de juros remuneratórios ou moratórios, nem foram prestadas quaisquer garantias reais e/ou pessoais de pagamento da dívida.

27. Na sua capacidade máxima de produção, a “G..., SARL”, empregava centenas de trabalhadores na sua empresa, entre os quais mão-de-obra especializada (trabalhadores brasileiros e portugueses) e mão-de-obra não especializada (trabalhadores guineenses).

28. O salário dos trabalhadores brasileiros e portugueses era pago pela “A..., Unipessoal, Lda.”.

29. A “A..., Unipessoal, Lda.”, também transferia dinheiro para a “G...”, SARL”, para pagar combustível e outras despesas de tesouraria.

30. As quantias monetárias transferidas para a “G..., SARL”, eram registadas como movimentos a débito numa outra conta-corrente criada entre as duas sociedades.

31. E eram inscritas na contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, como se tratando de “investimentos financeiros” (conta 41).

32. A “G..., SARL”, produzia, essencialmente, melão e batata doce, e outros produtos hortícolas em menores quantidades.

33. Em 2015, a “G..., SARL”, teve a primeira produção agrícola destinada à exportação.

34. A “G..., SARL”, só exportava para a “A..., Unipessoal, Lda.”, sendo o seu único cliente externo.

35. A maior parte da produção era enviada por via marítima para a “A..., Unipessoal, Lda.”, em contentores refrigerados.

36. E destinava-se a ser vendida em Portugal e noutros países europeus.

37. A “A..., Unipessoal, Lda.”, suportava os custos do transporte marítimo da mercadoria da Guiné-Bissau para Portugal ou outro destino europeu.

38. A vantagem competitiva do modelo de negócio instituído entre as duas sociedades assentava numa produção de baixos custos e nas condições climatéricas propícias à produção de hortícolas na Guiné-Bissau, que permitia a colocação de produtos “fora de época” nos mercados europeus de distribuição alimentar.

39. O valor faturado pela “G..., SARL”, com a venda dos produtos hortícolas à “A..., Unipessoal, Lda.”, seria inscrito na conta-corrente entre as duas sociedades e abatido ao débito existente.

40. Através de uma operação contabilística de encontro de contas da conta corrente entre a “A..., Unipessoal, Lda.”, e a “G..., SARL”, operava-se a compensação dos créditos entre as duas sociedades, extinguindo-se as dívidas e os créditos recíprocos.

41. Verificou-se, contudo, que os produtos hortícolas e frutícolas chegavam a Portugal estragados ou em condições impróprias para o consumo.

42. Grandes quantidades, não concretamente apuradas, de batata doce picada por insectos chegaram podres e tiveram de ser destruídas.

43. Grandes quantidades, não concretamente apuradas, de frutas e legumes deterioraram-se durante o transporte marítimo devido ao mau funcionamento do sistema de refrigeração dos contentores e também tiveram de ser destruídas.

44. A destruição dos produtos estragados ou impróprios para o consumo acarretou novas despesas, as quais foram integralmente suportadas pela “A..., Unipessoal, Lda.”.

45. Os problemas com a conservação dos produtos durante o transporte marítimo para Portugal nunca foram totalmente resolvidos e levaram à perda de várias produções agrícolas ao longo dos anos.

46. As receitas obtidas pela “A..., Unipessoal, Lda.”, com a venda nos mercados nacionais e internacionais dos produtos exportados pela “G..., SARL”, não compensavam os gastos que a sociedade tivera, e continuava a ter, no âmbito da relação comercial que estabelecera com a “G..., SARL”.

47. Durante os anos da gerência do Requerido AA, a “G..., SARL”, não contraiu mútuos bancários para financiar a sua actividade.

48. Nem por qualquer outro modo se endividou perante terceiros.

49. O seu único credor era a “A..., Unipessoal, Lda.”.

50. Em 2015, o volume de negócios da “A..., Unipessoal, Lda.”, foi de 87.249.939,80 €.

51. E apresentou um resultado líquido de 237.712,52 €.

52. Em 2016, o volume de negócios da sociedade foi de 84320744,53 €.

53. E apresentou um resultado líquido de 305.074,08 €.

54. Em 2017, o volume de negócios da sociedade aumentou para 102.738.646,21 €.

55. E apresentou um resultado líquido de 395.805,51 €.

56. Em 2018, o volume de negócios da sociedade aumentou para 129.062.741,41 €.

57. E apresentou um resultado líquido de 752.311,28 €.

58. Do valor total do volume de negócios de 2018, 85,43% correspondeu à venda de cereais e oleaginosas e 6,65% à prestação de serviços de transporte rodoviário a terceiros.

59. E apenas 0,33% correspondeu à venda de produtos hortícolas.

60. Milho, soja, cevada, e trigo representaram 90,17% do total dos cereais e oleaginosas vendidos nesse ano de 2018.

61. Nesse ano, a sociedade operou uma frota de 138 veículos pesados de mercadorias, em regime de locação operacional.

62. E empregou 192 trabalhadores na sua empresa.

63. Em 2018, a “A..., Unipessoal, Lda.”, atingiu o máximo do seu volume de negócios mercê da comercialização e transporte de cereais e oleaginosas em Portugal e na Europa.

64. Porém, devido aos negócios com a “G..., SARL”, a “A..., Unipessoal, Lda.”, estava com grandes dificuldades financeiras.

65. Em 10/05/2019, o Requerido AA constituiu a sociedade por quotas “J... – Unipessoal, Lda.”, tendo por objeto social o comércio por grosso de cereais, sementes, leguminosas, oleaginosas e outras matérias-primas agrícolas, comércio de produtos alimentares, cerealicultura (exceto arroz), transportes rodoviários de mercadorias, importação e exportação, comércio por grosso de sucatas e de desperdícios metálicos.

66. A sociedade tinha como único sócio e gerente de direito EE, companheira de há 19 anos do Requerido AA.

67. Todas as decisões relativas à administração e gestão da sociedade eram tomadas exclusivamente pelo Requerido AA.

68. Negociando todos os contratos celebrados pela sociedade e definindo a sua estratégia empresarial.

69. A sociedade foi constituída para suceder à “A..., Unipessoal, Lda.”, na prossecução da sua atividade, caso a empresa fosse encerrada devido aos negócios com a “G..., SARL”.

70. Assegurando a transferência para a nova sociedade das relações comerciais, dos contratos, dos trabalhadores, dos clientes, e do know-how acumulado ao longo dos anos pela “A..., Unipessoal, Lda.”.

71. Com efeito, em 16/05/2019, a “A..., Unipessoal, Lda.”, requereu um processo especial de revitalização ao abrigo do disposto no art. 17.º-A do CIRE, que correu termos sob o n.º 2490/19...., invocando a sua situação de insolvência iminente.

72. O PERE foi admitido em 27/05/2019, tendo sido nomeado um administrador judicial provisório.

73. E iniciaram-se as negociações com os credores com vista à aprovação do plano de revitalização apresentado pela devedora.

74. Entretanto, a sociedade “J... – Unipessoal, Lda.”, alterou a sua denominação para “I..., Unipessoal, Lda.”.

75. Em 11/11/2019, o administrador judicial provisório comunicou o encerramento do processo negocial por impossibilidade de alcançar acordo e emitiu o seu parecer, concluindo pela situação de insolvência da “A..., Unipessoal, Lda.”.

76. Nessa sequência, foi declarado findo o PERE e determinada a abertura do processo de insolvência em 13/11/2019.

77. Citada para o processo de insolvência, a “A..., Unipessoal, Lda.”, não se opôs à insolvência e propôs-se apresentar um plano de insolvência.

78. Mais requereu que a administração da massa insolvente fosse atribuída ao gerente da sociedade, o Requerido AA.

79. Em 16/12/2019, foi proferida sentença a declarar a insolvência da sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”.

80. Na sentença declaratória da insolvência, o Tribunal atribuiu a administração da massa insolvente ao Requerido AA, nos termos do disposto nos arts. 224.º, 226.º, e 229.º, todos do CIRE.

81. Ao Administrador da Insolvência nomeado foram atribuídas funções de fiscalização da administração da massa insolvente pelo devedor.

82. O Requerido AA administrou a massa insolvente até à data da realização da Assembleia de Credores, em 16/06/2020, na qual foi decidido o encerramento da atividade e a imediata liquidação do ativo da sociedade insolvente.

83. Entre a data da propositura do PERE, em 16/05/2019, e a data do seu encerramento, em 13/11/2019, o Requerido AA negociou com trabalhadores, fornecedores, parceiros comerciais, e clientes da “A..., Unipessoal, Lda.”, a transferência dos seus contratos para a “I..., Unipessoal, Lda.”.

84. Assim, até à data da realização da Assembleia de Credores no processo de insolvência, em 16/06/2020, os trabalhadores da “A..., Unipessoal, Lda.”, celebraram novos contratos de trabalho com a “I..., Unipessoal, Lda.”.

85. Os imóveis que a “A..., Unipessoal, Lda.”, ocupava para a sua sede, escritórios, e as instalações de trabalho, foram cedidos à “I..., Unipessoal, Lda.”.

86. A frota de veículos pesados de mercadorias detida pela “A..., Unipessoal, Lda.”, em regime de locação operacional, foi transferida para a “I..., Unipessoal, Lda.”, mediante a celebração de novos contratos de locação operacional com a entidade locadora.

87. Os fornecedores e clientes da “A..., Unipessoal, Lda.”, do sector do transporte rodoviário de cereais e oleaginosas, celebraram novos contratos com a “I..., Unipessoal, Lda.”.

88. Ou seja, todo o negócio de transporte de cereais e oleaginosas da “A..., Unipessoal, Lda.”, foi transferido para a sociedade “I..., Unipessoal, Lda.”, entre a data da propositura do PERE e a realização da Assembleia de Credores no processo de insolvência.

89. Durante esse período de pouco mais de um ano, e ainda durante o período das negociações com os credores no âmbito do PERE, o Requerido AA exerceu os seus poderes de administração da “A..., Unipessoal, Lda.”, com o propósito de transferir os elementos com valor na empresa para a “I..., Unipessoal, Lda.”.

90. Em resultado da administração do Requerido AA durante esse período, a “A..., Unipessoal, Lda.”, deixou de ter a sua sede e instalações de trabalho, trabalhadores, veículos de transporte de mercadorias, fornecedores, e clientes, deixando de ter qualquer valor enquanto empresa.

91. Nem foi indemnizada das benfeitorias realizadas no edifício da sede e escritórios, e no parque de estacionamento.

92. Acresce que, durante esse mesmo período (até ao dia 20/12/2019), a “A..., Unipessoal, Lda.”, facturou mais 108.360,72 €, à “G..., SARL”, por fornecimento de bens e serviços, aumentando o saldo devedor desta última.

93. À data da declaração de insolvência, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes gerais” (subconta 2111) da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 22.819.473,06 €.

94. Dos quais, 20.002.860,38 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

95. E 860.702,10 €, correspondiam ao saldo devedor da “H..., Lda.”.

96. A “G..., SARL”, também tinha um saldo devedor de 1.552.274,29 €, inscrito na conta “Outros investimentos financeiros” (subconta 4151) da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”.

97. Em 24/04/2020, a sociedade “H..., Lda.”, foi declarada insolvente no Processo n.º 699/20...., tendo o processo sido declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, nos termos do art. 230.º, n.º 1, al. d) do CIRE.

98. O Administrador da Insolvência do presente processo apresentou o relatório a que se refere o art. 155.º do CIRE em 13/02/2020.

99. À data da declaração da insolvência da “A..., Unipessoal, Lda.”, as dívidas à Autoridade Tributária Aduaneira por imposto de IVA, vencidas há mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, ascendiam a 2.276.308,49 €.

100. As dívidas por imposto de IVA reportavam-se aos períodos de tributação de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, e 2018.

101. O total dos créditos reclamados e reconhecidos na sentença de verificação e de graduação de créditos foi de 59.184.294,33 €.

102. Dos quais, 28.557.900,84 €, correspondem a créditos de instituições bancárias, financeiras, e de seguros de créditos.

103. Foram apreendidos para a massa insolvente cinco veículos ligeiros de passageiros e de mercadorias, material de escritório e de informática, peças metálicas, equipamentos de trabalho, sucatas, que foram vendidos pelo preço total de 36.950,00 €.

104. Foram apreendidas para a massa insolvente quantias monetárias resultantes da cobrança de créditos, no montante total de 57.405,87 €.

105. Dois tratores agrícolas registados a favor da insolvente não foram apreendidos para a massa insolvente por estarem na posse da “G..., SARL”, na Guiné-Bissau.

106. Nenhum dos bens e equipamentos enviados pela “A..., Unipessoal, Lda.”, para a Guiné-Bissau foi apreendido para a massa insolvente.

107. Ademais, a “G..., SARL”, continuou a receber máquinas novas da “A..., Unipessoal, Lda.”, já depois de esta ter sido declarada insolvente.

108. Nomeadamente, em Maio de 2020, foi entregue na Guiné-Bissau uma máquina de lavar, desinfestar, calibrar, e embalar batatas, que a “A..., Unipessoal, Lda.”, tinha comprado a uma empresa chinesa antes da declaração de insolvência.

109. A referida máquina foi comprada por um preço foi inferior a 150.000,00 €.

110. Entretanto, em 10/01/2020, a sócia da “I..., Unipessoal, Lda.”, EE transmitiu a sua quota na sociedade a FF, irmão do Requerido AA.

111. Em 22/01/2020, EE renunciou ao cargo da gerência da “I..., Unipessoal, Lda.”.

112. E foi designado como gerente o sócio único FF.

113. Todas as decisões relativas à administração e gestão da sociedade continuaram a ser tomadas exclusivamente pelo Requerido AA.

114. O gerente FF limitava-se a cumprir as decisões de gestão tomadas pelo Requerido AA.

115. Em 01/07/2020, a “I..., Unipessoal, Lda.”, passou a denominar-se “I..., Lda.”.

116. Desde a sua constituição, em Maio de 2019, até pelo menos Dezembro de 2022, a “I..., Lda.”, forneceu bens e prestou serviços à “G..., SARL”.

117. A “I..., Lda.”, faturava o fornecimento de todos os bens e serviços prestados à “G..., SARL”, e inscrevia os movimentos a débito numa conta-corrente criada entre as duas sociedades.

118. Por seu turno, a “G..., SARL”, vendia os seus produtos hortícolas à “I..., Lda.”, e o valor facturado era abatido ao débito existente.

119. À data de Dezembro de 2022, o saldo devedor da “G..., SARL”, à “I..., Lda.”, ascendia a 780.651,82 €.

120. Em termos não concretamente apurados, a totalidade da quota do Requerido AA na “G..., SARL”, foi adquirida em 2021 por uma outra sociedade.

121. A partir de 2021, o Requerido AA negociou com alguns credores da insolvência da “A..., Unipessoal, Lda.”, a satisfação faseada dos seus créditos mediante a prestação de serviços de transporte a preços reduzidos por parte da “I..., Lda.”.

122. Ao longo dos últimos três anos, a “I..., Lda.”, tem prestado serviços de transporte de mercadorias a antigos fornecedores da “A..., Unipessoal, Lda.”, que dela são credores (antigos fornecedores de bens), cobrando apenas uma parcela do preço do frete.

123. Assim como tem feito pagamentos de dinheiro por conta dessas dívidas.

124. A “I..., Lda.”, não contraiu mútuos bancários para financiar a sua atividade.

125. Em 26/06/2020 foi constituída uma sociedade por quotas, denominada “K..., Unipessoal, Lda.”, com sede social em Alameda ..., ..., ... ..., tendo por objeto social atividades de transporte rodoviário de mercadorias nacional e internacional.

126. A sociedade tinha como sócia única a sociedade “I..., Lda.”, com uma quota de 125000,00 €, no capital social.

127. E tinha como gerente FF.

128. Em 24/04/2023, o Requerido AA foi designado gerente da “K..., Unipessoal, Lda.”.

129. Em 17/05/2023, a “I..., Unipessoal, Lda.”, transmitiu a totalidade da sua quota a FF e a GG, na proporção de metade para cada.

130. Em 25/05/2023, o sócio FF renunciou à gerência da “K..., Unipessoal, Lda.”.

131. Em 15/09/2023, FF transmitiu a totalidade da quota na sociedade a GG.

132. FF desconhecia ter sido sócio e gerente da “K..., Unipessoal, Lda.”.

133. GG, sócio único da “K..., Unipessoal, Lda.”, é trabalhador da “I..., Lda.”.

134. Em 2022, o Requerido AA declarou rendimentos anuais de 11.200,00 €, a título de remuneração do cargo de gerente da “K..., Unipessoal, Lda.”.

135. A contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, era feita pelo Requerido BB desde 2007.

136. Perante o aumento do saldo devedor da “G..., SARL”, o Requerido BB recomendou ao Requerido AA a entrada da “A..., Unipessoal, Lda.”, no capital social da “G..., SARL”, bem como a constituição de uma provisão por conta dos créditos incobráveis sobre a “G..., SARL”.

137. O Requerido BB elaborou as declarações anuais de Informação Empresarial Simplificada referentes aos exercícios de 2015, 2016, e 2017, bem como as “Demonstrações Financeiras” do exercício de 2018, anexas ao “Relatório de Gestão” do exercício de 2018.

138. No final do exercício de 2015, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 19.749.608,60 €.

139. Dos quais, 2.578.912,70 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

140. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 31.283,69 €.

141. No final do exercício de 2016, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 19.911.562,06 €.

142. Dos quais, 3.841.247,34 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

143. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 238.267,39 €.

144. No final do exercício de 2017, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 21.368.320,45 €.

145. Dos quais, 3.014.359,72 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

146. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 1.114.414,53 €.

147. No final do exercício de 2018, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 30.502.362,02 €.

148. Dos quais, 9.134.885,11 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

149. No anexo das “Demonstrações Financeiras” do exercício de 2018 foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 2.028.728,61 €.

150. Em 29/04/2019, as “Demonstrações Financeiras” do exercício de 2018 foram aprovadas pela gerência da “A..., Unipessoal, Lda.”.

151. Nessa data, o saldo devedor da “G..., SARL”, já ascendia a 19.809.502,02 €.

152. A sociedade de revisores oficiais de contas do Requerido CC foi contratada para prestar serviços de revisão legal de contas da “A..., Unipessoal, Lda.”, em 25/05/2017.

153. No âmbito desse contrato, a sociedade de revisores oficiais de contas auditou as contas do exercício de 2017.

154. Ao tomar conhecimento do aumento significativo do saldo devedor da “G..., SARL”, de 2017 para 2018, o Requerido CC exigiu que o gerente e o contabilista da “A..., Unipessoal, Lda.”, declarassem por escrito a continuidade da empresa e a viabilidade do investimento na Guiné-Bissau, como condição da certificação legal das contas do exercício de 2018, sem reservas.

155. A referida declaração, intitulada “...”, que aqui se dá por integralmente reproduzida, foi emitida pelo Requerido AA e pelo Requerido BB em 02/05/2019.

156. No referido documento, o Requerido AA e o Requerido BB declararam que os créditos sobre a “G..., SARL”, eram totalmente recuperáveis.

157. Nessa mesma data, 02/05/2019, o Requerido CC emitiu o documento de certificação legal das contas do exercício de 2018, sem reservas.

158. Em 08/05/2019, a “A..., Unipessoal, Lda.”, deliberou requerer um processo especial de revitalização.

*

B) Factos Não Provados

1. Que as faturas emitidas pela A... por bens não vendidos e serviços não prestados estivessem refletidas na contabilidade da sociedade.

Da extemporaniedade do recurso presentado pelo recorrente AA

(…).

Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

(…).

Caducidade da abertura do incidente da qualificação da insolvência

Defende o apelante AA que caducou o prazo para a abertura do incidente de qualificação da insolvência, porquanto o prazo para declarar a  abertura do incidente é um prazo perentório. Tratando-se, no seu entendimento, de um prazo perentório para as partes, deverá igualmente assim ser considerado para o tribunal, assim sendo considerado “por toda a jurisprudência”.

Alega que o incidente da qualificação da insolvência, foi requerido no prazo de 15 dias conforme deriva do nº 1 do artº 188º do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais que forem citadas, sem indicação da fonte).  O relatório do artº 155º data do dia 13/02/2024, o incidente foi interposto no dia 24/02/2020, no entanto, o tribunal a quo, que tinha o prazo de 10 dias para declarar aberto o incidente,  apenas o declarou aberto no dia 16/06/2020, ou seja volvidos quase 3 meses e meio desde o prazo a que estava obrigado.

Nas suas contra-alegações, tanto o Ministério Público, como a credora D... vieram defender a improcedência da arguida exceção.

Vejamos:

O despacho a declarar aberto o incidente é datado de 07/07/2020.

À data, na redação em vigor, prescrevia o art. 188º, n.º 1 do CIRE: “Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”

Os prazos para a prática de atos pelo juiz têm um caráter meramente ordenatório, não resultando qualquer preclusão do seu não cumprimento. São prazos indicativos e que dentro do possível, devem ser cumpridos. E são prazos indicativos para prevenir que a sobrecarga de trabalho com que muitos tribunais se deparam, impedindo a pratica do ato no prazo indicado de 10 dias, conduza a situações de preclusão.

Com a alteração produzida na redação do nº 1 do artº 188º pela Lei 9/2022, de 11/01, o mesmo passou a dispor no seu nº 1 que: “O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de  dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”

Esta alteração, como refere o Ministério Público, ainda deixou mais evidente que o  prazo estabelecido para o juiz declarar a abertura do incidente não é um prazo perentório. Enquanto a lei qualifica como prazo perentório o prazo de 15 dias de que dispõe o AI ou qualquer interessado para alegar   fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência, já não qualifica como perentório o prazo de 10 dias previsto para o juiz declarar a abertura do incidente.  

Desconhece-se qualquer decisão no sentido defendido pelo apelante que, embora alegando que toda a jurisprudência considera o prazo de 10 dias estabelecido para o tribunal, como perentório,  não cita qualquer decisão nesse sentido.

Improcede, consequentemente, a alegada caducidade.

Da impugnação da matéria de facto efetuada pelo apelante AA

(…).

            Da impugnação do apelante BB

            (…).

DO DIREITO

No caso vertente, os Requerentes, o Administrador da Insolvência, e o Ministério Pública fundamentam os respetivos requerimentos e pareceres de qualificação da insolvência como culposa na criação ou agravamento artificial de prejuízos, ou redução de lucros (al. b) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, diploma a que se reportam todas as disposições legais que venham a ser citadas, sem indicação da fonte); disposição dos bens da sociedade em proveito pessoal ou de terceiros (al. d) do n.º 2); na exploração, eventualmente a coberto da personalidade coletiva da empresa, da sua atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da mesma (al. e) do n.º 2); na utilização do crédito ou dos bens do devedor por forma contrária aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros (al. f) do n.º 2); na prossecução de uma exploração deficitária, no interesse pessoal ou de terceiros (al. g) do n.º 2); no incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada (al. h) do n.º 2); e no incumprimento do dever de colaboração com o administrador da insolvência (al. i) do n.º 2). Os credores F..., B... e C... pediram ainda a qualificação com fundamento na alínea b) do nº 3 do artº 186º.  

Na sentença recorrida considerou-se a insolvência culposa e entendeu-se que se mostravam preenchidas as previsões das alíneas b), d) e h) do nº 2 e a alínea a) do nº 3, todos do artº 186º.

 

O apelante AA entende que não se verificam os pressupostos exigidos pelas alíneas b), d), e) e f) do nº 2 e na alínea a) do nº 3 e defende que tanto o nº 2, como o nº 3º exigem a prova de um nexo de causalidade entre a atuação e a situação de insolvência que não se verifica no caso.

           Também o apelante BB põe em causa o preenchimento da previsão da alínea h) – única alínea com relevo para estender a qualificação ao contabilista certificado – e que não se verifica nem uma atuação com culpa grave, nem a existência de nexo de causalidade entre a sua atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência, defendendo que no caso dos contabilistas certificados ou técnicos oficiais de contas  (designação que o artº 189º ainda continua a usar) e dos revisores oficiais de contas, não se aplicam as presunções constantes do nº 2 e 3 do artº 186º, cuja aplicabilidade é restrita aos administradores de direito ou de facto da insolvência como resulta dos nºs 2 e 3 do referido artº 186º em que apenas estes são referidos.

            Vejamos:

Da exigência de prova de uma atuação com dolo ou negligência grave e do nexo de causalidade entre a conduta e a situação de insolvência

O nº 2 do artº 186º  estabelece presunções juris et de jure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência  (cfr. se defende no Ac. do STJ de 15/02/2018-proc. nº 7353/15); por seu turno, no nº 3 consagra-se uma presunção  juris tantum, de culpa grave dos administradores de direito ou de facto da pessoa coletiva insolvente (cfr. se defende no Ac. do TRG de 10.07.2018, proc. 2122/15.4T8VCT-E.G1). Se era discutível antes das mais recentes alterações ao CIRE, introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro, se a presunção do nº 3 abrangia  também o nexo de causalidade, com a alteração introduzida pelo artº 2º da referida Lei, o legislador veio clarificar que a presunção apenas abrange a existência de culpa grave e não também o nexo de causalidade, ao estatuir que “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido”, designadamente “o dever de requerer a declaração de insolvência” – alínea a) do nº 3 (cfr. se defende, designadamente, no Ac. desta Relação de 14.06.2022, proc. 139/21).

Nas presunções “juris et de jure”, não existe a possibilidade de prova em contrário, como é permitido nas presunções juris tantum (artº 350º, nº 2 do CC). Ficando dispensada a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficciona a lei, desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa. Nestes termos, verificada qualquer uma das situações tipificadas (taxativamente) no n.º 2 do art. 186º, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa. Assim, provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador de direito ou de facto, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento, pelo que “a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato” (cfr. defende Maria do Rosário Epifânio,  Manual do Direito da Insolvência, Almedina, 2022, 8ª edição, pág. 160).

Consequentemente, não assiste razão ao apelante AA, gerente da insolvente, quando defende que há que fazer a prova da existência de dolo ou culpa grave e da existência de um nexo de causalidade relativamente às situações previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 186º, porquanto preenchidos os pressupostos factuais, se presume, sem possibilidade de prova em contrário, tanto a culpa grave/dolo, como a existência de nexo de causalidade.

Relativamente ao nº 3 do artº 186º, a presunção abrange apenas a existência de culpa grave, presunção que pode ser ilidida, incumbido ao administrador ou gerente de direito ou de facto a prova em contrário, e tem de ser demonstrada a existência do nexo de causalidade.

No que concerne aos contabilistas, revisores oficiais de contas e outras pessoas que possam ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa e que não foram seus administradores de direito ou de facto, não estando as mesmas mencionadas nos nºs 2 e 3 do artº 186º, tem-se entendido que não estão abrangidas pelas presunções, tem de ser demostrado com o necessário suporte factual, que agiram com dolo ou com culpa grave e a existência de um nexo de causalidade entre a sua atuação e criação ou agravamento da insolvência (cfr. defendem, designadamente, Alexandre de Soveral Martins,  Um curso de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2016, pág. 424, e José Engrácia Antunes, “O âmbito subjetivo do incidente de qualificação da insolvência”, Revista de Direito da Insolvência, Número 1, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 85). Catarina Serra, em Lições do Direito da Insolvência, 2ª edição, Almedina, págs. 153 e 154, defende que, tendo o legislador se esquecido de adaptar o texto do nº 1 do artº 186º ao texto da alínea a) do nº 2 do artº 189º, na redação introduzida em 2012, a única solução é efetuar-se uma interpretação atualista do artº 186º, nº 1, presumindo que a intenção do legislador foi a de que o regime abrangesse outros sujeitos para lá do devedor e dos seus administradores.

Tendo presente o exposto, passamos a apreciar as diversas alíneas do nº 2 relativamente às quais o apelante AA entende que não se verifica a previsão legal e ainda também, a posição do apelante BB, relativamente à alínea h) do nº 2 do artº 186º.

Apreciando:

Alínea b) - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.

O Tribunal a quo depois de ter explicado a finalidade da previsão da alínea b) e quais os comportamentos exigidos para a verificação da previsão legal,  concluiu que  os factos provados conduziam a que a  mesma se mostrasse preenchida, em síntese, tendo em conta três negócios:

“.O primeiro negócio que o Requerido AA fez entre a A... e a “G..., SARL”, consistiu na compra de uma parcela daquelas terras em ... para construir edifícios para escritórios e alojamento de trabalhadores, armazéns, oficinas, e as estufas, como parte das infra-estruturas de apoio à exploração agrícola em larga escala.

A A... pagou o preço de compra destas terras, mas foi a “G..., SARL”, que ficou como proprietária delas.

.O segundo âmbito de negócios prende-se com os trabalhos de preparação dos terrenos para as plantações e com as obras de construção das infra-estruturas de apoio à produção agrícola. A A..., por ação do Requerido AA, comprou e enviou para a Guiné-Bissau máquinas, escavadoras de lagartas, veículos pesados de mercadorias, geradores de energia elétrica, materiais de construção e outros equipamentos para iniciar a construção das infra-estruturas necessárias à exploração agrícola. No âmbito dessas obras, foram construídas várias infra-estruturas de apoio à exploração agrícola da “G..., SARL”, tais como, centro de produção e rede de distribuição de energia elétrica, furos de captação de água e reservatórios, canais e rede de condutas de abastecimento de água, diques, sistemas de rega nas plantações, vias rodoviárias de acesso às plantações, vedações, estufas, armazéns e oficinas, e edifícios para escritórios e para alojamento de trabalhadores.

.A A... pagou todas estas obras de construção das infra-estruturas da “G..., SARL”, na Guiné-Bissau, incluindo as máquinas, os equipamentos, os materiais, a energia, e a mão-de-obra. As infra-estruturas realizadas foram integradas no património da “G..., SARL”.

.O terceiro âmbito de negócios entre a A... e a “G..., SARL”, sob a gerência do Requerido AA, respeita ao financiamento da produção agrícola propriamente dita. Desde que a “G..., SARL”, iniciou a produção, a A... comprou e enviou para a Guiné-Bissau tratores e alfaias agrícolas, veículos pesados de mercadorias, câmaras frigoríficas, fertilizantes, sementes, adubos, herbicidas, e outros equipamentos para preparar os terrenos, fazer as plantações, e conservar os produtos.

.A A... pagou todos as despesas com a preparação dos terrenos e com as plantações, incluindo os meios de produção e outros equipamentos. Além disso, ao longo dos anos, a A... transferiu quantias monetárias para a “G..., SARL”, para comprar as matérias-primas e pagar as despesas correntes com combustível, energia, e mão-de-obra especializada (trabalhadores portugueses e brasileiros).

.Todas estas despesas e custos que vimos de referir, desde a compra de terras e a construção das infra-estruturas, até à preparação dos terrenos e às plantações, foram suportadas pela A... com recurso a financiamento bancário e a endividamento perante os fornecedores dos bens. Ou seja, a A... aumentou o seu passivo para que o Requerido AA criasse uma empresa de raiz na Guiné-Bissau e financiasse a sua atividade.

.A “G..., SARL”, por seu turno, nunca contraiu mútuos bancários para financiar a sua actividade nem por qualquer outro modo se endividou perante terceiros.

.No que tange aos termos do reembolso das quantias despendidas pela A..., não foi estipulado qualquer prazo de amortização da dívida, nem o pagamento de juros remuneratórios ou moratórios, nem foram prestadas quaisquer garantias reais e/ou pessoais de pagamento da dívida.

(…)

.A única “contrapartida” para a “G..., SARL”, consistia na obrigação de vender exclusivamente à A... os produtos agrícolas que produzisse em cada colheita. Assim, os produtos agrícolas eram exportados para a A..., e o valor facturado pela “G..., SARL”, era inscrito na conta-corrente entre as duas sociedades e abatido ao saldo devedor existente. Deste modo, através de um simples encontro de contas na conta corrente existente entre as sociedades, operava-se uma compensação de créditos pela qual se extinguiam, proporcionalmente, os créditos e dívidas recíprocas.

. A A... suportava os custos do transporte marítimo da mercadoria da Guiné-Bissau para Portugal. E também assumia o risco inerente ao transporte. Quer isto dizer que, mesmo que os produtos chegassem ao destino estragados ou impróprios para consumo, o valor da fatura emitida pela “G..., SARL”, era sempre lançado como “movimento a crédito” na conta-corrente com a A..., abatendo ao saldo devedor existente como se a mercadoria tivesse sido recebida em bom estado.

.Em suma, a expectativa da A... na satisfação dos seus direitos de crédito recaía na capacidade de produção da “G..., SARL”, e no volume das exportações desses produtos para a A.... Depois incumbia à A... vender no mercado de retalho para obter lucros.”

Seguidamente a sentença recorrida analisou se se podia considerar que o passivo da insolvente foi criado ou agravado artificialmente, concluindo afirmativamente pelas seguintes razões:

“Ora, como vimos, a A..., por ação do Requerido AA, contraiu dívida perante instituições bancárias e financeiras, e também fornecedores, para financiar a atividade de uma sociedade na Guiné-Bissau, detida na totalidade pelo Requerido AA. A A... contraiu dívidas para obter capitais para investir (criou passivo). Mas os capitais que obteve não foram investidos na própria empresa; foram sim investidos numa empresa totalmente alheia à A..., sedeada e instalada na Guiné-Bissau, a qual integrou no seu património o valor empresarial criado por esses capitais alheios que a A... obteve à custa do seu próprio endividamento. Ou seja, quem beneficiou do investimento realizado foi a “G..., SARL”, mas quem ficou obrigada a restituir o equivalente dos capitais alheios usados nesse investimento foi apenas a A.... É manifesto que este negócio foi contrário ao interesse societário da A....

Assim, na medida em que a A... se tornou devedora de bancos e fornecedores pelos capitais alheios que obteve para investimento, mas que não foram investidos na sua própria empresa e sim numa outra que lhe era totalmente alheia, é legítimo concluir que esse passivo foi artificialmente criado na A...”.(sublinhado nosso)

Mais concluiu que os negócios que o Requerido AA celebrou entre a A... e a “G..., SARL”, foram extremamente ruinosos para a primeira e bastante proveitosos para a segunda, presumindo-se que foram causais da situação de insolvência da A....

Ora, o apelante no seu recurso não põe em causa as razões indicadas pelo tribunal a quo para concluir pelo preenchimento da alínea b). O que o apelante alega é que os depoimentos credíveis dos Roc´s não permitem concluir no sentido afirmado pelo tribunal, ou seja, o que põe em causa é a matéria de facto dada como provada e não a subsunção dos factos apurados à previsão da alínea b). No entanto, como se referiu já, o apelante AA  não cumpriu os ónus que impedem sobre os recorrentes que pretendem impugnar a matéria de facto e face à matéria de facto dada como provada, a conclusão expressa na sentença recorrida,  não merece censura.

E também não tem correspondência na matéria de facto a alegação de que o apelante tinha a empresa consolidada, não tinha dividas com vencimento superior a 60 dias, conforme resulta desde logo dos pontos 99 e 100 dos factos provados.

O facto do investimento na Guiné-Bissau ter sido feito ao longo de vários anos, não altera a conclusão do tribunal, pois que a dívida para com a ora insolvente foi aumentando, até ter a expressão que os factos demonstram. À data da declaração de insolvência da A..., em 17/12/2019, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes gerais” (subconta 2111) da contabilidade da insolvente ascendia a 22.819.473,06 €, dos quais, 20.002.860,38 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”. Montante ao qual se tem de somar o saldo devedor de 1.552.274,29 €, inscrito na conta “Outros investimentos financeiros” (subconta 4151). O saldo devedor total da “G..., SARL”, à A... ascendia assim a  21.555.134,67 €.

O caráter ruinoso do negócio resultou também amplamente demonstrado. Além de não ter sido acordado qualquer prazo de amortização da dívida, nem o pagamento de juros moratórios nem remuneratórios, com a A... a assumir o risco do transporte, era absolutamente indiferente para as contas da “G..., SARL”, se a mercadoria chegava ou não em bom estado ao destino, porquanto o valor da mercadoria faturado à saída do porto marítimo da Guiné-Bissau era sempre abatido ao saldo devedor da conta-corrente com a A.... Quer isso dizer que a totalidade das perdas da A... com este negócio da Guiné-Bissau terá sido bem superior ao que está refletido no saldo da conta-corrente entre as duas sociedades, pois ainda haverá que somar o valor da mercadoria que recebeu, não pôde vender e ainda teve de destruir com os inerentes custos.

O apelante atribui a situação de insolvência à atuação de dois dos maiores credores que em ação consertada acordaram votar contra a aprovação do plano apresentado quer no PERE quer na insolvência. Só que o alegado não tem expressão nos factos provados.

Alínea d) do nº 2 do artº 186º: Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.

Ora, também nesta sede, o apelante não põe em causa a análise que o tribunal a quo faz da matéria de facto.

O apelante limita-se a fazer apelo ao seu percurso enquanto empresário, como pessoa muito trabalhadora e empreendedora e à sua visão de um projeto inovador, de grande escala, na Guiné-Bissau. Não se põe em causa que o apelante seja uma pessoa muito empreendedora e trabalhadora, nem o põe em causa a decisão recorrida, desde logo porque não são as caraterísticas pessoais do apelante que estão a ser apreciadas. O apelante será certamente uma pessoa muito trabalhadora e empreendedora, atenta a dimensão que a A... atingiu, empregando dezenas de trabalhadores (192 em 2018 – cfr.facto 62) e movimentando milhões de euros (com um volume de negócios de 129.062.741,41 – cfr.facto 56)  contudo, na ânsia de criar novas oportunidades de negócio, endividou a A... em prol da G.... Esta é a realidade! Como se afirmou na sentença recorrida a A... praticamente não recebeu contrapartidas pelos bens cuja propriedade transferiu para a “G..., SARL”, ou, pelo menos, não existiu correspetividade entre a prestação da A... e a “contraprestação” da “G..., SARL”.

Alega ainda o apelante que o tribunal a quo se fundamentou nos mesmos factos para preencher as diversas alíneas do nº 2 do artº 186º, mas não é verdade. Se bem que relativamente à alínea d), o tribunal tenha feito apelo a parte dos factos já referidos a propósito da alínea b), considerou ainda outra factualidade. O tribunal subsumiu a factualidade apurada à alínea d) do nº 2, com base em três conjuntos de factos. Assim, para além da factualidade referida a propósito da  alínea b) o tribunal a quo assentou a qualificação jurídica na seguinte factualidade:

.O Requerido AA constituiu a uma nova sociedade por quotas, denominada “J... – Unipessoal, Lda.”, com o mesmo objeto social da A..., alguns dias antes da A... ter requerido um plano de revitalização. A sociedade foi constituída em 10/05/2019, e o PER foi requerido seis dias depois, em 16/05/2019.

.Não obstante a nova sociedade ter como único sócio e gerente de direito EE, companheira de há 19 anos do Requerido AA, todas as decisões relativas à administração e gestão da sociedade eram tomadas exclusivamente pelo Requerido AA, cabendo a ele a negociação de todos os contratos celebrados pela sociedade e definindo a sua estratégia empresarial. Ao mesmo tempo que decorriam as negociações com os credores com vista à aprovação do plano de revitalização apresentado pela A..., o Requerido AA estava a negociar com os trabalhadores, fornecedores, parceiros comerciais, e clientes da A..., a transferência dos seus contratos para a nova sociedade, que agora se denominava “I..., Unipessoal, Lda.”.

.Conforme o Requerido AA já antevia, o PER foi declarado encerrado por impossibilidade de alcançar um acordo e foi determinada a abertura do processo de insolvência em 13/11/2019.

.Citada para o processo de insolvência, a A... não se opôs à insolvência e propôs-se apresentar um plano de insolvência. Mais requereu que a administração da massa insolvente fosse atribuída ao Requerido AA.

.Em 17/12/2019, foi proferida sentença a declarar a insolvência da sociedade A..., cabendo a administração da massa insolvente ao Requerido AA, nos termos do disposto nos arts. 224.º, 226.º, e 229.º, todos do CIRE. Ao Administrador da Insolvência nomeado foram atribuídas funções de fiscalização.

.Assim, o Requerido AA administrou a massa insolvente da A... até à data da realização da Assembleia de Credores, em 16/06/2020, na qual foi decidido o encerramento da atividade e a imediata liquidação do ativo da insolvente.

.Mas, quando ocorreu a Assembleia de Credores, já o Requerido AA tinha assegurado que os trabalhadores da A... transitassem para a “I..., Unipessoal, Lda.”, com novos contratos de trabalho. O mesmo acontecendo com os imóveis que a A... ocupava para a sua sede, escritórios, e as instalações de trabalho, os quais foram cedidos àquela mesma sociedade. Também a frota de veículos pesados de mercadorias detida pela A... em regime de locação operacional, foi transferida para a “I..., Unipessoal, Lda.”, mediante a celebração de novos contratos de locação operacional com a entidade locadora. De igual modo, os fornecedores e clientes da A... do sector do transporte rodoviário de cereais e oleaginosas, celebraram novos contratos com a “I..., Unipessoal, Lda.”

Conclui assim a sentença recorrida que:

Todo o negócio de transporte rodoviário de cereais e oleaginosas da A... foi transferido para a sociedade “I..., Unipessoal, Lda.”, entre a data da propositura do PERE e a realização da Assembleia de Credores no processo de insolvência.

Durante esse período de pouco mais de um ano, e ainda durante as negociações com os credores no âmbito do PERE, o Requerido AA exerceu os seus poderes de administração da A... com o propósito de transferir o valor da empresa para a nova sociedade que acabara de constituir, a “I..., Unipessoal, Lda.”.

Em resultado da administração do Requerido AA durante esse período, a A... – até então na plenitude da sua actividade – viu-se despojada da sua sede e instalações de trabalho, deixando de ter trabalhadores, veículos de transporte de mercadorias, fornecedores e clientes, deixando assim de ter  qualquer valor enquanto empresa, não tendo sido sequer indemnizada das benfeitorias que realizou no edifício da sede e escritórios, e no parque de estacionamento, dos imóveis que ocupava em regime de comodato, e que ascenderam a um total de 207.6256,68 € (cfr. pontos 5. e 6. da matéria de facto).

E sobre as transcritas factualidade e conclusões, que demonstram com exuberância o preenchimento da alínea d), o apelante nada diz.

Por último, a sentença recorrida alicerça ainda o preenchimento da alínea d) noutro conjunto de factos: a compra de um determinado equipamento por parte da A..., quando já se antevia uma situação de insolvência iminente. Assim, a “G..., SARL”, continuou a receber máquinas novas da “A..., Unipessoal, Lda.”, já depois de esta ter sido declarada insolvente. Designadamente, em Maio de 2020, foi entregue na Guiné-Bissau uma máquina de lavar, desinfestar, calibrar e embalar batatas que a “A..., Unipessoal, Lda.”, tinha comprado a uma empresa chinesa antes da declaração de insolvência (pontos 107 e 108), o que também constitui disposição dos bens da devedora porque comprados por esta, em proveito de terceiros. E também sobre esta factualidade, o apelante nada diz, focando a sua argumentação nas sua qualidades e no projeto que tinha, de grandes dimensões,  para a G....

            O apelante AA insurge-se ainda contra a decisão recorrida por não ter considerado que pagou aos credores a quantia de 14.000.000,00 por sua livre iniciativa.

Mais uma vez o apelante faz referência a factos que não foram dados como provados. Na sentença recorrida apenas foi dado como provado no ponto 121 a 123  que a partir de 2021 (já depois de ter sido declarada a insolvência da A...) e ao longo dos últimos três anos, o requerido AA negociou com alguns credores da insolvência da A..., a satisfação faseada dos seus créditos mediante a prestação de serviços de transporte a preços reduzidos por parte da I..., Lda., assim como tem feito pagamentos de dinheiro por conta dessas dívidas, mas sem que tenha sido dado como provado qualquer montante concreto.

Esta factualidade não afasta o preenchimento da alínea d) do nº 2 do artº 186º.

            Não merece, consequentemente,  censura a apreciação efetuada na sentença recorrida quando considera preenchida a previsão da alínea d) do nº 2 do artº 186º do CIRE.

Alínea e) do nº 2 do artº 186º: Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa.

Na conclusão EEE) o apelante vem se insurgir quanto à integração dos factos na alínea e) do nº 2 do artº 186º. Trata-se certamente de um lapso porque a sentença recorrida não entendeu encontrar-se preenchida esta alínea.

Alínea h) - Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

Entende o apelante que não lhe pode ser imputado o preenchimento desta alínea porque:

.Não tem formação a nível contabilístico, nem tem  formação académica em nenhuma área;

. A questão contabilística nunca foi objeto das suas análises, tinha pessoas na contabilidade com formação superior tal como a HH, a II e JJ e tinha o BB como TOC, o qual era empregado da A... a tempo inteiro;

. Nos dois últimos anos as contas foram ainda auditadas pelo ROC, pelo que estava descansado quanto a essa matéria;

. A A... que era sempre credora de IVA, sempre que requeria um reembolso era inspecionada pela AT, ou seja, a A... era auditada pela AT, cerca de duas vezes por ano;

.  Por outro lado, o projeto na Guiné-Bissau era do conhecimento de todos os credores, clientes, banca, seguradoras, fornecedores;

.O Recorrente não se lançou no negocio da Guiné-Bissau como um capricho, ele acreditava piamente no investimento que tinha feito na Guiné-Bissau;

.O Recorrente nunca aceitou que o negocio da G..., podia ser ruinoso para a A..., até porque a A... nunca deixou de pagar a todos os seus credores a tempo e horas ate 60 dias antes da interposição do PERE;

.Se o tribunal a quo tivesse-se analisado as reclamações de créditos, veria que todos os saldos eram recentes;

.A A... não tinha dívidas na praça, não devia ao Estado, não devia a bancos, não devia a credores, tudo de acordo com o depoimento do ROC; pelo que,

.Por todos estes factos não podem ser assacadas responsabilidades ao Recorrente por irregularidades na contabilidade .

O apelante AA não nega que as quantias em dívida pela L... não estavam devidamente refletidas em imparidades, o que nega é que tenha tido responsabilidade nesse processo, uma vez que não é contabilista, não tendo conhecimentos de contabilidade, tendo apenas o 12º ano.

Também o apelante BB veio pôr em causa a subsunção da sua conduta à previsão da alínea h), alegando, em síntese, que:

. a responsabilidade pelo não reconhecimento como imparidade de dívidas de clientes é do órgão de gestão;

. a dívida da G... não pode ser reconhecida como imparidade para efeitos fiscais, porque as sociedades G... e A... são relacionadas, uma vez que têm o mesmo sócio-gerente (artº 28-B, nº 3, alíneas c) e d) do CIRC e NCRF 5 (definições, parágrafos 8 a 10) e porque o artº 41º do CIRC exige a existência de um processo de execução ou de insolvência que, no caso, inexistia;

. as perdas por imparidade não são um elemento fulcral na análise das sociedades, não sendo unânime a reação do mercado às perdas por  imparidade, não competindo assim ao TOC o seu reconhecimento;

. para ser considerada imparidade teria de ter havido um esforço de cobrança que não houve e face ao envio de mercadoria, não havia sinais de incobrabilidade.

. o tribunal não teve em atenção que o apelante aconselhou o sócio gerente a efetuar provisões e igualmente ignorou  que o recorrente igualmente peticionou ao gerente que colocasse a participação da G... em nome da A..., não obstante dar tal facto como provado, o que é demostrativo  da sua falta de dolo ou culpa grave, sendo que o tribunal a quo ao imputar ao recorrente comportamento doloso e com culpa grave e ao referir que o seu grau de culpa foi médio/baixo, incorreu numa  numa clara contradição da sentença.

. não há nexo de causalidade entre o não reconhecimento das imparidades e criação ou agravamento da situação de insolvência, pelo que a sentença não deveria ter dado como preenchida a previsão da alínea g);

Vejamos:

Na sentença recorrida entendeu-se que as perdas por imparidade em créditos reconhecidas nos dados da contabilidade de 2015 a 2018 não refletiam o risco de cobrança duvidosa dos créditos sobre a “G..., SARL”, constituindo tal omissão uma irregularidade contabilística censurável, por omitir  a real situação financeira da insolvente.

Assim, comecemos por analisar se, conforme defende o apelante BB, os créditos da G... não podiam ser reconhecidos em perdas por imparidade, desde logo porque não se subsumem a qualquer das alíneas do artº 28º B do CIRC.

Só poderão estar em causa os factos praticados entre 2016 e 2018, atenta a limitação temporal imposta pelo nº 1 do artº 186º.

Preceitua o nº 1 do artº 28º do CIRC,  sob a epígrafe “Perdas por imparidade em créditos”:

1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

Ora, a sentença recorrida, embora se tenha referido ao disposto nas alíneas a) a c) do nº 1 do artº 28º-B do CIRC, não subsumiu os créditos que a insolvente detinha sobre a L..., a qualquer das suas alíneas, apenas lhes fazendo referência como sendo um dos critérios possíveis para definir o risco de cobrança de um crédito, assinalando que não existe um critério único.

Ora, desde logo,  uma dívida pode ser reconhecida como uma perda por imparidade sem que a mesma seja reconhecida como tal também para efeitos de dedução fiscal. O artigo 28º B do CIRC limita-se a definir quais são as perdas por imparidade em dívidas a receber de clientes que podem ser deduzidas ao lucro tributável.

Como resulta da sentença recorrida, a conclusão de que a dívida da L... deveria ter sido reconhecida como perda por imparidade em termos substancialmente diferentes da que consta na contabilidade da insolvente nos anos de 2015 a 2018, não tem por fundamento qualquer das alíneas do nº 1 do artº 28º - B do CIRC, mas sim a Norma de Contabilidade e Relato Financeiro 12, parágrafos 4, 5, e 29, e a Norma de Contabilidade e Relato Financeiro 27, parágrafos 23 e 24, alíneas a), c), e f), as quais constituem um dos instrumentos do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo DL 158/2009, de 13 de julho (o Aviso n.º 15652/2009, de 7 de setembro homologou a estrutura Conceptual do Sistema de Normalização Contabilística).

Assim, o alegado pelo apelante relativamente ao não preenchimento dos créditos sobre a L..., dos pressupostos exigidos pelo artº 28º-B, nº 1 e 3 e 41º  do CIRC, - conclusões  f) e g) é irrelevante -  uma vez que a sentença recorrida não se fundamenta nos referidos preceitos legais para considerar que os créditos deviam ter sido  reconhecidos como imparidades. A sentença recorrida nunca afirma que as imparidades que entendia dever ser reconhecidas, tinham relevância fiscal, podendo ser deduzidas ao lucro tributável. E consequentemente, a sentença recorrida ao não indicar qual das alíneas do nº 1 do artº 28º B que considera aplicável, não viola qualquer dever de fundamentação, como vem arguido pelo apelante.

Note-se que a falta de fundamentação que conduz à nulidade da sentença é apenas a total ausência de fundamentação e não também a fundamentação deficiente, sendo que, no caso, a sentença recorrida não enferma de qualquer deficiência, explicando, ao longo de várias páginas,  porque razão considerou que a contabilidade da insolvente não refletia a real situação financeira da mesma, fazendo menção aos factos provados e ao seu enquadramento jurídico.

No entender do apelante BB o crédito sobre a L... encontrava-se perfeitamente espelhado na contabilidade, fazendo apelo a um excerto do depoimento prestado pelo Administrador da Insolvência, mas sem que daí tenha retirado  quaisquer consequências, em termos de alteração da matéria de facto.

O apelante, com o devido respeito,  “mistura” o recurso relativamente ao direito aplicado com o recurso da matéria de facto. Primeiramente, o recorrente deve impugnar a matéria de facto que considera incorretamente julgada e só depois impugnar o enquadramento jurídico efetuado, sendo que no âmbito do enquadramento jurídico o que está em causa é a interpretação das normas jurídicas e o preenchimento das suas previsões, tendo em conta a factualidade já fixada ou que deverá ser fixada pela Relação, em resultado da impugnação.

O recorrente fundamenta-se em matéria de facto que não foi aditada -  alegada verificação da atividade da G... in loco pelo apelante, para se certificar da existência dos meios de produção - e em matéria de facto que considera não provada, mas cuja inclusão nos factos provados se manteve (ponto 26 relativo à ausência de cobrança de juros à G...).

Defende também que face ao envio sistemático de mercadorias, não havia sinais de incobrabilidade. Também relativamente a este aspeto, a matéria de facto não permite esta conclusão. Pelo contrário como resulta exuberantemente dos factos dados como provados nos pontos 41 a 46, em que se deu como provado:

41. Verificou-se, contudo, que os produtos hortícolas e frutícolas chegavam a Portugal estragados ou em condições impróprias para o consumo.

42. Grandes quantidades, não concretamente apuradas, de batata doce picada por insectos chegaram podres e tiveram de ser destruídas.

43. Grandes quantidades, não concretamente apuradas, de frutas e legumes deterioraram-se durante o transporte marítimo devido ao mau funcionamento do sistema de refrigeração dos contentores e também tiveram de ser destruídas.

44. A destruição dos produtos estragados ou impróprios para o consumo acarretou novas despesas, as quais foram integralmente suportadas pela “A..., Unipessoal, Lda.”.

45. Os problemas com a conservação dos produtos durante o transporte marítimo para Portugal nunca foram totalmente resolvidos e levaram à perda de várias produções agrícolas ao longo dos anos.

46. As receitas obtidas pela “A..., Unipessoal, Lda.”, com a venda nos mercados nacionais e internacionais dos produtos exportados pela “G..., SARL”, não compensavam os gastos que a sociedade tivera, e continuava a ter, no âmbito da relação comercial que estabelecera com a “G..., SARL

           A imparidade de créditos e a constituição de provisões são situações diferentes,   reguladas por normas de relato contabilístico diferentes. As imparidades pelo Norma Contabilística e de Relato Financeiro 12 e 27 e as provisões pela Norma Contabilística e de Relato Financeiro (doravante designada por NCRF 21).

           A problemática das provisões, passivos contingentes e ativos contingentes merece particular atenção no âmbito da contabilidade, dadas as incertezas e riscos que inevitavelmente rodeiam muitos dos acontecimentos e circunstâncias. Envolve subjetividade, perante conceitos passíveis de diversas interpretações, e fortemente dependentes do julgamento profissional[1].

Provisão é um passivo de momento ou quantia incertos, que deverá ser reconhecida quando, cumulativamente (parágrafo 13 da NCRF 21).

. Uma entidade tenha uma obrigação presente (legal ou construtiva) como resultado de um acontecimento passado;

. Seja provável que seja exigido um exfluxo de recursos que incorporem  benefícios económicos que será necessário para pagar essa obrigação;

. Possa ser feita uma estimativa fiável da quantia dessa obrigação.

De acordo  com o parágrafo 14 da NCRF21, em casos raros não é claro se existe uma obrigação presente. Nesses casos,  presume-se que um acontecimento passado dá origem a uma obrigação presente se, tendo em conta toda a evidência disponível, for mais provável do que não que tal obrigação exista à data do balanço. O uso de estimativas é uma parte essencial da preparação das demonstrações financeiras e não prejudica a sua fiabilidade. Isto é especialmente verdade no caso de provisões, que pela sua natureza são mais incertas do que a maior parte de outros elementos do balanço. Uma entidade pode, normalmente, fazer uma estimativa da obrigação que seja suficientemente fiável para usar ao reconhecer uma provisão (parágrafo 24).

Já no que se refere à mensuração, a quantia reconhecida como uma provisão deve ser a melhor estimativa do dispêndio exigido para liquidar a obrigação presente à data de relato (parágrafo 35).

O relato financeiro das entidades (privadas ou públicas) tem como objetivo proporcionar informação que seja útil para os múltiplos utilizadores das demonstrações financeiras (DF) na tomada de decisão.

As  provisões são reconhecidas no balanço, na demonstração de resultados e nas notas anexas .

Os factos contingentes que podem originar o reconhecimento de provisões para riscos e encargos ou a divulgação de passivos contingentes são: litígios e reclamações, garantias pós-venda, avales e garantias de terceiros, pensões, indemnizações ao pessoal, impostos, pré-aquisições empresariais, reestruturações empresariais, questões ambientais, factoring, expropriações e subsídios estatais (cfr. se defende no trabalho citado na nota de rodapé 1, que temos vindo a seguir de perto).

Uma entidade pode, normalmente, fazer uma estimativa da obrigação que seja suficientemente fiável para usar e reconhecer uma provisão. Quando tal não seja possível, existe um passivo que não pode ser reconhecido, sendo divulgado como um passivo contingente.

E não se trata de fazer refletir no passivo, somente na data em que a dívida surgiu, mas sim ao longo dos anos enquanto a mesma não se encontrar definitivamente resolvida. A necessidade de provisões e a sua revisão é efetuada à data de cada balanço e ajustada para refletir a melhor estimativa corrente. Não se esgota num único balanço e demonstração de resultados, pelo que é um dever que se mantêm nos exercícios subsequentes, enquanto se mantiver a situação que desencadeou a constituição de provisões.

Já as imparidades dizem respeito a dívidas a receber. Como se refere no Parecer técnico PT27250 - novembro de 2022, acessível https://www.occ.pt/pt-pt/noticias/imparidades-1, “Em termos contabilísticos, as dívidas a receber, nomeadamente dívidas de clientes ou outros devedores, têm o seu tratamento contabilístico previsto na norma contabilística e de relato financeiro (NRF) n.º 27 - Instrumentos financeiros, estando definidas como ativos financeiros (parágrafo 5).

Em termos de mensuração, os ativos financeiros com maturidade definida, ou seja, com um prazo de vencimento definido à partida, devem ser registados ao custo (ou ao custo amortizado) menos perdas por imparidade, conforme previsto no parágrafo 12 e 16a) da NCRF 27.

Como exemplo de ativos financeiros com maturidade definida, a NCRF 27 refere as dívidas a receber de clientes, que deverão ser mensuradas ao custo (ou custo amortizado) menos perdas por imparidade.

O reconhecimento das perdas por imparidade destas dívidas a receber de clientes deve ser avaliada em cada data de relato, ou seja, no final do período contabilístico. No entanto, este reconhecimento de perdas por imparidade apenas deve ser efetuado se existir uma evidência objetiva de um evento de perda, conforme referido no parágrafo 24 da NCRF

Quando existam dúvidas na cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes deve ser reconhecida uma perda por imparidade, nos termos referidos de seguida.

No parágrafo 25, a NCRF 27 estabelece alguns tipos de evidências objetivas de eventos de perda para se verificar se existe a necessidade, ou não, do reconhecimento da perda de imparidade, como por exemplo: significativa dificuldade financeira do devedor; não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida no prazo estabelecido contratualmente; probabilidade de o devedor entrar em falência (Insolvência); e outras.

Com a verificação de evidências objetivas da existência destes eventos de perda, a entidade passa a reconhecer a perda por imparidade, reduzindo, ou anulando na totalidade, o valor do ativo.”

Assim, as provisões em suma destinam-se a acautelar o risco de ocorrência no futuro de despesas, pagamentos ou saldos de caixa  que ainda não ocorreram, enquanto as imparidades constituem o reconhecimento de perdas de valor em ativos, no caso pagamentos a receber de clientes, que já deveriam ter ocorrido.       

           Na aplicação do "princípio da prudência” vigente em contabilidade (vg. parágrafo 37 do Aviso 15652/2009), o património deve ser apresentado de forma mais modesta e em contrapartida as despesas de forma mais acentuada. Tal pode ser alcançado por via do registo de perdas por imparidades, e/ou pela constituição de provisões.

           Estando em causa créditos a  receber de cliente que se foram avolumando, com o agravamento de cerca de seis milhões do exercício de 2017 para o exercício de 2018, o que indicava a sua incobrabilidade, afigura-se-nos que o registo contabilístico deveria ter sido efetuado  pela via das imparidades e não pela constituição de provisões, nas Demonstrações Financeiras. Desde 2015, como se afirma na sentença recorrida, que os factos já vinham a indiciar a impossibilidade de recebimento das “vendas” efetuadas à G.... No entanto, tal impossibilidade não estava vertida na contabilidade, o que pode constatar pela comparação dos valores em dívida em cada ano pela L... e o montante reconhecido em cada ano como imparidade.

            Assim (cfr. pontos 138 a 148 da sentença):

 .No final do exercício de 2015, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 19.749.608,60 €.

.Dos quais, 2.578.912,70 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

140. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 31.283,69 €.

141. No final do exercício de 2016, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 19.911.562,06 €.

142. Dos quais, 3.841.247,34 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

143. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 238.267,39 €.

144. No final do exercício de 2017, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 21.368.320,45 €.

145. Dos quais, 3.014.359,72 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

146. Na declaração de Informação Empresarial Simplificada foram registadas perdas por imparidades acumuladas no montante de 1.114.414,53 €.

147. No final do exercício de 2018, o saldo devedor total inscrito na conta “Clientes” da contabilidade da “A..., Unipessoal, Lda.”, ascendia a 30.502.362,02 €.

148. Dos quais, 9.134.885,11 €, correspondiam ao saldo devedor da “G..., SARL”.

149. No anexo das “Demonstrações Financeiras” do exercício de 2018 foram registadas perda por imparidades acumuladas no montante de 2.028.728,61 €.   

            É certo que para que o incumprimento contabilístico ocorra para efeitos da previsão da alínea h) é essencial que as irregularidades verificadas tenham influência na perceção que se possa ter da situação patrimonial e financeira do insolvente, delas resultando o propósito de, designadamente, mediante ocultação de documentos e desrespeito pelas boas práticas contabilísticas, esconder aquela situação patrimonial e financeira (cfr. se defende no AC do TRP de 16.04.2013, proc. 1709/06.0TBPNF-T.P2). Os princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva constantes dos artigos 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa não se bastam com qualquer incumprimento de regras contabilísticas e o comportamento previsto por lei encontra-se exatamente corporizado na exigência de um incumprimento substancial. E é a partir da integração factual nesta categoria conceptual que se retira o preenchimento da facti species e a existência do nexo causal legalmente ficcionado. Caso contrário, poderiam originar-se situações manifestamente desproporcionais e gravosas (ainda conforme se defende no citado acórdão do TRP de 16.04.2013).

O registo dos valores inscritos em contas de clientes que em face de parâmetros objetivos revelam que não serão pagos e como tal devem ser reconhecidos em imparidades, tem repercussão no valor do ativo, diminuindo-o, aumentando o risco do ativo corrente ser inferior ao passivo corrente, gerando questões sobre a continuidade, sendo que este rácio ativo/passivo corrente é um dos indicadores a que as entidades financiadoras conferem relevo, não sendo correto falar que não tem repercussão na imagem da sociedade, como defende o apelante BB.

 

Os termos em que foram reconhecidas as imparidades, em valores muito abaixo da realidade, não é um elemento de pouca importância para todos os que contrataram com a insolvente e como tal mostra-se preenchida a previsão da alínea h), considerando-se que desde 2016, a contabilidade não refletia a realidade. Ainda que assim não se entendesse, por se considerar que não era ainda expressiva, a diferença entre o valor lançado em imparidades e as reais imparidades, sempre ter-se-ia que concluir, no mínimo,  que assim era desde 2018.

Da responsabilidade do gerente da insolvente, o apelante AA

Quando o comerciante é uma sociedade comercial, a sua gestão é entregue a gerentes ou administradores da sociedade, ao quais incumbe observar, entre outros, deveres de cuidado no exercício das suas funções, empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criteriosos e ordenado, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais (cfr. se defende no Ac. do TRE de 09.02.2023, processo 1611/21.6T8STR-B.E1).

Os deveres de manter uma contabilidade organizada, prestação de contas e sua publicação, que visam a proteção dos credores societários, incumbem aos representantes legais da sociedade, como resulta dos arts. 117°, n.º 1, do Código do IRC e dos art.ºs 64°e 65°do CSC.

É aos gerentes e administradores que em cada ano compete relatar e apresentar as contas da sociedade (cfr. art. 65º do CSC) pelo que, com esse fim, sobre eles recai o dever de diligenciar e assegurar pela organização e atualização da informação contida na contabilidade da insolvente através da contratação de profissional habilitado (contabilista certificado) e da prestação ao mesmo da documentação de suporte comprovativa de todas as operações/transações da sociedade, do valor dos custos/dívidas e dos proveitos por elas gerados, dos pagamentos realizados, dos recebimentos obtidos, e que, para além da tributação fiscal do incremento patrimonial que por elas seja gerado, permita identificar os bens e direitos que integram o ativo da empresa, os devedores e os seus credores, e os fluxos em cada momento gerados com as operações realizadas e a causa dos mesmos (cfr. se defende no Ac. do TRL de 16.01.2024, processo 18172/20.6T8LSB-B.L1-1).

Os gerentes e os administradores das sociedades assumem com a aceitação do cargo de gestão que têm a competência e conhecimento para o exercício dessa função, devendo exercê-la, como se referiu, com o padrão de diligência de um gestor criterioso e ordenado. Consequentemente, o apelante não se pode escudar em que não tem conhecimentos de contabilidade e que só tem o 12º ano para não ser responsabilizado.

Da responsabilidade do contabilista certificado, o apelante BB

Como se referiu supra, verificada uma das previsões das diversas alíneas do nº 2 do artº 186º, a insolvência tem de qualificar-se como culposa, consagrando a lei uma presunção de culpa e de nexo de causalidade inilidível.

No entanto, se assim é relativamente aos administradores de direito e de facto, já não o é assim, como se referiu também já supra, relativamente às demais pessoas que podem ser afetadas pela qualificação, designadamente os contabilistas certificados e os revisores oficiais de contas, pelo há que apreciar se os factos apurados permitem que a atuação do apelante seja considerada como desenvolvida com culpa grave ou dolo e ainda se se verifica a existência de nexo de causalidade entre essa atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência (artº 186º, nº 1).

Na sentença recorrida entendeu-se que, sendo o Requerido contabilista, sabia que estava obrigado a reconhecer as perdas por imparidade de créditos de cobrança duvidosa, sendo que os créditos da “G..., SARL”, se encontravam claramente nessa situação. O Requerido podia e devia ter determinado a sua ação em conformidade com esse dever, e não o fazendo, agiu com culpa dolosa.

O apelante BB vem defender que o reconhecimento de imparidades é um ato de gestão e como tal não lhe pode ser imputado  a título de dolo ou culpa grave. Entende também o apelante que o tribunal não pode censurar o não reconhecimento de imparidades, porque, como foi dado como provado no ponto 136, aconselhou o sócio gerente da A... a constituir provisões e a entrada da A... no capital social da G... e a sentença recorrida desconsiderou estes factos.

Já se referiu que a incobrabilidade de créditos deve ser tratada como imparidade e não como provisão.

Dispunha o artº , nºs 1 e 3 do Estatuto da Ordem dos Técnicos de Contas/contabilistas certificados:

1 - A inscrição na Ordem permite o exercício, em exclusivo, das seguintes atividades:

a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades, públicas ou privadas, que possuam ou que devam possuir contabilidade organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística;

b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior;

c) Assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respetivas demonstrações financeiras e declarações fiscais, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Ordem, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respetivos órgãos.

3 - Entende-se por regularidade técnica, para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1, a execução da contabilidade nos termos das disposições previstas nos normativos aplicáveis, tendo por suporte os documentos e as informações fornecidos pelo órgão de gestão ou pelo empresário, e as decisões do profissional no âmbito contabilístico, com vista à obtenção de uma imagem fiel e verdadeira da realidade patrimonial da empresa, bem como o envio para as entidades públicas competentes, nos termos legalmente definidos, da informação contabilística e fiscal definida na legislação em vigor.

           

Assim, a  Lei conferia aos TOC/Contabilistas Certificados a exclusividade do exercício, além de outras, da função de planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade. Executar a contabilidade  não respeita apenas à organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, classificação de documentos e seu lançamento nos respetivos livros contabilísticos e no sistema informático e apuramento de impostos a pagar, mas também projetar e estabelecer medidas que, do mesmo passo, assegurem que as entidades sujeitas aos impostos sobre rendimentos cumpram as suas obrigações em matéria de execução da contabilidade e nas suas relações com a Administração Fiscal e que a contabilidade da empresa, reflita a realidade  patrimonial da mesma.

Ainda que a decisão do reconhecimento de uma dívida de cliente como imparidade seja um ato de gestão, como defende o apelante, tal não desobriga o contabilista certificado do dever de aconselhamento do órgão de gestão para que tal reconhecimento seja efetuado quando estão reunidas as condições para tal. Incumbia ao apelante, enquanto contabilista da A..., aconselhar o seu gerente, de modo a que a contabilidade refletisse de modo claro, a real situação financeira da empresa, em cada ano e logo que surgiu o facto com relevância contabilística.

A sentença recorrida, embora entendendo que os créditos deveriam ter sido reconhecidos como imparidades (e não como provisões), não deixou de dar relevo ao facto do apelante BB ter aconselhado o gerente da insolvente a constituir provisões e a participar no capital social da G.... A sentença recorrida valorou a circunstância do apelante ter aconselhado o gerente a constituir provisões, assim como a circunstância do apelante nunca ter exercido funções de gerente, para não condenar o apelante nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 189º,  ou seja, a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, o que considerou que seria violador do princípio da proporcionalidade.

No entanto, o conselho para a constituição de provisões dado pelo apelante, não cumpre a necessidade de refletir nas demonstrações financeiras a incobrabilidade de créditos. Mas ainda que assim não se entendesse, no caso concreto, não se afigura que  as provisões aconselhadas pudessem evidenciar a  real situação da insolvente, desde logo, porque como foi  dado como provado no ponto 156, o apelante BB, juntamente com o apelante AA, emitiu uma declaração, assegurando que os créditos da G... seriam recuperáveis em três anos. Efetivamente, contra todas as evidências objetivas que foram referidas na sentença, na sequência da exigência efetuada pelo Requerido CC que se encontrava incumbido de auditar as contas da insolvente relativamente ao exercício de 2018, como condição para o emissão de uma certificação legal de contas sem reservas, o apelante BB subscreveu uma declaração, em 02.05.2019, juntamente com o sócio gerente,  onde afirmou que os créditos sobre a “G..., SARL”, eram totalmente recuperáveis. Ora, se eram recuperáveis, não se vê como as provisões a constituir poderiam expressar a real  situação financeira da A....

Entendemos assim que a falta de reconhecimento na contabilidade de imparidades, não pode  deixar de lhe ser imputado a título de dolo ou, pelo menos, culpa grave.

E relativamente ao nexo de causalidade?

Na sentença recorrida entendeu-se que a conduta do Requerido foi causal do agravamento da situação de insolvência da A... na medida em que os dados da contabilidade são um dos poucos elementos objetivos que permitem aos financiadores avaliar a situação patrimonial e financeira das empresas antes de tomarem as decisões sobre a concessão de crédito, sendo que, a atuação do Requerido levou os credores a concederem crédito à A... ao longo de vários anos, no pressuposto errado de que os créditos sobre a “G..., SARL”, eram recuperáveis.

O raciocínio, obviamente correto em termos teóricos, carece, todavia, de demonstração prática.

É certo que, em tese, que, quando a contabilidade não retrata a realidade de uma empresa, aqueles que com ela entram em relação podem não se aperceber da sua real situação financeira e como tal não se acautelarem devidamente, continuando a conceder crédito à empresa que esta não vai pagar e a engrossar o seu passivo. É inquestionável que os dados da contabilidade são de extrema relevância para permitir aos financiadores avaliar a situação patrimonial e financeira das empresas antes de tomarem decisões.

Só que tal não é uma verdade absoluta, carecendo de ser demonstrando. Não é possível estabelecer o mencionado nexo de causalidade sem o apuramento de factos que lhe confiram o necessário substrato. E a matéria de facto é omissa relativamente a tal factualidade, não se referindo às entidades financiadoras, designadamente à D....

            O credor que requereu que o apelante, assim como o ROC que procedeu à auditoria da insolvente, relativamente ao exercício de 2018, fossem abrangidos pela qualificação da insolvente como culposa, foi a D... (tendo aderido a este pedido, posteriormente, a credora B...).

            No seu requerimento, a D... apenas se refere às demonstrações de resultados e ao relatório de gestão relativos ao exercício de 2018, de que tomou conhecimento em maio de 2019, invocando que estas contas não revelavam o desequilíbrio financeiro do qual pudesse a curto prazo resultar a situação de insolvência da A.... Mas não alegou  que, em consequência do não reflexo nas contas do desequilíbrio financeiro, tivesse concedido crédito à insolvente, agravando, deste modo, a sua situação de insolvência. A D... insurge-se contra o lançamento na conta de clientes das vendas à G... de tratores, máquinas e equipamentos que, em seu entender, deveriam estar lançadas na conta de investimentos (artº 28º), porquanto, na verdade, a A... não estaria a vender mercadorias relacionadas com o seu objeto social, estando antes a utilizar os seus meios financeiros e a descapitalizar-se para “investir” numa outra empresa, detida pelo seu sócio-gerente a 100% (artº 29º); por estar contabilizado na rúbrica de “Outros Investimentos Financeiros”, 1.254.427,08 € como valor da participação de capital da G...  (cfr. pág. 23 do documento nº 4 ora junto), quando não o deveria estar porque a G... não era participada pela A... (artºs 37º e 38º) e que foram emitidas faturas falsas porque não correspondiam a efetivas vendas que não podiam ter deixado de ser detetadas pelo contabilista certificado e pelo ROC (artºs 51º a 68º), mas não retira do alegado nos artigos 28º e 29ºe 37º e 38º quaisquer consequências.  

Ora, tendo a D... tido conhecimento das demonstrações de resultados e do relatório de gestão em maio de 2019 e tendo a ora insolvente se apresentado a um PER precisamente no mesmo mês e ano, no dia 16, vindo posteriormente a ser declarada insolvente, não se vê que tenham sido celebrados nesse período de tempo contratos com a insolvente, nem que a D... tenha sido influenciada pelos referidos documentos. Aliás, tal não deixou de ser reconhecido relativamente ao ROC na sentença recorrida, onde se consignou que “No tocante ao nexo de causalidade, entendemos que a certificação legal de contas do Requerido CC não foi causal da criação ou agravamento da situação de insolvência da A.... Isto porque, apenas seis dias após a emissão do documento, a A... deliberou requerer um PERE, o qual, não tendo sido aprovado, precipitou o processo de insolvência. Não consta que o passivo da A... tenha aumentado de sobremaneira nesse entretempo por via de novos financiamentos de instituições bancárias ou financeiras, ou de fornecedores. Considerando o que estava a ver a lume sobre as relações entre a A... e a “G..., SARL”, não resultaram indícios de que a certificação legal de contas tenha influído na percepção dos credores sobre a situação patrimonial e financeira da A....”

Impõe-se assim a revogação da sentença relativamente ao apelante BB, por falta de demonstração do nexo de causalidade, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo apelante.

Da violação do artº 186º, nº 3, alínea a) pelo apelante AA

Na sentença recorrida entendeu-se que o apelante tinha violado o dever de apresentação à insolvência pelas seguintes razões:

“Nos termos do art. 186.º, n.º 3, al. a) do CIRE, presume-se a existência de culpa grave quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

O artigo 18.º, n.º 1 do CIRE estabelece o dever de o devedor requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.

Nos termos do art. 3.º, n.º 1 do CIRE, “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

De acordo com a doutrina e jurisprudência dominantes, a impossibilidade de cumprimento, que caracteriza a insolvência, não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a capacidade de dar satisfação a obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.

Mas o n.º 3 do art. 18.º vem estabelecer uma particularidade que não é de somenos: se o devedor for titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do n.º 1 do art. 20.º do CIRE, a saber:

- dívidas tributárias;

- dívidas de contribuições e quotizações para a segurança social;

- dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;

- dívidas de rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.

Vejamos, então, se a sociedade “A..., Lda.”, tinha algum destes tipos de dívidas, e a partir de quando.

Pois bem, o processo de insolvência da A... foi instaurado em 13/11/2019, na sequência do encerramento de um processo especial de revitalização.

A sociedade foi declarada insolvente em 16/12/2019.

Ficou provado que, à data da declaração da insolvência, a sociedade tinha dívidas à Autoridade Tributária Aduaneira por imposto de IVA, que ascendiam a 2276308,49 €. Estas dívidas reportavam-se ao período de tributação de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, e 2018.

O total das dívidas da sociedade era de 59184294,33 €.

Face ao exposto, imediatamente se constata que a sociedade tinha dívidas tributárias. Mais se constata que as dívidas tributárias já vinham de há seis anos.

Assim, por força do art. 18.º, n.º 3 do CIRE, presume-se iniludivelmente que o Requerido AA passou a ter conhecimento da situação de insolvência da sociedade a partir do ano de 2013, ou seja, seis anos antes de ser declarada a insolvência da sociedade.

Afigurava-se de forma óbvia e evidente a um gerente diligente o conhecimento da situação de impossibilidade generalizada de cumprimento das obrigações vencidas por parte) da sociedade, tornando imperativa a apresentação à insolvência nos termos dos arts. 18.º, n.ºs 1 e 3, e 20.º, n.º 1, al. g), ambos do CIRE.

Por conseguinte, é forçoso concluir que o Requerido AA incumpriu o dever de requerer a insolvência da sociedade “A..., Lda.”, nos termos dos arts. 18.º, n.ºs 1 e 3, e 20.º, n.º 1, al. g), ambos do CIRE, pelo que se tem por verificada a situação prevista no art. 186.º, n.º 3, al. a), em termos de fundar a qualificação da insolvência como culposa.”

O apelante vem dizer que o tribunal não teve em consideração que  foi absolvido do crime de abuso de confiança fiscal, com sentença transitada em julgado, exatamente pela falta de pagamento dos IVA(s) supra referidos, a qual foi junta a estes autos no dia 07/09/2023. Os IVA(s) em causa diziam respeito a transações comunitárias, as quais estão isentas de IVA e por essa razão não havia lugar ao pagamento do mesmo, pelo que se pode concluir pela violação do dever de apresentação à insolvência.

Apreciando:

O nº 3 do artº 186º apenas contém uma presunção da existência de culpa grave, que pode ser ilidida mediante prova do contrário e não contém uma presunção de causalidade. A presunção de “culpa grave” do nº 3 do artigo 186º não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Mas, como se referiu supra, a propósito da impugnação dos pontos 99 e 100, não resulta da sentença na qual o apelante se baseia que não era devido IVA por se tratar de transações comunitárias.  O aí arguido, ora apelante, foi absolvido por falta do elemento subjetivo do tipo de crime.

Aliás, quando a apelante recorreu ao PER, no documento que anexou ao requerimento inicial, já reconhecia uma dívida à autoridade tributária no valor de 2.176.031,80 e uma dívida à Segurança Social de contribuições, em 31.12.2018, no montante de 316.799,11, juros e custas no montante de 22.670,47 (cfr. pag 9 da proposta de revitalização datada de 13 de maio de 2019), sendo que como resulta do parecer proferido pelo Sr. AJP,  nos termos do artº 17º G, nº 4, as dívidas por impostos e contribuições para a Segurança Social aumentaram no ano de 2019, advindo a  dívida por contribuições à Segurança Social já desde o ano de 2016. Não se mostra assim ilidida a presunção.

E o nexo de causalidade igualmente se mostra demonstrado, tendo em conta o aumento da dívida da G... perante a insolvente que em 2015 era de 2.578.012,00 (ponto 139) e em 2018, era de 9.138.885,11 (ponto 148 ) e à data da declaração da insolvência – novembro de 2019, atingia já o valor de 20.002.860,38 (ponto 94), sendo que foi o contínuo financiamento da atividade da G... à custa da insolvente, sem que esta proporcionasse o retorno esperado, a causa das dificuldades económicas que sobrevieram e que criaram, ou no mínimo agravaram, a situação de insolvência. Se o gerente da insolvente tivesse apresentado a A... à insolvência em data anterior, a situação de insolvência não se teria agravado como se agravou.

O apelante tenta demonstrar que a situação na G... não foi causal da situação da insolvência, mas sem razão. Aliás, quando recorreu ao PER,  a apelante apontou os investimentos feitos na G... como os causadores da situação de insolvência iminente em que a sociedade se encontrava em maio de 2019 (cfr. requerimento inicial).

Assim, não assiste razão ao apelante na crítica que tece à sentença recorrida.

Dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa relativamente ao apelante AA -  violação do princípio da proporcionalidade

Não suscita dúvidas que a  determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.

São critérios para a fixação da duração do período de inibição das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa a gravidade da conduta, incluindo o número de circunstâncias qualificadoras preenchidas, as consequências do comportamento, o grau de culpa e o contributo para a situação de insolvência, nomeadamente se determinou diretamente a situação de insolvência ou se apenas agravou a mesma (cfr. se defende no Ac. do TRL de 28.02.2023, proc. 5920/21.6T8LSB-F.L1-1).

Na ponderação efetuada, a sentença recorrida condenou o apelante AA, a título de culpa dolosa;

- Inibido para administrar patrimónios de terceiros, por si ou por interposta pessoa, pelo período de 8 (oito) anos;

- Inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por si ou por interposta pessoa, pelo período de 8 (oito) anos;

-  Determinar a perda de quaisquer créditos do Requerido AA sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente da sociedade e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos;

- Condenar o Requerido AA a indemnizar os credores reconhecidos da sociedade “A..., Lda.”, na totalidade do montante dos créditos não satisfeitos, e até às forças do seu património;

A sentença recorrida entendeu, face à gravidade dos factos provados relativamente ao gerente da insolvente, que estes revelavam  um grau de ilicitude elevado pela quantidade e gravidade dos ilícitos cometidos e pelos prejuízos causados aos credores e aplicou ao apelante um período de inibição de 8 anos. O período de inibição deve situar-se entre 2 e 10 anos (alínea b) do nº 2 do artº 186º).

O apelante entende que a inibição por um período de 8 anos viola o princípio da proporcionalidade; os factos descritos não criaram ou agravaram a situação de insolvência, tendo assentado em motivos alheios a qualquer conduta do Recorrente e nenhuma das atuações do Recorrente revelou dolo ou culpa grave, porquanto nunca nenhuma delas, consciente ou inconscientemente, pretendeu realizar quaisquer atos suscetíveis de criar ou agravar a impossibilidade de cumprimento das obrigações a que estava obrigado, nem denotou qualquer atitude leviana ou indiferente, nem atuou com incúria ou imprudência graves, tendo liquidado posteriormente um montante  aproximado de € 14.000.000,00.

Sobre a necessidade (ou não) da prova da atuação dolosa e do nexo de causalidade já nos pronunciámos a propósito do qualificação da insolvência e da diferença entre o nº 2 e o nº 3 do artº 186º, sendo que o nº 2 do artº 186º não exige a prova do nexo de causalidade, nem do dolo/culpa grave. Provada a materialidade de qualquer das alíneas presume-se de forma inilidível que a insolvência é culposa. Relativamente ao nº 3 presume-se  a culpa grave, mas o nexo de causalidade entre a prática dos factos e a criação ou agravamento da insolvência tem de ser demonstrado, tendo se considerado que se provou o nexo de causalidade e não foi ilidida a presunção de culpa.   
O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três sub-princípios: “princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão ser adotadas medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos) “(cfr. se defende no Ac. do TRE 30.06.2021,  proc.2287/15.3T8STR-E.E1, de onde foi retirado o extrato transcrito).
A sentença recorrida não deixou de aludir aos factos dados como provados nos pontos 121 a 123, relativos à atitude do apelante que a partir de 2021, negociou com alguns credores da insolvência da “A..., Unipessoal, Lda.”, a satisfação faseada dos seus créditos mediante a prestação de serviços de transporte a preços reduzidos por parte da “I..., Lda.”, da qual é gerente de facto, assim como pagamentos em dinheiro por conta das dívidas da A.... No entanto, não pode deixar de se referir que estes pagamentos foram efetuados por uma sociedade e não pelo requerido afetado pela insolvência.

Tendo presente os mencionados princípios e considerando  toda a extensa factualidade, ilustradora da conduta altamente censurável do sócio-gerente da insolvente, preenchedora de diversas alíneas do artº 186º, conduzindo a A... a um estado de insolvência, não só pelo financiamento de outra sociedade que não era sequer participada pela insolvente, como devido a toda a descapitalização da mesma a que procedeu, durante o período em que decorriam as negociações com os credores no âmbito do PER (antes do início do processo de insolvência, portanto),  até à realização da Assembleia de Credores no processo de insolvência, realizada em 16.06.2020, tendo transferido todos os contratos e o património da insolvente para a sociedade “I..., Unipessoal, Lda.”, da qual era gerente de facto, deste modo esvaziando a sociedade insolvente, a medida de inibição aplicada mostra-se  conforme ao princípio da proporcionalidade.

            Sumário:

            (…).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta pelo recorrente AA e procedente a apelação interposta pelo requerido BB e, consequentemente, não o consideram afetado pela qualificação da insolvência como culposa, revogando parcialmente a sentença recorrida.

Custas da apelação do recorrente AA pelo apelante AA.

Custas da apelação do recorrente BB pelos apelados.

Custas em 1ª instância pelo requerido AA.

Coimbra, 8 de outubro de 2024


[1] Provisões, Passivos Contingentes e Ativos Contingentes na ótica empresarial e pública: o caso especial dos Municípios Portugueses, Andrea Libório Neto, Bárbara Borges Friza, Mª Amélia Monteiro e Sónia Silva Barbosa,  acessível em www.occ.pt/dtrab/trabalhos/iicicp/finais_site/82.pdf.