Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
134/07.0TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: REENVIO DO PROCESSO
GÉNEROS ALIMENTÍCIOS
SAÚDE PÚBLICA
Data do Acordão: 01/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 24º DO TRATADO DE ROMA, PORTARIA N.º 620/90, DIRECTIVA DO CONSELHO N.º 88/388/CEE DE 22/06.
Sumário: 1. É permitida a existência da cumarina, com o limite fixado no Anexo II de 2 mg/kg, desde que as mesmas sejam provenientes do próprio género alimentício, naturalmente ou por força de uma adição no género alimentício de aromas preparados a partir de matérias de base naturais.
2. Estando a cumarina presente naturalmente na canela, contudo se em excesso, como qualquer aroma, é susceptível de colocar em risco a saúde dos consumidores, circunstância que a Portaria n.º 620/90, a qual transpôs para o ordenamento jurídico português a Directiva do Conselho n.º 88/388/CEE de 22/06,pretende acautelar.
3. O reenvio prejudicial, uma vez requerido, não deve ser obrigatório e deferido de forma automática, pois o juiz nacional deve ponderar se estão reunidos os requisitos para chamar a intervir tão alta instância como é o TJCE e respeitar as competências deste.
4. O juiz nacional não deve ficar mais limitado na apreciação dos factos e no enquadramento jurídico dos mesmos pelo simples facto da norma de direito interno ser transposição de norma de direito comunitário, pois deve decidir com os mesmos critérios e só deve suscitar o reenvio prejudicial se em consciência e de boa fé processual concluir que a norma suscita dificuldades de interpretação e aplicação no ordenamento interno.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo supra identificado, a ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica procedeu à apreensão no Entreposto de Torres Novas do agente económico A.., de 773 (setecentas e setenta e três) unidades de 500 gramas, de cereais de pequeno almoço da marca “Little Man Zimtinos”, efectuada no seguimento da Notificação de Alerta n.º 2006.0752, da RASFF da Comissão Europeia, a qual dava conta da existência no mercado nacional de géneros alimentícios com um nível de cumarina de 25 mg/kg.
*
Interposto recurso de impugnação de contra-ordenação, pela arguida, o tribunal recorrido, negou provimento ao recurso de impugnação, tendo decidido manter a apreensão daquele produto.
*
A arguida, inconformada interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão do Tribunal "a quo" que manteve a apreensão, pugnando pelo provimento do presente recurso, em virtude da ilegalidade da decisão de apreensão, e, consequentemente serem os produtos restituídos à recorrente A...
Caso se considere que a interpretação desta Directiva não é pacífica, e sendo esta decisiva para o bom julgamento da causa, deverá haver lugar ao pedido de reenvio prejudicial, de acordo com o artigo 234.º do Tratado de Roma.
Formula as seguintes conclusões:
«1. Pelas razões acima expostas, a decisão da ASAE de apreensão dos produtos supra referidos, assim como a douta sentença proferida em 1.ª instância carece de todo e qualquer fundamento.
2. Conforme a ora Recorrente teve oportunidade de desenvolver, a interpretação e aplicação que a ASA E e o Tribunal fazem da Portaria n.º 620/90, de 3 de Agosto, alterada pela Portaria n.º 264/94, de 30 de Abril, não está em conformidade com a letra da lei e o espírito do legisladores português e comunitário, e portanto com a Directiva 88/388/CE, de 22 de Junho, pelo que a ora Recorrente só pode concluir pela ilegalidade de tal interpretação.
3. Em primeiro lugar, a lei não estabelece um teor máximo de Cumarina "tout court”.
4. A lei precisa que a Cumarina não pode ser adicionada como tal aos géneros alimentícios ou aos aromas acima daquele teor máximo, mas salvaguarda que esta pode estar presente no género alimentício naturalmente ou na sequência de uma adição de aromas preparados a partir de matérias de base naturais.
5. Os flocos de trigo integral com sabor a canela em causa nos autos não contêm qualquer adição de Cumarina ou de qualquer outro aroma.
6. A Cumarina é um componente natural e aromatizante presente na canela e, como tal, permitido por lei.
7. Consequentemente, a decisão da ASA E de apreensão dos referidos produtos é ilegal, devendo estes ser imediatamente restituídos à Recorrente.
8. Caso se considere que a interpretação desta Directiva não é pacífica, e sendo esta decisiva para o bom julgamento da causa, deverá haver lugar ao pedido de reenvio prejudicial, de acordo com o artigo 234.º do Tratado de Roma».
*
Na resposta o Ministério Público sustenta que se deve manter a sentença recorrida.
Nesta instância a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta, louvando-se na resposta do Ministério Público na 1.ª instância, pronuncia-se no mesmo sentido, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.
Notificado o arguido para os efeitos do art. 417, n.º 2, do CPP, respondeu, concluindo essencialmente como na motivação.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre-nos decidir.
Vejamos a factualidade constante dos autos e respectiva motivação.
Factos provados:
«1- A ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica procedeu à apreensão de 773 (setecentas e setenta e três) unidades de 500 gramas, de cereais de pequeno almoço da marca “Little Man Zimtinos”.
2- A apreensão referida em 1) foi efectuada no seguimento da Notificação de Alerta n.º 2006.0752, da RASFF da Comissão Europeia, a qual dava conta da existência no mercado nacional de géneros alimentícios com um nível de cumarina de 25 mg/kg.

Factos não provados:
Nenhum com relevância para a presente decisão.

Motivação da decisão de facto:
O tribunal fundou a sua convicção na prova documental junta aos autos, bem como no teor da impugnação deduzida pela arguida, a qual não impugna a circunstância de nos cereais de pequeno almoço apreendidos existir um teor de 25 mg/kg de cumarina, e no depoimento das testemunhas Maria da Conceição Carneiro, agente autuante, Moisés Rodrigues e Fernando Marques».
*
O Direito:
São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Estabelece o artigo 64º, n.º 3 do DL 433/82 de 27.10 que o tribunal, ao conhecer do recurso interposto, pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação, com respeito contudo, pelo princípio da “proibição da reformatio in pejus” expressamente consagrado, em matéria contra-ordenacional, no artigo 72º-A daquele diploma legal.
*
Questão a decidir:
a) Apreciar da legalidade da apreensão dos produtos por excesso de cumarina em géneros alimentícios.
b) Apreciar se estão reunidos para o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, ao abrigo do art. 234.º, do Tratado de Roma.
A recorrente alega, em síntese, que a apreensão efectuada pela autoridade administrativa carece de fundamento, não sendo aplicável à situação em análise a Portaria n.º 620/90 de 03/08.
Para tal sustenta que a lei não estabelece um teor máximo de cumarina, sendo que esta não pode ser adicionada como tal aos géneros alimentícios ou aos aromas acima daquele teor máximo, mas salvaguarda que esta pode estar presente no género alimentício naturalmente ou na sequência de uma adição de aromas preparados a partir de matérias de base naturais.
Os flocos de trigo integral com sabor a canela em causa não contêm qualquer adição de cumarina.
Conclui que a cumarina é um componente natural e aromatizante presente na canela e, como tal, permitida por lei.
Apreciemos pois a questão.
O homem começou por utilizar os géneros alimentícios no seu estado natural.
Porém, por razões de vária ordem, designadamente devido ao aumento demográfico mundial e da evolução dos processos tecnológicos, os produtos deixaram de ser consumidos apenas em natureza para serem consumidos e transformados em larga escala. Para isso houve necessidade de adicionar aos géneros alimentares certas substâncias, isto é os aditivos.
A inclusão de aditivos nos géneros alimentícios deve ser contudo determinada por rigorosos critérios científicos e tecnológicos
O DL n.º 182/89, de 8 de Junho, impôs-se no nosso ordenamento jurídico interno, de modo a adoptar os princípios estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde e transpondo as Directivas comunitárias, tomando em consideração as tradições e os hábitos alimentares nacionais e assegurando a defesa da saúde dos consumidores.
Tal diploma fixou pois os princípios orientadores da aplicação dos aditivos nos géneros alimentícios e definiu as regras a que deve obedecer a sua utilização.
O art. 2.º, al. b), do DL 182/89, dá a seguinte noção de “aditivo alimentar”:
«Toda a substância, tenha ou não valor nutritivo, que por si só não e normalmente género alimentício nem ingrediente característico de um género alimentício, mas cuja adição intencional, com finalidade tecnológica ou organoléptica, em qualquer fase de obtenção, tratamento, acondicionamento, transporte ou armazenamento de um género alimentício, temo como consequência quer a sua incorporação nele ou a presença de um derivado, quer a modificação de características desse género».
Os princípios a que deve obedecer a utilização dos aditivos alimentares nos géneros alimentícios estão contemplados no art. 3.º, n.º 1 e só se justifica quando corresponder a quaisquer dos objectivos constantes do n.º 2, do mesmo artigo.
A Portaria n.º 833/89, de 22 de Setembro, na sequência da definição desses princípios estabeleceu a lista positiva dos aditivos admissíveis, bem como as condições específicas da sua utilização, relativamente a corantes, conservantes, antioxidantes e espessantes, gelificantes ou estabilizadores do equilíbrio físico.
Não contemplando esta portaria as substâncias com propriedades aromatizantes, pela impossibilidade de elaborar listas positivas das mesmas, em consequência da complexidade que revestem face àquelas atrás mencionadas, tornou-se necessário a adopção de disposições específicas relativamente a estes aditivos.
Foi então que com a Portaria n.º 620/90, de 3 de Agosto se estabeleceram os princípios gerais, definições e condições de obtenção dos aromas, acolhendo-se no direito interno a Directiva do Conselho n.º 88/388/CEE, de 22 de Junho.
Assim, a Portaria n.º 620/90 de 03/08, (com alterações introduzidas pela Portaria n.º 264/94 de 30/04, esta motivada pela Directiva n.º 91/71/CEE da Comissão, de 16 de Janeiro) no seu art. 1.º, define e fixa as condições de obtenção dos aromas destinados a ser utilizados no interior ou à superfície dos géneros alimentícios, para lhes conferir um determinado cheiro ou gosto.
Segundo o art. 2.º, al. a), desta Portaria, entende-se por «“Aroma” - as substâncias aromatizantes, os preparados aromatizantes, os aromas de transformação, os aromas de fumo ou suas misturas».
Esta mesma Portaria, que transpõe para o ordenamento interno, os princípios comunitários nesta matéria, estipula no art. 5.º, al. a), os critérios gerais de pureza a que os aromas adicionados aos géneros alimentícios devem obedecer.
O legislador para além daquelas características ali exigidas preocupou-se ainda com as quantidades dos aromas utilizados nos géneros alimentícios, estipulando, nesta matéria o art. 5º, n.º 2, o seguinte:
«A utilização de aromas não deve dar origem à presença, nos géneros alimentícios prontos a consumir, das substâncias constantes dos anexos I e II, em quantidades superiores às aí fixadas».
A cumarina é uma substância proveniente de aroma, expressamente prevista no Anexo II, da Portaria n.º 620/90 de 3 de Agosto, com as alterações introduzidas pela portaria n.º 264/94 de 30/04.
No Anexo II daquela Portaria são estabelecidos os teores máximos em certas substâncias provenientes de aromas e de outros ingredientes alimentares com propriedades aromatizantes presentes nos géneros alimentícios prontos a consumir e nos quais foram utilizados aromas.
Entre essas substâncias consta a cumarina, com um teor máximo permitido de 2 mg/kg, exceptuando as gomas de mascar, em que é permitido 50 mg/kg e as bebidas alcoólicas, em que é permitido 10 mg/kg.
Ora, o tribunal a quo deu como provado que a ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica procedeu à apreensão de 773 unidades de 500 gramas, de cereais de pequeno almoço, com um nível de cumarina de 25 mg/kg.
Tal apreensão foi efectuada no seguimento da Notificação de Alerta n.º 2006.0752, da RASFF da Comissão Europeia, a qual dava conta da existência no mercado nacional de géneros alimentícios com essa quantidade de cumarina.
A própria recorrente não põe em causa a quantidade de cumarina nos cereais.
Por isso, não podendo este tribunal de recurso conhecer da matéria de facto (art. 75.º, do D. L. 433/82 de 27 de Outubro) e não existindo manifestamente qualquer dos vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tem-se por assente necessariamente a matéria de facto.
Discute pois a recorrente tão só a interpretação da lei e a consequente legalidade da apreensão, defendendo que é admissível a existência de cumarina nos géneros alimentícios.
Para tal sustenta que a cumarina não pode ser adicionada como tal aos géneros alimentícios ou aos aromas acima daquele teor máximo, mas que esta pode estar presente no género alimentício naturalmente ou na sequência de uma adição de aromas preparados a partir de matérias de base naturais.
Completa a sua fundamentação dizendo que o flocos de trigo integral com sabor a canela, não contêm qualquer adição de cumarina ou de qualquer outro aroma e deste modo, sendo a cumarina um componente natural e aromatizante presente na canela, é, como tal, permitida por lei.
Cremos que não lhe assiste manifestamente razão.
Os cereais de pequeno-almoço apreendidos tinham um teor de 25 mg/kg em cumarina, encontrando-se em desconformidade com o disposto na referida Portaria n.º 620/90, a qual transpôs para o ordenamento jurídico português a Directiva do Conselho n.º 88/388/CEE de 22/06.
Na nota de rodapé (1) do Anexo II, daquela Portaria aplica-se a todas as substâncias ali mencionadas e não apenas à cumarina.
A referida nota de rodapé diz concretamente o seguinte:
«Não pode ser adicionada como tal aos géneros ou aos aromas. Pode estar presente no género alimentício quer naturalmente, quer na sequência de uma adição de aromas preparados a partir de matérias de base naturais».
Ora, não pode a recorrente extrair daqui a conclusão de que, não podendo a cumarina ser adicionada aos géneros alimentícios, pode estar presente nos mesmos sem qualquer limite.
Não é esse o sentido dessa norma delimitadora e proibitiva.
Caso contrário não faria sentido os limites impostos no Anexo II.
Com a anotação de rodapé quis o legislador deixar claro que é absolutamente proibido adicionar as substâncias referidas no Anexo II, da Portaria n.º 620/90.
Mas o facto de não poder ser adicionada (proibição absoluta), não quer dizer que não possa estar presente desde que respeite os limites impostos, impondo o limite quanto à sua presença nos géneros alimentícios prontos a consumir de 2 mg/kg.
É o que se conclui necessariamente quando ali se diz, “não pode ser adicionada como tal aos géneros ou aos aromas” e depois se admite dizendo “pode estar presente no género alimentício quer naturalmente, quer na sequência de uma adição de aromas preparados a partir de matérias de base naturais”, desde que respeite obviamente os limites impostos.
Repetimos, caso contrário não faria sentido o limte imposto no Anexo II à Portaria.
É pois permitida a existência da cumarina, com o limite fixado no Anexo II de 2 mg/kg, desde que as mesmas sejam provenientes do próprio género alimentício, naturalmente ou por força de uma adição no género alimentício de aromas preparados a partir de matérias de base naturais.
Ora, estando a cumarina presente naturalmente na canela, contudo se em excesso, como qualquer aroma, é susceptível de colocar em risco a saúde dos consumidores, circunstância que a referida Portaria pretende acautelar.
Por fim a recorrente conclui que caso se considere que a interpretação desta Directiva não é pacífica, e sendo esta decisiva para o bom julgamento da causa, deverá haver lugar ao pedido de reenvio prejudicial, de acordo com o artigo 234.º do Tratado de Roma.
Ora, decidiu este tribunal de recurso, como aliás bem decidiu o tribunal a quo, que não sofre dificuldades de interpretação a Directiva do Conselho n.º 88/388/CEE de 22/06.
Os géneros alimentícios cereais de pequeno almoço apreendidos tinham um teor de 25 mg/kg de cumarina, encontrando-se em desconformidade com o disposto na referida Portaria n.º 620/90, de 3 de Agosto, a qual transpôs de forma literal para o ordenamento jurídico português a Directiva do Conselho n.º 88/388/CEE de 22/06.
Uma vez feita a transposição integra a legislação nacional.
A recorrente, como se extrai da 8.ª conclusão da motivação de recurso, vem requerer condicionalmente o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), de acordo com o artigo 234.º do Tratado de Roma, isto é, para o caso de se considerar que a interpretação desta Directiva não é pacífica.
Este é o pedido concreto feito a este tribunal, sem qualquer equívoco e nestes termos deve ser tratado.
Ora, o reenvio prejudicial pode ter por objecto a resposta a uma de duas questões:
- a interpretação de uma disposição de direito comunitário;
- a apreciação da validade de um acto emanado das instituições comunitárias.
No caso dos autos estamos perante uma questão de interpretação de uma disposição de direito comunitário.
Na aplicação de uma qualquer complexo normativo, o juiz enfrenta frequentemente dificuldades na determinação do sentido e alcance dos preceitos aplicáveis.
E essa dificuldade de interpretação surge da falta de elementos para o intérprete poder alcançar a ratio legis de determinada norma e de divergências de ordem linguística quanto ao verdadeiro significado dos conceitos utilizados na língua da legislação comunitária e a língua usada na legislação dos diversos estados membros.
Relativamente à dificuldade de interpretação das normas comunitárias, escreve Miguel Almeida Andrade, in Guia Prático do Reenvio Prejudicial, do Gabinete de documentação e Direito Comparado, pág. 30:
«Em primeiro lugar, porque muitos dos seus conceitos não têm o mesmo sentido que os correspondentes em direito interno. Esta é uma realidade que se deve ter presente, caso contrário a especificidade do direito é posta em causa e a sua unidade colocada em risco.
(…)
Há ainda que ter em conta que todas as versões linguísticas dos textos de direito comunitário fazem fé. A existência de diferenças entre elas levanta óbvias dificuldades interpretativas.
(…)
Existem, por fim, conceitos introduzidos pelo direito comunitário, cujo conteúdo o intérprete que com ele esteja pouco familiarizado terá dificuldade em precisar».
Não é manifestamente o caso dos autos, pois não está em causa propriamente a interpretação de uma norma de direito comunitário dentro daqueles parâmetros.
Estamos sim perante a interpretação do alcance de uma norma de direito interno que foi transposta do direito comunitário, em que essa interpretação não apresenta qualquer particularidade que justifique o reenvio prejudicial para o TJCE.
O que se discute não é uma questão de divergência de interpretação ou sentido da norma comunitária face ao direito interno, mas decidir se a cumarina, (a qual é pacífico que não pode adicionada como tal), pode no entanto estar presente no género alimentício quer naturalmente, quer na sequência de uma adição de aromas a partir de matérias de base naturais em quantidade superior a 2 mg/Kg.
A interpretação que acima deixámos da norma de direito interno, absolutamente coincidente com a norma de direito comunitário, pareceu-nos manifestamente clara que por razões de saúde do consumidor, segundo os princípios definidos pela Organização Mundial de Saúde e a Comunidade Económica Europeia e acolhidos no ordenamento jurídico português, o art. 5.º, n.º 2, da Portaria 620/90, de 3 de Agosto, que fez a transposição para o direito interno da Directiva n.º 88/388/CEE, do Conselho, de 22 de Junho, proíbe em absoluto o adicionamento de cumarina com tal nos géneros alimentícios e só admite a presença de cumarina quer naturalmente, quer na sequência de uma adição de aromas a partir de matérias de base naturais em quantidades que não excedam 2 mg/Kg.
Parece-nos pois linear tal interpretação.
Entendemos que o reenvio prejudicial, uma vez requerido, não deve ser obrigatório e deferido de forma automática, pois o juiz nacional deve ponderar se estão reunidos os requisitos para chamar a intervir tão alta instância como é o TJCE e respeitar as competências deste.
O juiz nacional não deve ficar mais limitado na apreciação dos factos e no enquadramento jurídico dos mesmos pelo simples facto da norma de direito interno ser transposição de norma de direito comunitário, pois deve decidir com os mesmos critérios e só deve suscitar o reenvio prejudicial se em consciência e de boa fé processual concluir que a norma suscita dificuldades de interpretação e aplicação no ordenamento interno.
A este respeito escreve Miguel Almeida Andrade, in ob. cit., pág. 31:
«…o juiz nacional não poderá efectuar um reenvio prejudicial que tenha por objecto a interpretação do direito nacional, tal como não pode pedir ao TJCE que julgue da compatibilidade de qualquer preceito de direito interno com o direito comunitário. São tarefas que lhe incumbem em exclusivo, tal como o conhecimento dos factos e a aplicação do direito ao caso concreto».
Concluímos assim que nos parecendo pacífico o entendimento da norma em análise, isto é, não existindo dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de direito comunitário suscitada perante este tribunal de recurso, ainda que decidindo em última instância, é de rejeitar o reenvio prejudicial.
Neste sentido decidiu o Ac. do TJCE de 6/10/82, Proc. 283/81, Recueil 1982, pág. 61, que passou a enunciar a regra que ficou conhecida como a teoria do acto claro.
Nesta conformidade improcederá totalmente o recurso interposto pela recorrente A...
*
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, negar provimento ao recurso, confirmando-se assim a sentença recorrida que decidiu manter a apreensão dos produtos apreendidos pela ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e consequentemente rejeitar o reenvio prejudicial, ao abrigo do artigo 234.º do Tratado de Roma, ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
Custas pela arguida, cuja taxa de justiça se fixa em 7UCs.