Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AGRAVADO VIOLÊNCIA DE PAI PARA FILHO MEDIDA DA PENA DE PRISÃO | ||
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Data do Acordão: | 06/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 14º, Nº 1, 26º, 30º, Nº 1, 51º, Nº 1, AL. A), 52º, Nº 1, AL. B), 54º, Nº 3, 70º, 71º, 152º, Nº 1, AL. A), Nº 2, AL. A) E NºS 4, 5 E 6, TODOS DO CÓDIGO PENAL; ART. 34º-B, Nº 1 DA LEI Nº 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO. | ||
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Sumário: | 1 - O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
2 - No seu tipo objectivo, incluem-se as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias). 3 - O poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países que alterou a sua legislação tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais). 4 - Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e podem constituir uma forma de maltrato e configurar situações de perigo que legitimem a intervenção do sistema de promoção e protecção de crianças previsto na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA No processo comum singular nº 78/24.1PBCTB do Juízo Local Criminal de Castelo Branco (Juiz 1) – comarca de Castelo Branco -, por sentença datada de 14 de Fevereiro de 2024, foi decidido: a) Condenar o arguido AA pela prática, entre 2018 e 30.01.2024, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de BB), na pena de 3 (três) anos de prisão. b) Condenar o arguido AA pela prática, entre 2018 e 30.01.2024, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. e), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de CC), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. c) Condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão. d) Substituir a pena de 4 (quatro) anos de prisão aplicada pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, pelo mesmo período de tempo, com regime de prova, de acordo com plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP (art. 53º, nº 1 do Código Penal), o qual deverá contemplar o acompanhamento do arguido no sentido de lhe demonstrar que deve agir de acordo com o direito e da sua consciencialização de que as mulheres devem ser respeitadas e qual a posição que as mesmas ocupam na sociedade, bem como: - a frequência em programa de prevenção contra a violência doméstica (arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 1, al. b) do Código Penal); - a proibição de contactar, por qualquer meio, com BB e de frequentar ou permanecer na sua residência, local de trabalho ou qualquer outro local onde aquela se encontre (arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 2, al. b) do Código Penal e art. 34º-B, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro); - pagamento da reparação oficiosa infra atribuída às vítimas (art. 51º, nº 1, al. a) do Código Penal). e) Condenar o arguido AA no pagamento de uma reparação à vítima BB, no valor total de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais sofridos. f) Condenar o arguido AA no pagamento de uma reparação à vítima CC, no valor total de 1.000,00€ (mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos. 2. O RECURSO Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «I - Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, que julgou totalmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, condenou o arguido, AA, pela prática como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de BB), na pena de 3 (três) anos de prisão e de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. e), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de CC), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, aplicando-se a pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período da condenação, impondo como condições de suspensão as seguintes regras de conduta: - frequência em programa de prevenção contra a violência doméstica; - a proibição de contactar, por qualquer meio, com BB e de frequentar ou permanecer na sua residência, local de trabalho ou qualquer outro local onde aquela se encontre; II- Com o devido respeito, entende o arguido que a pena única aplicada se revela excessiva e desproporcionada, face à factualidade dada como provada em juízo e ao direito aplicável e que deveria ser absolvido da prática do crime de violência doméstica na pessoa de CC. III - O Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão deu como provado que (seguem os factos dados como provados, nota do relator): IV- A pena a que foi condenado, parece-nos, com o devido respeito, desajustada face à conduta e personalidade do recorrente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos puníveis. V- O Tribunal a quo violou, como se demonstrará, o disposto nos artigos 71º, por incorreta e imprecisa aplicação. VI - Considerando os factos provados e as provas concretas sobre as circunstâncias da prática dos crimes e das condições pessoais do arguido, constata-se que: a) existiam discussões entre o arguido e a vítima BB, com troca de palavras injuriosas de parte a parte; b) o arguido nunca foi condenado pela prática de um crime da mesma natureza; e c) o arguido está integrado profissional e socialmente; VII - Ao condenar o arguido AA na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período da condenação, impondo condições de suspensão e regras de conduta e pagamento de indemnização civil, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 71º, do C. Penal, traduzindo-se a pena aplicada numa pena demasiado severa, atenta a factualidade considerada. VIII - Ademais, no que diz respeito ao crime de violência doméstica na pessoa de CC, não se encontram, com o devido respeito, preenchidos os pressupostos formais e materiais para a condenação do arguido pela prática do aludido crime. IX - Na formulação deste tipo legal criminalizam-se comportamentos que configuram maus tratos, conceito lato e abrangente, que pode ser integrado quer por agressões físicas ou psíquicas, incluindo-se neles designadamente os castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais. X - Tais condutas podem configurar-se como maus tratos psicológicos, como ofensas verbais ou insultos, mas também, a indiferença constante, a desconsideração pessoal, o vexame, sendo que, todas estas ações ou omissões têm de ser particularmente graves, quer porque são constantes quer porque são reiteradas, traduzindo um padrão comportamental , quer porque são intensas ou desvaliosas, prescindindo – se então dessa reiteração. XI - Analisados os factos do caso concreto relativos à jovem CC, não se pode, com o devido respeito concluir pela existência dos pressupostos de que depende a vetificação do crime de violência doméstica, desde logo, porque nenhum facto foi trazido a Tribunal que sustentasse um especial domínio ou controlo do arguido em relação àquela, não resultando igualmente que o arguido estivesse, ou pretendesse, subjuga-la a uma vivência de medo ou de subordinação. XII - Pelo contrário, da matéria factual provada resulta claro que os factos ocorreram num contexto de disfuncionalidade e desagregação familiar, tanto mais considerando que a forma de tratamento e o nível de linguagem utilizados no seio familiar, de resto contrário a qualquer união saudável, se verificava mutuamente, razão pela qual apenas podemos concluir que o arguido não cometeu o crime de violência doméstica na pessoa da jovem CC. XIII - Entendendo-se assim, com o devido respeito, e tendo presente os factos supra expostos, que não se encontram preenchidos os pressupostos formais e materiais para a condenação do arguido na prática de um crime de violência doméstica na pessoa da filha CC p. e p. nos termos do disposto no art. 152º do C. Penal, em virtude de que, dos fatos dados como provados, estes não se demonstrarem particularmente graves, surgirem num decurso de tempo curto, e nem particularmente intensos, capazes de demonstrar qualquer domínio do arguido sobre a jovem CC e/ou subjugação desta perante o arguido. NESTES TERMOS, e nos melhores de direito que V/Exas. doutamente suprirão, deverá a douta Sentença ser revogada e substituída por outra que: a. Reduza pena de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica na pessoa de BB ao mínimo legalmente estatuído; b. Absolva o arguido da prática de um crime de violência doméstica na pessoa de CC e, consequentemente, da indemnização pela qual veio a ser condenado». 3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso NÃO merece provimento. 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador Geral Adjunto pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113]. Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso. Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões. Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação. Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões. Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal: 1. Não está perfectibilizado o crime de violência doméstica na pessoa da filha CC? 2. A pena de 4 anos de prisão (suspensa na sua execução) aplicada foi excessiva? 2. DA SENTENÇA RECORRIDA 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição[1]): 1) «O arguido AA e BB casaram no dia ../../2004, em .... 2) Têm em comum duas filhas, CC, nascida a ../../2006 e DD, nascida a ../../2012. 3) Desde o início da relação, o casal sempre residiu em ..., inicialmente na zona da ..., numa casa própria, que entretanto venderam, e depois em casa arrendada. 4) Há cerca de 4 anos, o casal foi residir para uma habitação sita na Rua ..., em ..., sempre na companhia das filhas. 5) O arguido AA é professor e, por esse motivo, estava quase sempre deslocado, vindo a casa aos fins-de-semana. 6) Ao longo da relação, o arguido deu aulas em ..., em ..., e nos últimos dois anos, ficou colocado em .... 7) A vítima BB é professora e sempre trabalhou na APPACDM em .... 8) Correu termos o proc. nº 316/18...., o qual foi arquivado em 17.12.2019, por carência de indícios e desistência de queixa. 9) Após o proc. nº 316/18...., no decurso das discussões, o arguido dirigiu a BB expressões de conteúdo injurioso, humilhando-a e insultando-a na sua honra e consideração, enquanto mulher, mãe e profissional, sobretudo quando era contrariado ou quando as coisas não eram feitas do modo que ele pretendia. 10) No decurso dessas discussões, o arguido, através de mensagem, apelidava a esposa de “vaca, burra, estúpida, puta”, afirmando ainda perante aquela “se és o que és deves a mim, eu é que mando nesta casa. Isto é tudo meu, és escumalha e incompetente”. 11) Aos fins-de-semana, quando se deslocavam à aldeia do ..., concelho ..., à casa de EE para almoçar, o arguido acabava por encetar discussões com a vítima, quer durante o convívio familiar, ou durante o percurso, na viagem de carro, afirmando no decurso das mesmas e perante a esposa que “a família dela não valia nada, que a mãe dela era uma assassina”, entre outras expressões de conteúdo semelhante. 12) A partir do mês de agosto de 2023 e até à data da separação, as discussões entre o casal passaram a ser diárias, sem motivo ou por motivos fúteis, em especial quando a vítima contrariava o arguido ou negava algum assunto do dia-a-dia. 13) Nestas ocasiões, o arguido injuriava a esposa, proferindo as seguintes expressões: “és uma puta, vais ter de dar o cu para viver, és uma desdentada”, o que lhe causava profunda tristeza e humilhação. 14) Também a partir do mês de agosto de 2023, o arguido começou a ter um comportamento mais ríspido para com a filha CC, proferindo várias vezes perante a jovem “vais ser uma infeliz não vais ser ninguém”. 15) Em consequência do comportamento do arguido, BB saiu da residência familiar no dia 11 de outubro de 2023, levando apenas algumas roupas, tendo ido residir para a localidade de ..., na companhia das filhas CC e DD. 16) Acresce que, após a saída da vítima e das filhas de casa, o arguido, desagradado, desarrumou o quarto das filhas, colocando as roupas e sapatos em cima de uma das camas e que a vítima posteriormente recolheu. 17) Todavia, no dia 8 de novembro de 2023, pelas 13h42, o arguido AA, através do seu telemóvel com o número ...42, enviou à ex-mulher BB, uma fotografia com roupas e calçados despejados em cima da cama, acompanhado dos seguintes dizeres: “Rua”, “tens até sexta-feira”, “Rua”, “Hoje já sai tudo daqui”, “Rua”, “Vai tudo em sacos”, “Sábado já está tudo na rua”. 18) A vítima iniciou o processo de divórcio no final do mês de outubro de 2023. 19) Sucede que, desde então, o arguido passou a enviar mensagens injuriosas à ex-mulher, através do WhatsApp e via SMS, usando para o efeito o número de telemóvel ...42, para o número telemóvel da vítima com o número ...60. 20) Assim, no dia 8 de novembro de 2023, o arguido AA, através do seu telemóvel com o número ...42, enviou à ex-mulher BB, para além de outras, as mensagens infra transcritas, insultando-a do seguinte modo: - às 13h48, “Quando começares a ter que dar o cu na tua próxima relação vais te lembrar de mim”; - às 13h49, “Não lhe faças broches, podes ficar sem dentes e ele deixa-te. NINGUÉM QUER IMA DESDENTADA SEM DINHEIRO”; - às 13h52, “SUA DESDENTADA”; - às 13h53, “agora vais ter de dar o cu”; - às 13h57, “Falsa nem em casas almoçavas, vais ser uma pedinte sem dentes”; - às 14h03, “A tua mãe vai-se fartar de ti”; - às 14h04, “boa agora tens o FF oh o teu cunhado q t protegem… Da lhes o cu”; - às 14h04, “Não faças é broches ao FF… Ficam te lá os dentes”; - às 17h22, “És tão pouco. Vem mas é buscar este lixo”. 21) No dia 29 de janeiro de 2024, o arguido colocou no alpendre do prédio da antiga residência familiar, sita na Rua ...., em ..., duas mesas-de-cabeceira e um baú com roupa das filhas. 22) No dia 30 de janeiro de 2024, o arguido colocou no mesmo sítio seis gavetas de uma cómoda, vazias. 23) Sucede que, ao abrir a gaveta de uma das mesas de cabeceira, CC verificou que no seu interior estava um preservativo acompanhado de um bilhete manuscrito “para a Viúva Alegre se divertir”. 24) Nesse momento, CC confrontou o pai sobre aquele comportamento afirmando “és mesmo nojento como és capaz de escrever uma coisa destas à avó”. 25) Desagradado, o arguido dirigiu-se de repente na direção da filha CC, denotando estar exaltado, ao que a jovem questionou “queres bater-me?”. 26) Perante a interpelação a filha, o arguido cuspiu para o vidro do carro de BB, correspondente ao lugar onde a filha CC se iria sentar, tendo esta também cuspido para a cara do pai, 27) Ao que o arguido respondeu “estou mesmo com vontade de te dar uma grande sova”, abandonando em seguida o local. 28) Mais tarde, cerca das 12h30, do dia 30.01.2024, o arguido deslocou-se à Escola ..., exigindo falar com a filha DD, questionando-a se “achava bem a irmã CC ter cuspido para o pai”, ao que DD respondeu que não achava bem, mas também não achava bem o pai ter cuspido à irmã, sendo que o arguido apenas respondeu “era o que eu queria saber”, abandonando o local em seguida. 29) Nesse mesmo dia, pelas 16h20, o arguido compareceu no local de trabalho da ex-mulher, BB, sito na APPACDM, junto ao Hospital ..., em ..., levando consigo, um quadro com fotografias e fotografias da filha CC. 30) Já na presença da ex-mulher, que se encontrava sentada num sofá no hall da instituição, o arguido proferiu “perante a lei portuguesa a partir de hoje eu sou o teu pior inimigo” e, de imediato, atirando o quadro e as fotografias, com violência ao chão, partindo-o, abandonando o local em seguida. 31) Tal conduta causou à vítima choro, profunda tristeza e sentimentos de vergonha e humilhação por o arguido não se ter inibido de assim atuar no seu local de trabalho, à vista de todos os que ali se encontravam. 32) Ao tomar conhecimento da situação, GG, diretora da instituição, dirigiu-se ao exterior e interpelou o arguido, informando que doravante estava proibido de frequentar aquele espaço. 33) No decurso do diálogo que estabeleceram, o arguido AA afirmou perante GG “se é bem-educada, fui eu que a eduquei”, referindo-se à ex-mulher BB. 34) Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB e CC sentiram receio pela sua e integridade física, e vivenciaram sentimentos de tristeza, impotência, humilhação e medo constantes. 35) Ao atuar da forma descrita, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de menosprezar a ofendida BB, e de a ofender na honra e consideração que lhe são devidas, de a maltratar psiquicamente, de a molestar e de afetar a sua saúde psíquica, o seu bem-estar e equilíbrio emocionais e de a inibir de agir livremente, subjugando-a à sua vontade como pretendia e conseguiu, assim agindo de molde a atingir a dignidade humana e a integridade psíquica desta, resultados estes que representou, procurou e logrou alcançar, bem sabendo que a ofendida era sua mulher e mãe das suas filhas, por esse motivo, impendia sobre si um dever especial de respeito e de proteção para com esta e que, ao agir desse modo, a submetia a sofrimento psicológico e lhe causava temor e receio pela sua vida e integridade física e pela vida e integridade física das filhas. 36) O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de maltratar a filha CC, de a molestar e de afetar a sua saúde psíquica, o seu bem-estar e equilíbrio emocionais e de a inibir de agir livremente, subjugando-a à sua vontade como pretendia e conseguiu, bem sabendo que, ao agir da forma descrita a submetia a sofrimento psicológico e que lhe causava temor e receio pela sua vida e integridade física e pela vida e integridade física da sua mãe, bem sabendo que aquela era sua filha, menor de idade, e que sobre si recaía o especial dever de a proteger e de a tratar, com particular respeito e consideração, atendendo ao vínculo familiar que os unia e à idade daquela, resultado que representou e concretizou. 37) Pretendeu, assim, o arguido molestar psicologicamente BB e CC, sua mulher e filha, causando-lhes um estado de humilhação, sofrimento, ansiedade e medo permanentes, na medida em que não sabiam o que esperar daquele, submetendo-os a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoas, com total desrespeito pela sua personalidade e autoestima, 38) Bem sabendo que a casa onde praticou tais factos era o domicílio familiar, que BB era sua mulher, e CC, sua filha, e por esse motivo, impendia sobre si um dever especial de respeito e de proteção para com estas, não se coibindo de assim atuar e de o fazer na residência familiar, a coberto da privacidade que a mesma lhe confere. 39) O arguido agiu sempre de modo deliberado, consciente, livre e voluntário, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e que lesavam a saúde física e psíquica das ofendidas e afetavam a sua dignidade pessoal. Mais se provou que: 40) O arguido vive em casa da irmã mais velha, durante a semana, em ..., onde trabalha como professor; durante o fim-de-semana, vive em ..., sozinho, em casa arrendada, pela qual paga, mensalmente, 500,00€; aufere 1.200,00€ mensais; suporta várias dívidas, ficando com o equivalente ao salário mínimo nacional disponível; durante vários anos, foi treinador de futebol. 41) Por decisão proferida em 03.11.2023, transitada em julgado em 19.04.2024, no âmbito do proc. nº 1102/20...., foi o arguido condenado pela prática, em 10.12.2020, de um crime de difamação agravado, um crime de injúria agravado e um crime de perseguição agravado, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita a regras de conduta, e de 200 dias de multa, à taxa diária de 9,00€, num total de 1.800,00€». 2.2. Foram estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição): a) «O arguido e BB casaram após cerca de cinco anos de namoro. b) O arguido proferia as expressões descritas no ponto 10 em voz alta e quando se exaltava. c) Há cerca de 4 anos, a vítima padecia de depressão e tomava antidepressivos, em virtude de problemas no trabalho e por falecimento do pai. d) Nessa altura, o arguido AA tinha por hábito gozar com a esposa sobre a sua doença e, no decurso das discussões que assim encetava, afirmava, várias vezes, perante BB “és depressiva, és doente”. e) Tais discussões ocorriam sobretudo ao fim-de-semana quando o arguido vinha a casa, e ocorriam na presença das filhas menores de idade. f) As discussões eram sempre iniciadas pelo arguido. g) Noutras ocasiões, ocorridas com frequência não apurada, mas sempre que a EE, mãe da vítima, visitava a família, o arguido afirmava, diversas vezes, perante a sogra, que ela era uma “viúva alegre, vai para o caralho, não vales nada, foi você que matou o seu marido”, bem sabendo que o sogro tinha falecido em consequência de um AVC, o que causava tristeza e sofrimento a BB. h) Numa ocasião, ocorrida em data não apurada, mas quando CC tinha 14 anos de idade, o arguido AA, BB e as filhas foram numa viagem, organizada pela mãe da vítima, e no decurso da viagem, o arguido enviou uma mensagem a BB afirmando “eu mato-te”. i) Tal mensagem foi motivada por ciúmes do arguido relativamente à atenção e cuidados que a sogra demonstrava aos netos, filhos da sua cunhada (irmã de BB), em detrimento das suas filhas. j) Em dia não apurado, mas situado no mês de março ou abril de 2023, a família encontrava-se no quintal da casa de EE, a almoçar. k) A dada altura, e sem que nada o fizesse prever, o arguido chamou a filha CC, exigindo que o acompanhasse à ... para recolher uma televisão. l) Durante o percurso entre a aldeia do ... e a cidade ..., o arguido, visivelmente exaltado, proferiu na presença da filha as seguintes expressões: “teu primo não vale um caralho, a tua avó não gosta de nós, a tua mãe gosta mais dos teus primos do que vocês, o único rei da família sou eu e não admito que chamem rei a outros”, referindo ao facto de a sogra tratar o único neto do sexo masculino que tem por “rei”. m) De igual modo, e no decurso das discussões que encetava com a filha ou quando a repreendia, o arguido apelidava a filha de “drogada”, aludindo a um episódio em que a jovem confidenciou aos pais que sentindo-se pressionada pelos amigos, experimentou fumar uma droga que os amigos estavam a consumir. n) No dia 29 de janeiro de 2024, o arguido colocou os objetos descritos nos pontos 21 e 22 na via pública, junto ao prédio da antiga residência familiar, sita na Rua ...., em .... o) Nesse mesmo dia 30 de janeiro de 2024, durante a manhã e no momento em que a vítima recolhia as mesas-de-cabeceira da via pública, na companhia das filhas, a filha DD tocou a campainha do prédio e solicitou ao pai que lhe entregasse um estojo escolar que havia ficado esquecido, ao que o arguido acedeu, fazendo a entrega do estojo à filha. p) No dia 30 de janeiro de 2024, o arguido cuspiu para os pés de CC, tendo esta também cuspido para os pés do pai. q) Ao atuar da forma descrita, agiu o arguido com intenção de maltratar fisicamente BB, de a molestar fisicamente e de afetar a sua saúde física, assim agindo de molde a atingir a integridade física desta, bem sabendo que ao agir desse modo, a submetia a sofrimento físico. r) O arguido agiu com o propósito de molestar e de afetar a saúde física de CC, bem sabendo que, ao agir da forma descrita a submetia a sofrimento físico. s) Pretendeu, assim, o arguido molestar fisicamente BB e CC. t) O arguido discutia com BB na presença de menores». 2.3. Apesar de não haver recurso da matéria de facto, optamos por transcrever a motivação da mesma, para futuro uso na nossa decisão: «O Tribunal fundamentou a sua convicção na prova produzida em sede de audiência de julgamento, globalmente analisada e concatenada, em conjugação com as regras da lógica e da experiência comum. Concretizando. No que concerne à factualidade descrita nos pontos 1 a 7, o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações prestadas pelo arguido (em audiência de julgamento e durante o inquérito, perante autoridade judiciária e assistido por defensor, depois de advertido de que as suas declarações poderiam ser valoradas em audiência, nos termos do art. 357.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal) e no depoimento prestado por BB, concordantes, nesta parte, em conjugação com a certidão de casamento com refª. 36845162 e as certidões de nascimento com refªs. 36845150 e 36845159. Já o facto provado n.º 8 resultou da certidão do proc. n.º 316/18...., a fls. 103-106. Quanto aos factos provados n.ºs 9 a 13, o Tribunal formou a sua convicção com base no depoimento de BB, parcialmente corroborado, na medida dos respetivos conhecimentos, por CC e DD (a qual foi ouvida em declarações para memória futura). Na verdade, BB confirmou que, no contexto de discussões, o arguido a apelidava com as expressões descritas e lhe falava mal da sua família, mais propriamente da sua mãe. No entanto, BB referiu que o arguido adotava esses comportamentos sobretudo por mensagem, o que fazia com que as filhas não assistissem propriamente às discussões. É certo que tanto CC, como DD, asseguraram ter assistido a discussões entre os progenitores, nas quais o arguido insultava BB. No entanto, CC não conseguiu precisar as concretas expressões a que assistiu e DD não foi capaz de circunstanciar minimente os factos que relatou, desconhecendo o Tribunal se dizem respeito às discussões em apreciação ou a outras. Por esse motivo, muito embora os depoimentos de CC e DD corroborem a versão dos factos apresentada por BB, em detrimento da versão apresentada pelo arguido, o Tribunal não pôde concluir que o arguido tenha praticado os factos dados como provados na presença de menores (factos não provados nas alíneas e) e t)). Por seu lado, o arguido negou a prática da quase totalidade dos factos que lhe são imputados, assumindo apenas a prática daqueles que não lhe era possível negar, por existir prova objetiva. Contudo, o Tribunal não atribuiu qualquer credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, atendendo, desde logo, ao modo como prestou declarações. Com efeito, em sede de inquérito, o arguido prestou declarações, nas quais adotou um discurso claramente desresponsabilizador, minimizando a sua atuação e rebaixando explicitamente, mesmo perante autoridade judiciária, BB. Concretamente, afirmou, por mais do que uma vez, que era ele quem pagava todas as despesas, incluindo as de BB, declarando mesmo que, por esse motivo, era ele quem “mandava em casa”. Além disso, foi evidente a sua preocupação em rebaixar BB, afirmando mesmo que esta só tinha concluído a sua licenciatura devido à ajuda do arguido. Neste contexto, afirmou que BB é “má”, é o “diabo” e é “mentirosa compulsiva”, deixando ainda escapar que a sua intenção é ver o desfecho deste processo antes de decidir se age judicialmente contra a sua filha CC, por lhe ter cuspido na cara. Declarou ainda, de modo revelador, que disse a BB para aceitar uma pensão de alimentos de 150,00€ para ambas as filhas, pois, caso contrário, deixaria de pagar sozinho as dívidas que ambos, enquanto casal, contraíram. Ademais, em inquérito, quando confrontado com as mensagens a fls. 27-47, começou por afirmar que não se recordava de as ter enviado, versão que não manteve em audiência de julgamento, tendo prontamente admitido o seu envio, mas apressando-se a conceder explicações que, mais uma vez, pretendem mascarar e minimizar o seu comportamento. Note-se que, em audiência de julgamento, após audição do depoimento da sua filha CC, que afirmou que o arguido cuspiu para a viatura da mãe, mais concretamente para o vidro correspondente ao local onde aquela se iria sentar, o que foi por ela entendido como uma ameaça e provocação, a preocupação do arguido foi a de realçar que CC lhe cuspiu para a cara, olvidando que o arguido neste processo é ele e não CC, sua filha e menor de idade à data do episódio descrito. A propósito do relacionamento com a filha CC, em inquérito, o arguido assumiu que a mesma era desrespeitadora das suas regras e da sua autoridade que, constantemente, colocava em casa, não estudando, nem tendo boas notas, pelo que nunca poderia vir a ter uma profissão da qual sentisse orgulho, assim reconhecendo, neste contexto, o facto provado n.º 14. Assumiu também o arguido os factos provados n.ºs 15 a 20, justificando sempre que “estava nervoso”, “é boa pessoa”, “respeita toda a gente”, o que é contraditório com o teor das mensagens que o arguido admitiu ter enviado a BB. Quanto ao episódio ocorrido no dia 30 de janeiro de 2024 (factos provados n.ºs 21 a 27), o arguido admitiu-o também, genericamente, precisando, embora, que cuspiu para o chão, o que foi contrariado pelo depoimento de CC. A este propósito, cumpre assinalar que o depoimento de CC se afigurou plenamente credível, na medida em que apresentou os factos de forma lógica, coerente, objetiva e descomprometida, apesar da natureza da matéria sobre a qual prestou depoimento. Ademais, foi evidente a preocupação de CC e, de forma ainda mais intensa, de BB, em não prejudicar o arguido, em prol da aparente pacificação atual das relações. Especificamente quanto ao facto provado n.º 23, o Tribunal teve ainda em consideração a fotografia a fls. 50. Nesta parte, cumpre ainda salientar que não pode o Tribunal deixar de manifestar a sua perplexidade sobre a consideração que o arguido, nas suas declarações, demonstrou ter por si próprio e pela sua ex-mulher e filhas. De facto, o arguido colocou um preservativo acompanhado de um bilhete manuscrito “para a Viúva Alegre se divertir”, referindo-se à mãe de BB, a qual o arguido vinha apelidando reiteradamente de “viúva alegre”, conforme resulta das mensagens as fls. 44-46, dentro de uma gaveta de uma mesa-de-cabeceira que BB e as filhas foram recolher. Portanto, o arguido não só colocou esses objetos fora de casa, sujeitando a sua ex-mulher e suas filhas à humilhação de aí os recolherem, como ainda escreveu um bilhete, que acompanhou com um preservativo. Quando a sua filha mais velha o confrontou, o arguido cuspiu para o vidro do carro onde a mesma se sentaria. Mas, isto posto, a preocupação do arguido foi a de realçar que, como reação à sua conduta, CC lhe cuspiu para a cara. Ou seja, mais uma vez, pretendendo mascarar e minimizar o seu comportamento, causador de todo o conflito, realçando sempre a atitude dos demais. Quanto ao facto provado n.º 28, o arguido assumiu-o também, explicando que a sua intenção era a de indagar junto da sua filha mais nova se tinha visto CC a cuspir para si, para não vir a ser acusado mais tarde de coisas que não fez. Portanto, mais uma vez, o arguido abordou a sua filha, menor de idade, na escola, sobre o episódio descrito, nem sequer se apercebendo do constrangimento e sofrimento que isso lhe poderia causar, o que, segundo decorre do seu discurso, ainda atualmente não atingiu. Já no que diz respeito aos factos provados n.ºs 29 a 33, o Tribunal formou a sua convicção com base no depoimento de BB, o qual foi especialmente credível até pela preocupação demonstrada em desculpabilizar o arguido, em conjugação com os depoimentos das testemunhas HH, GG, II e JJ e com o auto de visionamento a fls. 148-154. As referidas testemunhas não demonstraram qualquer interesse no desfecho da causa, não revelando também qualquer especial relação de amizade com BB, apesar de serem suas colegas de trabalho. Nesta parte, o arguido assumiu a prolação da expressão referida no ponto 30, embora tenha afirmado que não atirou o quadro para o chão, tendo o mesmo caído apenas porque BB não o agarrou. No entanto, pelos motivos já descritos, o Tribunal não atribuiu credibilidade à sua versão, a qual foi contrariada por BB e pelos demais presentes no momento. Já quanto ao facto provado n.º 34, o Tribunal formou a sua convicção com base nos depoimentos de BB e CC, os quais se mostraram plenamente conformes com as regras da lógica e experiência comuns. Em relação aos factos provados n.ºs 35 a 39, o Tribunal teve em consideração a prova dos restantes factos, em conjugação com as regras da lógica e experiência comuns. Efetivamente, quem atua da forma como o arguido agiu, comporta-se de modo livre, consciente, voluntário e deliberado, coma intenção de menosprezar, humilhar e maltratar psicologicamente as destinatárias das suas condutas, as quais sabia serem sua esposa/ex-esposa e filha, apesar do especial dever de respeito e proteção que tem para com elas, e encontrando-se no domicílio familiar, ciente da punibilidade da sua conduta. Quanto ao facto provado n.º 40, o Tribunal teve em consideração o relatório social com refª. 3837160, em conjugação com as declarações prestadas pelo arguido, inexistindo motivo para delas duvidar, nesta parte. No que respeita ao facto provado n.º 41, o Tribunal considerou o Certificado de Registo Criminal a fls. 288-289. * Relativamente aos factos não provados nas alíneas a), c), d), e), h) a l), o) e t), não foi produzida qualquer prova nesse sentido.Especificamente quanto aos factos não provados nas alíneas j) e l), apesar de resultar do discurso do arguido a sua animosidade em relação à sua ex-sogra pela preferência da mesma em relação ao seu neto, em detrimento das filhas do arguido, também suas netas, particularmente na parte em que o apelidava de “rei”, não foi produzida qualquer prova quanto à ocorrência do episódio descrito nos pontos j) a l). No que diz respeito ao facto não provado na alínea b), BB precisou que o arguido não a apelidava dessas expressões frente-a-frente, mas apenas por mensagem escrita e, conforme supra exposto, para este efeito não foi possível utilizar os depoimentos de CC e DD, por não ter ficado esclarecido a que episódios se referiam especificamente. Da mesma forma, BB esclareceu que, muitas vezes, era a própria quem iniciava as discussões, devido a atitudes do arguido (facto não provado na alínea f)). Também BB afirmou que as referências à sua mãe e ao facto de ter matado o seu pai eram feitas pelo arguido, mas apenas dirigindo-se a si e não propriamente à sua mãe (facto não provado na alínea g)). Semelhante esclarecimento prestou BB em relação ao facto não provado na alínea m). Quanto ao facto não provado na alínea n), a respetiva prova foi inviabilizada pela prova de facto incompatível (facto provado n.º 21), sendo o arguido e BB unânimes em declarar que os objetos foram colocados no alpendre do prédio e não no passeio (via pública). A prova do facto não provado na alínea p) foi também inviabilizada pela prova de facto incompatível (facto provado n.º 26). Por fim, relativamente aos factos não provados nas alíneas q) a s), cumpre assinalar que não resultou provada qualquer agressão física a BB e/ou CC». 3. APRECIAÇÃO DO RECURSO 3.1. SOBRE A PERFECTIBILIZAÇÃO DO 2º CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM QUE A VÍTIMA É A FILHA CC Inexiste recurso sobre a matéria de facto (e não vislumbra este Tribunal qualquer vício do artigo 410º, 2 do CPP, tão lógica e escorreita se mostra a sentença recorrida). Apenas contende este recurso com o quantum da pena aplicada e com a circunstância de o tribunal ter visto nesta factualidade motivos suficientes para os subsumir à letra típica dos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. e), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (no que tange ao segmento em que a vítima é CC, filha menor do arguido). Neste último ponto, prévio à questão da dosimetria da pena, o recurso defende que: · «Analisados os factos do caso concreto relativos à jovem CC, não se pode, com o devido respeito concluir pela existência dos pressupostos de que depende a vetificação do crime de violência doméstica, desde logo, porque nenhum facto foi trazido a Tribunal que sustentasse um especial domínio ou controlo do arguido em relação àquela, não resultando igualmente que o arguido estivesse, ou pretendesse, subjuga-la a uma vivência de medo ou de subordinação. · Pelo contrário, da matéria factual provada resulta claro que os factos ocorreram num contexto de disfuncionalidade e desagregação familiar, tanto mais considerando que a forma de tratamento e o nível de linguagem utilizados no seio familiar, de resto contrário a qualquer união saudável, se verificava mutuamente, razão pela qual apenas podemos concluir que o arguido não cometeu o crime de violência doméstica na pessoa da jovem CC». Não validamos esta leitura benigna da causa. Quanto ao crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, diremos: — O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio (cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima); — No seu tipo objectivo, incluímos as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma - o actual crime de violência doméstica afigura-se complexo, abarcando uma multiplicidade de situações de facto, quer no que toca ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer no que toca aos específicos agentes que o podem cometer (agente ou sujeito activo), quer quanto aos específicos sujeitos que podem dele padecer (vítima ou sujeito passivo), quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias); — Este elenco de Maus-tratos – previsto no artigo 152º do CP - é exemplificativo (crime de execução não vinculada); — Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, tendemos aqui a concordar com Catarina Fernandes[2], quando afirma que a violência doméstica pode consubstanciar, tanto um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos); como um crime de mera actividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças); como um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) ou como um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações); — Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado («por regra não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime»); — Pese embora a supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, entende-se que um único acto ofensivo, sem reiteração, para poder ser considerado «Maus Tratos» e assim preencher o tipo do 152º, continua, hoje, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana (TUDO DEPENDENDO DO CASO CONCRETO)[3]; — Exige o tipo um estado de agressão tendencialmente permanente (exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante); — Bastará então a fixação de balizas temporais que permitem assegurar ao agente o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo (daí não se exigir a especificação das datas exactas de todas as agressões). Também tem sido entendido, sendo muito elucidativo o Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, que o relator deste aresto coordenou enquanto Director-Adjunto do CEJ, que «as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência: ü Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos. As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro. ü Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo. ü Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima. ü Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”., “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido. ü Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés. ü Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro». No nosso caso, o tribunal entendeu que a factualidade apurada quanto à filha CC consumava um outro crime de violência doméstica (para além do que foi cometido contra a mulher do arguido, BB). E NÓS COM ELE. Com base nos factos provados nºs 10, 14, 21 a 27, 34, 36, 37, 38 e 39, o tribunal condenou a arguida pela prática de um crime de violência doméstica[4], na pessoa da filha. E aqui defendemos veementemente a tese segunda a qual a educação de uma criança não pode nunca passar pelo recurso ao castigo físico ou psíquico. Disserta assim o acórdão da Relação do Porto de 16/12/2020 (Pº 3204/15.8T9MAI.P1): «Atualmente, o Código Civil (redação do DL 496/77, de 25/09) designa a relação entre pais e filhos por responsabilidades parentais (artº 1877º e ss.) cujo conteúdo é definido, essencialmente nos artºs 1878º e 1885º, como assistencial e educacional e não corretivo. Maria Clara Sottomayor, pronunciando-se pela substituição do poder de correção pela educação, refere que “a educação substitui a correção, tendendo a diluir-se a tradicional distinção entre o adulto e a criança, que inferiorizava a criança em relação aos adultos” (…) “O direito dos pais educarem os filhos não abrange o direito de os agredir, de ofender a sua dignidade, integridade física e psíquica ou liberdade”. Por outro lado, existe inequivocamente uma diferença de grau elevado entre uma relação como a da arguida com as crianças identificados nos autos, e a relação educativa entre os pais e as crianças seus filhos, quer essa diferença advenha da responsabilidade dos pais, pela grande proximidade existencial com os seus filhos; quer do afecto que une [ou é suposto que una] uns aos outros; quer mesmo do reconhecimento que decorre do artigo 29º da Convenção dos Direitos da Criança onde se despõe expressamente que “a educação deve inculcar [entre outros] o respeito pelos pais.”; quer mesmo pelo facto de a família ser reconhecidamente o primeiro pilar da educação das crianças. Diferença que não pode deixar de estar patente nas diferenças entre os tipos de ilícito previstos no artigo 152º e 152º A. do CP. A posição da recorrente não leva em conta a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, em cujo preâmbulo se reafirma “o facto de as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitarem de uma protecção e de uma atenção especiais, e sublinha de forma particular a responsabilidade fundamental da família no que diz respeito aos cuidados e protecção. Reafirma, ainda, a necessidade de protecção jurídica e não jurídica da criança antes e após o nascimento, a importância do respeito pelos valores culturais da comunidade da criança, e o papel vital da cooperação internacional para que os direitos da criança sejam uma realidade”. Sendo que nos termos do artigo 29 da Convenção, já acima mencionado, “A educação deve destinar-se a promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicas, na medida das suas potencialidades. E deve preparar a criança para uma vida adulta activa numa sociedade livre e inculcar o respeito pelos pais, pela sua identidade, pela sua língua e valores culturais, bem como pelas culturas e valores diferentes dos seus». Também o aresto da Relação de Lisboa (Pº 413/15.3PFAMD.L1-3) é claro: «Entendemos igualmente, conforme plasmado em muitos documentos produzido no âmbito da Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação, e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações na linguagem da violência. Alguns Estados têm, aliás, leis que proíbem expressamente a agressão a crianças. O que se nos afigura, de iure constituendo, uma solução sensata já que o peso dessas palavras, i. e, dessa autonomização típica, por sugerir uma específica representação, transmitiria, de modo mais claro e assertivo, a mensagem de que castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, seria mais eficaz em criar no imaginário colectivo, a ideia de que existem outras formas alternativas de educar. Este seria, pois, o primeiro passo para criar na consciência jurídica colectiva, incluindo em franjas pautadas pela iliteracia em geral, uma nova necessidade, qual seja, a de procurar informação acerca dessas “outras” formas alternativas. Em segundo lugar, e não obstante o que vimos defendendo “de iure constituendo”, entendemos que, estando em causa uma reflexão no domínio da culpa, a ponderação a fazer deve cingir-se ao contexto psicológico do arguido e à exigibilidade de o mesmo ter actuado de outra forma. Ora, tais práticas ainda massivas e que, como vimos, não são rejeitadas unanimemente pela jurisprudência nem por toda a doutrina, jurídica ou da lavra de outras ciências sociais, sendo que resultam da transmissão geracional desses comportamentos. Até porque, criança maltratada tende a, como adulto, infligir maus-tratos (v. com interesse, nesta matéria, “Direitos das Crianças e Jovens – Actas do Colóquio”, ISPA/CEJ, pags. 228 a 233, e Durkheim, Sociologia, Educação e Moral, Porto, Rés Editora, 1984, pg. 303)». Apesar de múltiplos acórdãos referirem o poder-dever de correcção como parte das responsabilidades parentais, a reforma de 1977 do Código Civil eliminou o “poder de corrigir moderadamente o filho nas suas faltas”. Ou seja, desde 2017, o castigo físico das crianças também é punido pelo Código Penal, seja pelo crime de violência doméstica ou de maus tratos (artigo 152º) ou de ofensa à integridade física (artigos 143º e 145º). A nível europeu, a pressão para a abolição dos castigos corporais já vem sendo feita há décadas e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, o principal instrumento jurídico desta temática, proíbe todas as formas destas punições nos artigos 19º e 37º. Em todo o mundo, 63 Estados já proibiram estes castigos — em 2021, juntaram-se à lista a Coreia do Sul e a Colômbia. Lado a lado com Portugal, também Espanha, Nova Zelândia, Países Baixos, Togo, Uruguai e Venezuela proibiram esta forma de violência em 2007. Já nos Estados Unidos, por exemplo, ainda é permitido este tipo de castigos em casa e, em 19 estados, não foram banidos nas escolas. O direito de os pais infligirem punições nos filhos não se enquadra legalmente em violência e maus tratos neste país, segundo a plataforma internacional dedicada ao tema End Corporal Punishment. Numa palavra: A partir do momento em que reconhecemos a criança como um sujeito de direitos, o sujeito de direitos não deve ser educado dessa forma violenta, devendo a violência ser eliminada das relações entre as crianças e os adultos. Logo, o poder de correcção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal em Portugal de onde se possa retirar tal conclusão (Portugal aparece como um dos países[5] que alterou a sua legislação tendo em vista o respeito pelos direitos da criança e a abolição dos castigos corporais). Os castigos corporais não são permitidos em caso algum e podem constituir uma forma de maltrato e configurar situações de perigo que legitimem a intervenção do sistema de protecção de crianças previsto na Lei de Promoção de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. No fundo, bater numa criança não passa de “um acto de humilhação” e de uma enorme “falha do adulto”, na douta palavra de Catarina Ribeiro, psicóloga forense. Apela-se, pois, a que não se use causas de exclusão de ilicitude pois toda a violência contra os filhos é intolerável e nunca justificável e justificada (toda a violência contra um ser humano é indigna). Ora, o raciocínio feito quanto a agressão física vale para a agressão psíquica. Portanto, estas agressões dos nossos autos são ilegítimas e criminosas, envolvidas num quadro de sujeição de 3 pessoas aos desmandos autoritários de um marido e pai. Não esqueçamos: Constitui boa prática interpretativa o entendimento segundo o qual o bem jurídico a proteger está também intimamente relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico, e ainda em todas as relações de confiança tuteladas pela norma incriminadora. Desta forma, visa-se uma tutela reforçada da pacífica convivência familiar ou doméstica, face a condutas que, sem aparente gravidade ou intensidade, isoladas ou não reiteradas, são susceptíveis de corromper toda a relação de confiança pré-existente. Lemos em https://gfcjivd.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/nota-pratica-1-2023-viol-domestica-bem-juridico_0.pdf: «Na análise global dos factos impõe-se atender, além do mais, à relação de domínio ou de poder exercida pelo agente no âmbito da relação familiar ou quase-familiar, que deixa a vítima insegura e indefesa, numa palavra, no conceito próprio de vítima especialmente vulnerável. Esta avaliação deve ser feita, com total objetividade, por referência ao caso real e às caraterísticas pessoais das concretas pessoas envolvidas, desde logo da vítima, das suas ambivalências próprias, com total abandono de conceções individuais, pré-juízos, preconceitos ou juízos de valor alheios ao caso e aos envolvidos». A defesa invoca, já vimos, que nenhum facto foi trazido a Tribunal que sustentasse um especial domínio ou controlo do arguido em relação à filha, não resultando igualmente que o arguido estivesse, ou pretendesse, subjugá-la a uma vivência de medo ou de subordinação. Os factos nºs 10, 14, 21 a 27, 34, 36, 37, 38 e 39 falam por si e a defesa não os impugnou devidamente (à luz do artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP). E também não corroboramos a tese de que os factos ocorreram num contexto de disfuncionalidade e desagregação familiar, tanto mais considerando que a forma de tratamento e o nível de linguagem utilizados no seio familiar, de resto contrário a qualquer união saudável, se verificava mutuamente. Dos factos não se vislumbra qualquer reciprocidade nesta violência (nomeadamente, alguma insolência por parte desta filha CC para com o pai que possa justificar as atitudes deste – e este cuspiu-lhe, virou-se a ela, desarrumou os bens da filha, colocando-os humilhantemente no alpendre da casa, disse-lhe várias vezes – desde 2018 a 30.1.2024 - «vais ser uma infeliz não vais ser ninguém»). Só pode ser, assim, condenado este Pai pelo delito em causa. Damos, pois, o nosso pleno assentimento às lucubrações jurídicas feitas pelo tribunal recorrido, no que tange à subsunção jurídico-penal dos factos aos DOIS ilícitos do artigo 152º do CP, um pela alínea a), outro pela alínea e)[6] do nº 1, ambos agravados pelo nº 2, alínea a), no segmento «no domicílio comum ou da vítima», em legal concurso efectivo que se valida). 3.2. SOBRE A DOSIMETRIA DA PENA APLICADA O tribunal condenou o arguido pelos seguintes delitos e nestas penas: · um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. a), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de BB), na pena de 3 (três) anos de prisão; · um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelos arts. 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1 e 152º, nº 1, al. e), nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal (na pessoa de CC), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; · na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na execução, pelo mesmo período de tempo, com regime de prova, de acordo com plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP (art. 53º, nº 1 do Código Penal), o qual deverá contemplar o acompanhamento do arguido no sentido de lhe demonstrar que deve agir de acordo com o direito e da sua consciencialização de que as mulheres devem ser respeitadas e qual a posição que as mesmas ocupam na sociedade, bem como: - a frequência em programa de prevenção contra a violência doméstica (arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 1, al. b) do Código Penal); - a proibição de contactar, por qualquer meio, com BB e de frequentar ou permanecer na sua residência, local de trabalho ou qualquer outro local onde aquela se encontre (arts. 54º, nº 3 e 52º, nº 2, al. b) do Código Penal e art. 34º-B, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro); - pagamento da reparação oficiosa infra atribuída às vítimas (art. 51º, nº 1, al. a) do Código Penal). E defendeu-se assim: «A aplicação de uma pena, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 40.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Penal, “visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, devendo a medida da pena ser determinada, dentro da moldura penal abstrata definida pelo legislador, “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. A culpa do agente fixa o limite máximo inultrapassável da pena aplicável ao caso concreto (art. 40.º, n.º 2 do Código Penal). Com efeito, não existe pena sem culpa (nulla poena sine culpa). O Código Penal Português consagrou, assim, a teoria da moldura da prevenção, segundo a qual é a prevenção geral positiva que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. A culpa, enquanto limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas, fornece o limite máximo da pena. Uma ultrapassagem deste limite, mesmo em nome de exigências preventivas, colocaria em causa a dignitas humana do agente, sendo, por isso, inadmissível do ponto de vista jurídico-constitucional. Assim, a medida da pena corresponde à medida de necessidade de proteção de bens jurídicos, face ao caso concreto, no sentido da reintegração da validade da norma violada, ou seja, da tutela das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da vigência da norma infringida. Porém, este critério fornece apenas a medida ótima de tutela de bens jurídicos e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem colocar irremediavelmente em causa a tutela do ordenamento jurídico. É dentro desta moldura fixada pelas exigências de prevenção geral positiva que vai atuar a prevenção especial positiva ou de ressocialização, entre o referido ponto ótimo e o mencionado ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável – tendo sempre como limite inultrapassável a medida da culpa do agente. Na determinação concreta da pena, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: “a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena” (art. 71.º, n.º 2 do Código Penal). Posto isto, atentemos na situação vertida nos autos: - a ilicitude é elevada, tendo em consideração que o arguido atingiu a honra, a consideração e a integridade psíquica da sua esposa e mãe das suas filhas, no interior da residência comum, humilhando-a como pessoa, como mulher e como mãe. - o arguido atingiu a integridade psíquica da sua filha CC, nascida a ../../2006, indiferente ao especial dever e de proteção que tem para com esta. - o dolo é intenso, pois o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era punida por lei, tendo manifestado no facto uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal. - o arguido agiu com indiferença perante o sofrimento que causava à sua esposa e mãe do seu filho, bem como à sua filha, CC, demonstrando, com a sua atuação, falta de preparação para manter uma conduta lícita. - o arguido vive em casa da irmã mais velha, durante a semana, em ..., onde trabalha como professor; durante o fim-de-semana, vive em ..., sozinho, em casa arrendada, pela qual paga, mensalmente, 500,00€; aufere 1.200,00€ mensais; suporta várias dívidas, ficando com o equivalente ao salário mínimo nacional disponível; durante vários anos, foi treinador de futebol. - por decisão proferida em 03.11.2023, transitada em julgado em 19.04.2024, no âmbito do proc. n.º 1102/20...., foi o arguido condenado pela prática, em 10.12.2020, de um crime de difamação agravado, um crime de injúria agravado e um crime de perseguição agravado, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita a regras de conduta, e de 200 dias de multa, à taxa diária de 9,00€, num total de 1.800,00€. O crime de violência doméstica agravado, p. p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. a) e e) e n.º 2, al. a) do Código Penal é punível com pena de prisão de dois a cinco anos. Assim, não há lugar à escolha da pena, uma vez que a incriminação em análise apenas comina a pena de prisão, cumprindo somente determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em consideração as circunstâncias previstas no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal. No caso em apreço, as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, existindo a necessidade de reafirmação contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma violada pelo arguido, atendendo, especialmente, à frequência com que este tipo de crime vem sendo cometido. Por seu lado, as exigências de prevenção especial assumem já alguma relevância, uma vez que o arguido, apesar de se encontrar profissional, social e familiarmente inserido, foi já condenado, por decisão transitada em julgado em 19.04.2024, pela prática de um crime de difamação agravado, um crime de injúria agravado e um crime de perseguição agravado. Assim, a ilicitude é elevada e a culpa é intensa, pelo que, sopesando as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, o Tribunal julga justa e adequada uma pena de: - três anos de prisão pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa de BB); - dois anos e seis meses pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. e) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa de CC) * Uma vez que ao arguido foram aplicadas duas penas distintas, cumpre efetuar o respetivo cúmulo jurídico.De acordo com o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do Código Penal, “[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”. No caso em apreciação, o arguido praticou dois crimes, em concurso efetivo, antes de transitar a condenação por qualquer deles, razão pela qual cumpre proceder à realização do cúmulo jurídico, encontrando a pena única em que o arguido virá a ser condenado. Segundo o sistema da pena conjunta, adotado pelo Código Penal Português, o tribunal deve começar por determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de escolha e determinação da medida da pena – o que já foi supra levado a cabo. Posteriormente, o tribunal deve construir a moldura penal do concurso, cujo limite máximo corresponde à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (ou seja, cinco anos e seis meses) e o limite mínimo coincide com a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (três anos), nos termos do art. 77.º, n.º 2 do Código Penal. Por fim, o tribunal deve determinar a medida da pena conjunta do concurso, de acordo com os critérios gerais da culpa e da prevenção fixados no art. 71.º do Código Penal, bem como tendo em consideração o critério especial de determinação da medida do concurso, previsto no art. 77.º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual “[n]a medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Após, caso estejam cumpridos os respetivos pressupostos, o Tribunal deve equacionar a substituição da pena única do concurso por uma pena de substituição. Na determinação da pena única, e considerando os factos e a personalidade do agente, há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a averiguar sobre possíveis conexões entre si, por forma a alcançar uma imagem global do facto. No fundo, atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente. Por isso, não é despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa e dos respetivos bens jurídicos atingidos. Ao fim e ao cabo, o juiz deve proceder a uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta ou não a existência de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso. Esta análise global serve também para aferir se o conjunto de factos praticados pelo agente é a expressão de uma tendência criminosa ou se emerge de fatores meramente ocasionais. No caso sub judice, a motivação do agente funda-se diretamente na sua personalidade, formada de modo desconforme com o dever-ser jurídico-penal, e não em circunstâncias externas que tivessem propiciado a prática dos factos. A favor do arguido milita apenas a sua integração social, profissional e familiar. No entanto, não pode olvidar-se que os factos praticados pelo arguido são extremamente censuráveis, pela potencialidade em rebaixar e humilhar as pessoas visadas. Face ao que resulta exposto, julga-se justa e adequada a fixação da pena única do concurso em quatro anos. * Uma vez que a pena de prisão fixada ao arguido foi de quatro anos de prisão, cumpre ainda equacionar a possibilidade de proceder à sua substituição.As penas de substituição da pena de prisão previstas no Código Penal são a pena de multa (art. 45.º do Código Penal), a pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade (art. 46.º do Código Penal), o regime de permanência na habitação (art. 43.º do Código Penal), a suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º do Código Penal) e a prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58.º do Código Penal). O critério geral de substituição da pena é preventivo (geral e especial) e não de compensação da culpa. Esta tem apenas como função, no processo de determinação da pena, fixar o limite inultrapassável do quantum daquela, nada tendo a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outro lado, a prevenção especial de socialização tem prevalência, face à prevenção geral positiva, no momento de aferir da substituição da pena principal aplicada. A prevenção geral surge sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização. Em consequência, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena de substituição quando a execução da pena de prisão se revele necessária ou mais conveniente, do ponto de vista da prevenção especial de socialização. Por outro lado, sempre que o tribunal tenha ao seu dispor mais do que uma pena de substituição aplicável ao caso concreto, deve decidir qual delas aplicar com base, mais uma vez, em considerações de prevenção especial de socialização. A medida concreta da pena de substituição é determinada de forma autónoma, a partir dos critérios estabelecidos no art. 71.º do Código Penal, isto é, sem qualquer correspondência automática entre o tempo de prisão e a medida da pena que a substitui, com exceção da prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58.º, n.º 3 do Código Penal). No caso sub judice, levando a cabo um juízo de prognose, é de esperar que o arguido repense as suas práticas e, com a presente condenação, se abstenha de cometer novos crimes, tendo em conta que se encontra social, profissional e familiarmente inserido. Portanto, é de prever que a presente condenação configure uma solene advertência, capaz de encaminhar o arguido para que este passe a reger a sua vida pelo cumprimento das normas essenciais à vivência em comunidade. A pena de prisão de quatro anos apenas pode ser substituída pela pena de suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º, n.º 1 do Código Penal), encontrando-se legalmente vedada a substituição por pena de multa (art. 45.º, n.º 1 do Código Penal), regime de permanência na habitação (art. 43.º, n.º 1 do Código Penal), proibição do exercício de profissão, função ou atividade (art. 46.º, n.º 1 do Código Penal) e prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58.º, n.º 1 do Código Penal). Assim, julga-se adequada às exigências de prevenção especial que se fazem sentir a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, pelo período de quatro anos (art. 50.º, n.º 5 do Código Penal). A pena de suspensão da execução da pena de prisão constitui uma verdadeira pena de substituição, autónoma, e não um mero incidente ou mesmo só uma modificação da execução da pena de prisão. De acordo com o disposto no art. 50.º, n.º 1 do Código Penal, “[o] tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Assim, trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, cuja aplicação se baseia num juízo de prognose social favorável ao arguido de que a séria e solene advertência da sua condenação e a ameaça da pena é suficiente para o afastar da prática de novos crimes, ou seja, de que o arguido aceitará a oportunidade que lhe é oferecida e que passará a pautar a sua vida por uma atitude de fidelidade ao direito. Esse juízo de prognose é levado a cabo tendo em conta as finalidades da punição, ou seja, exclusivamente considerações de natureza preventiva, geral e especial (proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade – art. 40.º do Código Penal) e atendendo tanto à personalidade do agente, como às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às próprias circunstâncias destes. Por outro lado, na formulação do juízo de prognose, o tribunal reporta-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do facto. A suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: simples (art. 50.º, n.º 1 do Código Penal), sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta ou acompanhada por regime de prova (art. 50.º, n.º 2 do Código Penal). Caso a suspensão da execução seja sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta, estas podem ser modificadas até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento (art. 51.º, n.º 3 e 52.º, n.º 4 do Código Penal), o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da pena de prisão está sujeito a uma cláusula rebus sic stantibus, mesmo independentemente do incumprimento do condenado. A suspensão acompanhada de regime de prova é aplicada sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade e ainda quando o agente seja condenado pela prática de um dos crimes previstos nos arts. 163.º a 176.º-A do Código Penal, cuja vítima seja menor (art. 53.º, n.ºs 3 e 4 do Código Penal). Volvendo ao caso dos autos, verifica-se não se tratar de nenhuma das situações em que é obrigatória a suspensão da execução da pena de prisão acompanhada de regime de prova. Não obstante, estabelece o art. 34.º-B, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que “[a] suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no art. 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio”. Portanto, em face dos factos que resultaram provados, julga-se adequada a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, pelo período de quatro anos, com regime de prova, de acordo com plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP (art. 53.º, n.º 1 do Código Penal), pois afigura-se essencial demonstrar ao arguido que deve agir de acordo com o direito e promover o seu acompanhamento no sentido da consciencialização do mesmo de que as mulheres devem ser respeitadas e qual a posição que as mesmas ocupam na sociedade. O plano de reinserção social deverá ainda contemplar: - a frequência em programa de prevenção contra a violência doméstica (arts. 54.º, n.º 3 e 52.º, n.º 1, al. b) do Código Penal); - a proibição de contactar, por qualquer meio, com BB e de frequentar ou permanecer na sua residência, local de trabalho ou qualquer outro local onde aquela se encontre (arts. 54.º, n.º 3 e 52.º, n.º 2, al. b) do Código Penal e art. 34.º-B, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro); - pagamento da reparação oficiosa infra atribuída às vítimas (art. 51.º, n.º 1, al. a) do Código Penal). Não obstante, tendo em consideração que, apesar de tudo, o último episódio data de 30.01.2024, ou seja, há mais de um ano, entende-se ser desnecessário o controlo da proibição de contactos imposta através de meios técnicos de controlo à distância (art. 35.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro). Por outro lado, não se afigura adequada a proibição de contactos com CC, por ser filha do arguido e ser já maior de idade. Desta forma, efetuando um juízo de prognose, é possível concluir que a simples condenação, com regime de prova, é suficiente para que o arguido cumpra o determinado e se abstenha da prática de outros crimes». A defesa entende que a pena de 4 anos (cfr. Conclusão VII) foi severa, embora pouco ou nada fundamente a sua posição nesse jaez – apenas enuncia, sem qualquer esforço de argumentação, que a pena é excessiva e desproporcionada, pugnando pela aplicação de uma pena mais reduzida. É assim que argumenta (conclusões IV a VII): «A pena a que foi condenado, parece-nos, com o devido respeito, desajustada face à conduta e personalidade do recorrente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos puníveis. O Tribunal a quo violou, como se demonstrará, o disposto nos artigos 71º, por incorreta e imprecisa aplicação. Considerando os factos provados e as provas concretas sobre as circunstâncias da prática dos crimes e das condições pessoais do arguido, constata-se que: a) existiam discussões entre o arguido e a vítima BB, com troca de palavras injuriosas de parte a parte; b) o arguido nunca foi condenado pela prática de um crime da mesma natureza; e c) o arguido está integrado profissional e socialmente; Ao condenar o arguido AA na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período da condenação, impondo condições de suspensão e regras de conduta e pagamento de indemnização civil, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 71º, do C. Penal, traduzindo-se a pena aplicada numa pena demasiado severa, atenta a factualidade considerada». Pelos exactos termos destas conclusões, retiramos que a indignação da defesa apenas se prende com o quantum da pena de cúmulo (note-se que pede a absolvição do arguido quanto ao crime em que a vítima é a filha CC, acabando por pedir, a final e de forma coerente, a redução da pena de prisão pelo crime que resta ao «mínimo legal». Conhecemos as normas que tutelam a determinação da medida da pena. O artigo 71º, nº 1, do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações». Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações: a. determinação da medida abstracta da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa); b. escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do CP (operação aqui inexistente); c. fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respectiva, com base nos critérios do artigo 71º, do CP; d. ponderação da aplicação de uma pena de substituição; e. fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta). Quanto á pena de cúmulo: O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente». A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado. Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)». Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011): «A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77.º, n.º 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/08. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique». Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização». Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta. Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ. (…) Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71.º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes. (…) Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária. Por duas razões fundamentais: · É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso; · A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa. Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por: · Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes · A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares. · Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente). Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta. De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime». Ora, no caso vertente aplicou-se uma pena de 4 anos de prisão (numa moldura penal abstracta de cúmulo jurídico de 3 a 5 anos e seis meses), ainda assim suspensa na sua execução e com um prolixo regime de prova. Não tem razão a defesa em considerar esta pena como exagerada. Repare-se que se deu como não provado que seria sempre o arguido a iniciar as discussões, uma vez que BB referiu que «muitas vezes, era a própria quem iniciava as discussões, devido às atitudes do arguido» (cfr. motivação da matéria de facto). Contudo, em nenhum lado da sentença consta que existiu «troca depalavrasinjuriosas de parte a parte» - como bem se afere na resposta do MP, «tanto que, pela análise das mensagens que se encontram juntas aos autos, que eram trocadas entre o arguido e BB verificamos que as expressões utilizadas por um e pelo outro em nada se assemelham, sendo que os insultos utilizados pelo arguido não eram de todo recíprocos». Quanto ao passado criminal do arguido, ele consta do facto provado nº 41 - «Por decisão proferida em 03.11.2023, transitada em julgado em 19.04.2024, no âmbito do proc. nº 1102/20...., foi o arguido condenado pela prática, em 10.12.2020, de um crime de difamação agravado, um crime de injúria agravado e um crime de perseguição agravado, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita a regras de conduta, e de 200 dias de multa, à taxa diária de 9,00€, num total de 1.800,00€». Não são, de facto, crimes de violência doméstica que justificaram esta 1ª condenação mas são crimes contra a honra e a liberdade pessoal de terceiros (uma agente de execução), tão mas tão vizinhos do crime mais complexo de violência doméstica, delito este que acaba por enformar muitos dos pressupostos desses outros crimes praticados pelo arguido em 2020 (acaba por dar uma imagem próxima do temperamento deste arguido[7]). Quanto à sua integração profissional e social, há que dizer que tudo isso foi ponderado pelo tribunal no quantum achado[8], não sendo particularmente efusivos para justificar algum tipo de redobrada benevolência. O que nos faz concluir que os fundamentos invocados pelo recorrente não são suficientes para que se pudesse sequer ponderar uma alteração na pena que foi aplicada, uma vez que os factores invocados (mormente o 2º e 3º) foram devidamente valorados na sentença. Portanto, e sem necessidade de mais considerações, a pena não é excessiva, sendo antes a minimamente exigível para quem prevarica continuadamente, vilipendiando a pessoa sua ex-companheira e mãe de suas filhas, menosprezando também na sua honra e consideração psíquica a filha CC, aproveitando-se da relação de poder que sobre ela exerce enquanto pai e educador (no caso, pouco educador). Esperemos que o arguido aproveite esta nova oportunidade que o Estado lhe dá, o mesmo Estado que, tantas vezes, se apercebe da pouca severidade das penas aplicadas em sede de violência doméstica, assistindo, angustiado, a mortes de mulheres indefesas às mãos de seus ex-companheiros ou companheiros, após tantos sinais de alarme, não raras vezes ignorados ou erroneamente avaliados… 3.3. Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, só havendo que confirmar a sentença recorrida (factos e penas), assente que não temos por violadas as normas mencionadas no recurso. III – DISPOSITIVO Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida. Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa]. Coimbra, 11 de Junho de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator: Paulo Guerra Adjunto: Sara Reis Marques Adjunto: Maria da Conceição Miranda [1] Os factos foram estes, após comunicação da devida alteração não substancial, devidamente notificada às partes, sem qualquer resposta (acontecendo o mesmo quanto à nova alteração da qualificação jurídica de um dos delitos). [2] Cfr. KK/CIG «Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar (2.ª edição)», coordenado pelo relator deste acórdão, enquanto Director-Adjunto do CEJ (2020). [3] Seguimos de muito perto a tese que conclui pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artigo 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico (posição de LL – “O Crime de Violência Doméstica Na Jurisprudência Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Costa Andrade, Vol. I, Direito Penal (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e que constitui a interpretação tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9º do CC, do tipo de crime previsto no artigo 152º do CP e aos princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo vigentes em Direito Penal. Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica. Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma. A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de Violência Doméstica resultaria do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, parafamiliares, emocionais ou de coabitação. Arredando, desde modo, o apelo a quaisquer critérios extra-típicos de destrinça entre a violência interpessoal e a intrafamiliar, como o das relações de imparidade (MM), a aferição casuística de uma quebra de relação de confiança (NN), a susceptibilidade de a acção colocar em causa a dignidade humana ou o livre desenvolvimento da personalidade no contexto relacional pressuposto (..., OO, PP), admitindo que uma ofensa simples praticada em tal contexto relacional, ainda que isolada, integre sem mais indagações, o crime de Violência Doméstica. Entendemos que, ao nível da carga ofensiva pressuposta e da natureza do bem jurídico tutelado, inexiste qualquer destrinça substancial entre o tipo de violência doméstica e aqueloutros bens tutelados por tipos adjacentes que protejam bens jurídicos pessoais cuja lesão seja instrumentalmente susceptível de fazer perigar a saúde psicofísica da vítima, entendendo que a maior carga de ilicitude material subjacente ao programa legal de combate ao fenómeno da Violência Doméstica se alicerça, exclusivamente, no tipo de relação que intercede entre agente e vítima, não havendo, ao nível interpretativo, de lançar mão, pois, de quaisquer critérios extra-típicos para aferir da subsunção de uma dada conduta violenta ao tipo do artigo 152º, nº 1. Tal posição, em nosso entendimento, e na linha do opinado no referido Manual CEJ-CIG, «terá a virtude de conferir maior segurança e homogeneidade na aplicação do direito, afastando a margem de incerteza e insegurança que hoje abunda e traduzida na prática generalizada de desqualificação inopinada de atos de violência doméstica em crimes de natureza diversa, muitas vezes de natureza semipública». [4] A vítima directa é aquela que, em primeira linha, sofre as consequências da actuação criminosa, com impacto na integridade do seu corpo ou mente, enquanto a vítima indirecta experiencia estas actuações e é também afectada por elas, mas de modo diferente, porque é atingida de modo enviesado e, por isso, sem a mesma intensidade ou gravidade. A criança que presencia, ouve ou percepciona a violência exercida por um dos progenitores contra o outro, com muito mais acuidade quando esses actos de violência são sistemáticos e se prolongam ao longo de meses e até anos, encontra-se numa situação de vitimização tão ou mais grave do que aquela que é vivenciada pelo próprio progenitor a quem são, em primeira linha, direccionados os atos violentos. Vem sendo notado que entre testemunhar a violência no seio familiar ou para-familiar e ser vítima de outro tipo de maus-tratos, que lhe sejam directamente dirigidos, existe uma confluência dos efeitos nefastos para a saúde mental da criança. È, pois, para nós muito claro que, ainda que a criança não seja destinatária imediata do ímpeto do agressor, poderá também ser ela vítima de violência doméstica, quando os actos violentos foram por si presenciados ou percepcionados, reclamando a sua situação uma análise e um tratamento adequados. Ora, no nosso caso, a CC não só assistiu mas também sofreu na sua integridade psíquica estes maus tratos que, podendo não ter sido muito recorrentes, têm, contudo, suficiente densidade de ilicitude para saltar para a categoria ínsita a um crime de violência doméstica, não nos esquecendo nós do facto nº 10 onde se dá conta da existência de um homem arguido, marido e pai, que dizia aos sete ventos que «eu é que mando nesta casa. Isto é tudo meu», dando uma imagem de déspota e tirano na sua vivência como marido e pai de duas crianças que, embora sujeitas às responsabilidades parentais dos seus progenitores, não são, não podem ser, objectos de um poder autoritário e prepotente (cfr. artigos 1877º e 1878º, nomeadamente o seu nº 2, do Código Civil). Não olvidemos até que uma conduta isolada, que até nem assuma especial intensidade do ponto de vista material da saúde da vítima, pode comprometer a pacífica convivência familiar ou doméstica, pode corromper toda a relação de confiança pré-existente e, logo, ser enquadrável no artigo 152º. [5] Recentemente, o Parlamento russo, a Duma, aprovou a descriminalização da violência doméstica com 380 votos contra três. A nova moldura legal não prevê penalizações nos casos em que “não existam lesões corporais graves” e quando não ocorram mais do que uma vez por ano e a violência doméstica passa de uma ofensa criminal a uma ofensa administrativa. Retrocessos civilizacionais estes! [6] Foi devidamente feita a comunicação desta alteração da qualificação jurídica [a acusação colocou a alínea d)], nos termos do artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP. [7] Contudo, há que notar que esta 1ª condenação data de 3.11.2023, só transitada em julgado em 19.4.2024, logo, em data posterior à data dos factos narrados nestes nossos autos, não se podendo, assim, considerar, em sentido rigoroso técnico-jurídico, como um antecedente criminal) [8] «O arguido vive em casa da irmã mais velha, durante a semana, em ..., onde trabalha como professor; durante o fim-de-semana, vive em ..., sozinho, em casa arrendada, pela qual paga, mensalmente, 500,00€; aufere 1.200,00€ mensais; suporta várias dívidas, ficando com o equivalente ao salário mínimo nacional disponível; durante vários anos, foi treinador de futebol» (facto nº 40). |