Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
RELATÓRIO
Em Processo Comum Singular do 4º Juízo Criminal de Coimbra, por sentença de 07.07.20, foi o arguido A..., condenado pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artº 152º nº 2 CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução lhe foi suspensa pelo período de 4 anos, com a condição do arguido efectuar tratamento tendo em vista deixar o consumo de bebidas alcoólicas e abster-se de quaisquer actos violentos ( físicos ou psíquicos) em relação à queixosa.
Posteriormente veio o Ministério Público promover a declaração de perda da arma apreendida nos autos.
O Mmº juiz proferiu então o seguinte despacho:
“ Declaro perdida a favor do Estado a arma apreendida nos autos, ao abrigo do disposto no artº 109º nº 1 CP.”.
É do referido despacho, que o arguido veio interpor o presente recurso, dizendo em síntese conclusiva:
“1ª Na douta sentença proferida nos presentes autos pela Juíza da 1ª instância, não foi tomada ou proferida qualquer decisão atinente à arma apreendida a fls.
2ª Apenas com base nas declarações da denunciante/ofendida é feita uma referência - enquanto matéria de facto provada no ponto nº 17 - à arma.
3a Nenhuma testemunha se refere aquela matéria, isto é, à arma.
4a O arguido nega ter proferido as ameaças ali referidas (no ponto 17 - já " mencionado).
5ª Sob a alínea a) da matéria de facto não provada consta que o arguido nunca efectuou, em casa, dois disparos com a arma de fogo de que é detentor em atitudes intimidatórias.
6a Estes factos - o provado do ponto 17 da matéria de facto provada e o não provado da alínea a) da matéria de facto não provada, são contraditórias entre si, ao nível da intenção dum e ao nível da acção doutro.
7a Em obediência ao princípio "in dubio pro reo" pelo menos o ponto 17, na parte referente à arma, não deveria ter sido julgado provado.
8ª A arma pertencente ao arguido é de proveniência lícita.
9ª Tal arma nunca serviu nem esteve destinada a servir para a prática de qualquer facto ilícito típico.
10ª A arma ( de caça) nunca pôs em perigo a segurança das pessoas, nem a moral, nem a ordem pública.
11ª A arma não oferecia risco, muito menos sério risco de ser utilizada para o cometimento de factos ilícitos típicos, os quais de resto, nunca cometeu.
12ª O arguido é pessoa respeitada nomeio social onde vive e no seu certificado do registo criminal nada consta.
13ª A Srª Juíza “ a quo” violou o artº 1º do Código Penal ao pré-definir, sem qualquer prova, um estado de perigosidade do arguido, determinando a perda da sua arma.
14ª A arma em causa nunca constituiu perigo para ninguém e nada nos autos consta que tivesse permitido a Srª Juíza “ a quo” a julgar e decidir em sentido contrário e determinar a apreensão da arma
15ª A arma deve, por todo o exposto, ser entregue ao Recorrente/Arguido.
16ª Para além do art° 10 do Código Penal, a Srª Juíza violou também o disposto no art° 3740 do C.P.P. já que não fundamentou a razão de ser da decisão que determinou a perda da arma pertencente ao arguido a favor do Estado.
O MP na 1ª instância respondeu à motivação concluindo que ao recurso deve ser negado provimento.
Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto é de parecer que o recurso deverá improceder.
Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º nº 2 CPP.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Ora como emerge das conclusões da motivação, as questões suscitadas traduzem-se em saber se havia fundamento para se poder decretar a perda da arma a favor do Estado e se o despacho objecto de impugnação está devidamente fundamentado.
Comecemos por esta última questão, já que, se a mesma proceder resultará prejudicada a apreciação da primeira.
Ora, como é por demais sabido por todos os operadores do direito, os actos decisórios são sempre fundamentados, constituindo um imperativo constitucional (art° 205°, n° 1, da CRP), com consagração no art° 97°, n° 4, do CPP .
Na verdade a decisão assenta no chamado silogismo judiciário, o qual tem como premissa maior as razões de direito, como premissa menor os elementos de facto e como conclusão a decisão.
Com efeito, a necessidade de fundamentação e motivação dos actos decisórios destina-se a conferir força pública e inequívoca aos mesmos e a permitir a sua impugnação quando esta for legalmente admissível, ou, como refere Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, II, pág. 19. " Permite o controlo da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autocontrolo".
Desprovido de qualquer fundamentação, o despacho recorrido surge quase como "puro arbítrio" do julgador, dificultando ao recorrente a sua impugnação, e ao tribunal superior, a apreciação da sua bondade.
Seja como for, nunca seria causa de nulidade.
É que são diferentes as consequências processuais da inobservância ou violação do princípio da fundamentação das decisões, consoante se trate de sentença ou de despacho.
Assim no caso da sentença o acto fica ferido de nulidade – artºs 379º nº 1 a) e 374º CPP.
Porém, no caso de um despacho, a falta de fundamentação tem como consequência, não a nulidade do mesmo, mas a mera irregularidade, nos termos do disposto no art° 118°, n°s 1 e 2, CPP, e arts 119° e 120°, do mesmo diploma legal, estes a contrario sensu.
Acresce que as irregularidades processuais ficam sanadas, para além do mais (v. art° 121° do CPP), se não forem arguidas nos prazos legais, ou seja os previstos no art° 123°, n° 1 CPP.
O que se verifica in casu, porquanto o recorrente não arguiu o vício nos três dias seguintes a contar da notificação do despacho recorrido.
Assim sendo improcede o recurso neste ponto.
Porém, isto não significa que o despacho recorrido deva subsistir.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artº 109º nº 1 CP “ São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.”.
Pois bem como resulta claramente do referido preceito, para que possam ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos nela referidos, é necessário que se verifique o seguinte condicionalismo:
– que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico;
- que pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
O texto deste artigo é resultante da revisão do Código Penal concretizada pelo Dec.Lei nº 48/95, de 15 de Março, correspondendo, sem especiais divergências de fundo, ao artº 107º.
E como entendia Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 618 e ss., já à luz da versão originária”O primeiro dos pressupostos a que obedece a perda, por um lado, dos instrumentos e, por outro lado, do produto do crime, é que os instrumentos tenham sido utilizados numa actividade criminosa ou o produto resulte desta. Segundo lei expressa não se torna, porém, necessário nem que o crime se haja consumado (art. 107º-1: estavam destinados a servir...»), nem sequer que alguma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada ou aquela actividade criminosa (art. 107º-2).
Quais os requisitos que conformam a referida actividade criminosa é a questão de mais complexa e duvidosa solução. O art. 107.° - 1 fala em «prática de um crime», parecendo assim que a perda só pode ser decretada se no caso se verificar a totalidade dos pressupostos de que depende a existência de um crime. Logo o art. 107º - 2, porém, desmente radicalmente esta asserção, ao estabelecer que o instituto funciona mesmo quando ninguém possa ser perseguido ou condenado. Nesta medida, dir-se-ia que, de acordo com o pensamento da lei, a qualidade e as características do agente seriam indiferentes para a aplicação da providência em causa.
Na hipótese do art. 107.°-1, isto é, quando o processo penal corra contra pessoa determinada, a melhor doutrina parece ser, a de considerar que pressuposto da perda não é necessariamente a prática de um «crime», mas a «simples verificação de um facto ilícito-típico». No sentido seguinte: de que a perda deve ser decretada desde que no facto se verifiquem os requisitos que atrás (§ 800 ss.) vimos serem exigidos para o facto que é pressuposto de aplicação de uma medida de segurança privativa de liberdade. Ou, dito de forma explícita: torna-se necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente. Sujeitos à perda estão, deste modo, tanto agentes imputáveis, como inimputáveis.
Diversa é a situação contemplada no art. 107.°-2, em que «nenhuma pessoa determinada... [pode] ser criminalmente perseguida ou condenada». Aqui cabem seguramente os casos em que o agente do facto está determinado, mas o processo deve ser arquivado por qualquer causa de extinção da responsabilidade ou por falta de pressupostos processuais. Mas pode pensar-se que cabem igualmente as hipóteses em que não possa sequer ser determinado o agente ou agentes do facto: v. g., aparecendo uma pessoa morta a tiro com uma arma perto de si, provando-se que foi assassinada, mas sendo impossível determinar quem é o agente, a arma seria declarada perdida, nos termos do art. 107.º-2. Na primeira hipótese, os requisitos parece deverem ser os mesmos anteriormente expostos. Na segunda parece que tem de bastar a verificação de um tipo objectivo de ilícito... quando tal for possível mantendo-se desconhecida a pessoa do agente.
O fundamento da doutrina decorrente do art. 107°-2 é por demais duvidoso, por isso que, nestes casos, à providência não pode atribuir-se qualquer finalidade político-criminalmente válida; o que significa que ela não constitui uma consequência jurídica de natureza criminal. O mais que ela pode constituir é uma medida de polícia administrativa, tendente a apreender coisas ilícitas, proibidas, ou que a lei exclui do comércio jurídico. Mas o seu regime deveria ser então ditado por outros ramos do direito, que não pelo direito penal, nomeadamente através da medida de apreensão jurídico-administrativa e do respectivo processo. E a prova de que é como dizemos reside em que, para estas hipóteses, não existe (como, de outro modo, seria indispensável) um processo penal especial. Como reside na circunstância de, tanto quanto pudemos investigar, casos desta natureza nunca terem sido entre nós tratados na jurisdição penal.
Esta consideração crítica convida a que, iure dato, se interprete o disposto no art. 107-2 nos termos mais restritivos que se tornem viáveis, nomeadamente restringindo o seu âmbito de aplicação aos casos em que o agente está determinado, mas não pode, por falta de pressupostos de punibilidade, ser perseguido e (ou) condenado. O que implicaria que, nestes casos, pressuposto da perda seria somente a verificação de um facto ilícito-típico no preciso sentido da doutrina do crime; em lodo o caso, portanto, um ilícito onde estivesse presente não só o tipo de ilícito objectivo, como o tipo de ilícito subjectivo, doloso ou negligente.”
E escreve ainda o referido autor, a propósito da perigosidade. “A finalidade atribuída pela lei vigente à perda dos instrumentos e do produto do crime é exclusivamente preventiva. Isso se revela pela circunstância de, nos termos do art. 107.°-1, nem todos os objectos que constituam instrumentos ou produto do facto deverem ser declarados perdidos, mas apenas aqueles que, «pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a mora ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos crimes»: numa fórmula mais simples (mas de certo não menos rigorosa, uma vez que a «segurança das pessoas» e a «moral ou a ordem pública» não podem deixar de relevar apenas enquanto valores jurídico-penalmente protegidos, nessa veste e medida) aqueles instrumentos ou produto que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e co-natural utilidade social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos.
Com base no critério apontado parece de afastar - porque desprovida de fundamento legal -, por exemplo, a perda da caneta com que foi falsificado um documento, ou do automóvel (ou da residência!) onde foi praticada uma violação. Mas já deverá ser declarada perdida a arma com que foi praticado o homicídio, os cunhos com que foi contrafeita moeda ou a própria moeda contrafeita.
Questão é saber sob que ponto de vista deve ser avaliada a perigosidade referida: se sob o ponto de vista objectivo da coisa em si mesma considerada, ou antes sob o ponto de vista subjectivo, mais rigorosamente, sob o ponto de vista do relacionamento entre a coisa e um determinado sujeito.
O ponto de vista objectivo parece dever impor-se como ponto de partida. Não é fácil, com efeito, determinar com a indispensável clareza os critérios em função dos quais um objecto, em si insignificativo do ponto de vista da sua perigosidade, se torna em «objecto perigoso» em função da pessoa que o detém. O objecto mais anodino (um lençol, uma meia de seda, um lápis ou uma caneta; pode tornar-se em objecto hoc sensu «perigoso» quando detido por um indivíduo perigoso. Declarar a perda nestes casos, porém, significaria procurar atalhar a perigosidade do agente, não - como é finalidade do instituto - a perigosidade do objecto: para atalhar a perigosidade do agente dispõe a lei de outros recursos e de outros institutos que nada têm a ver com a perda dos instrumentos e dos producta sceleris. Em primeira linha, por conseguinte, deve ser a perigosidade do objecto em si mesmo considerado, independentemente da pessoa que o detém - o tratar-se de uma arma, de um explosivo, de moeda contrafeita ou de cunhos para a fabricar, etc. – que justificam a perspectiva político-criminal, a perda.
Sem prejuízo do que fica dito, a referida perigosidade do objecto não deve ser avaliada em abstracto, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (às «circunstâncias do caso» se refere expressamente o art. 107.°-1). Um revólver, p. ex., é um objecto «em si» perigoso; mas que terá deixado de o ser se, após o tiro que constituiu meio de cometimento do ilícito-típico, a engrenagem tiver ficado danificada por forma irreparável. Esta conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por «implicar uma referência ao próprio agente» (ponto de vista subjectivo). Por exemplo, uma liga de um metal corrente, que qualquer pessoa possa deter, pode tornar-se em coisa perigosa se for detida por alguém conhecedor de uma fórmula que a transforme em substância explosiva. Esta «referência ao agente» não deixa, de resto, de apoiar a interpretação restritiva, feita no § 987, do disposto no art. 107.°-2”.
Como escreve Maia Gonçalves Código Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 424. “ a revisão orientou-se no sentido de ficar clarificado que a perda é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento……. O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso”.
É pois fundamental a existência de um perigo típico, de repetição da prática de novos factos ilícitos, o qual não pode ser aferido em abstracto, sob pena de se colocar mesmo em causa o princípio constitucional da presunção de inocência.
Há pois que em concreto analisar as circunstâncias que rodearam a prática do facto, bem como a personalidade do arguido.
Ora no caso dos autos, conforme se alcança da análise da sentença condenatória, verifica-se que a única referência que é feita à arma em causa, está no ponto 17, onde se refere ter o arguido dito à queixosa, em 17 de Outubro de 2006, que um dia “ a há-de matar com um tiro e atirá-la para dentro de uma fossa o que, aliado ao seu temperamento violento e agressivo e ao facto de ser detentor de uma arma, provoca na queixosa pânico e medo, temendo pela sua vida”.
Por outro lado e ainda na mesma decisão considerou-se não provado que o arguido tivesse efectuado dois disparos com a arma ( cfr. alínea a).
Acresce que tal facto não impediu a queixosa de ter voltado a viver na mesma habitação com o arguido, pelo menos até 22 de Fevereiro de 2007 e inclusivé a pretender desistir da queixa ( cfr. matéria de facto dada como provada nos pontos 27 e 28).
Assim face aos elementos probatórios existentes nos autos não está demonstrado que o arguido destinasse a arma à prática de actos ilícitos, pois o arguido, ao que parece, detinha-a devidamente regularizada.
Para além disso e ainda de acordo com a facticidade que o tribunal considerou provada, do certificado de registo criminal do arguido nada consta, sendo este ainda respeitado no meio social onde se insere ( pontos 25 e 30).
Há igualmente a considerar que a decisão recorrida nada aporta no sentido de demonstrar ter ponderado em concreto a verificação da perigosidade da arma na posse do arguido, nem a possibilidade da sua manutenção constituir um perigo acrescido, sendo que, como vimos os elementos constantes dos autos, só por si, não permitem estabelecer qualquer conexão entre a detenção da arma e uma futura actividade criminosa por parte do arguido
Por essa razão torna-se evidente que a decisão recorrida tem de ser revogada, o que o mesmo é dizer que não existe fundamento para que se decrete o perdimento da arma em causa, a qual deve ser restituída ao arguido.
DECISÃO
Face ao exposto os Juizes desta Secção, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene a restituição da arma apreendida, se outra razão não existir que o impeça.
Sem tributação |