Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
233/22.9GARSD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
TESTE DE PESQUISA DE ÁLCOOL
TESTE QUALITATIVO
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO LOCAL CRIMINAL
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 152.º, N.OS 1, ALÍNEA A), E 3, E 153.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 348.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 1.º E 2.º, N.º 1, LEI N.º 18/2007, DE 17 DE MAIO
Sumário: I – Dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, resulta que o aparelho qualitativo tem por função sinalizar a presença de álcool no sangue e não tem de emitir qualquer talão, entendido este como registo documental da taxa medida, porque visa apenas uma primeira despistagem e a consequente selecção dos condutores a submeter a teste quantitativo.

II – O teste qualitativo faz parte do sistema legal de provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, determinante da sujeição ou não ao teste quantitativo, consoante o resultado indiciado pelo primeiro analisador for positivo ou negativo relativamente à presença de álcool.

III – Não está na esfera de decisão individual do condutor escolher se se submete ou não à prova de detecção de álcool no sangue por analisador qualitativo.

IV – Verificados os pressupostos do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal «tanto comete o crime de desobediência quem se recusa a realizar o teste quantitativo como quem não realiza sequer o teste qualitativo (de despistagem)».

V – Para a verificação do crime de desobediência no caso de recusa de submissão ao teste de detecção de álcool, por analisador qualitativo e/ou quantitativo, não se exige a cominação expressa, pela autoridade, de que o desrespeito da ordem emitida faz incorrer o agente em desobediência, porque da conjugação dos artigos 152.º, n.º 3 do Código da Estrada e artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, a cominação resulta da lei.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

Realizada a audiência de julgamento, … a 1.ª instância proferiu sentença em que decidiu:

A. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e 152.º, n.º 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ ;

B. CONDENAR o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal;

 2. Inconformado, o arguido … veio interpor recurso da sentença, tendo no termo da respectiva motivação formulado as seguintes conclusões (transcrição):

“…

e) O recorrente pretende ver dado como provado que o arguido pretendeu efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado no aparelho que saísse um talão/comprovativo, pretendendo com tanto significar que queria ser submetido ao teste em aparelho quantitativo.

f) Tal matéria de facto surge inequívoca, quer do depoimento de todas as testemunhas que se achavam presentes no local no momento da “acção de fiscalização”, sejam da douta acusação pública, sejam as indicadas pelo próprio arguido.

k) O arguido, no acto fiscalizador, referiu espontaneamente ao agente da GNR que havia ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução da viatura identificada nos presentes autos, manifestando-se, assim, absolutamente desnecessário e dispensável ser submetido ao teste qualitativo, cuja única função é indiciar a presença de álcool no sangue.

o) O legislador nunca condicionou a realização do teste quantitativo à prévia submissão dos condutores ao teste qualitativo, não tendo seguido, neste particular, o critério utilizado para a análise ao sangue.

q) O Tribunal entendeu, em critério que o arguido não aceita nem compreende, que, no método de fiscalização, se está perante actividade vinculada, que estipula a necessidade de submissão a teste qualitativo para depois ser submetido a teste quantitativo.

r) Se é certo que o artigo 2º do citado regulamento nos oferece um método de fiscalização, não resulta da mesma norma que a submissão ao teste quantitativo está dependente ou condicionado à prévia submissão ao qualitativo.

s) Daí que se entenda que o arguido não incorreu no cometimento do crime imputado e pelo qual foi condenado.

…”.

3. Admitido o recurso, o Ministério Público veio apresentar resposta em que pugna pelo seu não provimento …

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso …

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre agora decidir.

                                                          *

II – Fundamentação 

1. [1][2].

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões suscitadas no recurso:

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto provada, a consequente modificação da decisão e necessária absolvição do arguido AA quanto ao imputado crime de desobediência.

- Não preenchimento de todos os pressupostos do imputado crime de desobediência.

                                                         *

2. A sentença recorrida.

2.1. Na sentença proferida pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

Da acusação:

1. No dia 01.11.2022, pelas 02h25, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula RC-..-.., na Avenida ..., em ....

2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido foi interceptado por militares da GNR, que se encontravam uniformizados e no exercício de funções.

3. Aquando de tal abordagem policial foi solicitado ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, ao que este recusou.

4. Perante tal recusa, os militares da GNR advertiram o arguido que se mantivesse tal recusa cometia um crime de desobediência.

5. Não obstante ter ficado ciente das consequências, o arguido manteve a recusa em efectuar o mencionado teste.

6. O arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de desobedecer a ordem de paragem emanada pela autoridade policial, bem sabendo que, enquanto condutor de veículo na via pública, sobre si impendia o dever de efectuar o teste supra descrito.

7. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou:

”.

2.2.           

2.3. A sentença recorrida apresenta a seguinte motivação da decisão sobre a matéria de facto (transcrição):

“…

No que concerne às circunstâncias de tempo, lugar e presença de uns e outros, que o arguido se encontrava a conduzir o veículo em causa, na via pública, quando lhe foi dada ordem de paragem pela patrulha da GNR e ordenada a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, tal foi confirmado pelo arguido, além de ter sido referido, de forma coincidente, pelas testemunhas inquiridas (com excepção da testemunha BB, que apenas compareceu no local posteriormente ao sucedido).

Mais resultou claro que o arguido percebeu perfeitamente a ordem que lhe estava a ser dada e se recusou a efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado nos termos ordenados, procurando, com a versão que apresentou em audiência, justificar essa sua actuação.

Tal actuação reflecte que sabia perfeitamente que o teste que lhe estava a ser solicitado efectuar era o teste no aparelho qualitativo, em que não sai qualquer talão - conhecimento que se mostra reforçado pelo facto de, conforme referiu, já ter sido fiscalizado, pelo menos, 3/4 vezes, em aparelho que não emitiu qualquer talão -, pelo que, pretendendo realizar o teste no outro aparelho em que sai o comprovativo/ticket, estava, naturalmente, a recusar-se a cumprir com o ordenado pela autoridade policial, sem qualquer motivo justificativo – dado que as alegadas outras fiscalizações que refere que lhe foram efectuadas nada têm a ver com esta e das quais não teve, segundo diz, qualquer consequência, pelo que se pressupõe que tudo decorreu dentro da normalidade.

Neste particular, esta testemunha referiu ainda que o arguido foi devidamente esclarecido dos procedimentos e trâmites legais (que, em primeiro lugar, tinha que realizar o teste em aparelho qualitativo e apenas, posteriormente, o teste em aparelho quantitativo, ao que o arguido manteve a recusa), relatando o ocorrido de forma espontânea, sem que, do seu depoimento, se denotasse qualquer intenção em prejudicar o arguido (tanto mais que, nesta parte, tal depoimento corroborou parte das declarações do arguido) ou procurar omitir quaisquer pormenores do sucedido.

Sempre se dirá que, mesmo que o arguido pudesse estar convencido que se poderia recusar a fazer o teste em aparelho qualitativo por pretender fazer o teste em aparelho quantitativo (que emite o respectivo talão) e, assim, escolher a forma de efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue, tal convencimento sempre teria que cessar com a advertência que lhe foi efectuada de cometimento do crime de desobediência.

…”.

                                                         *

3. Apreciando.

3.1. Alega-se no recurso que o tribunal a quo fixou de forma insuficiente parte da factualidade relevante, pois devia ter dado como provado que o arguido AA pretendeu efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado no aparelho em que saísse um talão/comprovativo, pretendendo com isso significar que queria ser submetido ao teste em aparelho quantitativo.

O que importava era, pois, aferir a quantidade do álcool no sangue do arguido e esta apenas se aferiria com a sujeição do arguido ao teste quantitativo, teste que o arguido solicitou mais do que uma vez.

Ora, ainda que se entenda que a impugnação ampla constitui o mecanismo adequado para se efectivar um tal aditamento de factualidade, até porque se trata de matéria que o tribunal a quo apreciou e foi discutida em audiência de julgamento, conforme consta indicado na motivação da sentença recorrida … a recusa em se sujeitar ao teste no analisador qualitativo, … torna irrelevante, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, o alegado facto de o recorrente ter então afirmado que pretendia efectuar o teste com analisador quantitativo.

Com efeito, segundo dispõe o artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada, os condutores que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidos por crime de desobediência.

Por seu turno, do artigo 153.º, n.º 1 do mesmo diploma decorre que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.

Ora, a Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, dispõe no seu artigo 1.º que a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo (n.º 1), a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue (n.º 2), e a análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo (n.º 3).

De acordo com o artigo 2.º, n.º 1 da mesma lei, quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.

Das normas acima descritas resulta que o aparelho qualitativo tem por função sinalizar a presença de álcool no sangue, não cuidando da quantificação de uma taxa de álcool no sangue (TAS). Daí que se refira no texto legal que a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado efectuado em analisador qualitativo e quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue.

Os aparelhos (qualitativos) não têm de emitir qualquer talão, entendido este no sentido de registo documental da taxa medida, e visam tão só uma primeira despistagem e a consequente selecção dos condutores a submeter a teste quantitativo.

Pese embora o teste qualitativo tenha a função de despistagem claramente definida na lei, sendo que do mesmo apenas resulta uma conclusão genérica sobre a presença de álcool no sangue, certo é que ele faz parte do sistema legal de provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, determinante do passo seguinte de sujeição ou não ao teste quantitativo, consoante o resultado indiciado pelo primeiro analisador for positivo ou negativo relativamente à presença de álcool.[3]

Nas condições descritas, não está na esfera de decisão individual do condutor escolher se se submete ou não a tal prova de detecção ou indiciação da presença de álcool no sangue, se “prefere” saltar essa etapa inicial de triagem, seguindo logo para a realização de “um teste com talão”, ao arrepio da ordem que legal e regularmente lhe foi dada pelo agente da autoridade no sentido de efectuar o teste no ar expirado em analisador qualitativo.

Assim, como bem refere o tribunal a quo na sentença recorrida, citando para o efeito o Acórdão da Relação de Évora de 07-05-2019[4], “tanto comete o crime de desobediência quem se recusa a realizar o teste quantitativo como quem não realiza sequer o teste qualitativo (de despistagem)”.

Na verdade, conforme já foi dito, segundo estatui o artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada, os condutores que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidos por crime de desobediência.

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal dispõe que:

Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição por desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação”.

Como elementos objectivos deste tipo incriminador, temos a existência de uma ordem ou mandado que se traduz na imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto. Trata-se, assim, de um comando que impõe a alguém uma determinada conduta, no caso positiva (sujeição ao teste em analisador qualitativo).

A ordem tem de revestir legalidade substancial e formal, devendo ter subjacente uma disposição legal que autorize a sua emissão, assim como tem de ser emanada com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.

Exige-se, por outro lado, que a autoridade que a emite tenha competência para o fazer, ou seja, que a imposição caiba na sua esfera de atribuições.

Acresce que a ordem ou mandado deve ser regularmente transmitida ao seu destinatário, para que ele tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido.

Por fim, é necessário que o comando tenha sido desrespeitado, isto é, que haja violação do dever resultante do comando, dever esse resultante directamente da lei ou de cominação expressa nesse sentido formulada pela autoridade ou funcionário competente.

No caso do imputado crime de desobediência, este não exige nos seus pressupostos a cominação expressa, pela autoridade, de que o desrespeito da ordem emitida faz incorrer o agente em desobediência, pois, como resulta do disposto no artigo 152.º, n.º 3 do Código da Estrada, em conjugação com o que preceitua o artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, a cominação resulta da própria lei e é por via dela que a recusa de o condutor se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool é criminalmente punida como desobediência.

Dito de outro modo e, em síntese, conforme se assinala na sentença recorrida, ao nível do tipo objectivo, são elementos constitutivos do crime de desobediência:

a) a existência de uma ordem ou mandado;

b) a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;

c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

d) a regularidade da sua transmissão ao destinatário;

e) a violação dessa ordem ou mandado;

Ora, no caso dos autos, os elementos objectivos do tipo estão claramente presentes nos factos que foram dados como assentes pelo tribunal a quo nos pontos 1 a 5 da sentença recorrida e que o recorrente não impugnou:

1. No dia 01.11.2022, pelas 02h25, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula RC-..-.., na Avenida ..., em ....

2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido foi interceptado por militares da GNR, que se encontravam uniformizados e no exercício de funções.

3. Aquando de tal abordagem policial foi solicitado ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, ao que este recusou.

4. Perante tal recusa, os militares da GNR advertiram o arguido que se mantivesse tal recusa cometia um crime de desobediência.

 5. Não obstante ter ficado ciente das consequências, o arguido manteve a recusa em efectuar o mencionado teste.

Assim como estão verificados os elementos subjectivos do crime imputado, que é um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades – dolo directo, necessário ou eventual –, exigindo-se, deste modo, que o agente actue com o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, ou seja, como se diz na sentença recorrida, o agente saiba que, com a sua conduta, desobedece a uma ordem legítima emanada de entidade competente e incorre na prática de crime de desobediência e, não obstante, queira manter tal recusa.

E está verificada a referida vertente subjectiva porquanto no ponto 6 o julgador deu como provado que o arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de desobedecer a ordem de paragem emanada pela autoridade policial, bem sabendo que, enquanto condutor de veículo na via pública, sobre si impendia o dever de efectuar o teste supra descrito.

                                                    *

Perante o quadro factual descrito em que se considerou assente que, aquando da abordagem policial, foi solicitado ao arguido que se submetesse ao teste qualitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, ao que este recusou, sendo que, perante tal recusa, os militares da GNR advertiram o arguido que se mantivesse tal recusa cometia um crime de desobediência, o qual, não obstante ter ficado ciente das consequências, manteve a recusa em efectuar o mencionado teste qualitativo, é manifesto que o recorrente faltou à obediência devida a uma ordem legítima (cf. artigos 153.º, n.º 1, 158.º, n.º 1 do Código da Estrada, artigos 1.º e 2.º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio), que tem subjacente uma disposição legal a cominar que o seu desrespeito seja punido como desobediência simples (cf. artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada), ordem essa que foi regularmente comunicada e emanada de autoridade competente, que, embora no caso não seja exigido pela norma incriminadora, fez expressamente ao arguido a cominação de punição por desobediência simples.

A circunstância de alegadamente o arguido AA “ter pretendido efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado no aparelho do qual saísse um talão/comprovativo, pretendendo com isso significar que queria ser submetido ao teste em aparelho quantitativo”, em vez de se submeter ao teste por analisador qualitativo, quando já lhe havia sido solicitado pela autoridade policial que efectuasse esse teste de despistagem e, perante a recusa em fazê-lo, foi advertido pela mesma autoridade que se mantivesse tal recusa cometia um crime de desobediência, persistindo na recusa, em nada afecta a relevância típica que os factos provados nos pontos 1 a 6 assumem, nos termos acima expostos.

É que, como fundadamente concluiu o tribunal a quo, a recusa tipicamente relevante retira-se ainda, sem margem para dúvidas, da própria postura do arguido, quando refere que apenas efectuava o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado no aparelho que saísse um talão/comprovativo, uma vez que tal actuação reflecte que sabia perfeitamente que o teste que lhe estava a ser solicitado efectuar era o teste no aparelho qualitativo, em que não sai qualquer talão, conhecimento que se mostra reforçado pelo facto de, conforme referiu, já ter sido fiscalizado, pelo menos, três ou quatro vezes, em aparelho que não emitiu qualquer talão, pelo que, pretendendo ele realizar o teste no outro aparelho em que sai o comprovativo/ticket, estava, naturalmente, a recusar-se a cumprir com o ordenado pela autoridade policial, sem qualquer motivo justificativo, dado que as alegadas outras fiscalizações que refere que lhe foram efectuadas nada têm a ver com esta e das quais não teve, segundo diz, qualquer consequência, pelo que se pressupõe que tudo decorreu dentro da normalidade.

Não obstante, como reforçou o tribunal a quo, sempre se dirá que, mesmo que o arguido estivesse convencido de que poderia recusar submeter-se ao teste em aparelho qualitativo por pretender fazê-lo em aparelho quantitativo (que emite o respectivo talão) e, assim, escolher a forma de efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue, tal convencimento sempre teria de cessar com a advertência que lhe foi feita de que com a recusa em ser testado pelo analisador qualitativo incorreria no crime de desobediência. …

                                                         *

A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto pressupõe que a mesma é relevante para o desfecho da causa, sendo que apenas se justifica apreciar e decidir do seu mérito se dela puder decorrer alteração da sentença recorrida em matéria de culpabilidade ou determinação da sanção.

Ora, considerando que na impugnação deduzida o recorrente não pôs em causa nenhum dos factos julgados provados que integram os elementos constitutivos do imputado crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada, apenas pretendendo que se desse como provado que, na ocasião dos acontecimentos, pretendeu ser submetido ao teste de álcool no ar expirado num aparelho quantitativo, o que, como vimos, mantém intocado o preenchimento de todos os pressupostos de que depende comissão do aludido ilícito, sendo o pretendido aditamento factual irrelevante para o desfecho condenatório proferido, quer no que toca à culpabilidade, quer quanto à determinação da sanção, forçoso se torna concluir que, mostrando-se a impugnação inconsequente, em todas as vertentes referidas, a mesma deve ser julgada improcedente.

                                                     *

3.2. Em 3.1. tivemos já oportunidade de analisar a matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 6 da sentença recorrida (que, repete-se, o recorrente não impugnou), à luz dos elementos objectivos e subjectivos do imputado crime de desobediência, tendo concluído que os mesmos estão verificados.

Assim, nesse sentido, não merece censura o enquadramento jurídico que a esse respeito foi efectuado na sentença recorrida, baseado nas razões que o tribunal a quo aí expôs do seguinte modo:

“Dos factos provados resulta que foi ordenado ao arguido que realizasse o teste de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, ou seja, foi-lhe imposta uma concreta conduta activa, tendo o arguido recusado efectuar tal teste e pretender efectuar o teste de um outro modo a que se acharia com direito – através do teste quantitativo, em vez do teste qualitativo.

Ora, além de o arguido ter recusado a realização do teste ordenado, não pode o arguido escolher a forma como cumprir a ordem que lhe foi legitimamente dada e regularmente comunicada pela entidade competente e escolher o tipo de teste de pesquisa de álcool no sangue a realizar.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, entre outros, os condutores «devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas» e, de harmonia com o n.º 3 do mesmo preceito legal, se essas pessoas se recusarem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

Por conseguinte, comete o crime de desobediência previsto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal o condutor a quem a autoridade de fiscalização rodoviária manda que se submeta às provas de detecção de álcool e se recusa a tal.

Tendo em conta que existe uma norma legal que prevê que os condutores se devem submeter a provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool, está preenchida a validade substancial da ordem emitida.

O n.º 1 do artigo 153.º do Código da Estrada estabelece que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.

Sendo o resultado positivo e requerida a realização de contraprova, esta pode ser efectuada, de acordo com a vontade do examinando, ou através de outro aparelho alcoolímetro ou através de análises sanguíneas (n.º 3 do mesmo artigo).

É, também, através de análises de sangue que se detecta o estado de influenciado pelo álcool quando não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado - n.º 8, ainda do artigo 152.º do Código da Estrada.

O n.º 1 do artigo 158.º do Código da Estrada remete para regulamentação autónoma a definição dos meios e métodos a utilizar para a detecção e determinação da quantidade de álcool (a taxa de alcoolemia), regulamentação que, actualmente, consta da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas.

O artigo 1.º deste Regulamento estabelece o seguinte:

(…)

Por seu turno, dispõe o artigo 2.º do mesmo Regulamento:

(…)

Por último, o n.º 1 do artigo 4.º que dispõe o seguinte:

(…)

Temos, assim, três tipos de testes:

a) o teste qualitativo, destinado a detectar a presença de álcool no sangue, que é efectuado com analisador qualitativo;

b) o teste quantitativo, destinado a quantificá-la (a determinar a taxa de alcoolemia), que é efectuado com analisador quantitativo;

c) a análise de sangue, também destinada a quantificar a presença de álcool no sangue, efectuada, obviamente, através da recolha e exame de amostra de sangue do examinando.

Tanto comete o crime em causa o condutor que injustificadamente se recusa a realizar o teste qualitativo como o quantitativo3. [3 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07.05.2019, no processo n.º 9/18.8GBODM.E2, disponível em www.dgsi.pt.]

Resulta, claramente, quer das citadas normas do Código da Estrada, quer das normas do Regulamento de Fiscalização, que a regra é que a detecção de álcool no sangue seja efectuada através de teste ao ar expirado, efectuado com os alcoolímetros.

Excepcionalmente, a fiscalização da condução sob influência do álcool faz-se através de análise de sangue, de que é recolhida uma amostra em estabelecimento público de saúde, o que acontecerá nas seguintes situações:

§ em caso de impossibilidade de efectuar o teste em analisador quantitativo;

§ no caso de contraprova, quando o examinando a requeira e opte pelo método da análise de sangue.

Ora, conforme acima referido, a lei prevê detalhadamente o modo como pode fazer-se a demonstração da alcoolemia e do seu grau, no âmbito do direito estradal.

«Para essa medição, e numa primeira fase, é feito o teste qualitativo, ou seja, um teste para despistagem de álcool no sangue. Ainda que este teste possa acusar uma determinada taxa de álcool, a mesma não é de relevar para tal efeito (medição concreta), pois não é essa a sua função nem o aparelho se destina a isso, mas tão-só a verificar se a pessoa submetida ao teste tem ou não álcool no sangue.

Uma vez efetuado esse teste qualitativo, e sendo o resultado positivo, é então feito um teste quantitativo, este, sim, para se determinar a efetiva taxa de álcool no sangue (tudo em obediência ao disposto nos artigos 1º e 2º do “Regulamento de Fiscalização da Condução Sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas”, aprovado pela Lei nº 18/2007, de 17/05).

No caso de, após três tentativas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitirem a realização daquele teste, é realizada análise ao sangue, tal como estabelece o artigo 4.º, n.º 1, da referida Lei n.º 18/2007»4. [4 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 18.11.2014, no processo n.º 105/14.0GFSTB.E1, disponível em www.dgsi.pt.]

Nessa conformidade, o modo de detecção e obtenção da taxa de alcoolemia para o processo traduz-se, pois, numa actividade vinculada e subtraída ao critério livre da autoridade policial ou judiciária e da vontade do arguido, pelo que «o regime probatório é aqui, também, claramente de imposição – imposição ao arguido de sujeição à verificação (através do seu sopro, do seu sangue ou do seu corpo) e sempre do modo determinado na lei, com ligações sensíveis ao princípio do nemo tenetur, que se encontram abstractamente resolvidas na lei com pronúncia de conformidade constitucional da parte do Tribunal Constitucional»5. [5 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 05.07.2016, no processo n.º 403.15.6GBLSV.E1, disponível em www.dgsi.pt.]

Assim, além de o motivo alegado pelo arguido para se recusar a efectuar o teste qualitativo por pretender efectuar o teste num aparelho que forneça o respectivo talão ser injustificado, está-se perante uma actividade vinculada, que obedece a determinada ordem, não cabendo à autoridade policial ou ao fiscalizado, no caso o arguido, escolher o modo como se realiza tal fiscalização.

Em primeiro lugar, cabe apurar se há ou não presença de álcool no sangue, o que se faz pela realização do teste qualitativo, apenas se passando para o teste quantitativo no caso de aquele primeiro detectar a presença de álcool no sangue e ser necessário quantificar a sua taxa, dado que apenas esta permite determinar a existência ou não de responsabilidade contraordenacional ou criminal do condutor.

Da concatenação dos referidos normativos, resulta que tal fiscalização está submetida a um conjunto de formas de proceder previamente determinado, estando-se em presença, pois, de prova vinculada6. [6 Também os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datados de de 04.11.2020, no processo n.º 69/20.1GBAND.P1, e 15.01.2020, no processo n.º 899/17.1GBPNF.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.]

Ora, no caso, provou-se que foi ordenado ao arguido realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, através do teste qualitativo, tendo o mesmo recusado e pretender fazer tal pesquisa através do teste quantitativo.

A sua conduta equivale a uma recusa na realização do teste nos termos que lhe haviam sido ordenados e cuja vinculação está subtraída à sua vontade.

Relativamente à validade formal da mesma, não havendo forma específica a observar, poderá ser utilizada qualquer das formas admitidas em direito, designadamente a oral, como sucedeu “in casu”.

Acresce que a ordem referida foi emanada por militares da GNR, os quais têm por missão, além do mais, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, velando pelo cumprimento das leis e regulamentos relativos à viação terrestre e aos transportes rodoviários, e promovendo e garantindo a segurança rodoviária, designadamente, através da fiscalização, do ordenamento e da disciplina do trânsito - artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro.

Nesta medida, a ordem proveio de autoridade ou funcionário competente, no exercício das respectivas funções.

A factualidade provada demonstra que foi ordenado oralmente ao arguido que efectuasse o referido teste e que se mantivesse a recusa incorreria na prática de um crime, sendo, assim, o conteúdo da ordem claro e perceptível pelo seu destinatário.

Tanto basta para a ordem se considerar regular.

Por fim, apurou-se que, apesar de os agentes policiais terem ordenado ao arguido que realizasse o aludido teste, advertindo-o de que se recusasse incorreria na prática de um crime, este se recusou a efectuá-lo, não obstante se encontrar em condições de o fazer.

Relativamente ao elemento subjectivo, provou-se que o arguido sabia que desobedecia a uma orem legítima emanada de entidade competente e que em caso de recusa incorria na prática de crime de desobediência e, não obstante, manteve a recusa em efectuar o referido teste.

Quis, portanto, actuar da forma assim descrita, o que configura dolo directo - artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal.

Por fim, vindo o arguido acusado da prática do crime em análise por referência à alínea a) do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, é necessário que exista uma disposição legal a cominar, no caso, a punição da desobediência simples, o que se verifica no já citado artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, sem necessidade que o funcionário faça a respectiva advertência (que, no caso, até foi efectuada)”.

                                                        *

Em suma, considerando que a apurada conduta do arguido AA preenche todos os elementos objectivos subjectivos do crime previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, ex vi artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 3 do Código da Estrada, e punido ainda pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, deve o recurso ser julgado totalmente improcedente.

                                                      *

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

Baixados os autos, a 1.ª instância diligenciará pela notificação do arguido para que proceda à entrega da carta de condução, no prazo de dez dias, sob a cominação devida.

                                   Coimbra, 29 de Junho de 2023

(Elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

                                       Helena Bolieiro – relatora

                                    Teresa Coimbra – 1.ª adjunta

                                       Rosa Pinto – 2.ª adjunta


[1]
[2]
              
              
[3] Cf. o Acórdão da Relação de Évora de 20-01-2014, proferido no processo n.º 228/13.3GHSTC.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
              
              
[4] Aresto proferido no processo n.º 9/18.8GBODM.E2 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. No mesmo sentido de que a recusa sem motivo justificado a se submeter ao teste quantitativo, constitui crime de desobediência cf. o Acórdão da Relação de Guimarães de 05-12-2016, proferido no processo n.º 255/16.9GCBRG.G1 e disponível no mesmo sítio da Internet.